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1 Ano 14, n. 29, abr. 2013 i nforme econômico econômico 2 A Guerra civil brasileira: conservadorismo ou miséria na explicação desse processo Samuel Costa Filho 13 Famílias vulneráveis como expressão da questão social, à luz da política de assistência social Izabel Herica Gomes M. Cronemberger e Solange Maria Teixeira 23 Reflexões sobre educação para a diversidade: problematizando a construção da cidadania na Academia Amanda Furtado Mascarenhas Lustosa e Lúcia Cristina dos Santos Rosa 31 Os institutos federais de educação, ciência e tecnologia no desenvolvimento brasileiro: entre o mercado e os excluídos José Tavares da Silva Neto e Guiomar de Oliveira Passos 35Reciclagem de pneus Danielle Maria dos Reis Galdino e Maria do Socorro Lira Monteiro 41 A lógica é culturalmente relativa? Algumas considerações sobre os argumentos de David Bloor e Tim Triplett sobre os Azande Diana Patricia Ferreira de Santana 44 Stakeholders e responsabilidade social corporativa sob a perspectiva da teoria da ecologia organizacional Roberta da Rocha Rosa Martins, Fernando Gimenez, Luci Michelon Lohmann e Jorge Gaio 50 Juventude, cultura e linguagens na década de 1960 Teresinha Queiroz 55 Escravidão e violência: debates e tendências na historiografia piauiense Débora Laianny Cardoso Soares e Solimar Oliveira Lima 62 Resenha: Sociedade civil internacional, organizações internacionais e Gramsci Rodrigo Duarte Fernandes ISSN 1517-6258 Publicação do Curso de Ciências Econômicas/UFPI Ano 14, n. 29 abr. 2013 i nforme editorial Um bom texto cativa seu leitor pelo conteúdo e sua forma de apresentação. Essa relação, quando prazerosa, é que motiva para o querer mais - mais ideias e mais leituras; do mesmo autor e de tantos outros que se ampliam, quase incontrolavelmente, as possibilidades de novas descobertas. Assim parece ser o percurso daqueles que se mobilizam para as aprendizagens na universidade. E é por isso que o Informe Econômico se mantem fiel ao seu mais precioso leitor, os discentes da graduação. Estes fazem circular as edições, comentam as publicações e as utilizam como referências em debates em sala de aula e fontes de pesquisa para trabalhos acadêmicos e monografias de conclusão de cursos. Para eles, o Informe reservará, sempre, páginas para publicarem os seus pensamentos. Com o mesmo respeito, o Informe estará disponível às contribuições de docentes, independentemente de titulações, que atuam apenas na graduação. Contudo, o conhecimento cientifico exige avanços. Neste particular, cresce o número de leitores nas pós-graduações; muitos dos quais foram nossos colaboradores quando graduandos. A circulação em mestrados e doutorados trouxe para o Informe uma maior presença de pesquisadores de diferentes Programas, discentes e docentes. Atender às necessidades desse público exigiu adequações na publicação, inicialmente, na forma de apresentação dos artigos. As mudanças continuam, agora, como o leitor mais atento pode perceber, no layout da capa, que deixou o Informe mais leve, mas que continua denso na qualidade e pluralidade das ideias. Queremos fazer do Informe, cada vez mais, uma produção científica, mas sem os exageros das amarras produtivistas que regem o mundo da academia. O nosso compromisso é, antes de tudo, com a ética do cuidado com nossos colaboradores, escritores e leitores, que se manifesta no valor dos textos, na crítica à complexa realidade e no profícuo diálogo com o conjunto da sociedade. É a sociedade (e para ela) que justifica a existência e a pertinência do Informe Econômico. Neste particular, ampliamos a distribuição para os mais diferentes setores sociais no Brasil. Boa leitura! Prof. Solimar Oliveira Lima Editor-chefe

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1 Ano 14, n. 29, abr. 2013informe econômico

econômico2 A Guerra civil brasileira:conservadorismo ou miséria naexplicação desse processoSamuel Costa Filho

13 Famílias vulneráveis como expressãoda questão social, à luz da política deassistência socialIzabel Herica Gomes M. Cronemberger e SolangeMaria Teixeira

23 Reflexões sobre educação para adiversidade: problematizando aconstrução da cidadania na AcademiaAmanda Furtado Mascarenhas Lustosa e LúciaCristina dos Santos Rosa

31 Os institutos federais de educação,ciência e tecnologia no desenvolvimentobrasileiro: entre o mercado e osexcluídosJosé Tavares da Silva Neto e Guiomar de OliveiraPassos

35Reciclagem de pneusDanielle Maria dos Reis Galdino e Maria do SocorroLira Monteiro

41 A lógica é culturalmente relativa?Algumas considerações sobre osargumentos de David Bloor e TimTriplett sobre os AzandeDiana Patricia Ferreira de Santana

44 Stakeholders e responsabilidadesocial corporativa sob a perspectivada teoria da ecologia organizacionalRoberta da Rocha Rosa Martins, Fernando Gimenez,Luci Michelon Lohmann e Jorge Gaio

50 Juventude, cultura e linguagens nadécada de 1960Teresinha Queiroz

55 Escravidão e violência: debates etendências na historiografia piauienseDébora Laianny Cardoso Soares e Solimar OliveiraLima

62 Resenha: Sociedade civilinternacional, organizaçõesinternacionais e GramsciRodrigo Duarte Fernandes

ISSN 1517-6258

Publicação do Curso de Ciências Econômicas/UFPI Ano 14, n. 29 abr. 2013

informeeditorial

Um bom texto cativa seu leitor pelo conteúdo esua forma de apresentação. Essa relação, quandoprazerosa, é que motiva para o querer mais - maisideias e mais leituras; do mesmo autor e de tantosoutros que se ampliam, quase incontrolavelmente, aspossibilidades de novas descobertas. Assim parece sero percurso daqueles que se mobilizam para asaprendizagens na universidade. E é por isso que oInforme Econômico se mantem fiel ao seu mais preciosoleitor, os discentes da graduação. Estes fazem circularas edições, comentam as publicações e as utilizamcomo referências em debates em sala de aula e fontesde pesquisa para trabalhos acadêmicos e monografiasde conclusão de cursos. Para eles, o Informe reservará,sempre, páginas para publicarem os seus pensamentos.Com o mesmo respeito, o Informe estará disponível àscontribuições de docentes, independentemente detitulações, que atuam apenas na graduação.

Contudo, o conhecimento cientifico exige avanços.Neste particular, cresce o número de leitores naspós-graduações; muitos dos quais foram nossoscolaboradores quando graduandos. A circulação emmestrados e doutorados trouxe para o Informe umamaior presença de pesquisadores de diferentesProgramas, discentes e docentes. Atender àsnecessidades desse público exigiu adequações napublicação, inicialmente, na forma de apresentaçãodos artigos. As mudanças continuam, agora, como oleitor mais atento pode perceber, no layout da capa,que deixou o Informe mais leve, mas que continuadenso na qualidade e pluralidade das ideias.

Queremos fazer do Informe, cada vez mais, umaprodução científica, mas sem os exageros das amarrasprodutivistas que regem o mundo da academia. O nossocompromisso é, antes de tudo, com a ética do cuidadocom nossos colaboradores, escritores e leitores, quese manifesta no valor dos textos, na crítica à complexarealidade e no profícuo diálogo com o conjunto dasociedade. É a sociedade (e para ela) que justifica aexistência e a pertinência do Informe Econômico.Neste particular, ampliamos a distribuição para os maisdiferentes setores sociais no Brasil.Boa leitura!

Prof. Solimar Oliveira LimaEditor-chefe

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Resumo: o presente artigo, a partir das ideias de Hirschman com respeito às paixões humanas malignas eao controle dessas pelos interesses econômicos, trata dos motivos dos níveis elevados de criminalidadeexistente na sociedade brasileira, que chegam a revelar a existência de uma verdadeira guerra civil nãodeclarada. A dominância do capitalismo financeiro não somente despertou paixões ainda mais malignas,como egoísmo, consumismo, etc., mas passou a estimulá-las e glorificá-las como atitudes bem-vindas. Nasociedade brasileira, o processo de transformação de sua herança rural para um capitalismo moderno demassa foi eliminando os elementos que seguravam a revolta e que mantinham conformados a grandequantidade de miseráveis e pobres. A partir da crise dos anos 1980 e, posteriormente, com as políticasneoliberais de dominância financeira, essas paixões malignas também passaram a predominar na sociedadebrasileira. O neoliberalismo debilitou ainda mais o Estado, que se revelou despreparado para enfrentar essecombate.Palavras-chave: Questão social. Sociedade brasileira. Capitalismo. Ideologia. Guerra Civil.

A GUERRA CIVIL BRASILEIRA:conservadorismo ou miséria na explicaçãodesse processo Por Samuel Costa Filho*

1 IntroduçãoA sociedade brasileira ainda é uma das mais

desiguais do mundo contemporâneo. Embora nasduas últimas décadas tenha ocorrido um processode melhoria na questão da distribuição de rendaentre o trabalho e avanços nos indicadores sociais,os privilegiados, a classe alta, cresceu 54% entre2003 e maio de 2011. No ranking de 1.210bilionários da badalada Revista Forbes, osbrasileiros só perdem em número para osmultimilionários dos Estados Unidos da América,China, Rússia, Índia, Alemanha e Inglaterra,ocupando a sétima posição (MARTINS; VIEIRA,2011). Em uma nação acostumada com asdesigualdades, o número de ricos é crescente: em2010, segundo a mesma revista Forbes, o Paísganhou aproximadamente 23 novos milionários pordia e o número de pessoas com US$ 1 milhão dedólares alcançou mais de 155 mil pessoas. OBrasil, com renda per capita de apenas US$ 10,9mil - 50% inferior à da Argentina (que é de US$15,9 mil) -, ao ter tantos bilionários e milionários,revela uma característica de maior perversidade docapitalismo nativo em relação aos outros paísescapitalistas.

O processo de formação da sociedade brasileiradeixou marcas profundas, e sua maiorcaracterística é a construção de uma sociedademarcada por elevadas desigualdades econômicas esociais. Apesar dos avanços recentes, adesigualdade permanece; nas últimas décadas

também cresceu o problema da violência urbana eo sentimento de insegurança; é constante umsentimento de ameaça e intranquilidade nocotidiano das pessoas que vivem tanto nas grandesmetrópoles como nas cidades do interior, revelandoum processo de interiorização da violência - onúmero de crimes e assaltos é tal que superagrandes conflitos e guerras entre nações: em 2009,o Human Rights Watch divulgou relatório afirmandoque “Aproximadamente 50 mil homicídios ocorrema cada ano no Brasil” (REPÓRTER BRASIL, 2009,n.p.).

Nessa realidade, existem duas principaiscorrentes que explicam o motivo desta guerra civilbrasileira. O lado conservador, que critica a falta desegurança e o crescimento da marginalidade,assenta-se no discurso de falta e incompetência dapolícia e da segurança pública, de leniência dojudiciário e de omissão do Estado. Por outro lado,as instituições e as pessoas que estudam aquestão social brasileira, preocupadas com o gravequadro econômico-social, apresentam estasituação como uma fábrica de injustiças e demarginais, propondo e reivindicando melhorias epolíticas sociais como forma de resolver oproblema.

O objetivo deste artigo, portanto, é analisar osmotivos desse elevado índice de criminalidade einsegurança presente na sociedade brasileira, apartir da tese de Alberto Hirschman (2002) sobre o

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comportamento humano em uma ordem social quetenta pôr freios nas paixões humanas malignas, aoestimular o lado da razão e dos interesses doindivíduo no processo de formação de umasociedade coletiva. Para este fim, na seçãoseguinte são apresentados os fundamentosideológicos do capitalismo que procuram justificar osistema e pôr freios nas paixões malignashumanas - da gênese da lógica do espírito docapitalismo em Max Weber (1989), até a ideologiado período de dominância do capital financeiro; emcontinuação, aborda-se o processo de formação dasociedade brasileira e suas peculiaridades, paratratar da questão dos altos índices de criminalidadeno País e, no final, apresentar algumas conclusõespreliminares.2 Os fundamentos ideológicos do capitalismo:da sua gênese ao capital financeiro

No período feudal, predominava a condenaçãodas atividades econômicas baseadas em atitudesque eram consideradas paixões humanascondenáveis e malignas (usura, comércio, amor aoganho e avareza). Todavia, o processo de evoluçãohistórica da humanidade levou ao desenvolvimentoe vitória da sociedade capitalista, que, inicialmente,difundiu a ideologia baseada na ética protestantedo trabalho duro, da frugalidade e da legitimação doganho financeiro e do lucro, disseminando assim aaceitação do comércio e até a atividade da usura.

Albert O. Hirschman (2002), ao estudar ocapitalismo nascente, apresentou a interessantetese em defesa do sistema capitalista, baseado naarguta percepção da crença de que este sistemadesperta no homem algumas tendências benignasque se contrapõem a algumas malignas, levando àvitória do interesse próprio (do lucro), subjugandoas paixões humanas nocivas, malignas e violentas,que são próprias dos indivíduos e que os levam ater tais atitudes e a serem maus. Essa oposiçãoentre interesses (econômicos) e paixões(humanas) passou a conferir ao interesse e aoenriquecimento uma conotação positiva e crioulimites pondo freios nas paixões humanasmalignas. Gestou-se um novo paradigmareducionista do interesse próprio que colocou ointeresse da vantagem material, do ganho, daaceitação da acumulação e do comércio comocomportamento socialmente útil, aceitável edominante dentro dessa nova ordem social. Asatividades econômicas da usura, do comércio, queforam amaldiçoadas e reprovadas durante séculos,

passaram a ser tidas como importantes evalorizadas pelas elites, contribuindo melhor para oabrandamento das paixões malignas e para ocontrole sobre a atuação dos governos despóticos.Devido à incapacidade de a religião coibir aspaixões humanas em uma sociedade capitalista, arazão passou a ser o melhor controlador dosindivíduos e dos governos, servindo não somentepara explicar a origem do sistema capitalista, maspara a sua reprodução como ordem social.

Conforme Hirschman (2002), essa atitudepositiva em relação à atividade econômica foiamparada, ao longo do tempo, por diferentescorrentes ideológicas que passaram a mostrarcomo determinadas paixões humanas inofensivaspredominantes no capitalismo fizeram despertaralgumas tendências benignas, em detrimento demuitas outras malignas.

No processo de gênese, expansão edesenvolvimento do capitalismo, ocorreu umaevolução histórica que apresentou uma faseconcorrencial; em seguida, outra de predominânciaestatal-oligopolizada e, hodiernamente, ocorre odomínio do capital financeiro. Na sociedadecapitalista, ao longo desse processo de mudança,foram surgindo e sendo adaptados novosfundamentos necessários para justificar e legitimaressa formação social, como também para manter aadesão ativa e o sacrifício das classes menosbeneficiadas por esse sistema. As construçõesdessas ideologias procuraram identificar eenaltecer os elementos responsáveis pelo sucessodo capitalismo em cada fase histórica,disseminando uma atitude individual e socialpositiva em relação a esse momento vivido pelarealidade econômica e social, e servindo comobase ideológica para legitimar as novas relaçõesinterpessoais burguesas.

Os intelectuais da ortodoxia se encarregaramde desenvolver as diferentes formas de legitimaressa sociedade, com a apresentação das razõesque permitiram inicialmente a autonomia individual,aliada à ideia de formação de uma sociedadesolidária e de um convívio social saudável, sujeita àregulação pelo Estado. Essa justificativa apareceusempre de uma forma diferente, segundo omomento histórico, econômico e social darealidade capitalista. A ideia disseminada era a deque essa sociedade proporcionaria vantagenscoletivas, contribuindo para todos e para o bemcomum, de modo que os interesses econômicos

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serviriam de elemento para conter as paixõesmalignas de uma forma mais vantajosa do que asusadas pela religião, no adequado funcionamentoda sociedade capitalista. Os séculos XIV ao XVIIIrepresentam o período complexo de transiçãoideológica da gênese do capitalismo comercial eposterior supremacia do capitalismo industrial.Ao longo desse período, ocorreu a formação dopensamento que justificava o espírito docapitalismo, levando ao declínio da ética daaristocracia e das ideias das relaçõessocioeconômicas feudais. O declínio e atransformação da moral e da ideologia feudalconduziram a um novo código de conduta moralque correspondia à realidade do nascimento docapitalismo, do interesse e da necessidade daclasse burguesa em ascensão - com a queda dospreceitos morais e religiosos do catolicismo, entãoinúteis e irreais para aquele momento histórico desupremacia do capitalismo.

Os fundamentos do comportamento do sistemacapitalista baseado em diferentes análisesmotivacionais têm em Max Weber (1989) o inicioda tradição que impôs a noção de uma ideologia de“espírito do capitalismo”, em que aparecem asrazões e os interesses individuais e crençasassociadas à ordem capitalista como justificativasque sustentam, legitimam os modos de açãocapitalista, do trabalho, e que também passarama legitimar a propriedade, o patrimônio e areprodução dessa ordem social. Weber (1989)assentou sua análise na moral burguesa(as virtudes da prudência, da frugalidade,da moderação, da família, do trabalho) e nospreceitos do puritanismo protestante calvinista.Essas atitudes e os motivos éticos protestantesinspiravam os burgueses em sua atitude prática deacumulação de capital, dando margem a uma novarelação moral entre os homens e o trabalho - nãonecessitando mais a sociedade do ethos dareligião católica ou de um controle da vida socialpela ordem religiosa - que passou a ser justificadapela vocação do trabalho: o homem deve cumprir oseu dever, originando poderosa razão moral parajustificar o capitalismo.

Essa ideologia perdurou por muito tempo, masnecessitou ser atualizada e adaptada devido aodesenvolvimento econômico e social da sociedadecapitalista. Durante a segunda metade do séculoXX, o capitalismo passou a ser dominado por umanova dinâmica e por novas atitudes por parte daburguesia, agora hegemônica, não necessitando

mais viver do trabalho. Embora com mudanças, anova explicação do espírito do capitalismo mantevea visão de uma sociedade justa, de proteção dosinteresses coletivos, do bem comum, da nação,do Estado, continuando a apresentar a acumulaçãode capital como finalidade em si mesma. Estaideologia atende ainda às necessidades daspessoas comprometidas no processo deacumulação, em especial das classes médias,formadas por trabalhadores que foram educados,formados e treinados para organizar as práticaseconômicas desvinculadas de qualquer significadoda esfera moral.

A ideologia do capitalismo como conjunto derepresentações mentais que legitima a novarealidade industrial, no período pós-crise dos anos1930, seguiu na linha da glorificação e dos elogiosà profissão e à competência adquirida pelo capitalhumano em seu esforço próprio, pela via daeducação, especializando-se e aprimorando-separa a condução dos negócios, agora realizadospela descentralização, pela meritocracia e pelaadministração por objetivos. Essa nova justificativado capitalismo sinalizou os executivos como osnovos heróis da economia, devido à separaçãoentre a propriedade e a gestão das grandesempresas. Assim, o nascimento da gestãoempresarial e de seu corpo de executivos,administradores e diretores assalariados quegerenciavam as grandes empresas deu origem aum novo espírito do capitalismo. A linha seguidaestava preocupada com a mobilização, motivaçãodo pessoal, e para dar sentido ao trabalho doexecutivo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).

Ao constatar o processo de mudança, asconquistas sociais e a evolução do sistemacapitalista, o sociólogo inglês Thomas H. Marshallapresentou uma tese que ressalta o processo decrescimento dos direitos de cidadania. Nessalinha, mostrou a evolução do crescimento dacidadania, tendo o século XVIII representado operíodo das vitórias e das conquistas da cidadaniacivil (liberdade da palavra, religião, pensamentoetc.). O século XIX testemunhou as conquistasdos direitos de cidadania política (direito ao voto eextensão a um grupo cada vez maior), para,finalmente, o século XX marcar a vitória dos direitosda cidadania social e econômica na vida dosindivíduos. Os cidadãos têm agora reconhecidos osdireitos de ter atendidas as condições mínimas deeducação, saúde, segurança, bem-estar econômi-co, e não mais como assistência social (HIRSCHMAN, 1992).

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Uma grande reestruturação econômica e socialiniciada nas últimas três décadas do século XXapresenta sua supremacia a partir dos anos 1990,pondo em prática novas tecnológicas rumo àflexibilidade, o que obrigou a uma adaptação naexplicação do espírito do capitalismo. Essa terceiraideologia procurou dar conta do novo modelo decapitalismo globalizado, assentado na competição,na eficiência, na concorrência e nas exigências domercado financeiro. Um processo de manipulaçãode símbolos amplo e vago, como metáforas darede, sociedade global, aldeia global, surgiu pararespaldar o sistema e sua nova proposta de gestão,não somente da sociedade, mas também dadinâmica das empresas, essencialmente centradasna gestão da competência e da eficiência.

Nessa nova realidade tudo é possível, devido àcriatividade, à flexibilidade, à capacidade deiniciativa do trabalhador e à proposta dedesenvolvimento pessoal. O novo sistema passou asinalizar a tendência de valorização das pessoasabertas e flexíveis, que conseguiam sempre seadaptar às novas circunstâncias. Todavia, estaetapa disseminou muitos elementos transgressoresdas posições éticas e morais defendidas pelaantiga moral burguesa weberiana (prudência,parcimônia e frugalidade), assentada na exaltaçãodo exibicionismo, do consumismo, da realizaçãodos desejos e das aspirações egoístas pessoais edas muitas que são criadas pelo marketing e pelomercado. Assim, no capitalismo financeiro globalocorreu o estímulo a diversas paixões ainda maiscondenáveis e malignas que as anteriormentereprimidas, como a ganância, a avareza, oconsumismo, o egoísmo, o cinismo, a corrupção. Alógica da competição e da eficiência tem provocadouma guerra sem fronteiras de todos contra todos,estimulando o crescimento dos conflitos sociais eda insegurança de indivíduos, estados e nações,num processo de salve-se-quem-puder, numa voltaao canibalismo, em um processo incessante debatalha, jogando as pessoas contra as outras, demodo que a violência estrutural passa a ser umasituação característica desse novo tempo(SANTOS, 2000).

O consumo aparece como forma desocialização típica desta época, levando à inérciana defesa dos interesses individuais e sociais. Nãoé sem razão que, no reino do capitalismo financeiroglobalizado, na sociedade americana (que preza oindividualismo pela competição, supervaloriza oconsumo, estimula a ganância, aprova o uso e a

posse de armas), nas últimas décadas, tem-sepresenciado e se tornado cada vez mais comunsos massacres em escolas, universidades, no localde trabalho, com muitas mortes de inocentes.

As bases ideológicas que legitimam as açõesda hodiernidade estão assentadas em torno de umnovo ethos de relações sociais e interpessoais, quemolda o caráter das pessoas em termos decompetitividade e consumo, disseminando umaviolência estrutural e práticas antes moralmentecondenadas na forma de agir, ao mesmo tempo emque se pratica o assalto e retiram-se as conquistasque os trabalhadores conseguiram ao longo deséculos de sofrimento. Lutas que levaram até asdiversas mortes nas batalhas (ARAÚJO, 2011). Opapel dessa ideologia de consumo e felicidade foifundamental na produção, disseminação,reprodução e manutenção da globalizaçãofinanceira, que utiliza uma visão, uma ideia e umaexplicação mecanicista do comportamentoeconômico e de mundo, via discurso dopensamento único, apoiado no discurso da mídia epelo império da informação a serviço do capitalfinanceiro, transformando a vida social e pessoal,eminentemente sob o predomínio da economia e damoeda (SANTOS, 2000).

O culto ao consumo foi estimulado ao extremo,alastram-se e aprofundam-se males espirituais emorais, do egoísmo, do cinismo, da corrupção, daperversidade, do narcisismo. O sentido de vida nasociedade passou para o império do consumo e datirania do dinheiro, controlando a tudo e a todos aoredor do mundo e formando um mercado globalcada vez mais interligado. Todavia, trata-se de umprocesso de consumo que não consiste emacumular objetos, mas no seu uso e gozo de formadescartável, instantânea, imediata, extravagante eúnico, em que se usa e joga fora. O indivíduo ficasujeito à supremacia da última moda, do últimobrinquedo que deseja insaciavelmente adquirir.Consoante Bauman (2010), esse processo deconsumo frenético é alavancado pelamundialização do dinheiro, do crédito, da dívida, daprodução de informação e do consumo, ignorando ointeresse social e levando a uma supressão dasolidariedade. O dinheiro e a mídia fomentam umnovo ethos nas relações interpessoais e sociaisque disseminam uma violência estrutural, quepassa a regular a vida individual e social, a formade agir dos indivíduos, que passam a se sentirdesamparados, indefesos. No entanto, a mídia, aomanipular a informação, tenta apresentar o prazer e

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o sucesso como objetivo, na busca de um “mundoencantado”.

Ressaltando: os novos valores, uma nova éticacorrupta, com afrouxamento dos valores morais,criam o predomínio do individualismo na vidaparticular e na social, construindo uma fábrica deperversidade, um mundo de exclusão, dedesproteção social, de insegurança, onde até napolítica não existe e não apresenta preocupaçãocom a ética. Presencia-se a morte da esperança eda generosidade como algo natural e inevitável,apoiada no discurso e na produção de meiasverdades via os principais meios de informação(SANTOS 2000). Nesta triste realidade, o homemcomum sente-se, cada vez mais, incapaz dedistinguir o que é real, aparência, ideologia. Emmeio a uma informação cada vez mais manipulada,em meio à construção de um mundo de fábula,aparece um discurso e uma retórica usados comomecanismos de convencimento e construção demitos da cultura de massa, estimulando oconsumismo, apoiados pela política de crédito fartoe fácil que esconde a manutenção e oaprofundamento dos desníveis sociais.

A materialização da existência humana dificultaum convívio social saudável e estimula a violência.Violência que se torna uma situação característicadesse novo tempo em que predomina o dinheiro e oconsumo como reguladores da vida individual;revelando ser uma perversidade sistêmica, e nãofatos isolados, a ausência de objetivos éticos domodelo consumista que leva a buscar o sentido davida pela compra de uma parafernália deinutilidades, nem que seja em prestações, de modoque o indivíduo vai tocando a vida medíocre epassivamente, embora, quando assaltado ouagredido, receba a denominação de cidadão debem.

A revolta e os distúrbios ocorridos no ReinoUnido, em agosto de 2011, onde o movimento nãotinha nem comando central, muito menos umaagenda, revelou uma violência urbana assentadaem ondas de assaltos às lojas deeletrodomésticos, celulares, calçados esportivos,roupas. Essa atitude, essa forma de movimento,não parece uma revolta de cidadãos, mas umarebelião consumista, onde consumidores/saqueadores, frustrados por não possuíremcondição de satisfazer sua ânsia de consumo,dado que lhes falta a habilitação do salário alto e adisponibilidade de crédito para praticar oconsumismo - a atual bandeira do capitalismo -,

partiram para a revolta dos excluídos do paraíso doconsumo (ROSSI, 2011a).

Observa-se que o capitalismo financeiroprocessa uma transição de uma sociedade deprodutores para uma sociedade de consumidores,determinando um estilo consumista de vida. Omundo foi transformado em um grande magazine.Disseminou-se uma cultura da sedução doconsumo e do desperdício, da criação de novasnecessidades, novos desejos, exigência deconsumo sem critérios, na procura de satisfaçãode todos os gostos, que levou à frouxidão docaráter, de levar vantagem, de reduzir os vínculossociais, políticos, éticos. No capitalismo sob adominância financeira, foram despertadas aspaixões mais malignas, mais repugnantes: oirracional e a estupidez altamente condenáveis,próprias dos instintos bestiais do ser humano.Alienados pelo próprio capitalismo, os indivíduossatisfazem-se em ser apenas um consumidor deinutilidades crescentes. O capitalismo vemmatando o cidadão, que, antes atento à defesa dosseus direitos individual e social, torna-se um“homem novo”, egocêntrico, consumista, que buscasensações, procura o prazer, objetiva a melhoraparência e aptidão física, e, alienado pela culturada ganância do consumo, visa possuir (coisas quevocê tem que ter, coisas que você tem que fazer,coisas que são out e coisas que devem serdescartadas), alimentado pelo sistema de créditofarto, fácil e rápido (BAUMAN, 2010).

Pelo exposto, depreende-se que a sociedadecapitalista conseguiu criar mais mitos do que todasas formas de sociedades anteriores a ela, juntas.Na fase de predominância do capitalismofinanceiro, chegou-se ao ponto de abandonarqualquer plano de moralização superficial dasociedade, como a formada na base de valoresweberianos da reforma religiosa do século XIX(prudência, virtude do trabalho, direitos individuais,ideal de solidariedade, etc.), rumando para umasociedade com ausência de nexos morais,produzindo figuras deformadas que objetivamapenas o ganho, o sucesso, o consumo e oindividualismo exacerbado. Esse processodespertou na natureza humana o que há deessencialmente pior no comportamento daspessoas, como o egoísmo, o cinismo, a ganância,a violência, elevando a propensão à corrupção,como tão bem mostra o crescimento da violêncianas mais diversas sociedades capitalistas ao redordo mundo.

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3 A questão da cidadania, a formação dasociedade brasileira e a violência dessaguerra civil

Na sociedade brasileira, a formação e odesenvolvimento da cidadania são um processolento, complexo e inacabado. A visão conservadoradisseminada no País é de vergonha, deinferioridade, e racista com relação ao seu passadoescravista, a ponto de predominar a ideia de que seformou aqui um povo inferior, de negros e mulatos,uma sociedade de caipiras e de jecas. O Brasilseria um país formado por um povo preguiçoso,medíocre, dado que tem origem na raça deportugueses ladrões e degredados, no índioindolente e no negro preguiçoso. Essa visão racistade que existe uma raça superior ou de que existeuma cultura superior - conforme Chang (2009) -adapta-se melhor ao desenvolvimento econômico,ao progresso, e proporciona direitos e organizaçãocidadã, devido à conduta da parcimônia, doinvestimento, do trabalho árduo, da educação, dadisciplina e da organização social maisdesenvolvida ter sido bastante popular até os anos1960 e retornado com força nas últimas décadas.

O povo brasileiro, em geral inculto, esmera-seem reproduzir essas bobagens racistascotidianamente, reproduzindo a tesepreconceituosa, apoiado nas ideias desuperioridade da cultura protestante de Max Webere das teses hoje de superioridade da culturaanglo-americana, apresentadas pelo comentaristapolítico Francis Fukuyama e pelo historiadorDavid Landes. Assim, tomar o traço cultural, apreguiça, como exemplo da situação dos paísessubdesenvolvidos, significa má interpretação,interpretação preconceituosa, pessimista,analisando o subdesenvolvimento como se fosseum estado de espírito. A maioria das pessoasacredita que o Brasil é pobre porque sua populaçãoé preguiçosa. O povo baiano é constantementecitado por esta característica típica de preguiça.Todavia, não somente muitos brasileiros, em todosos estados e nas diferentes regiões do País, comotambém os baianos trabalham arduamente, pormuitas horas ao longo do dia e até sete dias nasemana em condições sumamente precárias,insalubres e sem proteção das leis trabalhistas.

A questão da preguiça e falta de criatividade sãocaracterísticas comuns não somente dos paísespobres, como nos países pobres da América Latinaou da África, mas também dos países

desenvolvidos, e decorrem do elevado desempregoou subemprego que existe em qualquer áreacapitalista. Acrescente-se ainda que, conformeafirmam Novais e Mello (2009, p. 22):

O capitalismo cria a ilusão de que asoportunidades são iguais para todos, a ilusão deque triunfam os melhores, os mais trabalhadores,os mais diligentes, os mais “econômicos”. Mas,com a mercantilização da sociedade, cada um valeo que o mercado diz que vale. Não há nenhumaconsideração pelas virtudes, que não sejam“virtudes” exigidas pela concorrência: a ambiçãopela riqueza e a capacidade de transformar tudo, ohomem e coisas, em objeto do cálculo em proveitopróprio. No entanto, a situação de partida é sempredesigual, porque o próprio capitalismo, a própriaconcorrência, entre empresas e entre homens,recria permanentemente assimetrias entre oshomens e as empresas.

A herança nacional escravista é um marco nahistoria da formação econômica do Brasil. Asbobagens das teses biológicas da inferioridade daraça portuguesa começaram a ser combatidas noBrasil a partir da década de 1920. Primeiramente,Oliveira Viana, com uma análise ainda baseada naquestão biológica, de raça, apresenta uma visãoaristocrática do colonizador português, visto comouma raça superior, que veio formar no Brasil umacamada de aristocratas rurais, com o papel deformar, moldar e passar a dar a tônica à vidanacional, e impondo civilização e ordem àscamadas inferiores de negros, índios e mestiçosnesse continente (CANDIDO, 1988).

Em 1933, Gilberto Freyre (1996) contestava asteses racistas que apresentavam um misto dehorror e vergonha no que diz respeito ao processode miscigenação da sociedade brasileira. Críticodos preconceitos sobre a inferioridade dos negros,índios e mestiços, crítico da visão pessimistas dosintelectuais conservadores e das elites, para asquais nossa pobreza resulta de inferioridadebiológica, Freyre deslocou a explicação para aquestão cultural, lançando as bases da identidadenacional nos traços da vida cotidiana da famíliapatriarcal. Em um trabalho que não desconhece aquestão da opressão típica da sociedadeescravista, exaltou a democracia racial, valorizou onegro e a cultura afro-brasileira, apresentando umadefesa e exaltação do processo da miscigenação.Miscigenação essa que produziu valores superiorese inestimáveis, valorizando a cultura brasileira.

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A alegria do brasileiro, dada pela sua diferenciaçãode sociedade, contribuindo para a formação docaráter diferenciado dessa raça, comcaracterísticas diferentes que deram uma novacontribuição à humanidade: a cordialidade, acriatividade e a tolerância. Freyre ressaltou ascaracterísticas do conquistador português que otornava um povo privilegiado para realizar a missãode colonizar os trópicos, e também separou oescravo do negro, apresentando sua contribuiçãopara a formação do espírito do povo brasileiroalegre, sua espontaneidade, e sem grande culpa damoral cristã. Com uma análise que contrasta coma racionalidade, com o puritanismo, com a tristezae com a repressão dos sentimentos típicos dospovos anglo-saxões, apresentou uma louvação aopovo brasileiro.

A penetração do capitalismo britânico no Brasiliniciou o processo de construção de uma esferaque se destacou pelas organizações do trabalhoespecializado, disseminando os valores individuais,da burocratização e da especialização. Era ocapitalismo concorrencial influenciando naeconomia e na cultura de um paísprimário-exportador. O Estado começou a formaçãode uma burocracia civil e militar e, desse modo,ocorreu a redução da influência e do poder dosenhor rural na vida e na política nacional. A lógicae o funcionamento da economia e da sociedadebrasileira começaram a se subordinar ao cálculocapitalista. O impulso de fora foi desestabilizandoa família patriarcal, formando a base da famíliamoderna. O senhor rural perdeu o poder social,político e econômico e a cidade mostrou suasdesigualdades entre sobrados e mocambos. Osbrasileiros passaram a imitar os padrões deconsumo e o estilo de vida dos países ocidentais,em um processo de alienação das elites, quevalorizavam adquirir coisas supérfluas e deslocadasda realidade brasileira, com um padrão de consumoe estilo de vida puramente imitativo. A classe médiaque surgiu passou a girar em torno do sobrado. Foio fim do predomínio da velha família patriarcal, umdos esteios do controle sobre os miseráveis e ospobres e garantia da manutenção da ordem nasociedade brasileira (FREYRE, 2006).

A partir da formação econômica e social domundo rural até aquele momento de mundo emtransformação, os brasileiros que gozavam dedireitos civis e políticos eram em número limitado.A cidadania era um direito de poucos. Astransformações que ocorreram naquela sociedade

patriarcal originaram-se nas elites e no Estado enunca na sociedade. O povo continuavamergulhado nas estruturas culturais e de mediaçãotípicas da época da colônia, com poucas ereduzidas aspirações, mesmo com o predomínio daescravidão industrial, onde o novo escravo passoude pessoa para objeto, dado que no capitalismoocorre uma despersonalização no trabalhoassalariado e os valores materiais ganhampremência sobre todos os outros valores. Deacordo com Freyre (2006), a proclamação darepública e a abolição da escravatura foram feitaspelas elites, sem base social. A república significouuma continuidade do império, mantendo umaordem que bloqueava o igualitarismo, com o povobrasileiro sendo mantido na sua condição deinferioridade. Entretanto, a democracia socialconduziu a uma mobilidade social, com ameritocracia quebrando obstáculos, emboramantendo a característica de cordialidade dobrasileiro como uma atitude conciliadora.

Foi na explicação desse processo de mudança,de ruptura do Brasil Velho para o Brasil Novo, queSérgio Buarque de Holanda (1995) publicou, trêsanos depois da obra de Freyre, uma análise críticaa respeito da tradição luso-brasileira, que brotou daescravidão, do ócio, da aventura, dopatrimonialismo, da família patriarcal, apresentandoe revelando sua opção por reformas no Brasil peloamericanismo. Trata-se da análise de uma faseespecífica da vida brasileira, usando uma reflexãode ordem sociológica para explicar a gênese dasmazelas da formação social do Brasil, defendendoque se fazia necessário sepultar o passado ibéricoe destruir o passado colonial, estimulando umprocesso em direção ao americanismo, àracionalidade na sociedade brasileira, que iriamelhorar o País. Sua análise mostra um Brasil emque a tradição brotou da escravidão, do ócio, e nãodo negócio; da aventura adaptativa do português enão do trabalho, do empreendedorismo,comandando a formação dessa organização falhana sociedade brasileira. Sociedadedominantemente aristocrática, na qual imperava aordem, a autoridade e a hierarquia. Nessa ordem, oEstado brasileiro foi constituído para ficar sempre aserviço dos poderosos e dos ricos, comoinstrumento das classes dominantes, mesmoquando usava como bandeira as políticas liberais ea democracia. Liberalismo e democracia que nãocontavam com o substrato econômico e social narealidade Brasil.

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Assim, na análise de Holanda (1995), o Brasilapresentava um desenvolvimento incompleto porfalta de fundamentos básicos da racionalidade docapitalismo. Até aquele momento não existia apredominância do ethos burguês a impulsionar osmovimento e as instituições para dinamizar odesenvolvimento capitalista brasileiro em seus maisdiversos aspectos, ou seja, na vida material -trabalho, frugalidade, racionalização em todas asesferas, responsabilidade individual e social,cálculo racional e supremacia do dinheiro. Oprocesso de Abolição marcou o fim do predomínioagrário e levou a uma revolução lenta, demorada. Aurbanização contínua e progressiva destruiu oisolamento rural sem eliminar o seu prestígio, mascomeçou a servir para ampliar os horizontes dahorda de excluídos. Nessa sociedade, o processorevolucionário foi lento e não revogou totalmente avelha ordem colonial e patriarcal, que continuou ainfluenciar e ter consequências morais, sociais epolíticas. O Brasil vivia em dois mundos, umdefinitivamente morto (luso-brasileiro, rural eagrícola), que se recusava a ser derrotado, e outroque lutava por se tornar dominante (imigrante,cidade, indústria), que não dominava por completo.

Da colônia até essa época, a sociedadebrasileira foi mal formada, desde as suas raízes.As classes sociais apresentavam desigualdadesextraordinárias. As classes cultas, sempre isoladasda nação, deram primazia às conveniênciasparticularistas sobre os interesses da nação e emnome da ordem coletiva. Dominava o elementoemotivo sobre o racional, ficando a atitude dasolidariedade restrita a círculos restritos de nossapredileção, não existiam verdadeiros partidospolíticos e era superficial a chamada democracia(HOLANDA, 1995). Todavia, Holanda já constatavao advento de valores modernos, do capitalismo, davida material, do americanismo, ou seja, da ideiade racionalização de todas as esferas envolvidas,na cultura, na ética e na responsabilidade individuale social. Um novo sistema se fez inelutável; novosistema que tinha o centro de gravidade noscentros urbanos, que, ao longo de todo o império,não parou de subverter a antiga ordem sem eliminaro continuísmo das raízes ibéricas no processo deamericanismo. Todavia, esse americanismocontinuou a exacerbar manifestações estranhas,dado que as decisões impostas vinham de fora;eram exteriores à Terra Brasil.

A partir daquele instante, de 1930 a 1980, oBrasil apresentou um processo acelerado de

transformações estruturais, com modificaçõesaceleradas e profundas. Enquanto nos países daEuropa e nos Estados Unidos da América esteprocesso ocorreu ao longo de séculos, aexperiência brasileira foi rápida e profunda, ao longode 50 anos, não encontrando paralelo na história dahumanidade. A sensação era que o País estava setransformando em uma nação moderna, com aimplantação do processo da segunda revoluçãoindustrial no Brasil e, a modernização do padrão deconsumo das camadas médias e ricas dasociedade brasileira, copiando os estilos de vida ede consumo das economias desenvolvidas, mascom acesso restrito a somente parte da população.

O processo de industrialização, as migraçõesinternas e a urbanização no Brasil construíram umaforma de organização capitalista atrasada, tardia,dependente e periférica, que não conseguiu gerarno seu interior capacidade de inovação efinanciamento para impor uma dinâmica própriainterna, aprofundando a dependência, elevando aabertura externa, estimulando a entrada dasmultinacionais, a linha de menor resistência parase modernizar e para crescer, num processo deinterconexão entre as várias formas de capital(modernas, atrasadas, nacional e estrangeira) e oEstado capitalista. O objetivo era construir umaformação econômico-social moderna queincorporasse os padrões de produção e consumopróprios dos países desenvolvidos. O Brasilproduziu o processo de expansão modernizadora,as pressas e a qualquer custo, acelerando o ritmode industrialização e de internacionalização daeconomia do país, formando um mercado internorestrito e seletivo (NOVAIS; MELLO, 2009).

Em 30 anos, a estrutura do emprego passou deuma estrutura de predominância agrária paraurbana. Entretanto, não foram a cidadania e ademocracia os símbolos dessa sociedade nova;não ocorreu a luta pelos direitos individuais esociais; o consumo passou a ser o grande graal deintegração e de introdução na modernidade; e acultura de massa e do consumo passaram a ser osgrandes mecanismos de integração, criando umgrande fetiche e alienação, devido à ilusão doconsumo e do crédito, encobrindo as fragilidades edebilidades do cidadão brasileiro. Essaurbanização serviu para ampliar os horizontes emudar os desejos e hábitos dos pobres emiseráveis, quebrar o isolamento, e eliminar ocontrole sobre os deserdados.

A revolução de 1964 representou a imposição de

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um novo modelo de sociedade que intensificou aindustrialização e a urbanização, com osinvestimentos e os melhores empreendimentosrealizados e aproveitados pelos que já dispunhamde algum capital e de acesso ao crédito.O acelerado crescimento econômico provocou umaampla gama de oportunidades e gerou uma grandemobilidade pessoal e regional, que provocou aascensão social e a formação de uma heterogêneaclasse média, embora esse período represente, noBrasil, a construção de um modelo de sociedadecapitalista ainda mais injusto e mais desigual queos outros tipos de sociedade capitalista, comelevada decomposição do tecido social.

A moral repressora da religião católica tambémcomeçou a entrar em desuso. Ocorreu o declínioda moral católica, de seus valores e de suaautoridade perante os indivíduos e em sociedademuito desigual O fim desses valores religiosos derepressão representou o terceiro elemento delibertação da velha ordem por parte dos pobres emiseráveis, o período de gestação de umasociedade de massa que - com o tempo, asmudanças de valores e de ética - caminhou paraoutro tipo de sociedade. Uma sociedade muitodesigual que foi denominada de “capitalismoselvagem” - sociedade degradada, que identifica osucesso somente como a posse, a riqueza, oconsumo de objetos, de inutilidades, a aparência.E, nessa linha, a mídia encarrega-se de intensificaro processo de perfil alienador e deseducativo.

O processo de urbanização, a perda deinfluência da moral católica na sociedade brasileirae a dissolução do domínio da família patriarcalautoritária, que antes seguravam a miséria nocampo e controlavam as aspirações do povo,mantendo a ordem, a autoridade e a hierarquia,fizeram triunfar uma nova moral e um valor apoiadono dinheiro, no consumo, no egoísmo, sobre todosos outros valores. Passou a dominar na sociedade,na grande maioria dos seus indivíduos, uma culturade amor à supremacia da pobreza espiritual emoral, que já não mais serve para segurar osexcluídos que hoje se encontram amontoados nasperiferias das grandes, médias e pequenascidades.

O processo de transformações ocorrido nasociedade brasileira não procurou enfrentar osproblemas básicos de concentração da riqueza, dapropriedade e do capital, típicos do sistemacapitalista. No Brasil, apresentou um nível muitomais elevado. Esse crescimento econômico

sempre foi em favor de uma minoria de privilegiadose quando nos anos 1980 ocorreu a estagnaçãoeconômica e a hiperinflação, na denominada“Década Perdida”, levou ao agravamento doprocesso de concentração da renda e da riqueza deforma extraordinária. Já os anos 1990 significaram aimplantação de políticas neoliberais. Em virtude domodelo neoliberal, aquela década apresentou umprocesso de aprofundamento e de deseducaçãomais elevado que o do início da formação dasociedade de consumo de massa - os brasileirospassaram somente se considerar cidadãos, a seconsiderar incluídos na sociedade pelas práticas daexploração pelo consumo de luxo, que já era típicode boa parte da classe média. Os brasileiros nãomais percebiam a luta cidadã pelos direitosindividuais e sociais.

Neste novo mundo, os pobres e miseráveis,livres das amarras autoritárias e da repressão dosvalores e do mundo antigo, absorveram rapidamente- via mídia - os novos hábitos de individualismo econsumismo. Como não dispunham de renda, nãolhes restaram outra opção a não ser ficar, em suagrande maioria, marginalizada e alojada nasperiferias, de modo tal que foram, pouco a pouco,estimulados à luta pela sobrevivência, iniciando umprocesso de guerra civil entre si e na periferia, queera escamoteado das classes médias e das elites.Estes estratos beneficiados da população, somentenas últimas décadas começaram a ser atingidospela difícil vida do cotidiano das periferias e asentirem-se escandalizados quando atingidos pelocrime, pela morte etc., ridiculamente ganhandoespaço e clamando por justiça nos principais meiosde comunicação. Nas periferias das metrópolesdesse Brasil, a luta pela sobrevivência realizadapelos miseráveis, pobres e marginalizados há muitotempo que não tinha e não tem limites. O famoso“cidadão de bem” nunca esteve preocupado - e nemestá - com a triste situação destes brasileirosexcluídos; muito pelo contrário, não questiona - emuitos são contrários às políticas públicas,pós-constituição de 1988, que surgiram como modode o Estado procurar atenuar a gravidade destaquestão social.

No Brasil, a substituição das amarras antigas dafamília autoritária, do controle da religião católica eda vida rural pela ordem na qual impera oconsumismo, individualismo, egoísmo etc. levarame acarretou um aprofundamento dos problemasantigos sem dispor das velhas amarras quesegurava a miséria, a extrema desigualdade.

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Todo esse processo levou à violência, aodesemprego, à marginalidade, ao tráfico de drogas.

A revolta dos “cidadãos de bem” somenteaparece quando eles são vítimas dessa guerra edessa gente em assaltos, vitimados pelas mortes epelo processo de humilhação que sentem aopassar por um sequestro ou em caso de roubosnas famosas saidinhas dos bancos.A marginalidade e a delinquência sem culpa e semrepressão da família, da religião e do sistema foramas saídas encontradas pelos miseráveis parasobreviver, consumir e sentirem-se devidamenteincluídos nessa nova ordem da sociedade deconsumo de massa, sem regra e ética. É noconsumo de celular de ultima moda e de umamoto; no usufruto imediato do prazer e do sexo emdiferentes festas, que terminam em brigas emortes, ao invés de em diversão; na liberdade parapoder viabilizar de maneira legal - via trabalho muitomal remunerado - ou pela via ilegal, por meio detodo tipo de atividade ilegal possível, seja notráfico, na prostituição, em assaltos, furto, com aexploração de menores etc. que ocorre a inclusãodos miseráreis neste mundo de consumismo, nosshopping centers em que se transformaram osnovos valores da sociedade brasileira.

A dura realidade do cotidiano dos brasileiros, avida precária, a violência a que estão expostos osjovens nas periferias das pequenas, médias ougrandes cidades somente revelam a revolta dosexcluídos, e apresentam números que somentesão suplantados por países em guerra civildeclarada. Guardadas as diferenças históricas,econômicas e sociais, é uma mesma realidadeobservada em países como o México, por exemplo,que nem a presença do exército conseguetranquilizar a maioria. O jeito mexicano de combateao crime organizado foi o de pôr o exército paracombater o narcotráfico, para o combate àcriminalidade. Acontece que, entre 2006 e 2010,ocorreu um total de 34.612 execuções vinculadasao crime organizado, em uma espiral de violênciaque só faz crescer. Os mexicanos não acreditamque as políticas do Estado possam protegê-los dosdelinquentes e uma boa porcentagem se dizinsegura com ou sem a presença das ForçasArmadas (ROSSI, 2011b).

A sociedade brasileira, ao adentrar no mundo daglobalização financeira, destruiu os valores quereprimiam e seguravam a revolta dos miseráveis.A crise da década de 1980 e as políticasneoliberais somente levaram à destruição do

Estado e de seus aparelhos - repressores ou não -,potencializando os problemas da atuação desseEstado das elites, a sua ineficiência, a falta derecursos e a corrupção que penetrou em quasetodos os órgãos desse Estado brasileiro. No Brasil,a inserção no processo de globalização financeirajustificou eticamente e potencializou todas asformas e as paixões humanas malignas antescondenadas até pela ideologia do capitalismoweberiano. Conforme afirma Bauman (2010, p. 7),esse capitalismo parasitário apresenta entre assuas muitas características a de se destacar “porcriar problemas e não por solucioná-los”.Esse capitalismo financeiro viciou os indivíduos noshopping e no consumo, fornecendo uma droga: ocrédito farto e fácil - de modo que viver de créditotornou-se uma dependência.

Os pobres e miseráveis - semelhante aos ricos,à classe média e aos quem têm um trabalhoremunerado - passaram a viver preocupados emconstruir e viabilizar o consumo de bens supérfluos.Os que possuem uma renda reduzida realizamseus desejos via acesso ao crédito, por meio decartão de crédito, em uma lógica que não adie asua satisfação, não adie o seu consumo, realizeimediatamente todos os seus desejos, mesmo quenão ganhem o suficiente para obtê-los. Nãopensam no futuro, não pensam no pagamento. Aatuação gananciosa dos bancos, a política“benevolente de crédito”, torna todos estes desejosdos brasileiros tão fáceis e rápidos, podendo oindivíduo se preocupar apenas em se endividar edesfrutar dos prazeres antes malignos. O objetivosacrossanto do capital é que os indivíduos somentepaguem parte da dívida e se mantenham nadependência por muito tempo, viabilizando umsistema que vive melhor do recebimento dosserviços financeiros continuado da dívida e não doseu pagamento integral.

Na sociedade brasileira contemporâneapredomina o hábito de se endividar acima dospróprios recursos, transformando quase todos osindivíduos em devedores eternos, devido àfacilidade da oferta de crédito, criando uma falsaprosperidade e, não menos, uma falsa nova classemédia, dado que, em meio à euforia, predominamas análises da aparência, por ser sempre mais fácilcaptar o superficial do que a essência - esta,sempre muito difícil de descobrir e que representa aprópria realidade.

Assim, um sistema que viabilizou umacompetição individualista, predatória, disseminou a

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insegurança e as ameaças que são exploradaslucrativamente até pela mídia, por intermédio deprogramas e com âncoras conservadores ereacionários que alimentam a indústria do medo e aira dos supostos “bons cidadãos”. A mídia lucracom programas inúteis e seus apresentadoresrecebem salários elevados. A sociedade deconsumo que levou a essa guerra civil brasileiraapresenta-se como a expressão mais autênticadesses grotescos âncoras televisivos que vivem apregar um falso moralismo midiático,desconhecendo que se vive tempos em quepredominam a face da amoralidade, nas formas dedominação da sociedade capitalistacontemporânea.

Nessa realidade brasileira, o indivíduo, odenominado “cidadão de bem” alienado e sem rumoé manipulado e sofre o constante abuso das ideias,teses e slogans simplificadores. Reina nasociedade brasileira um clima social de falsomoralismo, de atitudes piedosas e da hipocrisia. Ofamoso “cidadão de bem” altera dois estados deespírito, a ira e a crença cega, por estar impedidode compreender as formas econômicas e asrelações sociais contemporâneas que levaram aessa questão de conflito e de criminalidade queimpera na sociedade brasileira atual (BELLUZZO,2009).

No Brasil, a injustiça que surgiu do processo deformação deu origem a seu mau funcionamentosocial, a uma tremenda desigualdade, tornandoelevado o número de pessoas que vivem à margem,sem reconhecimento social, dignidade, sofrendoconstantes humilhações. Os brasileiros excluídosabsorveram a cultura do capitalismo globalizadocontemporâneo, as práticas e atitudes humanasmalignas. Este mundo capitalista sem ética, semmoral, que estimula as atitudes e as propensõesegoístas, do cinismo e do individualismo, aliadasàs medidas de deterioração e desaparelhamento doEstado nos anos 1990, contribuiu para o domínioda guerra de todos contra todos, do medo etc.4 Conclusão

A formação de uma sociedade rural, patriarcal ecatólica, bastante regulada por regras, por essaordem, pelos controles sociais, éticos, econômicose políticos conservadores, restringiu as aspiraçõese o descontentamento dos pobres e miseráveis noBrasil. Nos anos 30 do século XX, o País iniciou oprocesso de formação de uma sociedade urbanaindustrial voltada para o consumo de massa, comum processo de modernização assentado na cópia

do estilo de vida e do padrão de consumo de bensde luxo típicos das elites dos países desenvolvidos.No final do século, a economia brasileira ingressouna ordem financeira global liberal assentada nafrouxidão do caráter, no individualismo e noconsumismo.

Nesse processo, ocorreu uma modificação dosantigos padrões muito rígidos e passou a se exaltare foi se formando um estilo de vida comandado pelacultura da sedução, do consumo, e pelo prazer,pela dissipação e pelo desperdício. A construçãodessa nova realidade foi, pouco a pouco, gestandoentre os incluídos e os excluídos do corpo socialbrasileiro um processo de individualização e deestímulos de paixões humanas egoístas, antesbastante condenáveis. Os desejos, o poder dasedução, a atitude de levar vantagem, de estarsempre a um passo à frente, passaram a serrelações predominantes nessa sociedade. Todavia,esse novo mundo não dispõe mais das amarrasnecessárias e que serviam para segurar, ordenar econtrolar os muitos miseráveis que vivem no Brasil.

Assim, o processo de mudança de uma sociedadeassentada em valores do mundo rural, patriarcal,católico, autoritário e repressivo, para um mundocapitalista apoiado no individualismo, no consumismo,no egoísmo e no cinismo acabou com as amarrasque seguravam e mantinham ordeiras a miséria e apobreza na soc iedade bras ilei ra. Es tesmarginalizados, livres das amarras morais, sociais eéticas, partiram para reivindicar a sua parte no bolo,na repartição do produto, acessar os bens deconsumo, copiar o estilo de vida que a mídia divulgavaser padrão de felicidade e estilo de vida das classesmédias e ricas, nem que seja pela linha da menorresistência, que é a linha da delinquência, do tráfico,da marginalidade e da guerra civil, que tantoatormentam o “cidadão de bem” n

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*Professor do Departamento de CiênciasEconômicas/UFPI, mestre em Economia/UFC-CAENe doutorando em Políticas Públicas no DinterUniversidade Federal do Piauí/Universidade Federaldo Maranhão.

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS comoexpressão da questão social, à luz da políticade assistência social Por Izabel Herica Gomes M. Cronemberger* e

Solange Maria Teixeira**

Resumo: o crescente mapa de miséria e pobreza, no Brasil, constitui inquietação que incita refletir sobresuas influências na proteção social e, principalmente, na área de atuação junto às famílias. Neste sentido,o presente artigo tem como objetivo evidenciar a vulnerabilidade da família que, desassistida pelas políticaspúblicas, se encontra impossibilitada de responder às necessidades básicas de seus membros e, porconseguinte, tem sua condição de exclusão, pobreza aprofundada. Pretende-se, com isso, contribuir parao debate acerca da construção de caminhos que fortaleçam a família cidadã protegida pelos direitos sociais.O recurso metodológico consistiu em revisão de literatura e documental sobre a questão social e a temáticada família. Conclui-se que as políticas públicas se eximem de uma ação mais emancipada e que, de fato,atendam as necessidades da família contemporânea.Palavras-chave: Questão social. Proteção Social. Família.

1 Introduzindo o temaNos últimos vinte anos, várias mudanças

ocorridas nos planos socioeconômico-culturais,pautadas no processo de globalização daeconomia capitalista, vêm interferindo na dinâmicada família e da ordem societária. Tais mudançastêm recorte na vida econômica, social e cultural dapopulação, gerando altos índices de desigualdadesocial.

Como reflexo da estrutura de poder instituída,principalmente no que tange às mudançaseconômicas, acentuam-se as desigualdadessociais e de renda das famílias, afetando as suascondições de sobrevivência, minando asexpectativas de superação desse estado depobreza e reforçando sua submissão aos serviços

públicos existentes.Fora das cenas política, social e econômica, o

caminho para grande parte da população, segundoTelles (1996), é a dependência das juras deabsorção, seja pela via mercado, ou pela crescenteprática da filantropia privada ou pública, o que defato atualiza a pesada tradição de exclusão edesigualdade.

Neste sentido, intenciona-se refletir sobre asvulnerabilidades sociais, como uma dasexpressões da questão social, e sobre a interfacecom a proteção social a famílias vulneráveis. Outroobjetivo é apontar a vulnerabilidade da família que,desassistida pelas políticas públicas, se vêimpossibilitada de responder às necessidades

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básicas de seus membros e, por conseguinte,aprofunda a sua condição de exclusão, pobreza esituação de vulnerabilidade. Além disso, pretende-se, ainda, contribuir para o debate acerca daconstrução de caminhos que fortaleçam a família,permeando o debate à luz da Política nacional deAssistência Social. O recurso metodológicoconsistiu em revisão de literatura e documentalsobre a questão social e a temática da família.

A estrutura do trabalho contempla os seguintesitens: Exclusão, Vulnerabilidade Social e Pobrezacomo expressões da Questão Social - discuteconceitualmente as categorias em tela; FamíliasVulneráveis e a Proteção Social - discute aresponsabilização das famílias mais vulneráveis e anecessidade da atenção pública; Política deAssistência Social Brasileira: avanços e limites naProteção Social às Famílias Vulneráveis – expõeavanços e limites na forma como é pensada aproteção social na Política descrita às famíliasvulneráveis, com destaque para a reflexão se aproteção prevista é capaz de proporcionarautonomia para as famílias ou se reforçaresponsabilidades; encerrando-se com asConsiderações Finais.2 Exclusão, vulnerabilidade social e pobrezacomo expressões da questão social

O termo exclusão social é uma construçãoteórica e vem antes da formulação do conceito devulnerabilidade social, tendo sido utilizado para adistinção de circunstâncias sociais extremas, demarginalidade ou pobreza. Nesse sentido, épertinente recuperar a diferenciação entre osconceitos de exclusão, vulnerabilidade social epobreza.

A gênese das discussões sobre a exclusãosocial remete às últimas décadas do século XX, naFrança, e se estende a outros países europeus,devido ao contexto de mudanças tecnológicas,reestruturação econômica e desmonte do estadode bem-estar social.

O estado de exclusão leva em conta diversascaracterizações como um conjunto de situaçõesmarcadas pela falta de acesso a meios de vida,tais como: falta de emprego, de salários, depropriedades, de moradia, de um nível mínimo deconsumo; ausência ou dificuldades no acesso acrédito, a terra, a educação, a cidadania, a bens eserviços públicos básicos. Além disso, deve-seconsiderar um conjunto de questões relacionadas àidentidade cultural, gênero, raça e posiçãoeconômica e social da família.

O termo exclusão está vinculado àdesestruturação dos liames sociais que promovema coletividade na sociedade, bem como aos riscosde ruptura da coesão social, da integração comoresultado de ocasiões de desagregação política,econômica, social, etária e cultural. Portanto, estárelacionado à perda dos vínculos societais comoresultado da negligência dos direitos sociaisestabelecidos.

Para este debate conceitual, destacam-sealgumas críticas, pois i) o termo exclusãoapresenta-se muitas vezes desvinculado de umarelação de determinação; ii) o conceito retrata umacondição ou estado das coisas, em contrapartida àideia de que se trata de um processo; iii) ainadequação do termo para estudo da realidade dospaíses periféricos do capitalismo (DIEESE, 2007).A partir de tais, alguns estudos passam a apontar aexistência de uma “zona de vulnerabilidade”,formada por setores pobres que buscamalternativas de inclusão ou por novos setoresempobrecidos.

Com o aprofundamento da crise social, o termoexclusão social passa a ser dialogado porestudiosos de outra forma, pois a crise queprovocou a desestruturação do mercado de trabalhoestendeu-se também aos setores formais, onde ostrabalhadores eram antes considerados incluídos,cidadãos e estáveis. Isso proporcionou um sentidodiferenciado para as reflexões sobre a exclusãosocial, pois se tratava agora não mais de analisarsituações de inclusão ou exclusão, mas dassituações intermediárias, mais bem definidas peloconceito de vulnerabilidade social aplicado aomundo do trabalho.

Os limites do conceito de exclusão socialprovocaram outros estudos como o de Castel(1997). Este teórico reconhece a existência de uma“zona de vulnerabilidade”, formada por setorespobres que buscam alternativas para estarincluídos ou por setores médios empobrecidos quetêm perdido canais de inclusão. Nos termos deCastel (1997, p. 27), “a vulnerabilidade social é umazona intermediária instável que conjuga aprecariedade do trabalho e a fragilidade dossuportes de proximidade”. Se ocorrer algo, comouma crise econômica, o aumento do desemprego,a generalização do subemprego, a zona devulnerabilidade dilata-se, avança sobre a zona deintegração e minam a desfiliação.

A desfiliação tem, como marca principal, aimpossibilidade de participação em qualquer

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atividade produtiva e também de um isolamentorelacional que, aos poucos, vai lançando ossujeitos em trajetórias cada vez mais complexas,do ponto de vista de sua capacidade de resolução.A ênfase na desfiliação, na invalidação social,provoca sentimento de inutilidade dos “desfiliados”nas relações de trabalho, dos familiares, das redesde solidariedade e de proteção social, e fortalece asensação de insegurança.

O conceito de vulnerabilidade, pela suacapacidade de apreensão da dinâmica dosfenômenos, tem sido, na opinião de muitosautores, apropriado para descrever melhor assituações observadas em países pobres e emdesenvolvimento, como os da América Latina, quenão podem ser resumidas nas dicotomias pobres ericos, incluídos e excluídos.

Dentre os vários enfoques atribuídos ao termovulnerabilidade social, observa-se uma aceitávelconcordância, em volta de uma questão nodal: acapacidade do termo em captar situaçõesintermediárias de risco localizadas entre situaçõesextremas de inclusão e exclusão, dando umsentido dinâmico para o estudo das desigualdades.

Os estudos sobre vulnerabilidade social, nospaíses menos desenvolvidos, estão associadostambém à ideia de risco frente ao desemprego, àprecariedade do trabalho, à pobreza, à falta deproteção social ou acesso aos serviços públicos, àfragilidade dos vínculos familiares e sociais. Anoção de vulnerabilidade social tem sido adotadapara a construção de indicadores sociais maisamplos, não se restringindo à delimitação de umadeterminada linha de pobreza, como pontuaYazbek (2001).

Um somatório de situações de precariedade, paraalém das precárias condições socioeconômicas(como indicadores de renda e escolaridade ruins)[...]. São considerados como elementos relevantesno entendimento da privação social aspectoscomo a composição demográfica das famílias aíresidentes, a exposição a situações de riscovariadas (como altas incidências de certosagravos à saúde, gravidez precoce, exposição àmorte violenta, etc.), precárias condições geraisde vida e outros indicadores (CENTRO DEESTUDO DA METRÓPOLE, 2004, apud YAZBEK,2001, p. 21).A noção de vulnerabilidade social exprime,

ainda, várias situações de precariedade e nãoapenas a de renda, como destaca Oliveira (apudYAZBEK, 2001, p.19): “uma definição econômicade vulnerabilidade social é insuficiente eincompleta, mas deve ser a base material para oseu enquadramento mais amplo”, incluindo tambémoutras precariedades, como a fragilização de

vínculos afetivos, tanto os relacionais como os depertencimento, decorrentes também dasdiscriminações etárias, étnicas, de gênero ou pordeficiências, dentre outras.

Segundo Yazbek (2001), vulneráveis são aspessoas ou grupos que, por condições sociais, declasse, culturais, étnicas, políticas, econômicas,educacionais e de saúde, distinguem-se por suascondições precárias de vida. O que implica:suscetibilidade à exploração; restrição à liberdade;redução da autonomia e da autodeterminação;redução de capacidades; fragilização de laços deconvivência; rupturas de vínculos e outras tantassituações que aumentam a probabilidade de umresultado negativo na presença de risco.

A vulnerabilidade social, especialmente a que seaplica à realidade dos países menos desenvolvidos,como é o caso do Brasil, está associada também àideia de risco frente ao desemprego, à precariedadedo trabalho, à pobreza e à falta de proteção social.A noção de risco social é a probabilidade deocorrência de um evento que cause dano,geralmente de rupturas, como: familiar, violação dedireitos, e está associada ao aumento da pobreza,das desigualdades e vulnerabilidades sociais(YAZBEK, 2001).

O surgimento de termos, como exclusão,vulnerabilidade e risco social, implica consideraraspectos objetivos, como restrição de renda,condições de vida dos indivíduos; e aspectossubjetivos, como a desvalorização social, a perdada identidade, falência de laços comunitários,sociais e familiares, em que a tônica do problema édada pelo empobrecimento das relações sociais,econômicas, culturais e das redes desolidariedade.

O termo exclusão social, fenômenomultifatorial, tem sentido temporal e espacial. NoBrasil, está relacionado principalmente à situaçãode pobreza, uma vez que as pessoas nessacondição constituem grupos em exclusão social,porque se encontram em risco pessoal e social, ouseja, excluídas das políticas sociais básicas(trabalho, educação, saúde, habitação, segurançaalimentar). No entanto, segundo Garcia (2006), otermo vulnerabilidade seria o que descreveriamelhor a realidade dos mercados de trabalho e dasociedade dos países latino-americanos,conseguindo apreender o dinamismo do processode desigualdade de forma mais ampla.

Para Garcia (2006), o debate sobrevulnerabilidade social passou a enfocar a

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problemática do mercado de trabalho,principalmente a partir da segunda metade dosanos 90, quando então se observou um amploprocesso de reestruturação com consequênciassociais que foram além do que se convencionouchamar de setor informal urbano, atingindo tambémos setores formais da economia. Esse processoalimentou novos debates que passaram aquestionar a qualidade das ocupações,especialmente nos países desenvolvidos, queestavam sendo ofertadas no contexto dasmudanças estruturais do capitalismo.

As discussões teóricas e metodológicas sobrevulnerabilidade social no mercado de trabalhoestiveram num primeiro momento mais focadasna análise do fenômeno da informalidade, onde oconceito de setor informal urbano tornou-se umdos mais utilizados para se referir a este universode precarização. Embora o setor informal urbano eos diferentes enfoques sobre as causas destefenômeno, tenha se convertido no principaluniverso de análise dos estudos sobre asdeformidades do mercado de trabalho, logo foramapontados os limites deste conceito (GARCIA,2006, p.32).O processo de precarização percorre algumas

das áreas de emprego estabilizadas. Nestesentido, Castel (1998) sublinha que o problemaatual não é apenas o da constituição de uma“periferia precária”, mas também o da“desestabilização dos estáveis”. Assim como opauperismo do século XIX estava inserido nocoração da dinâmica da primeira industrialização,também a precarização do trabalho é um processocentral, liderado pelas novas exigências midiáticas,telemáticas e cibernéticas do capitalismo moderno.

Sendo assim, Castel (1998) aponta “a razãopara levantar uma nova questão social” que, emseus termos, para espanto dos contemporâneos,tem a mesma amplitude e a mesma centralidadeda questão erguida pelo pauperismo na primeirametade do século XIX. Então cabe a inquietação:trata-se de uma nova questão social?

As determinações da “questão social”, comodefende a autora Pastorini (2004), persistem,amalgamadas diretamente em três pilares centrais:a primeira submetida à relação capital/trabalho, asegunda à ordem estabelecida e, por fim, a terceiraque é expressão das manifestações dasdesigualdades e incompatibilidades dascontradições da sociedade capitalista. Pastorini(2004) reconhece que os traços essenciais da“questão social” perduram, o que não implicaasseverar que a categoria é única e que semanifesta de forma similar em todas as sociedadescapitalistas e momentos históricos. Ao contrário, a

questão social assume expressões particularesdependendo da inserção de cada país na ordemcapitalista.

Conforme a análise de Pastorini (2004), anovidade reside nas formas que a questão socialassume a partir das mutações do mundocapitalista, que produz aumento de pobreza,desestabilização dos trabalhadores, como ditoantes, estáveis, que, por conseguinte, perdemgarantias conquistadas de proteção social. A estasse somam as antigas expressões da questãosocial constantemente (re)atualizadas dosexcluídos do mundo do trabalho e historicamenteatendidos pelo sistema de proteção social de formaresidual e estigmatizadora.

Em consonância com o elenco de informaçõesapresentadas, ressalta-se a necessidade deponderação sobre a questão social, compreendida,nos termos de Castel (1995, apud TELLES, 1996,p.85)

a questão social é a aporia das sociedadesmodernas que põe em foco a disjunção, semprerenovada, entre a lógica do mercado e a dinâmicasocietária, entre a exigência ética dos direitos e osimperativos de eficácia da economia, entre aordem legal que promete igualdade e a realidadedas desigualdades e exclusões tramada nadinâmica das relações de poder e dominação.A análise produzida neste trabalho inclui tal

compreensão da questão social enquanto conflitoentre o capital e o trabalho, e a problematizaçãodas necessidades sociais por sujeitos que buscamefetivamente respostas políticas para as demandaspresentes no contexto social através da efetivaçãode políticas públicas.

No lastro das considerações supracitadas,destaca-se que as manifestações da questãosocial ressentem-se da intervenção estatal, nocumprimento de sua função social protetiva e deresponsabilidade pública, principalmente perante asentidades familiares, como se verá no próximoitem. Nesse sentido, é importante destacar que aConstituição Brasileira de 1988 trouxe grandestransformações principalmente no que tange àproteção à família. A família assumiu posição desujeito de direito e obrigações, sendo consideradacomo base da sociedade e espaço de realizaçãopessoal com dignidade humana de seus membros.

À luz dessas ponderações, ressalta-se que aproteção social da família pelo Estado é um deverfundamental deste, juridicamente fundamentado,conforme preceitua o art. 226 da ConstituiçãoFederal de 1988, tal qual outros instrumentosjurídicos contemporâneos, como se poderá ver

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adiante. Tais assertivas possibilitam refletir sobreas formas de intervenção do Estado nas expres-sões da questão social como exercício de suafunção protetiva principalmente junto às famíliasvulnerabilizadas. Nessa direção, a efetividade daproteção do Estado necessita da implementaçãode políticas públicas que garantam os direitos.

Dessa forma, pode-se afirmar que, à medidaque o Estado passa a responsabilizar-se pelapromoção e proteção de um conjunto de direitos,resultado de intensas lutas e mediaçõescomplexas e contraditórias, a política públicapassa a desenvolver-se enquanto principalmecanismo do Estado na materialização dedireitos assegurados.3 Famílias vulneráveis e a proteção social

A pobreza e as situações de grave misériaeconômica trazem, em seu bojo, situações deextrema vulnerabilidade social caracterizada pelavida em condições adversas, esfacelando ou aindaimpedindo laços de convivência social e familiar,levando ao abandono, ausência de cuidados e dosvínculos relacionais, devido ao cotidiano de lutapela sobrevivência.

Compreendemos que as desigualdades derenda impõem sacrifícios e renúncias para toda afamília. Petrini (2003) afirma que à medida que afamília encontra dificuldades para cumprirsatisfatoriamente suas tarefas básicas desocialização e de amparo/serviços aos seusmembros, criam-se situações de vulnerabilidade. Avida familiar, para ser efetiva e eficaz, depende decondições para sua sustentação e manutenção deseus vínculos. A situação socioeconômica é o fatorque mais tem contribuído para o esfacelamento dafamília, repercutindo diretamente e de forma vil nosmais vulneráveis desse grupo; os filhos (criançassem creche, escola; adolescentes, jovens semexpectativas), os idosos, as pessoas comdeficiência, os sem trabalho.

A questão da família pobre aparece como a facemais cruel da disparidade econômica e dadesigualdade social. Esse estado de privação dedireitos atinge todos os membros da família deforma profunda: incita e precipita a ida das criançaspara a rua e, na maioria das vezes, o abandono daescola, a fim de ajudar no orçamento familiar,comprometendo, de forma significativa, odesenvolvimento das crianças; provoca o abandonodos idosos, dentre outras mazelas, o que favoreceo enfraquecimento das relações, sejam afetivas,sociais, econômicas ou culturais.

A ausência do cumprimento da legislação deproteção social, aliada à ausência de políticaspúblicas de apoio, remete muitas famílias àcondição de vulnerabilidade, às quais nem sempreconseguem cumprir sua função provedora eprotetora, acarretando muitas vezes na perda daconvivência familiar. Conforme entendimento deGomes e Pereira (2005, p.361) “o Estado reduzsuas intervenções na área social e deposita nafamília uma sobrecarga que ela não conseguesuportar tendo em vista sua situação devulnerabilidade socioeconômica”.

A convivência constitui condição relevante paraa proteção, crescimento e desenvolvimento dosmembros da família, assim como são importantes,também, as transformações impostas à família, emdecorrência do sistema socioeconômico e políticodo capitalismo, do crescimento demográfico dasociedade contemporânea e de mudanças em suaprópria composição, seja com crescimento defamílias monoparentais, casais sem filhos, casaisdo mesmo sexo com ou sem filhos, diminuição dasfamílias formadas por casais com filhos, emboraeste último tipo ainda seja hegemônico nacontemporaneidade.

Sob esta ótica, Fávero (2001) posicionou-se daseguinte forma:

As difíceis condições de trabalho, a baixaremuneração percebida e a ausência de rendamostram a face mais violenta de suas condiçõesde vida, notadamente se forem analisadas emrelação aos parâmetros da renda necessária parauma família viver com o mínimo de dignidade(FÁVERO, 2001, p.90).Kaloustian e Ferrari (1994, p.11) elegem a

família como espaço imprescindível para a garantiada sobrevivência e da proteção integral de seusmembros, independentemente da configuraçãofamiliar ou da forma como esta vem seestruturando. A família propicia aportes afetivos e,sobretudo, materiais necessários aodesenvolvimento e bem-estar dos seuscomponentes. Ela desempenha um papelprimordial na educação formal e informal; é no seuespaço que valores éticos e morais sãointroduzidos e incorporados, onde se fortalecem oslaços de solidariedade.

Sob a análise da questão social, cabe observarque a sua passagem do domínio privado,caracterizado pela relação capital/trabalho, para aesfera pública, foi promovida pelas lutas sociais, asquais a transformaram em uma questão política, eisso exigiu a intervenção do Estado noreconhecimento de novos atores sociais, como

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sujeitos de direitos e deveres, e na viabilização doacesso a bens e serviços públicos pelas políticassociais. Conforme Pastorini (2004, p.103),

a questão social na sociedade capitalista tem suagênese nos problemas sociais a seremresolvidos nas diferentes formações sociais pré-capitalistas, mas sua origem data da segundametade do século XIX, quando a classe operáriafaz sua aparição no cenário político na EuropaOcidental; em definitivo quando a questão socialtorna-se uma questão eminentemente política.Nos termos assim colocados, destaca-se que a

análise da questão social não é compreendida,simplesmente, como sinônimo de “problema social”ou de pobreza que remete ao indivíduoisoladamente ou a certos grupos sociais aresponsabilidade ou culpa pelo conjunto decarências e privações por eles vividas.

Assim, considerando que a pobreza é apenasuma das diversas expressões da questão social,pondera-se pertinente a reflexão sobre a gravidadedo quadro de pobreza e miséria, no Brasil, e suainfluência no campo social e, principalmente, naárea de atuação junto às famílias, na qual aspolíticas públicas ainda se ressentem de uma açãomais expressiva. Sobre esta questão Yazbek(2003, p.62) definiu que “são pobres aqueles que,de modo temporário ou permanente, não têmacesso a um mínimo de bens e recursos sendo,portanto, excluídos em graus diferenciados dariqueza social”.

O entendimento da autora corrobora a assertivade que a pobreza não é uma expressão daincapacidade dos indivíduos (e suas famílias) emprover sua existência, mas está diretamentevinculada ao não acesso a bens e serviçosindispensáveis ao desenvolvimento do ser humano,apontando para o aguçamento dos conflitossociais, decorrentes da relação dialética entrecapital e trabalho.

Com base nas considerações supracitadas,compreende-se que a situação de vulnerabilidadesocial a que as famílias pobres estão expostasencontra-se diretamente ligada à miséria estrutural.Neste sentido, é mister pontuar que:

A família é apenas uma das instâncias deresolução dos problemas individuais e sociais.Os serviços públicos devem ser flexíveis pararesponder de forma diferenciada às diversasformas de apresentação dos problemas locais.Apenas aqueles a quem interessa esconder osconflitos de classe social, de raça e sexo, negar arelação fundamental dos problemas pessoaiscom a forma de organização do Estado e daeconomia, bem como diminuir a importância daslutas dos movimentos sociais e dos partidospolí ticos, é que busca colocar a família comocentro absoluto da abordagem dos problemassociais. (VASCONCELOS, 1999, p. 13).

Como destacam Fontenele (2007) e Teixeira(2010), a família de alvo difuso e desfocado dapolítica social assume centralidade nas políticassociais no Brasil em destaque a Política deAssistência Social. A família está no centro daspolíticas de proteção social e é impulsionada,nesse cenário de crises, retrações do Estado eintervenções da sociedade civil na provisão social,a assumir responsabilidades da proteção social,antes garantidas pelo Estado. Esse processo levaao desmonte dos padrões de proteção socialpúblico, que constituem um precioso patrimônioconquistado pelas classes em suas lutascotidianas.

Deste modo, as políticas públicas, em especialas de caráter social, são constituídas comodispositivos centrais de enfrentamento da questãosocial, acionados pelo Estado. Essas políticaspassam, então, a figurar como mecanismos deoperacionalização da função protetiva do Estado,enquanto processo de materialização dos direitossociais assegurados constitucionalmente, fruto damediação capital e trabalho. Mas, agora, sãoconsideradas empecilhos ao amplodesenvolvimento e reprodução ampliada do capital,devendo ser restringidas, focalizadas e, sobretudo,contar com a parceria da sociedade civil e com asredes informais de proteção social,responsabilizadas pelas soluções da questãosocial.

Todavia, é preciso desmascarar essa versão darealidade. Como destaca Iamamoto (2008, p.125-126), deve-se “eliminar a conformidade danaturalização das desigualdades sociais e dasubmissão das necessidades humanas ao poderdas coisas sociais – do capital dinheiro e do seufetiche”, do discurso da culpa em responsabilizaras famílias frente a suas limitações de gerir eprover vida digna aos seus membros.

Dentre as políticas sociais que tomam a famíliacomo centralidade e que combatem a pobreza,vulnerabilidades e riscos sociais, destaca-se aPolítica de Assistência Social que vem sendo alvode mudanças em direção às garantias de direitossociais não-contributivos, dirigidas às famílias eindivíduos vulneráveis.

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4 Política de assistência social brasileira:avanços e limites na proteção social àsfamílias vulneráveis

A história brasileira da Assistência Social émarcada pelo direcionamento no enfrentamento dasdiversas expressões da questão social, pela açãocompensatória sobre carências e necessidades e,em certos momentos, apresenta-se de formapopulista, paternalista e benevolente.

As medidas de iniciativa estatal de atendimentoaos mais necessitados restringiam-se ao caráterda focalização (FLEURY, 1994). O Estado atuavajunto aos menos favorecidos no sentido tutelar e,por conseguinte, para manter o controle social. Aação era, portanto, de cunho autoritário eassistencialista.

De outro lado, temos acompanhado, nosúltimos anos, avanços na Assistência Social,expressos nos marcos legais: Política Nacional deAssistência Social de 2004 – PNAS/2004 e Normade Operacionalização Básica\Sistema Único deAssistência Social– NOB/SUAS. Essa política édefinida como política pública de direito,abrangendo as três esferas de governo e amparadano princípio da descentralização política eadministrativa, com a participação da sociedadecivil, cujas ações visam romper com asegmentação, a fragmentação do seu público.Tomam a família como foco de intervenção,colocando em pauta as necessidades dela, deseus membros, cidadãos e grupos que seencontram em situação de vulnerabilidade e risco,tais como:

Famílias e indivíduos com perda ou fragilidade devínculos de afetividade, pertencimento esociabilidade; ciclos de vida; identidadesestigmatizadas em termos étnicos, cultural esexual; desvantagem pessoal resultante dedeficiência; exclusão pela pobreza e/ou no acessoàs demais políticas públicas; uso de substânciaspsicoativas; diferentes formas de violênciaadvinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos;inserção precária ou não inserção no mercado detrabalho formal e informal; estratégias ealternativas diferenciadas de sobrevivência quepodem representar risco pessoal e social(BRASIL, 2004, p. 33).

Corroborando as discussões da seção anterior,essa definição é significativa na Política deAssistência Social, enquanto política de Estado ese constitui “como estratégia fundamental nocombate à pobreza, à discriminação, àsvulnerabilidades e à subalternidade econômica,cultural e política em que vive grande parte dapopulação brasileira” (YAZBEK, 2001, p. 20-21),ampliando seu campo de intervenção.

O que significa avanço na legislação em relaçãoà noção de pobreza, adotando o referencial daexclusão, vulnerabilidade e risco social, tomandocomo importantes os critérios objetivos de renda,mas ultrapassando-os e associando-os aossubjetivos, como sentimento de desfiliação, perdade vínculos, discriminações etárias, étnicas,sexuais, dentre outras.

A PNAS/2004 orienta-se pela “primazia àatenção às famílias e seus membros, a partir doseu território de vivência, com prioridades àquelascom registro de fragilidades, vulnerabilidades epresença de vitimização entre seus membros”(BRASIL, 2005, p.28). Contemporaneamente,processaram-se transformações no campo daAssistência Social que passaram de umadimensão mais de apoio, compensatória, para asformas redistributiva e preventiva, provendocuidados e serviços de longo prazo ao lado dassituações emergenciais, de estados de sofrimento,exclusão, vulnerabilidade, discriminações, dentreoutras (TEIXEIRA, 2010).

Essas dimensões da assistência socialampliam o escopo da atuação e apresentam novoreordenamento para esse campo da ação estatal.Como destaca Sposati (2006), a perspectiva daPNAS, reafirmada no SUAS, ao propor a proteçãosocial básica, além da especial, ultrapassa ocaráter compensatório do entendimento daproteção social promovida pela assistência socialque ocorre, via de regra, após a gravidade do riscoinstalado, sempre nas situações limites. É, semdúvida, a face preventiva das ações da assistênciasocial.

Essas inovações implicam mudanças nosprocessos de trabalhos, no desenvolvimento denovas competências e saberes. A PNAS/2004 eNOB/SUAS 2005 provocam, de maneira geral,expectativas e demandas, por uma nova lógica degestão, seja financeira, seja de recursos humanose novas estruturas físicas, com a implantação deCentros de Referência de Assistência Social –CRAS na atenção básica e Centros de ReferênciaEspecializado de Assistência Social – CREAS naatenção especial. O CRAS atua com famílias eindivíduos em seu contexto comunitário, visando àorientação e ao convívio sociofamiliar e comunitária;e a proteção social especializada, materializadanos CREAS, opera com um conjunto de açõesvoltadas para o atendimento de indivíduos e famíliascom direitos violados, em situação de risco pessoale social por ocorrência de maus tratos, abuso e

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exploração sexual, trabalho infantil, entre outros.A Proteção Social, nessa política, opera, de

acordo com Sposati (2006, p.111), sob trêssituações. A primeira refere-se à proteção das“fragilidades próprias do ciclo de vida do cidadão” oque remete ao diálogo com os direitos da criança,do adolescente, dos jovens e idosos entendendosuas especificidades. O segundo eixo opera sobrea proteção “às fragilidades da convivência familiar”,já que a família, enquanto base da sociedade, vemsendo afetada por mudanças diversificadas nocontexto social, mas ainda é a unidade dereferência afetiva dos seus membros, carecendo,pois, de atenção especializada. O terceiro eixorefere-se à “proteção à dignidade humana e àssuas violações” e inclui a necessidade de trabalharcom o respeito à “heterogeneidade e à diferençasem discriminação ou apartação”.

Para tal, ampliam-se as expectativas edemandas co-relacionadas ao trabalho social comfamílias, onde, segundo Teixeira (2010), as marcasda tradição histórica de organização das políticassociais mostram que o trabalho foi realizado deforma segmentada, em problemáticas, e osserviços foram organizados a partir de“indivíduos-problemas” e “situações específicas”,como trabalho infantil, exploração sexual,delinquência, dentre outras, não contemplando afamília como uma totalidade.

Em relação às famílias pobres, co-relacionadaà lógica das políticas sociais, estava a ideia de quea família é constitutiva do problema social e de queseus responsáveis não tinham capacidade deeducar e proteger seus membros. Nessaperspectiva, Mioto (2004) esclarece que o trabalhosocial com famílias dirigiu-se às chamadas famílias“desestruturadas”, “incapazes”, com práticassocioeducativas desenvolvidas numa dimensãonormatizadora e disciplinadora.

Com as alterações na contemporaneidade,como foi visto, a política de Assistência Socialsupera, em sua proposta, as visões e atendimentosparcializados, segmentados e isolados, dirigindo-seà família e às suas necessidades numa perspectivade totalidade e de intersetorialidade. Mesmo assim,há expectativas quanto à redefinição do trabalhosocial com famílias, com práticas socioeducativasalternativas dirigidas para sua autonomia eprotagonismo e com políticas públicas quesocializem serviços antecipadamente aos custosenfrentados por elas, sem esperar que suacapacidade se esgote. Logo, à luz da questão

social, torna-se imperativo entender que aresponsabilidade da proteção social não estárestrita às famílias.

Torna-se um desafio, no trabalho social comfamílias, segundo Teixeira (2010), realizar, de fato,de forma dialética e articulada, assuntos internos eexternos a elas, nas questões objetivas esubjetivas de sua vida social. O trabalho, segundoas reflexões a segundo a autora, deve serdirecionado numa perspectiva de ampliação douniverso informacional, da oferta de serviços erecursos no âmbito das diversas políticas, de formaa buscar a inserção das pessoas e famílias na redede segurança social garantida pelo poder público,em quantidade e qualidade para atender suasnecessidades. Isto dentro do quadro de lutas pordireitos de cidadania.

No geral, pode-se afirmar que a implantação doSUAS traz um significativo avanço para aconcretização da Política Pública de AssistênciaSocial, tanto pelo seu caráter organizativo, comotambém pela definição de atribuições nas trêsesferas de governo. Mas, por outro lado, comoafirma Fontenele (2007), é inquietante refletir que aretomada da família, no campo das políticaspúblicas, sem subsídios para a efetivação dosdireitos, através da garantia de uma rede deserviços públicos integral, acaba porresponsabilizá-la pela garantia desse direito e apenaliza pelo insucesso.

Vale ressaltar que o retorno da valorização dafamília, como canal natural de proteção social, éfruto, também, da adesão do Brasil, na década de1990, à agenda de reformas conservadoras. Tal fatoinstaura um novo momento no sistema de proteçãosocial denominado ajustamento conservador que,conforme Soares (2001), abriu passagem àstentativas de desmonte das políticas sociais e àimplementação de políticas de perfil neoliberal.

Isso não significa dizer que o modelo da PNASseja conservador, pelo contrário, é a tentativa deefetivação da política de assistência social comopolítica pública. Entretanto, esta absorve, em seudesenho, a nova cultura ou consenso no modo defazer política social que envolve o mix público/privado na composição das redes. O privado étambém a própria família e comunidades, tomadascomo parceiros, sendo função do poder públicocoordenar, financiar e potencializar essa rede. Talpotencialização inclui as funções clássicas dafamília: sustento, socialização, educação ecuidados, o que amplia o trabalho das mulheres,

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historicamente responsabilizadas por essesserviços.

Destaca-se que a absorção dessas funções dafamília pelo Estado, como se percebe na tentativade criação de um sistema público de proteçãosocial, sob a égide da seguridade social, nuncasignificou desfuncionalização da família, pois estasempre foi tomada como parceira do Estado,principalmente no Brasil, em que o Estado ésubdesenvolvido em proteção ao conjunto dapopulação, especialmente da parcela não inseridano mercado formal de trabalho. Para Santos (2007),essa acentuação da parceria, nacontemporaneidade, faz com que o que antes jáera uma tradição se renove e assuma feições demodernidade.

É mister esclarecer que a realidade atual indicaque as formas de organização das famílias sãodiversas e se modificam continuamente paraatender as exigências que lhes são impostas pelasociedade, assim como foi dito anteriormente, oterreno sobre o qual a família se movimenta não ésomente o da estabilidade, mas do conflito, dacontradição, apesar de reconhecer-se também que,no seu seio, se movimenta a cooperação e asolidariedade. Destaca-se ainda, que muitasdessas novas formas de organização familiar, comoas famílias chefiadas por mulheres, asmonoparentais, a de um único provedor emsituação de trabalho precário e irregular, acumulampobreza, vulnerabilidades, impossibilidades decuidados aos membros dependentes no seuinterior. Portanto é impossível atuar-se de formapreventiva, responsabilizando-as, potencializandofunções clássicas da família, o que só aumentariao sentimento de culpa por não poderem realizar asfunções e expectativas sociais.

Entende-se, deste modo, que os problemas quese apresentam ao longo da história das famíliasestão relacionados, prioritariamente, com aimpossibilidade de elas articularem respostascompatíveis com os desafios que lhes sãocolocados. Assim, a proposição de cuidados aserem dirigidos às famílias deve partir do princípiode que elas não são apenas, nas palavras de Mioto(2000, p. 219), espaços de cuidados, masprincipalmente espaços a serem cuidados.

Como destaca Fontenele (2007), posição aquiaceita, o foco na família, na Política de AssistênciaSocial, em sua grande maioria as vulneráveis, temada discussão em tela, coloca dois pontos parareflexão: “primeiro a questão da família como

usuária de serviços [...] e depois a família naperspectiva da responsabilização pela proteçãosocial” (FONTENELE, 2007, p. 201).

A maneira como se dá esse “retorno” da famíliacomo “a menina dos olhos” da política social é decerta forma, para Pereira (2006), o esvaziamento dapolítica social como direito de cidadania, umaestratégia resultante do impacto do neoliberalismo,já que, ao invés de emancipar a família,sobrecarrega-a com tarefas e responsabilidadesprotetivas do Estado. Embora a PNAS/2004reconheça a importância da família na vida socialapontando-a como merecedora da proteção doEstado, tal proteção tem sido discutida, na medidaem que a realidade tem dado sinais cada vez maisevidentes de penalização das famílias brasileiras.

Apesar disso, a PNAS/2004 representa clarapossibilidade de avanço na sua organização e noseu legítimo reconhecimento, ainda que existamdiversas questões para serem discutidas,decifradas e repensadas, como é o caso damatricialidade sociofamiliar que passa a ter papelde destaque na Política de Assistência Social.Considerações finais

As disparidades sociais, proveniente daestrutura econômica continuam sendo a primeirarazão da pobreza. Desigualdades de renda, deacesso, de oportunidades, de informaçãoconstituem suas várias expressões. O surgimentode termos, como exclusão, vulnerabilidade e riscosocial, implica considerar também aspectossubjetivos, relativos às condições de vida dosindivíduos, como a perda da identidade, falência delaços comunitários, sociais e familiares, em que atônica do problema é dada pelo empobrecimentodas relações sociais e das redes de solidariedade.

As famílias, alijadas das mínimas condiçõessocioeconômicas, são expostas a situações devulnerabilidades sociais que fragilizam suasfunções protetivas, e consequentemente, o convíviofamiliar. Portanto, a determinação básica éeconômica e política, a falta de renda, trabalho,serviços públicos de apoio à família geram rupturasfamiliares, desvinculação e empobrecimento dasrelações humanas. Nessa perspectiva, a prevençãonão é apenas o investimento no subjetivo, mas emambos, pois, sem inclusão da família, elacontinuará negligente, melhor dizendo,negligenciada para realizar suas funções.

Além do esfacelamento das relaçõesconjugadas pelas expressões da questão social, émister destacar que a NOB/SUAS e a PNAS não

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esboçam as questões de âmbito estrutural e, maisuma vez, tem-se a tendência a reeditar a política debase assistencialista, remediando os efeitos daacumulação capitalista, ou seja, dandocontinuidade às práticas compensatórias sem, defato, alterar a condição de classe dos usuários dapolítica, pois as expressões da questão social queconstituem demandas da assistência sãoabordadas como se fossem situaçõesautonomizadas e estivessem descoladas da basedesigual da sociedade.

Torna-se, pois, urgente e inegável anecessidade de se operarem mudanças qualitativase quantitativas na ordem econômica, sem as quaisa questão social, no Brasil, não tem chances deser pelo menos minimizada, haja vista que a suasuperação demanda a transformação da estruturapolítica e econômica do país.

Por estas questões, mesmo reconhecendo osavanços da Política de Assistência, nas palavras deAlves (2008, p. 141) o SUAS “não pode serencarado e executado como simples técnica degestão”, devendo ser assumido como espaço de“tensionamento do econômico, de ampliação dedireitos, de articulação de políticas sociais e deradicalização da democracia” (BOSCHETTI, 2005, p.15).

Nessa perspectiva, afirma-se: a famílianecessita de proteção estatal. Esta, por sua vez,constitui-se como dever do Estado consagrado no§8º do art. 226 da Carta Magna e contempla todasas configurações familiares. Diante do exposto,abordar o papel do Estado e das políticas públicasno processo de materialização de direitos sociais,enquanto dever fundamental de proteção, frente auma realidade profundamente desigual e injusta, éimprescindível.

Entende-se que o Estado deve executarpolíticas públicas de caráter universalista queassegurem proteção social e que reconheçam afamília como sujeito de direitos para, dessamaneira, definir os papéis de cada entidadesocioassistencial no enfrentamento da questãosocial.

É imperioso também que sejam fortalecidas aspráticas organizativas da sociedade civil, o queviabiliza e protege esta, e também a família, dentrode uma ótica que extrapole a categoria usual declientes, beneficiários ou usuários dos serviçospúblicos, mas de fato como sujeitos de direitos eatores políticos

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REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃOPARA A DIVERSIDADE:problematizando a construção da cidadaniana Academia Por Amanda Furtado Mascarenhas Lustosa* e

Lúcia Cristina dos Santos Rosa**

Resumo: O presente artigo aborda a temática da educação para a diversidade, tendo em vista que aeducação é um direito fundamental do cidadão. Baseado em uma educação libertária e numa concepção deirredutibilidade da diversidade humana, este estudo visa reafirmar a importância de uma formação crítica comum viés emancipatório, capaz de entender a diversidade e fortalecer a luta contra toda forma de preconceito ediscriminação. Para compreender as conexões entre estes conceitos foi realizado um estudo de caso nocurso de Bacharelado em Serviço Social da Universidade Federal do Piauí, o qual evidenciou limites epossibilidades desta articulação.Palavras-chave: educação, diversidade, cidadania, políticas públicas.

1 IntroduçãoConvido você leitor a uma experiência de

criticidade. A ideia é sair da “zona de conforto” dasconcepções e conceitos padronizados comohegemônicos e realizar um desdobramento para secolocar no lugar do outro, para vivenciar-se como odiferente, e desta forma, para problematizar oquanto a temática da diversidade é de sumarelevância na sociedade contemporânea em quevivemos.

Bobbio (1992) afirma que vivemos a era dosDireitos. Teoricamente o arcabouço legal reflete umentendimento aguçado dos princípios e ideárioshumanitários, expressando um entendimentototalizante e abrangente dos direitos.

Conforme a Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de1996, lei que estabelece as diretrizes e bases daeducação nacional, tem-se o entendimento de quea educação abrange os processos formativos quese desenvolvem na vida familiar, na convivênciahumana, no trabalho, nas instituições de ensino epesquisa, nos movimentos sociais e organizaçõesda sociedade civil e nas manifestações culturais.

Desta forma, a finalidade deste processocomplexo é o pleno desenvolvimento do educando,

seu preparo para o exercício da cidadania e suaqualificação para o trabalho, no qual princípioscomo a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar edivulgar a cultura, o pensamento, a arte e o sabersão fundantes, bem como a vinculação entre aeducação escolar, o trabalho e as práticas sociais.Agora, questiono, será se estas prerrogativaslegais são efetivadas no cotidiano das escolas ecentros de educação? Ou melhor, como garantir oacesso ao direito à educação mesmo diante dasdiversidades?

Problematizar a educação de forma ampla eirrestrita seria um desafio instigante. Entretanto,em função da abrangência e viabilidade do estudo,o presente artigo restringe seu objeto de análise aeducação acadêmica ou ensino superior e ilustra aexperiência de um curso das ciências humanas, ocurso de Bacharelado em Serviço Social.

É importante frisar que a educação superiorrepresenta apenas uma das modalidades deeducação, de acordo com a lei de diretrizes ebases da educação, e tem por finalidades: oestímulo a criação cultural e o desenvolvimento doespírito científico e do pensamento reflexivo, a

*Assistente Social/UFPI, mestranda em Políticas Públicas/UFPI, professora da Faculdade Santo Agostinho**Pós-Doutora em Serviço Social/PUCSP, professora do Departamento de Serviço Social e do Mestrado emPolíticas Pública/UFPI

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divulgação de conhecimentos culturais, científicose técnicos que constituem patrimônio dahumanidade, suscitar o desejo permanente deaperfeiçoamento cultural e profissional, além doestímulo ao conhecimento dos problemas domundo presente, em particular os nacionais eregionais.

Verifica-se que o entendimento difundido na leisupracitada evidencia uma formação ampla,generalista e que incentiva a necessidade de sepensar a educação permanente como uma saída.Esta perspectiva acrescida do fato que vivenciamosuma época da história em que a análise darealidade precisa de uma leitura crítica e complexa,inclusive como pressuposto da lutar por direitos egarantias, reflete o quão atual e oportuna é adiscussão sobre a educação para a diversidade.

É conveniente destacar que este estudo visauma conscientização acerca da diversidade emvárias perspectivas. Uma delas é a questão degênero, geralmente negligenciada no processoeducativo. Mas também é preciso adotar umapostura de respeito à diversidade na educação deforma geral, por exemplo, questionando o lugar dequem ensina e de quem aprende, destacando queestruturas rígidas de saber-poder são contrárias auma educação para a liberdade e, portanto, para adiversidade.

Ampliando a discussão para o cenário daspolíticas públicas que são oriundas da concepçãoda Era dos Direitos (BOBBIO, 1992) quevivenciamos, a discussão torna-se ainda mais atuale relevante. Afinal, é crescente o número depolíticas específicas que são criadas a cada dia.Ao invés de formarmos cidadãos na perspectiva dorespeito e educação desde a infância, elaboramospolíticas públicas para cada segmento da nossapopulação ou para violações de direitos.

Defendemos uma postura de respeito e defesada diversidade o que não é sinônimo de defesa dacriação de vários segmentos e movimentos sociaisrigidamente demarcados, bem como diversaspolíticas específicas desarticuladas.

O que nos preocupa é que vivenciamos umEstado de Direitos em que a fragmentação dosmovimentos sociais e a criação de políticassetoriais cada vez mais demarcadas é umarealidade. Mas é oportuno o questionamento: seráse fragmentados teremos força para a luta contra opreconceito e a discriminação, por exemplo?Ou mais criticamente, será se a construção depolíticas específicas ou setoriais é um avanço?

Ou ainda, elas refletem expressões da questãosocial que a sociedade negligencia?

Este artigo apresenta uma ousadia de pensarcriticamente os elementos necessários para umaformação em que a diversidade seja abordada eprincipalmente respeitada. Defendemos que aoeducar para a diversidade formamos sujeitos naconcepção da cidadania e de defesa dos direitos.Para concretizar esse audacioso objetivo énecessário esclarecer quais concepções dediversidade e de educação defendemos e comopropomos uma educação para a cidadania.

2 Diversidade: conceitos, características edesafios

Pensar uma problematização sobre a educaçãopara a diversidade requer uma mínimacompreensão do sentido de trabalharmos com odiverso, com o outro. De fato, como afirma Macedo(2003), discutir a diversidade é uma necessidadedo cenário contemporâneo, uma vez que adiversidade é a grande questão do nosso tempo, jáque envolve entendimentos como o nacionalismo,sectarismo religioso, uma consciência maior degênero, raça e etnia; uma maior assertividade emrelação à orientação sexual, e uma reafirmação davoz religiosa na praça pública. E estas são apenasalgumas das formas de particularidade quecontinuamente se recusam a ceder aoindividualismo e ao cosmopolitismo. Assim, apesardas divisões econômicas continuarem a serimportantes, o foco das lutas sociaiscontemporâneas deslocou-se para a política deidentidade.

Carl Grant apud Verma (2007) argumenta que oconceito de diversidade exige a consciência,aceitação e afirmação das diferenças culturais eétnicas. Além disso, Grant sugere que adiversidade promove tanto a valorização dasdiferenças humanas quanto a crença de que, paraos alunos pensarem criticamente - especialmentesobre as circunstâncias da vida e as oportunidadesque direta ou indiretamente impactam suas vidas eas vidas de seus familiares, da comunidade e dopaís - eles devem afirmar tanto a diversidade social(pluralismo cultural) quanto a diversidade humana.Ademais, Verma (2007) pontua que nesta época deglobalização, com uma cada vez mais complexadiversidade étnica e competição em muitassociedades, é importante reconhecer que aeducação multicultural abrange não apenas umaperspectiva local, mas também tem implicações decaráter mundial.

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É relevante destacar o sentido e significado dadiversidade. Moehlecke (2009) afirma que aexpressão “diversidade”, ao mesmo tempo em quepode indicar a percepção quase que óbvia daprópria variedade humana, física, social e ambientalexistente em nossa sociedade, traz em si umconjunto múltiplo e complexo de significados. Já nocampo das ciências sociais, o termo é utilizado,em geral, para descrever a heterogeneidade deculturas que marcam a sociedade contemporânea.Apreendida em sua dimensão cultural, adiversidade é associada aos novos movimentossociais, especialmente os de cunho identitário,articulados em torno da defesa das chamadas“políticas de diferença”. Como direito à diferença,a diversidade articula-se à exigência dereconhecimento na esfera pública e política degrupos definidos como “minoritários”, “subalternos”.Essa reivindicação, no Brasil, partiu de algunssetores do movimento feminista e do movimentonegro nos anos 1980, intensificando-se nos anosseguintes, quando passa a envolver também osmovimentos indígenas e das pessoas comdeficiência.

Em oposição a um princípio homogeneizadorque prega a universalidade como ideal, Moehlecke(2009) apresenta o princípio da diferença, que sepropõe a questionar justamente a neutralidade e aefetividade dessa igual dignidade, ao afirmar que aidentidade particular de um indivíduo ou grupo éignorada, distorcida e forçada a se conformar auma cultura dominante hegemônica que não a sua,atribuindo-lhe uma cidadania de segunda classe.Desse modo, apenas as minorias e povos nãoocidentais são alienados de sua cultura e valores, oque torna as sociedades ocidentais cegas àdiferença não apenas inumanas, por suprimirem aidentidade, como também altamentediscriminatórias (TAYLOR, 1994).

Em sociedades cada vez mais plurais emtermos da quantidade de povos e culturas distintasque fazem parte delas, o que se exige em termosde reconhecimento não é apenas que as diferentesculturas possam defender a si próprias e sobreviver,mas que, no limite, se atestem seu igual valor eseu direito de existir e de participar politicamenteda sociedade como um grupo coletivo.

Acerca das políticas educacionais brasileiras,Moehlecke (2009) lembra que a incorporação nosParâmetros Curriculares Nacionais da “pluralidadecultural” como tema transversal, em 1997, é umaconquista que precisa ser problematizada. Verifique

a delimitação na Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional – LDB – n. 9.394/96, de umcapítulo específico para tratar da educaçãoespecial, de artigos direcionados à educaçãoindígena e do estabelecimento do dia 20 denovembro como dia da Consciência Negra. Valemencionar ainda o Plano Nacional de Educação de2001, que destinou capítulos específicos paraeducação especial e a educação indígena.Entretanto, estas medidas configuram-se aindacomo ações fragmentadas direcionadas a públicosespecíficos, sem que tenha havido umareorientação do conjunto das ações estatais,especificamente as do Ministério da Educação.

No âmbito acadêmico, na área das políticaspúblicas, são ainda relativamente recentes eescassos os estudos produzidos no país queanalisam teoricamente a formulação de políticas apartir da diversidade cultural. Já no campo daeducação, essa questão está mais presente nosestudos, ainda que se utilizem com maisfrequência os conceitos de multiculturalismo,pluralismo cultural e interculturalidade do que o dediversidade cultural para se referir aos diferentesmodos de interpretar a interação entre os grupossociais e suas culturas.

Os movimentos sociais, igualmente, poucoarticulam seus discursos políticos em torno daideia de diversidade, dando preferência a termoscomo direito à diferença, antirracismo,antissexismo, sociedade inclusiva, entre outros. Aexpressão “diversidade”, quando utilizada no Brasil,aparece geralmente como sinônimo de“multicultural”, termo qualificativo que descreve apluralidade de culturas presente em determinadasociedade.

No entanto, a “diversidade” também vem sendoutilizada, especialmente no âmbito do poderpúblico, como sinônimo de “multiculturalismo”,termo substantivo que se refere às estratégiaspolíticas adotadas para lidar com situações dediversidade geradas em sociedades pluraisculturalmente (MOEHLECKE, 2009).

O debate em torno da ideia de multiculturalismotem-se difundido consideravelmente na áreaeducacional; contudo, os sentidos atribuídos aotermo são dos mais variados. Vários autores seesforçam para circunscrever os diferentes tipospossíveis de multiculturalismo. A partir do conjuntode debates desencadeados a esse respeito,podem-se distinguir pelo menos três grandesaspectos que marcam e diferenciam os

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significados oscilantes associados aomulticulturalismo:

•o reconhecimento ou não das hierarquias depoder presentes nas relações entre os diferentesgrupos culturais;

•uma visão mais essencializada ou maisdinâmica da identidade cultural de determinadosgrupos;

•a articulação ou não entre as desigualdadessocioeconômicas e as diferenças culturais.3 Educação para a diversidade: o desafio defomentar uma cidadania plural

A categoria educação será aqui defendida combase no pensamento de Paulo Freire (2006)segundo o qual “não há educação fora dassociedades humanas e não há homem no vazio”(2006, p. 43). Assim, o autor defende que aeducação, ainda que tenha validade em outrotempo, foi marcada por condições especiais dasociedade brasileira, na qual uma “elite” comandavaum processo de alienação, em que o homemsimples, minimizado e sem consciência destaminimização, era mais “coisa” do que homem, oque reflete a negação dos direitos.

Paulo Freire (2006) concebe que cabe asociedade compreender o homem e seu povo comosujeitos da sua história. Para tal desafio, optaentão por uma sociedade parcialmenteindependente ou por uma sociedade que se“descolonizasse” cada vez mais, fugindo doprocesso de alienação na busca pela autonomia eemancipação dos sujeitos.

A saída é a educação ampla e irrestrita, umaeducação para a cidadania. Mas de formacontraditória surge uma inquietação, comoapreender a educação enquanto formadora desujeitos críticos e não apenas como objeto demassificação, como tem sido a educação nospaíses de terceiro mundo?

Segundo Paulo Freire (2006) é necessário aeducação das massas, no entanto uma educaçãonão para a “domesticação”, para a alienação, paraum homem-objeto, mas uma educação para aliberdade, para a formação de homens-sujeito, oque implicaria em uma sociedade ativa, crítica, quese coloque numa postura de auto-reflexão, quelevaria a uma tomada de consciência e de reflexãosobre o seu tempo e espaço.

Pensar a educação neste sentido seriafortalecer a consolidação de princípios éticos deum processo formativo comprometido com a justiçasocial como norteadora da proposta de educar. A

meta seria lutar para combater manifestações dejuízos de valor negativos, discriminações e oestigma, pois enquanto vivermos um sistema emque sujeitos são “objetos-vítimas” depredeterminações sociais não estaremos sendolivres, reflexivos. No campo das relações degênero, exemplificativamente, uma das alternativasseria o combate às normas que privilegiam traçosassociados com a masculinidade (androcentrismo),bem como a desvalorização de coisas codificadascomo “femininas” (sexismo cultural). Essainferiorização se expressaria nos diversos danossofridos pelas mulheres, entre eles o assédiosexual, a exploração sexual, a violência doméstica,a marginalização na esfera pública e nos corposdeliberativos, além das estereotípicasrepresentações midiáticas trivializantes,humilhantes e objetificantes da mulher.

Educar sem estabelecer padrões oumarcadores, educar para uma cultura de paz erespeito, educar para a formação de valores e combase em princípios éticos talvez fosse uma formade enfrentamento a toda e qualquer forma deviolação de direitos, de discriminações eobjetivações do ser humano.

Paulo Freire (2006) esclarece esta necessáriacriticidade e reflexividade quando afirma que:

O que teríamos de fazer, numa sociedade emtransição como a nossa, inserida no processo dedemocratização fundamental, com o povo emgrande parte emergindo, era tentar umaeducação que fosse capaz de colaborar com elena indispensável organização reflexiva de seupensamento. Educação que lhe pusesse àdisposição meios com os quais fosse capaz desuperar a captação mágica ou ingênua de suarealidade, por uma dominante crítica. Istosignifica então colaborar com ele, o povo, paraque assumisse posições de transição.Posiçõesintegradas com as exigências da democratizaçãofundamental, por isso mesmo, combatendo ainexperiência democrática. Estávamos, assim,tentando uma educação que nos parecia a de queprecisávamos.Identificada com as condições denossa realidade.Realmente instrumental, porqueintegrada ao nosso tempo e ao nosso espaço elevando o homem a refletir sobre sua ontológicavocação de ser sujeito(FREIRE, 2006, p. 114, grifonosso)Discutir a educação e diversidade é de suma

relevância, pois de acordo com Paulo Freire (2006)a liberdade é a matriz que atribui sentido a umaprática educativa, que só pode alcançar efetividadee eficácia na medida da participação livre e críticados educandos na elaboração de um diálogo e doexercício de um questionar constante. Ademaisnão se pode ocultar que o movimento de educaçãofoi uma das várias formas de mobilização adotadasno Brasil; desde a crescente participação popular

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através do voto, até o movimento da CulturaPopular, organizado pela União Nacional dosEstudantes, registram-se vários mecanismospolíticos, sociais ou culturais de mobilização econscientização das massas numa perspectivademocratizadora.

A ideia de uma educação para a diversidade éum amplo desafio e remete também à necessidadede compreensão de que diferentes sujeitos fazemparte deste processo, como trabalhadores, osmovimentos sociais, a sociedade civil, osintelectuais, enfim, todos os seres envolvidos nestecomplexo quadro de transformações de formasarraigadas de pensamento, que são nacontemporaneidade incapazes de refletir a realcomplexidade das marcas identitárias dos sujeitos.

Segundo este eixo de análise é necessáriodesconstruir as estruturas sólidas que determinamo saber-poder e combatê-lo difundindo oesclarecimento de que a educação enquantomovimento libertário é uma educação popular,permanente, dialogal.

Outro enfoque interessante que podemosdestacar nesta análise é que a educação para adiversidade é respaldada na compreensão de queproblematizar essas questões ou violaçõesobservadas no processo educativo não se limita aum ativismo na luta pela defesa de políticas oudisciplinas específicas, como a da saúde mental,saúde do homem ou de combate a violência contraa mulher, tão comumente difundidas pela mídiacomo políticas que abordam questões de gênero.A intenção é conscientizar a necessidade de tornartransversal a discussão sobre temáticasespecíficas, como a questão de gênero e dadiversidade na formação, bem como outraspolíticas.

Como bem pontua Paulo Freire (2006),conscientizar não significa ideologizar ou dealguma forma propor palavras de ordem, ou quemsabe estabelecer uma reformulação curricular.Esta não é a proposta deste estudo, a suaintencionalidade é suscitar o debate, um inquietarconstante acerca da formação em consonânciacom a realidade tão complexa, mutável.

Diante do ousado desafio a que nos propomos,este trabalho compartilha da preocupação de PauloFreire acerca da construção de uma educação paraa decisão, para a responsabilidade social e política,pois para ele o saber democrático jamais seráincorporado autoritariamente, pois seu sentido estána efetivação de um trabalho comum entre

educando e educador.4 Universidade: um espaço de

transformações, criticidade e mudançasNetto (2000) faz um convite a questionar a

maneira como a universidade vem atuando naformação de pessoas,sem contudo desmerecer afundamental contribuição do espaço universitáriopara a formação de pessoas e para isso ressalta:

(...) Por mais problemática que seja auniversidade pública brasileira ninguém passapor ela impunemente, essa universidade comtodos os problemas que ela tem é uma escola decidadania, ela inquieta, ela agita, ela subverte, elafaz germinar (NETTO, 2000, p. 29).Esta é a realidade que vivenciamos na cena

contemporânea de uma universidade ainda nãopreparada para dar respostas complexas aproblemas da sociedade como a questão dadiversidade e de gênero, pois exigir desta um efeitotão amplo só seria possível se pelo menos a maiorparte da população acessasse a vivência desteespaço de cidadania. Mas infelizmente apenasuma pequena parcela da população tem acesso aeste nível de reflexão.

Nesta mesma perspectiva, Iamamoto (2000)ressalta que é necessário produzir uma reflexão eprovocar o debate acerca do ensino superior e daconseqüente formação de profissionais naatualidade, pois é preciso caminhar para aconstrução de estratégias políticas, de naturezaacadêmica e profissional, voltadas a defesa dauniversidade pública direcionada aos interesses dacoletividade.

Segundo Rotelli (2008) formar significa exercitarcontinuamente um espírito critico diante daideologia dominante. A universidade em si,enquanto instituição, representa neste sentido adefesa de uma lógica ou ideologia dominante nasociedade em que estamos inseridos. Diante destaconstatação, defendemos em consonância comRotelli (2008) que a formação de que precisamosnão se trata de uma reprodução de práticas queatendam a necessidades postas. Para além destacapacidade limitada, precisamos de uma formaçãocrítica, propositiva, capaz não apenas de intervir nasociedade, mas de repensar a sociedade, deressignificar seu sentido, seus valores e objetivos.Precisamos de uma formação em que os sujeitosformados sejam capazes de construir novasinstituições, com condições, situações eorganizações que se proponham a dar respostasàs necessidades.

Um exercício interessante para suscitar o

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espírito crítico é questionarmos a formação quetemos nos perguntando se esta formação interrogaas políticas públicas e solicita as políticas públicasque estas constituam um corpo social ou se nãoas interrogam. Será se esta formação trabalha paraque as políticas públicas respondam àsnecessidades do nosso cotidiano, como asnecessidades de casa, de sociabilidade, deafetividade, de trabalho dos nossos usuários,compreendendo suas singularidades ou será senossa formação não nos interroga quanto a taisquestões? Mas primordialmente é precisoquestionar sobre qual formação estamos falando?Formar quem? Para quê? Baseado em quê? Quaisas intencionalidades envoltas?

Paulo Freire amplia a noção de formação,apresentando uma possibilidade de superar visõesreducionistas da educação. Seu princípio orientadoré a inconclusão do ser humano, assim seuraciocínio lhe permite pensar a experiência humanacomo um permanente movimento de procura, deconstrução. É através deste olhar amplificado quese apresenta uma possibilidade de apreender novasperspectivas, de realmente construir um novo rumopara o que denominamos de educação.

De acordo com Amarante (2008), é necessáriodistinguir o sentido da formação. Dito isto, o autoresclarece:

Quando falamos em formação, não estamos nosreferindo, portanto, a simplestreinamento,adestramento, capacitação,otimização de recursos humanos, ou mesmo emsimples processo de transferência deconhecimentos. Mas sim, estamos falando ememancipação, criação de potências, de projetos,de perspectiva crítica (AMARANTE, 2008, p. 66)Mas qual sentido atribuímos a universidade,

como esta pode contribuir para a sociedade?Qual asua função?

Em consonância com Netto (1986) acreditamosque a contribuição especifica que a universidadepode oferecer é o fortalecimento/engajamento naconstituição de uma nova cultura, o que significaque a universidade tem uma função de investir-secomo construtora de novas visões de mundo, o querepresenta pensar a universidade muito além doaspecto de transmissão de conhecimentos etécnicas ou talvez de investimentos tecnológicos,mas sim como um espaço capaz de dialogar coma sociedade, rebatendo e fazendo incidir sobreaquilo que passa fora dela.

Desta forma, deve-se firmar que a excelênciaacadêmica não pode se resumir a transmissão/reprodução de conhecimento visando uma

formação de mão de obra especializada paraatender as demandas do mercado de trabalho,como é bastante comum. Para além é oportunoque a universidade seja uma propulsora de umarazão crítica e um universo axiológico que a iluminee impulsione a construção do processo histórico nadireção da liberdade, da equidade e da democraciapara os cidadãos.5 Metodologia da pesquisa

Diante da elaboração teórica dos fundamentos eprincípios de um processo formativo construídoatravés do sistema de educação superior no Brasila realização de um estudo de caso do processo deformação profissional do assistente social comênfase para uma política especifica que é a Políticade Gênero da Universidade Federal do Piauí (UFPI)se apresenta como uma possibilidade de verificarquais os limites e as possibilidades que estaformação vem encontrando na cenacontemporânea; ademais faz emergir anecessidade de um repensar constante sobre aconstrução de conhecimento e sua reprodução.

Desta forma, esta pesquisa foi um estudopredominantemente qualitativo, tratando-se de umapesquisa exploratória, uma vez que visava conhecero que se produzia acerca da temática nas suasmais diversas expressões. Quanto ao tipo depesquisa, esta inicialmente utilizou-se de umarevisão documental, posto que foi necessária umabusca nas emendas das disciplinas a fim deencontrar aquelas que se relacionavam a política degênero. Também pode ser caracterizada como umapesquisa de campo, cujo locus foi a coordenação eo departamento do curso de bacharelado emServiço Social da Universidade Federal do Piauí.6 Limites do processo de formação profissionaldo assistente social para atuar na defesa depolíticas de gênero

Após a realização da pesquisa foi possívelverificar alguns indicativos de fragilidades, oulimites que a formação em serviço social no casoda Universidade Federal do Piauí enfrentaatualmente. São questões que versam desde acomposição curricular até a construção de práticasno campo especifico da defesa dos direitosenvolvendo questões de gênero. Contudo éoportuno destacar que a identificação destaslimitações objetiva uma crítica no sentido decolaborar para a melhoria do processo deconstrução do conhecimento, pois como pontuaPaulo Freire é necessário o exercício de um

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repensar constante das práticas, o que torna osujeito educando e educador ativos no processo dafecundação do conhecimento.

Inicialmente ganhou destaque a quantidade dedisciplinas que não tratam das questões maispróprias da profissão nos primeiros períodos. Écompreensível que no inicio do curso exista umaexpectativa em compreender efetivamente o fazerda profissão, a curiosidade em desvelar estecampo de trabalho, de entender as especificidadesda profissão é muito forte. No entanto, o que severifica na prática é que nos primeiros períodos aconstituição do curso prima por umafundamentação em disciplinas afins para a análiseda sociedade de forma geral, são estas:antropologia, sociologia, psicologia, formaçãosócio-histórica do Brasil, dentre outras.

Outra limitação na formação corresponde àrepetição de conteúdos em algumas disciplinas, oque gera sobreposição e termina por impossibilitarque outras temáticas sejam trabalhadas, como porexemplo discussões como a questão da política dasaúde da mulher, contra a violência a mulher, aproblemática das drogas, a questão habitacional,problemáticas da previdência, a atuaçãoprofissional do assistente social e o setorjudiciário, etc.

Outra limitação relatada se refere à dificuldadede o(a) aluno(a) identificar, a partir do currículovigente (IV currículo), a relação entre teoria/métodoe história na formação profissional. Assim, algunsargumentam que é difícil a compreensão destaimplicação e acaba por não entender o “pesoexcessivo” dos fundamentos teóricos emcontraponto com as disciplinas mais direcionadasa prática profissional.

Identificou-se com a pesquisa que a política degênero, inserida no bojo das políticas sociais, nocurso abordadas nas disciplinas de Política SocialI, II e III não é discutida neste momento, nem tãopouco nas disciplinas afins como Ciência Política,Introdução à Filosofia, Direito e Cidadania.

Por fim talvez a limitação mais relevante que apesquisa conseguiu apreender talvez tenha sido ofato de que muitos dos alunos que na vidaacadêmica acumularam conhecimentos sobrepolíticas específicas como as políticas de gêneroforam apenas aqueles que efetivaram o estágiocurricular nesta área, desta forma alega-se que osdemais discentes muitas vezes terminam agraduação sem ter conhecimentos da política degênero, por exemplo.

Fica a reflexão sobre qual o sentido de umprofissional como o assistente social, que trabalhacom as mais diversas políticas públicas,desconhecer os fundamentos de políticasespecificas como a política de gênero,principalmente por esta se tratar de uma políticaque atua na luta pela emancipação humana econtra toda forma de discriminação, da política deenfrentamento a violência, políticas de habitação,de educação, dentre outras.7 Possibilidades e avanços na formaçãoprofissional do assistente social para atual nadefesa das políticas de gênero

Com a implementação das diretrizescurriculares do curso de serviço social em 1996,como esclarece o Projeto Pedagógico do Curso deServiço Social (2006), se avança bastante naformação profissional, pois se impõe a necessidadede uma capacitação teórica-metodologica, ético-política e técnico-operativa visando uma novaconcepção de ensino-aprendizagem, no qual setem uma priorização de uma leitura crítica doprocesso histórico, apreendido na sua totalidade.Prima-se pela investigação sobre a formaçãohistórica e os processos sociais contemporâneosque norteiam a constituição da sociedadebrasileira, sob o modelo da produção capitalista.Objetiva-se deste então a apreensão do significadosocial da profissão nos seus produtos/respostasdiante das diversas conjunturas visando acompreensão das demandas postas ao ServiçoSocial pela via do mercado de trabalho e dasmudanças nas relações público e privado e nagestão das políticas sociais e do Estado brasileiro.

De acordo com a Associação Brasileira deEnsino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS,2006), o pressuposto central das diretrizespropostas é a permanente construção deconteúdos teóricos-éticos-políticos-culturais para aintervenção profissional nos processos sociais queestejam organizados de forma dinâmica, adaptávele desta forma capaz e assegurar padrões dequalidade na formação do assistente social.

Outro avanço que o currículo atual de ServiçoSocial (4º currículo) apresenta é a possibilidadedos discentes vivenciarem a problematização eaprofundamento de temáticas diversas sobdiferentes perspectivas, estimulando o senso críticoe a criatividade do alunado através dos TópicosEspeciais. Estes podem trabalhar temas comoPolíticas Públicas, dentre estas as políticas degênero, Assistência Social, Saúde, Saúde Mental,

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Previdência, Pessoas com necessidadesespeciais, Educação especial, questão agrária,questão urbana, infância e juventude, terceiraidade, questão social, questão ambiental, terceirosetor, direitos e cidadania, dentre outros.

A formação do assistente social na UFPIapresenta também a experiência da extensãouniversitária e da iniciação científica comopossibilidades de aproximação com determinadastemáticas como a política de gênero, o que podedespertar no discente interesse por áreasespecíficas de atuação. Um exemplo é o núcleo deestudos sobre a questão de gênero e a diversidadesexual da UFPI.8 Considerações finais

Discutir o processo de construção de umaeducação para a diversidade é uma saída apontadacomo inarredável, tendo em vista a sociedadecontemporânea em que vivemos e principalmenteem função do objetivo de respeitar a diversidadecomo forma de preservar a efetivação dos direitoshumanos. Como bem pontua Bobbio, vivemos a erados direitos e primar pela defesa da educação éuma alternativa para a vida em sociedade.

O estudo relatado no Curso de Serviço Socialda UFPI para além de responder a demandasespecificas como as políticas de gênero, objetivatornar evidente a necessidade de que estastemáticas sejam abordadas na sua complexidade ede forma transversal durante a formação, enquantoproblemas macro da nossa sociedade e nãoapenas como questões ocasionais, específicas dedeterminado grupo de sujeitos.

É preciso enfrentar a fragmentação do saber eassumir que a educação universitária é umprocesso, e por isso necessita de um exercício decrítica constante, bem como de uma avaliaçãocapaz de revelar os limites e as possibilidades quea formação profissional enfrenta, ou melhor que aeducação superior vivencia.

Este artigo contribuiu suscitando o debate sobreuma educação na perspectiva de enfretamento dasviolações de direitos, discriminações epreconceitos. Ele surge como uma inquietaçãodiante da complexidade da vida e da negação dacidadania na perspectiva de contribuir para aconstrução de reflexões sobre uma educação paraa diversidade e para a cidadania. Está posto odesafio.Que novos estudos reforcem esta ideia n

Referências:AMARANTE, Paulo. Saúde Mental, Formação e crítica.In:Cultura da Formação: reflexões para a inovação nocampo da saúde mental.-Rio de Janeiro: Laps, 2008.BRASIL. Lei Nº 9.394 de 20 de Dezembro de 1996-Lei deDiretrizes e Bases da Educação Nacional.______. Constituição Federal de 1988.______. Projeto Pedagógico do curso de serviçosocial. Teresina, Piauí, 2006.FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Riode Janeiro,Paz e Terra.2006.______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários àprática educativa.São Paulo: Paz e Terra.1996.IAMAMOTO, Marilda Villela.In: Reforma do EnsinoSuperior e Serviço Social. Revista da AssociaçãoBrasileira de ensino e pesquisa em Serviço Social-ABEPSS-ano 1, Brasília: Vaalci, 2000.MACEDO, Stephen. Diversity and distrust: civic educationin a multicultural democracy. Cambridge & London: HarvardUniversity Press, 2003.MOEHLECKE, Sabrina. As políticas de diversidade naeducação no governo Lula. Cadernos de Pesquisa, SãoPaulo, v. 39, n. 137, ago. 2009. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742009000200008 &lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 14 nov.2012. http://dx.doi.org/10.1590/ S0100 -15742009000200008.NETTO, José Paulo. In: Reforma do Estado e Impactos noEnsino Superior. Reforma do ensino Superior e ServiçoSocial. Revista da Associação Brasileira de ensino epesquisa em Serviço Social-ABEPSS-ano 1, Brasília: Vaalci,2000.NETTO, José Paulo. O processo da Formaçãoprofissional do Assistente Social.cadernos abess-associação brasileira de ensino de serviço social nº1.In:Teoria, método e história na formação profissional.cortezeditora.1986.ROTELLI, Franco. Saúde Mental, Formação e crítica.In:Formação e Construção de novas instituições em saúdemental.org.Paulo Amarante e Leandra Brasil da Cruz-Rio deJaneiro: Laps, 2008.TAYLOR, Charles. The politics of recognition. In: TAYLOR,Charles et al. Multiculturalism: examining the politics ofrecognition. Edited and introduced by Amy Gutmann.Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 25-73.VERMA, Gajendra K. Diversity and multicultural education:cross-cutting issues and concepts. In: BAGLEY, ChistopherR.; JHA, Madan Mohan; VERMA, Gajendra K (Ed.).International perspectives on educational diversityand inclusion: studies from America, Europe and India. NewYork & London: Routledge, 2007, p. 21-30.

Bacharel em Serviço Social/UFPI, mestranda emPolítica Públicas/UFPI, bolsista CAPES pelo projetoEnsino na Saúde do Núcleo de Estudos em SaúdePública/NESP-UFPI.Doutora em Sociologia/UFPE, doutora em ServiçoSocial/UFRJ e pós-doutoranda/UNICAMP, professorada Universidade Federal do Piauí.

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31 Ano 14, n. 29, abr. 2013informe econômico

1 IntroduçãoA Lei n. 11.892, de 29 de dezembro de 2008

instituiu, ao lado da Rede Federal de EducaçãoProfissional, Científica e Tecnológica, os institutosfederais de educação, ciência e tecnologia.Consoante o art. 6º, suas finalidades são asseguintes:I - ofertar educação profissional e tecnológica, emtodos os seus níveis e modalidades, formando equalificando cidadãos com vistas na atuaçãoprofissional nos diversos setores da economia, comênfase no desenvolvimento socioeconômico local,regional e nacional;II - desenvolver a educação profissional etecnológica como processo educativo einvestigativo de geração e adaptação de soluçõestécnicas e tecnológicas às demandas sociais epeculiaridades regionais;III - promover a integração e a verticalização daeducação básica à educação profissional eeducação superior, otimizando a infra-estruturafísica, os quadros de pessoal e os recursos degestão;IV - orientar sua oferta formativa em benefício daconsolidação e fortalecimento dos arranjosprodutivos, sociais e culturais locais, identificadoscom base no mapeamento das potencialidades dedesenvolvimento socioeconômico e cultural noâmbito de atuação do Instituto Federal;V - constituir-se em centro de excelência na ofertado ensino de ciências, em geral, e de ciênciasaplicadas, em particular, estimulando odesenvolvimento de espírito crítico, voltado à

OS INSTITUTOS FEDERAIS deeducação, ciência e tecnologia nodesenvolvimento brasileiro: entre omercado e os excluídos Por José Tavares da Silva Neto* e

Guiomar de Oliveira Passos**Resumo: Analisa-se a criação dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia, examinando osfundamentos e o perfil organizacional da ação do Estado, valendo-se da legislação que os instituiu e dosplanos governamentais que os institucionalizaram além da literatura de análise destes. Constatou-se queesses institutos se inserem no projeto de desenvolvimento do governo, atendendo às necessidades domercado e à geração de renda dos excluídos, tendo papel estratégico, respondendo pela preparação de mãode obra, produção de conhecimento e disseminação de tecnologia e, por conseguinte, conferem à educaçãocaráter de instrumento do desenvolvimento.Palavras-chave: Instituto federal de educação. Educação. Desenvolvimento.

investigação empírica;VI - qualificar-se como centro de referência noapoio à oferta do ensino de ciências nasinstituições públicas de ensino, oferecendocapacitação técnica e atualização pedagógica aosdocentes das redes públicas de ensino;VII - desenvolver programas de extensão e dedivulgação científica e tecnológica;VIII - realizar e estimular a pesquisa aplicada, aprodução cultural, o empreendedorismo, ocooperativismo e o desenvolvimento científico etecnológico;IX - promover a produção, o desenvolvimento e atransferência de tecnologias sociais, notadamenteas voltadas à preservação do meio ambiente.

O que se examina neste texto são osfundamentos desta ação do Estado, vale dizer, asmotivações da institucionalização, bem como operfil organizacional. Para tanto, recorre-se àlegislação que os instituiu e aos programas eplanos governamentais que ensejaram atransformação dos centros de educaçãotecnológica em institutos, além da literatura relativaà análise dos instrumentos de planejamento dogoverno brasileiro. Trata-se de um esboço analítico,resultado das primeiras aproximações com o objetoque se expressa, num primeiro momento, naidentificação do papel atribuído aos institutos nalegislação e nos planos governamentais e, emseguida, com o delineamento destas organizações.Por fim, são tecidas considerações sobre aarticulação entre esses institutos e desenvolvimento.

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32informe econômicoAno 14, n. 29, abr. 2013

2 Os institutos federais de educação, ciência etecnologia nos planos e programasgovernamentais

As diretrizes para a constituição dos institutosfederais de educação, ciência e tecnologia (IFETs)foram estabelecidas no Decreto n. 6.095, de 24 deabril de 2007 (BRASIL, 2007c), para fins dereorganização das instituições federais deeducação profissional e tecnológica e, como tal,foram emanados do Plano de Desenvolvimento daEducação (PDE), também de abril de 2007. Naconcepção deste, “[...]a reorganização dasinstituições federais de educação profissional etecnológica, para uma atuação integrada ereferenciada regionalmente [...]”, conforme previstono Decreto, “[...]evidencia com grande nitidez osdesejáveis enlaces entre educação sistêmica,desenvolvimento e territorialidade.” (BRASIL, 2007b,p. 32).

Este enlace, consoante o PDE (BRASIL, 2007b,p. 6/31), “[...]é essencial na medida em que é pormeio dele que se visualizam e se constituem asinterfaces entre educação como um todo e asoutras áreas de atuação do Estado”, sendo talvez,diz adiante, “[...]na educação profissional etecnológica que os vínculos entre educação,trabalho e território se tornem mais evidentes e osefeitos de sua articulação mais notáveis.”

Assim, a missão desses institutos configura-sena relação da educação com o trabalho e com aciência. Cada uma delas, orienta-se por objetivosdistintos, sendo, no que concerne à primeira, asseguintes (BRASIL, 2007b, p. 32):

[...]ofertar educação profissional e tecnológica,como processo educativo e investigativo, emtodos os seus níveis e modalidades, sobretudode nível médio; orientar a oferta de cursos emsintonia com a consolidação e o fortalecimentodos arranjos produtivos locais; estimular apesquisa aplicada, a produção cultural, oempreendedorismo e o cooperativismo, apoiandoprocessos educativos que levem à geração detrabalho e renda, especialmente a partir deprocessos de autogestão.Já em relação à educação em interface com a

ciência, os objetivos são (BRASIL, 2007b, p. 31-32):

[...] constituir-se [o IFET] em centro de excelênciana oferta do ensino de ciências, voltado àinvestigação empírica; qualificar-se como centrode referência no apoio à oferta do ensino deciências nas escolas públicas; oferecerprogramas especiais de formação pedagógicainicial e continuada, com vistas à formação deprofessores para a educação básica, sobretudonas áreas de física, química, biologia ematemática, de acordo com as demandas deâmbito local e regional, e oferecer programas deextensão, dando prioridade à divulgação científ ica.

No ideário traçado no PDE (BRASIL, 2007b, p.33), esta não apenas é uma “experiênciainstitucional inovadora”, que funde “a visãosistêmica da educação, território e desenvolvimento[...] de maneira plena”, mas também que tempossibilidade, em sua expressão, “de abrirexcelentes perspectivas para o ensino médio, hojeem crise aguda” assim como de “repor, em novasbases, o debate sobre a politecnia, no horizonte dasuperação da oposição entre o propedêutico e oprofissionalizante.”

Assim é que, nas finalidades citadas no iníciodo texto, a educação profissional e tecnológicaforma e qualifica os profissionais dodesenvolvimento, dissemina e produz tecnologiaspara solucionar problemas locais e regionais,habilita para atuar em conformidade com ascondições produtivas, sociais e culturais, mascapacita na identificação dos fatores propiciadoresde mudança, prepara para a investigação ecompreensão da realidade, além de integrar aeducação profissional às demais etapas formativas,inclusive na utilização dos recursos físicos ehumanos. Desse modo, cabe aos institutosoferecer mão de obra, tecnologia e conhecimentopara o desenvolvimento. Estes elementos tambémestão presentes na definição da missãoinstitucional configurada na relação da educaçãocom o trabalho e a ciência, ambos encarregadosdo fornecimento de mão de obra e tecnologia, mascabendo apenas ao primeiro a tarefa de, em meioàs demais competências, gerar emprego e renda.Com isso, tem-se que os institutos têm tambémsob sua responsabilidade criar novos agenteseconômicos (empreendedores), vale dizer, inseriros excluídos no desenvolvimento.

A concepção de desenvolvimento não éexplicitada. Depreende-se, por um lado, que estase ancora na ideia de incrementos positivos noproduto e na renda, fazendo uso das expressõesde Oliveira (2002), associados à satisfação dasnecessidades humanas; por outro, que compete àeducação fornecer mão de obra, tecnologia econhecimento necessários aos incrementos daprodução e da renda. Esta é uma compreensão dedesenvolvimento que traz, ao mesmo tempo,elementos das duas convenções dedesenvolvimento de que fala Erber (2009):institucionalista restrita e neodesenvolvi-mentista. Da primeira, os compromissos com ofuncionamento do mercado, no caso, com o capitalhumano e os meios necessários à produção e

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consumo; e da segunda, o aumento ou criação deoportunidade de renda familiar nos segmentos maispobres da população. Evidentemente, esta é nãoapenas dependente daquela, mas subalterna emenos significativa, dada à sua reduzida presençana compleição do modelo institucional.

A dualidade de concepções ou convenções dedesenvolvimento não se manifesta apenas nosinstitutos, encontra-se, conforme Erber (2009), nopróprio governo; uma, presente no que propugna oMinistério da Fazenda e o Banco Central, e outra,no Plano Plurianual de Aplicações (PPA) 2003-2007, na Política Industrial, Tecnológica e deComércio Exterior (PITCE), no Programa deAceleração do Crescimento (PAC) 2007-2010 e naPolítica de Desenvolvimento Produtivo (PDP).

No PPA, principal instrumento de planejamentogovernamental, percebe-se a tentativa de conciliaras duas concepções. A mensagem presidencial deenvio ao Congresso Nacional afirma que este“Plano promoverá desenvolvimento com inclusãosocial” (BRASIL, 2007a, p. 11), tendo a educação,neste contexto, o condão de causar impactos na“competitividade econômica, na equidade social eno desempenho cidadão. Este impacto, por umlado, condicionado à “qualidade”, sem o que não sedá a adequada “[...] apropriação de padrõestecnológicos inovadores para o desenvolvimento dosetor produtivo” e, consequentemente, “[...] oprojeto de desenvolvimento nacional em curso nãose viabiliza” (BRASIL, 2007a, p. 16); e, por outro,pelo fornecimento da inovação tecnológica, advindada “implementação de políticas de incentivo àpesquisa e ao desenvolvimento e a setores eatividades intensivos em tecnologia, geradores edifusores de inovação” e da “adequada” (BRASIL,2007a, p. 11-12). À educação, portanto, cabe atarefa de garantir as condições de apropriação datecnologia, bem como de sua produção. Daí aimportância estratégica dos institutos conferidapelo PDE e a inclusão deste nas agendasprioritárias do PPA ao lado da agenda social e doPAC (BRASIL, 2007a, p. 13), tendo ele o status deelemento essencial.

O destaque conferido à educação em geral e,conforme o PDE, aos institutos em particular,decorre de que estes “[...] são a garantia deexpansão da capacidade de produção que setraduzirá em aumento da produtividade e dacompetitividade da economia” (BRASIL, 2007a, p.32) sem o que não serão vencidos os grandesdesafios de o PPA “[...] assegurar o atual círculo

virtuoso de crescimento, e direcionar políticaspúblicas necessárias para elevar a produtividade ea competitividade da economia, assegurando queseus ganhos sejam distribuídos de formaequânime.”

A estrutura organizacional dos institutos paracumprir missão e tarefas que lhes foram confiadasé o tema seguinte.3 Perfil organizacional dos institutos federaisde educação

A Lei n. 11.892/2008, ao criar os institutosfederais de educação, constitui-os na forma deautarquia, dispondo, consequentemente, autonomiaadministrativa, orçamentária, financeira epatrimonial com o objetivo de desenvolver atividadesde ensino - técnico de nível médio e superior(graduação e pós-graduação) -, pesquisa eextensão. Desse modo, as instituições deeducação profissional técnica passaram a integraro rol das ações do Estado para o ensino médio,profissional e superior.

A educação profissional técnica, em duasmodalidades: de nível médio e de formação iniciale continuada. A primeira, prioritariamente na formade cursos integrados ao ensino médio1, para osconcluintes do ensino fundamental e para o públicoda educação de jovens e adultos. A segunda, paraos trabalhadores, “[...] objetivando a capacitação,o aperfeiçoamento, a especialização e aatualização de profissionais, em todos os níveis deescolaridade, nas áreas da educação profissionale tecnológica.” (BRASIL, 2008, art. 7º, II).A educação de nível superior, graduação epós-graduação destinada ao público em geral quereunir as condições necessárias ao seu ingresso.Nesta última, singularizam-se os cursos superioresde tecnologia, cursos tecnológicos, e os “[...] delicenciaturas, bem como programas especiais deformação pedagógica, com vistas na formação deprofessores para a educação básica, sobretudo nasáreas de ciências e matemática, e para educaçãoprofissional.” (BRASIL, 2008, art. 7º, VI, b).

Lembrando-se que toda a oferta, como ditoanteriormente, seja orientada pelo estudo daspotencialidades locais e regionais do entorno doinstituto, como também da necessidade de mão deobra. Os cursos, por conseguinte, são diversos,envolvendo todos os setores produtivos(agroindústria, agropecuária, mineração, mecânica,agrimensura, eletrotécnica, gastronomia, radiologia,informática, eletrônica, engenharia de pesca,edificações, dentre outros) (BRASIL, 2011b).

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n

Neste mister, diz a Lei n. 11.892/2008, no seuart. 2º, § 3º, que

Os Institutos Federais terão autonomia para criare extinguir cursos, nos limites de sua área deatuação territorial, bem como para registrardiplomas dos cursos por eles oferecidos,mediante autorização do seu Conselho Superior,aplicando-se, no caso da oferta de cursos adistância, a legislação específ ica.Os cursos tecnológicos, formação em nível

superior, têm duração mínima de dois anos, maspredominam cursos de três anos (BRASIL, 2011);modelo diferente do adotado para os cursossuperiores, que, em geral, se dão em maior tempo,e os cursos técnicos de nível médio com cargahorária em média de 1.200 horas (1,5 ano)(BRASIL, 2011b) .

Para realizar suas atribuições, cada institutoestrutura-se em multicampi, isto é, em váriasunidades, dispondo, cada uma delas, daprerrogativa de submeter sua propostaorçamentária anual (BRASIL, 2008).

A organização administrativa do instituto écomposta por órgãos consultivos - Colégio deDirigentes e o Conselho Superior - e órgãoexecutivo - a Reitoria, composta por 1 reitor e 5pró-reitores, tendo cada campus um diretor-geralresponsável pela direção do mesmo. Reitor ediretor-geral são submetidos a processo deconsulta à comunidade escolar, corpo docente,servidores técnico-administrativos e corpo discente,para sua condução ao cargo, cujo mandato se dáem um período de quatro anos, permitida umarecondução, submetida igualmente ao processo deconsulta. O primeiro, após prévia consulta, énomeado pelo presidente da República e o segundopelo reitor. Sua estrutura física é resultado daherança patrimonial dos antigos centros federais deeducação, ciência e tecnologia e do Plano deExpansão da Rede Federal de EducaçãoProfissional e Tecnológica (BRASIL, 2009); estaresponsável pela interiorização da Rede, pois aimplantação de novos campi requer a identificaçãode cidades-polo (BRASIL, 2007b), aquelasdistantes dos centros urbanos, mas com influênciaeconômico-social em seu entorno. É esta estruturainstitucional, organizacional e física que tem oencargo de articular a educação ao trabalho e àciência tendo em vista o desenvolvimento do paístanto no sentido de suprir o mercado de mão deobra qualificada e tecnologia como de favorecer ainclusão social.

4 ConclusãoO poder público, ao instituir a Rede Federal de

Educação Profissional, Científica e Tecnológica,atribuiu-lhe papel dentro da interface queestabelece entre educação e desenvolvimento. Aconcepção de desenvolvimento governamental está,a um só tempo, comprometida com a estabilidadeeconômica (institucional restritivo), e com aquestão social (neodesenvolvimentismo). A ideia doGoverno na criação dos institutos, apreendida emleitura realizada de seus instrumentos deplanejamento governamental, PPA 2008-2011, PDE,e a lei de sua constituição, confere-lhes papelestratégico, sendo responsável pela preparação demão de obra, produção de conhecimento edisseminação de tecnologia. Desse modo, ogoverno chama a educação para ser instrumento dedesenvolvimento

Nota:(1) Modalidade de ensino em que o aluno faz o curso técnicointegrado ao ensino médio, obedecendo à opção feita noprocesso seletivo.Referências:BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos.Plano Plurianual 2008-2011: mensagem presidencial.Brasília: MP, 2007a.BRASIL. Ministério da Educação. O Plano deDesenvolvimento da Educação. 24 abr. 2007b. Disponívelem: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/livro/livro.pdf>. Acessoem: 11 abr. 2011.BRASIL. Decreto n. 6.095, de 24 de abril de 2007. DiárioOficial da União, Brasília, 25 abr. 2007c. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6095>. Acesso em: 11 abr. 2011.BRASIL. Lei n. 11.892, de 29 de dezembro de 2008. DiárioOficial da União, Brasília, 30 dez. 2008. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei11892.htm>. Acesso em: 10 abr. 2011.BRASIL. Ministério da Educação. Centenário da RedeFederal de Educação Profissional e Tecnológica. 2009.Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/centenario/historico_educacao_profissional.pdf. Acesso em:12 abr. 2011.BRASIL. Catálago Nacional de Cursos Técnicos eTecnológicos. Brasília, 2011. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12488&Itemid=788>. Acesso em: 18 abr. 2011.BRASIL. Catálago Nacional de Cursos Técnicos. Brasília,2011b. Disponível em: <http://catalogonct.mec.gov.br/>.Acesso em: 18 abr. 2011.ERBER, F. S. As convenções de desenvolvimento no governoLula: um desafio de economia política. Insight Inteligência.São Paulo, a. XI, n.44, março de 2009, p. 109-130. Disponívelem: <http://www.insightinteligencia.com.br/44/PDFs/09%20-%20CONVEN%C3%87%C3%95ES.pdf>. Acesso em: 18 abr.2011.OLIVEIRA, Gilson Batista de. Uma discussão sobre oconceito de desenvolvimento. Revista da FAE, Curitiba, v. 5,n. 2, p. 47-62, maio/ago. 2002.

*Graduado em História/UFPI, mestrando emPolíticas Públicas/UFPI, analista de Planejamento,Gestão e Infraestrutura do IBGE.**Professora do Deptº de Serviço Social e dosMestrados em Políticas Públicas/UFPI e CiênciaPolítica/UFPI. Doutora em Sociologia/UNB.

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RECICLAGEM DE PNEUSPor Danielle Maria dos Reis Galdino* e Maria do Socorro Lira Monteiro**

1 IntroduçãoO crescimento populacional historicamente

provocou problemas ambientais. Para resolvê-los,fez-se mister adotar políticas e medidas deproteção ao meio ambiente. Nesse sentido, aDeclaração da Conferência das Nações Unidassobre o Meio Ambiente Humano, realizada emEstocolmo (CNUMAD, 1972), reconheceu asnecessidades de a natureza não ser utilizada comofonte inesgotável de recursos e de reduzir o ritmo daprodução de bens e produtos, mas sem a devidapreocupação com a degradação do meio ambiente.Ademais, Lerípio (2004) acrescenta que as pessoasvivem cercadas de lixo, uma vez que nos últimos 20anos a população mundial cresceu menos queproporcionalmente (18%) que o lixo por elaproduzido, que foi de 25%.

Assim, salienta-se que a sociedade moderna,consubstanciada na praticidade proveniente detecnologias que possibilitam economia de tempo,comodidade etc., gerou, consequentemente,problemas sobre o destino dos produtos utilizados.Logo, o descarte final dos resíduos sólidostornou-se preocupante, pois o depósito inadequadoprovocou danos à saúde pública e ao meioambiente, os quais exigiram a intervenção do poderpúblico e da sociedade para a implementação dealternativas de solução.

Nessa perspectiva, ressalta-se que, dentre osresíduos sólidos nocivos ao meio ambiente,destacou-se o pneu inservível, cujo tempo dedecomposição, consoante o Ambiente Brasil (2009),é indeterminado. Com base nesse contexto, oartigo discorre sobre o destino dos pneus inservíveisno Brasil e o procedimento das autoridadesteresinenses diante do seu acúmulo. Para tanto,analisa o pneu e sua relação com o meio ambiente,a legislação ambiental e a reciclagem do pneuinservível como foco na cidade de Teresina.

Resumo: Na sociedade moderna, o descarte final dos resíduos sólidos tornou-se preocupante, pois o depósitoinadequado provocou danos à saúde pública e ao meio ambiente, os quais exigiram a intervenção do poderpúblico e da sociedade para a implementação de alternativas de solução. Nesse sentigo, o artigo trata sobre odestino dos pneus inservíveis no Brasil e o procedimento adotado pelas autoridades teresinenses diante doseu acúmulo.Palavras-chaves: Resíduos sólidos. Reciclagem de pneus. Teresina.

2 Pneu e meio ambienteNa concepção de Michelin (2008), o pneu tem

as funções de guiar veículos com precisão,sustentá-lo parado e em movimento, resistir àtransferência de cargas, amortecer (ao absorver osobstáculos e irregularidades da estrada), mobilizarcom regularidade e segurança, transmitir potênciaútil do motor e qualidade nos poucos centímetrosquadrados em que entra em contato com o solo, eser duradouro, ao conservar o melhor nível deperformance durante as rotações da roda. Destarte,em virtude de ser durável, resistente e absorvedordos impactos no solo, facilitou e tornou prático otransporte de pessoas e cargas, o que possibilitouo incremento significativo da produção.

Conforme o Banco Nacional de DesenvolvimentoEconômico e Social, a borracha é a principalmatéria-prima do pneu, a qual representa cerca de41% do peso, em pneu de aproximadamente 10 kg.Existem a borracha natural, oriunda da seringueira(havea brasiliensis), e a sintética, que é um tipo deelastômero e que consiste em polímeros compropriedades físicas parecidas com a da borrachanatural, derivada do petróleo e do gás natural. Alémda borracha, o pneu é composto pelo negro decarbono ou negro de fumo, fibras orgânicas, como onylon e o poliéster, arames de aço, derivados dopetróleo e produtos químicos (BNDES, 1998).

O crescimento da demanda de pneu nosmercados de reposição e de montagem decorreu desua capacidade de possibilitar agilidade,comodidade e segurança nos transportes de cargase de pessoas. O faturamento bruto das indústriasdo setor praticamente triplicou, pois, em 1985, foide cerca de US$ 35 bilhões e passou para US$ 92bilhões, em 2004. Tal performance foi condicionadapelo fato de que, em 2005, dos 1.047 milhões depneus destinados aos veículos de passeio ecomercial leve e dos 156 milhões dos pneus

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direcionados a caminhões, 71% e 84% foramdeslocados para o segmento reposição,respectivamente. Esse cenário foi resultante do fatode as indústrias de pneu considerarem que é pormeio de reposição que as empresas conseguemmaior margem de lucro sobre os preços de venda,proporcionando, assim, uma tendência mais estávelno longo prazo (GOLDENSTEIN; ALVES;BARRIOS, 2007).

Segundo a Associação Nacional da Indústria dePneumático (Anip), a produção brasileira de pneusestava prevista para iniciar em 1934, quando dainstituição do Plano Geral de Viação Nacional; noentanto, somente foi implantada em 1936, com ainstalação da Companhia de Artefatos de Borracha,conhecida como Pneu Brasil, no Rio de Janeiro,fabricando, naquele ano, em torno de 29 mil pneus.Entre 1938 e 1941, demais fabricantes do mundopassaram a comercializar e produzir pneus noBrasil, elevando a produção nacional para 441 milunidades e, em 1980, produziram 29 milhões depneus. Desde então, o País tem aumentado aprodução de pneus (ANIP, 2012).

De acordo com Silva (2008), o grande montanteda imigração de pneus chineses resultou emameaça à continuidade da progressiva produçãobrasileira. Contudo, não obstante tal dificuldade, aindústria pneumática apresentou recorde de 57,3milhões de unidades em 2007, o que conferiu aoPaís a quinta posição de maior produtor mundial de

pneus para caminhões e o sexto maior paraautomóveis.

Salienta-se, consoante Goldenstein, Alves eBarrios (2007), que os pneus nacionais eramproduzidos em 12 indústrias, distinguidas em cincograndes empresas - Goodyear (2), Pirelli (5),Bridgestone Firestone (2), Michelin (2) e Continental(1) - as quais transacionavam nos mercados demontadora, reposição e exportação, distribuídos em26%, 42% e 32%, respectivamente. O mercado dereposição era composto pelas lojas revendedorasde pneus, enquanto o de exportaçãocomercializava, principalmente, com os EstadosUnidos, França, Argentina e México.

Logo o progressivo crescimento da produção eda venda de pneus aumentou o problema dadestinação final, na medida em que, ao seremabandonados ou dispostos inadequadamente,causavam riscos ao meio ambiente e à saúdepública, conforme o Ambiente Brasil (2001), quandoo descarte de pneus velhos atingiu, anualmente,aproximadamente 800 milhões de unidades.

Nesse sentido, apresenta-se a Figura 1 parademonstrar o ciclo de vida do pneu novo nasrevendedoras, montadoras e exportação, comotambém dos pneus usados que voltam a circular edos que atingem o fim da vida útil.

Em função desse cenário, o Conselho Nacionaldo Meio Ambiente (Conama), no uso de suasatribuições legais - estabelecidas “pela Lei n. 6.938,

Figura 1 - Ciclo de vida do pneu no Brasil

Fonte: IBGE (2003); Instituto de PesquisasTecnológicas (2004).

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de 31 de agosto de 1981, regulamentada peloDecreto-Lei n. 99.274, de 6 de junho de 1990 esuas alterações” -, pela Resolução n. 258, de 26 deagosto de 1999, determinou que as empresasfabricantes e importadoras de pneus deveriamcoletar e dar destinação final aos pneumáticosinservíveis na proporção das quantidadesproduzidas ou importadas (BRASIL, 1999). Estanormalização objetivava diminuir o montante depneus inservíveis depositados de forma inadequadaem aterros clandestinos e, consequentemente,mitigar as externalidades negativas decorrentesdesta prática. Ademais, com a finalidade deesclarecer os responsáveis pela destinação final, areferida Resolução (Art. 2º) classificou o pneuconforme seu estado de uso:I - pneu ou pneumático: todo artefato inflável,constituído basicamente por borracha e materiaisde reforço utilizados para rodagem em veículos;II - pneu ou pneumático novo: aquele que nunca foiutilizado para rodagem sob qualquer forma,enquadrando-se, para efeito de importação, nocódigo 4011 da Tarifa Externa Comum - TEC;III - pneu ou pneumático reformado: todopneumático que foi submetido a algum tipo deprocesso industrial com o fim específico deaumentar sua vida útil de rodagem em meios detransporte, tais como recapagem, recauchutagemou remoldagem, enquadrando-se, para efeitos deimportação, no código 4012.10 da Tarifa ExternaComum - TEC;IV - pneu ou pneumático inservível: aquele que nãomais se presta a processo de reforma que permitacondição de rodagem adicional.

A Resolução n. 258/99 do Conama estabeleceuprazos e a proporcionalidade de recolhimento, comoapresentado nas Tabelas 1 e 2.

A Tabela 1 ilustra que em 2002, 2003, 2004 e2005, para cada 4, 2, 1 e 4 pneus novos nacionais eimportados, as empresas fabricantes eimportadoras deveriam dar correta destinação final a1, 1, 1 e 5 pneus inservíveis, respectivamente.

Relativamente aos pneus reformados, aproporcionalidade era diferenciada, já que somentepassou a ser válida a partir de 2004, sendo que paracada 4, e em 2005 para cada 3 unidades de pneusnacionais e importados, as referidas empresasdeveriam dar destinação final, respectivamente, a 5e 4 pneus inservíveis (Tabela 2)

Dessa forma, com o estabelecimento de prazose quantidade de pneus inservíveis a seremrecolhidos, criou-se o mecanismo de

operacionalização da Resolução 258/99 doConama, para a preservação ambiental, posto que onão cumprimento acarretará em sanções. AResolução repassou para o Instituto Brasileiro doMeio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis(Ibama) a responsabilidade pela exigência documprimento das normas e procedimentos daResolução, por meio da fiscalização e controle, aequivalência em peso dos pneus inservíveiscobradas pelas empresas importadoras a partir dejaneiro de 2002; já a destinação final dospneumáticos inservíveis ficou sob aresponsabilidade dos fabricantes, e o nãocumprimento dessa normatização implicará em“sanções estabelecidas na lei n. 9.605, de 12 defevereiro de 1998, regulamentada pelo Decreto n.3.179, de 21 de setembro de 1999.” (BRASIL, 1999,art. 12).

No entanto, devido à referida Resolução não terdescrito claramente o estado do pneu importado,abriu-se precedentes para os importadores fazeremuso de liminares e mandatos de segurança sob aalegação de que quem fabricava e quem importavapneus (novos, usados ou reformados) estaria agindodentro da lei (ANDRADE, 2007, p. 46).

Dessa forma, em virtude da brecha naResolução 258/99 que facilitava a venda de pneusdos países que integravam o Mercado Comum doSul (Mercosul), presenciou-se o grande volume depneus comercializados, haja vista que, consoante oAmbiente Brasil (2005), cerca de 7,6 milhões de

Fonte: Resolução n. 258/1999 (BRASIL, 1999).

Fonte: Resolução n. 258/1999 (BRASIL, 1999).

Tabela 1 - Prazos e proporções para o recolhimentodo pneu inservível

Tabela 2 - Prazos e proporções para o recolhimentodo pneu inservível.

3 unidades

Prazo a partir de Pneus reformados Pneu inservíveis

Janeiro/2004

Janeiro/2005

4 unidades 5 unidades

4 unidades

2 unidades

Prazo a partir de Pneu novo (nacionalou importado) Pneu inservível

Janeiro/2002

Janeiro/2003

Janeiro/2004

Janeiro/2005

4 unidades

1 unidade

4 unidades

1 unidade

1 unidade

1 unidade

5 unidades

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pneus por ano entraram no País na forma deimportação.

Nesse sentido, Bressan (2008, n.p.), emconcordância com o presidente da Anip, GeraldoTommasini, enfatizou que o Brasil tornou-se o maiorimportador mundial, com três milhões de pneususados e reformados em 2007. Esse contextorevelou a negociação de aproximadamente 10 milpneus por dia e a geração de 500 novos postos detrabalho. Contudo, tal situação expressou que “oemprego foi gerado no exterior, os impostos forampagos lá e as divisas também ficaram do outro lado,aqui restou um pneu com pouco tempo de vida útil eo custo da reciclagem.”

Outrossim, identificou-se que o pneu usado noBrasil era comprado pelo sucateiro, que oencaminhava para a triagem, que consiste noprocesso de avaliação para definir se o mesmo seráreformado, se possui meia vida útil ou se encontra-se em estágio inservível. Caso ocorra a decisãopela última alternativa, o pneu terá como destinaçãofinal a trituração ou a produção de artefatos.

Ressalta-se que o pneumático inservívelcomportou-se como uma problemática social,econômica e ambiental, por provocar danos aoprodutor e poder tornar-se foco de doenças (como adengue) e, quando queimado a céu aberto, polui osolo e o ar. Por conseguinte, esta configuraçãoexige a participação dos produtores, revendedores econsumidores para o recolhimento e destinaçãofinal adequada, como a reciclagem, no sentido deevitar a degradação do meio ambiente e problemasde saúde à população.

3 Destinação final do pneu em TeresinaDe acordo com o Departamento Estadual de

Trânsito do Piauí, entre 2004 e 2008, registrou-seum total de 1.893.241 carros no estado,expressando um incremento médio a cada ano de41.679, o qual redundou no acréscimo de 166.711veículos (DETRAN-PI, 2008). Destarte, dado quecada carro possui em média quatro pneus, omontante de carros ao longo desse período exigiu aprodução de um total de 1.893.241 pneus, o quepossibilitou contabilizar que a quantidade de pneusque se tornou ou irá tornar-se inservível será de7.572.964.

Em função desse cenário, em Teresina, foiaprovada a Lei n. 3.666, de 23 de agosto de 2007,que dispõe sobre o uso do asfalto ecológico “queutiliza em sua composição a borracha reciclada depneus descartados.” (Art. 1º § único). Para tanto,

necessita de aquisição de tecnologia “junto a outrasprefeituras e estados do País” (Art. 2º, I), que jáadotaram o asfalto derivado da reciclagem do pneue “de mecanismos técnicos e legais de limpezaurbana para a coleta específica de pneusdescartados na cidade de Teresina.” (Art. 2º II).Para a operacionalização da referida lei, ofinanciamento depende de dotação orçamentáriaespecífica e suplementar, caso necessário (Art. 2º,III). Também foram estabelecidos convênios com aassociação Reciclanip e a Associação deRevendedores de Pneus e Prestadores de Serviçosafins do Estado do Piauí com a finalidade deimplementar ações conjuntas e integradas visandoà proteção do meio ambiente por meio da coleta eda destinação adequada dos pneumáticosinservíveis.

Ademais, a prefeitura de Teresina disponibilizouum galpão para o armazenamento dos pneusinservíveis próximo ao aterro sanitário, localizado naBR 316, km 7. Quando o acúmulo de pneuscorresponde à carga de uma carreta, ou seja, a umvolume mínimo de 2.000 pneus de carros depasseio ou 250 pneus de carga, a prefeituracomunica à Reciclanip (2007), que, num prazomáximo de 72 horas, terá que dar destinação finaladequada aos pneus, conforme a ResoluçãoConama 258/99.

Consoante a gerente de uma revendedora depneus em Teresina, cabe aos revendedores depneus receber os pneus descartados pelosconsumidores, quando da troca por novos, enviá-losao ponto de coleta e orientar os consumidoressobre a validade e a premência da adequadadestinação dos mesmos. Na concepção da gerente,a relevância da lei n. 3.666 assentou-se no benefícioproporcionado ao meio ambiente, devido à realpossibilidade de reduzir a produção de lixo e deconsumo de matéria-prima natural, o que provoca,como consequência, a liberação de menospoluente.

Dessa forma, essa alternativa de solução para aproblemática do pneu inservível, centrada nareciclagem para a produção de asfalto ecológico,por um lado, configurou-se seguro e resistente, emvirtude de se adaptar melhor às variações climáticase absorver o impacto dos veículos no solo, o quereduz a probabilidade de acidentes, devido conterborracha em sua composição; e, por outro lado,proporciona a mitigação dos danos ambientais.Todavia, essa proposição não foi efetivada devidoTeresina não dispor de tecnologias que transforme a

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borracha em asfalto ecológico. Assim, a cidadecontinuou a pavimentar as ruas com um asfaltomenos resistente e mais caro que o proveniente daborracha.4 Métodos de reaproveitamento de pneus

De acordo com a Anip (2008), em função doprogressivo incremento de pneus inservíveis, nãoobstante a relevante atuação da associação, fez-senecessária a implantação de áreas de intervenção.Nessa perspectiva, em 2007, foi criada aReciclanip, derivada da parceria da Anip com asindústrias produtoras de pneus novos (Rinaldi,Tortuga, Pirelli, Michelin, Maggio, Goodyear, Levorine Bridgestone). Destarte, segundo os fabricantes,desde o início do programa de coleta e destinaçãode pneus, em 2007, cerca de 140 milhões de pneusde automóveis obtiveram destino ambientalmentecorreto e, para tanto, foi investido o montante deUS$ 37 milhões.

Com base na Anip (2009), no Brasil, em 2005,cerca de 100 milhões de pneus obtiveramdestinação adequada, o que correspondeu a,aproximadamente, 500 mil toneladas de pneusvelhos ou inservíveis coletados e destruídos, e emtorno de 700 mil toneladas de pneus coletados edestinados de forma ambientalmente adequada, em2007. Tal panorama resultou da preocupação daAnip em investir no programa de coleta edestinação de pneus para conquistar novasparcerias que possibilitem o crescimento dospontos de coleta. A associação ressalta, ainda, queesta estratégia foi exitosa, haja vista que, em maiode 2009, já existiam 340 pontos de coleta em21 estados brasileiros, representando 979 miltoneladas de pneus inservíveis com destinoadequado.

Em consonância com o plano de coleta edestinação dos pneus inservíveis, a Reciclanip(2007) diferenciou o pneu em dois tipos:a)pneus usados (ainda não inservíveis) - os quaispodem ser adquiridos por consumidores, seremvendidos no comércio de pneus usados e seremreformados;b)pneus inservíveis - aquele que atinge o fim da vidaútil, ou seja, que não tem condição de continuarsendo utilizado, o qual deve ser deslocado paradestinação final adequada.

Nessa perspectiva, em 2008, no Brasil, existiamdistintas formas de reaproveitamento do pneu apóso processo de trituração, das quais se destacam ocombustível alternativo, a laminação, os artefatos, a

exportação de granulados para asfalto e acompactação do solo (ANIP, 2008).5 Conclusão

A descoberta do pneumático foi de extremaimportância para a sociedade, em função de facilitara locomoção, ou seja, o transporte de pessoas ecargas; porém, provocou o aumento paulatino daprodução de pneus no mundo. Logo, em virtude deo pneu ser um resíduo sólido, cujo período dedecomposição é indeterminado, despertou apreocupação da sociedade sobre os potenciaisdanos ao meio ambiente quando despejado ematerros clandestinos ou queimados a céu aberto.Assim, o armazenamento do pneu inservível deforma adequada configurou-se o primeiro passo paraa reciclagem. Dessa forma, empresas sem finslucrativos, como a Anip, desenvolveram projeto decoleta e destinação de pneus inservíveis, com aresponsabilidade de pós-consumo da indústriabrasileira, com a finalidade de demonstrar que areutilização do pneu usado e sem vida útil é umaforma ambientalmente adequada e econômica deusá-lo.

Destarte, constatou-se que a cidade de Teresinaprecisa de investimentos que viabilizem areutilização do pneumático inservível para aprodução de asfalto ecológico, por ser mais seguroe resistente, possuir melhor adaptação às variaçõesclimáticas e ter maior absorção do impacto dosveículos no solo. Por conseguinte, esse contextoexplicitou que a reciclagem do pneu inservível, aodeslocar o destino de lixo do resíduo, pelas diversasformas alternativas, como coprocessamento,artefatos, exportação de granulados, pavimentaçãoasfáltica, recauchutagem e recuperação, éeconomicamente viável, na medida em que seincorpora à produção de uma mercadoria, comomatéria-prima, devido a redução do custo deprodução. Ademais, apresenta-se comoecologicamente necessário, uma vez que mitiga epreserva o meio ambiente, ao evidenciar que éatravés da reciclagem que se obtém o tratamentoadequado para o pneu inservíveln

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*Graduada em Ciências Econômicas/UFPI.E-mail: danyelle.the@hotmail.**Professora do Departamento de CiênciasEconômicas e do Mestrado e Doutorado emDesenvolvimento e Meio Ambiente/UFPI.E-mail: [email protected].

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1 IntroduçãoO objetivo deste trabalho é apresentar os

argumentos de dois autores quanto a seguintequestão: a lógica é culturalmente relativa? Osautores em questão são David Bloor e Tim Triplett eo objeto de suas considerações recai sobre umaexaustiva pesquisa realizada pelo antropólogoinglês E. E. Evans-Pritchard, em 1937, sobre osazande. Segundo Bloor (1991), as crenças dosazande os levaram a institucionalizar um errológico. Entendendo que os passos lógicos sãoproposições que tomamos como corretas, uma vezque os azande assumem como certa asafirmações a respeito de suas crenças, Bloorconclui que deve haver duas lógicas: a lógicaocidental e a lógica azande. Tim Triplett contrapõe-se fortemente a esta conclusão escrevendo em1994 um artigo para mostrar que não há qualquerdiferença entre a lógica dos azande e a lógicaocidental. Para esse autor, Bloor fez uma leituraequivocada das observações de Evans-Pritchard ese propõe a esclarecê-las. Um dos passos paracompreender o debate é esclarecer o significado dotermo relativismo lógico e em seguida elucidá-lo àluz dos argumentos de Bloor e Triplett.2 As Observações de Evans-Pritchard sobre osAzande e as Considerações de Bloor

O trabalho de Evans-Pritchard sobre os azandeé a principal fonte da qual Bloor extrai seusexemplos para fundamentar a afirmação de que alógica é culturalmente relativa. Portanto, esclarecero termo “lógica” nesse contexto significa analisaras proposições referentes às crenças azandecoletadas por Evans-Pritchard. Os azande habitamuma região de densas florestas entre o Sudão e oCongo. Entre suas principais característicasressaltamos a crença em bruxaria e na decisãodos oráculos. Eles consultam um oráculo sempreque desejam realizar alguma tarefa importante; e ooráculo verifica se a pessoa é ou não bruxa, pois,para os azande, os poderes e desejos dos bruxos

A LÓGICA É CULTURALMENTERELATIVA? Algumas consideraçõessobre os argumentos de David Bloor eTim Triplett sobre os AzandePor Diana Patricia Ferreira de Santana*

são a causa dos problemas. O bruxo herdafisicamente a substância-de-bruxaria, localizada nabarriga e transmitida pelo bruxo a todos os filhoshomens do clã e pelas bruxas a todas as filhasmulheres. Tal substância não é detectávelexternamente, é uma característica interna que sópode ser revelada após a morte, através deautópsia. Teoricamente, todo o clã de um bruxodeveria ser composto por bruxos, mas, na prática,isto não acontece. Os azande admitem que o clãde um bruxo pode não ser todo composto porbruxos. Uma das justificativas para explicar estefato é a ideia de que a substância-de-bruxariaencontra-se arrefecida (cool, originalmente entre osazande). Logo, o membro de um clã bruxo tem opotencial para ser bruxo, mas, para todos osefeitos, ele pode não ser de fato; e quem faz essadetecção é o oráculo. Evans-Pritchard (2005, p. 35)identificou que:

Elaborações adicionais da crença libertam osAzande da necessidade de admitirem aquilo quepara nós seriam as conseqüências lógicas daidéia de uma transmissão biológica da bruxaria.Se f icar indubitavelmente provado que um homemé bruxo, seus parentes podem, para reivindicarinocência para si mesmos, lançar mão do próprioprincípio biológico que os colocou sob suspeita.Eles admitem que o homem é um bruxo, masnegam que seja membro do clã deles. Dizem queera um bastardo, pois entre os Azande um homemé se m p re d o c lã d e s e u genitor, e não do seupater.Em suas interpretações, Bloor afirma que, para

nós, um caso de bruxaria seria suficiente paraestabelecer a linhagem dos que seriam bruxos e,ainda, que um homem não bruxo deveria livrardesse destino todos os seus descendentesmasculinos. Tomaríamos isso como uma inferêncialógica e clara, porém, questiona: “Teoricamente,todo o clã de um bruxo deveria ser constituído porbruxos; na prática, só os descendentes por viamasculina mais próximos de um bruxo sãoconsiderados também bruxos. Por que isto?”(BLOOR, 1991, p. 82).

Recorrendo a Evans-Pritchard, Bloor responde à

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sua própria pergunta, afirmando que a explicaçãodo antropólogo para tal fato se deve à consideraçãodada pelos azande aos casos específicos econcretos em vez de princípios gerais e abstratos.Dois fatores devem ainda ser consideradossocialmente: “o uso do oráculo e a inocência geraldo clã como um todo. Estes são os elementossancionados por tradição e centrais na forma devida dos azande” (BLOOR, 1991, p. 141, traduçãonossa). De acordo com Bloor, os azandeinstitucionalizaram um erro lógico, pois, se umhomem é filho de um bruxo, por que razão deveriaconsultar o oráculo para saber se este homem ébruxo ou não? Mas se eles (os azande)admitissem tal erro, uma de suas principaisinstituições sociais seria ameaçada e suasobrevivência correria riscos. Portanto, “[...] é vitalque os Azande mantenham o seu erro lógico sobpena de agitação social e necessidade de umamudança radical nas suas formas de vida”(BLOOR, 1991, p. 139, tradução nossa).

Entendendo que os passos lógicos são aquelesque nós tomamos como corretos e mostrando queos azande assumem como certo as afirmaçõessupracitadas a respeito da bruxaria, Bloor concluique deve haver duas lógicas: a lógica azande e alógica ocidental. Traçando um paralelo com o artigode Peter Winch, “Understanding a primite society”,de 1964, Bloor acaba concordando com ainterpretação deste autor quando ele declara que foium erro Evans-Pritchard ter assumido a unicidadelógica no caso dos azande; “caso existisse umacontradição lógica nas crenças Azande, então asua instituição estaria certamente ameaçada”(BLOOR, 1991: 83, tradução nossa), mas o fato denão estar sugere a existência de uma lógicadiferente.

Tim Triplett é totalmente contrário àsconsiderações de Bloor e, em 1994, escreve umartigo para mostrar os equívocos cometidos porBloor na leitura de Evans-Pritchard. Para esseautor, não há qualquer diferença entre a lógica dosAzande e a lógica ocidental que justifique postularuma lógica alternativa e se propõe a avaliar asrazões que Bloor fornece para nos convencer deque tal lógica é mesmo relativa, passando emrevista as observações de Evans-Pritchard e ascríticas de Jennings em “Alternative Mathematicsand the Strong programme: Reply to Triplett”.

3 O Relativismo Lógico e as Considerações deTriplett

O relativismo lógico é uma forma de relativismoepistemológico e implica na aceitação da tese deque uma proposição rejeitada como umacontradição lógica em uma cultura pode seradotada por outra e, ao ser adotada, constitui umconhecimento legítimo daquela cultura, desde quehaja, entre os membros dessa cultura,concordância coletiva. O que nos faz rejeitar ou nãouma proposição é o fato de ela ser verdadeira oufalsa. Não devemos, também, confundirproposições lógicas com argumentos. Umargumento é um conjunto de proposições lógicas.Podemos inclusive ter um argumento válidoconstruído a partir de várias proposições lógicasfalsas. Para estabelecer uma conexão entre suasafirmações e o exemplo dos Azande, Bloorestabelece uma distinção entre a “psicologia doraciocínio” e “o sistema institucional depensamento”. De acordo com Triplett (1994, p. 752,tradução nossa), o que Bloor entende por“psicologia do raciocínio” envolve

[...] todas as linhas de pensamento da nossamente que estão naturalmente em constantemovimento (isto é o que Bloor chamou depsicologia do raciocínio) e (2) e o ‘sistemainstitucional de pensamento’ pode sercompreendido como o sistema no qual nascemose estamos imersos, submetidos a aprenderatravés dos processos de culturalização em queas linhas de pensamento são aceitáveis e as quenão são.Triplett, ironicamente, identifica nesse modelo

um aspecto quase freudiano onde o id representanossas tendências naturais de pensamento e osuperego, a culturalização. Porém, não háevidências de que essa descrição confereexatamente com o raciocínio humano, de forma afazer valer a distinção de Bloor. Nada garante queesta distinção mostra uma diferença real nopensamento racional. Ainda segundo Triplett,mesmo que houvesse evidências sólidas de que hádiferenças entre o raciocínio de tendência naturalindividual e o raciocínio como sistema institucional,levando-nos a identificar modos distintos deraciocínio institucional em diferentes culturas, aindaassim, não basta para dar consistência à tese dorelativismo lógico. Poderíamos refutar essas ideiasalegando que qualquer que seja a diferença culturalencontrada nesses processos, elas não revelamainda incompatibilidades lógicas. Ainda que fossemencontradas incompatibilidades, poderíamos aindasupor que uma ou outra cultura construiu mal oraciocínio.

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A ambiguidade entre a sociologia da crença e aforma relativista da sociologia do conhecimentoperpassa todo o trabalho de Bloor. A tarefa deprocurar explicações sociológicas de por que umacultura aceita certas crenças e rejeita outras é, deacordo com Triplett, certamente importante dentroda sociologia, mas esta postura metodológica nãoenvolve, necessariamente, o relativismo. Uma coisaé analisar as razões culturais que levaram umasociedade a aceitar algo como um elemento doconhecimento; outra é sustentar que estasociedade realmente conheceu este elemento pelosimples fato de ter sido um consenso coletivodentro da sociedade.

Triplett se dispõe a analisar o texto deEvans-Pritchard e suas conclusões, acreditandoque Bloor fez uma leitura equivocada doscomentários de Evans-Pritchard, que não leva emconta o contexto completo da discussão doantropólogo britânico. O comentário de Bloor aoqual ele se refere é o seguinte:

Para nossas mentes, parece evidente que, seficou provado que um homem é bruxo, então todoseu clã é, ipso facto, bruxo, uma vez que um clãAzande é um grupo de pessoas relacionadasbiologicamente umas às outras através dalinhagem masculina. Os Azande vêem o sentidodeste argumento mas não aceitam as suasconclusões, e isto envolveria toda a noção debruxaria em contradição se eles assimacreditassem. Na prática eles consideram apenasos parentes de sangue próximos de um Azandereconhecidamente bruxo como bruxos. Apenas nateoria eles estendem a atribuição a todos oshomens do clã bruxo (apud TRIPLETT, 1994p. 755, tradução nossa).Ora, o próprio Evans-Pritchard invoca a noção

de contradição lógica; isto significa que os azandereconhecem sim a ameaça da contradição, casocontrário, não rejeitariam as conclusões. ParaBloor, os azande não reconhecem tal contradição;nas palavras de Bloor (1991, p. 13, traduçãonossa); “Os azande institucionalizaram um errológico, ou pelo menos um certo grau de cegueiralógica”. Ao negarem que os Azande reconhecem talcontradição acaba, como consequência, recusandoa própria interpretação de Evans-Pritchard.

Os azande não entram em choque com a teoria,mas subvertem-na para esquivar-se das suasconsequências. Um dos exemplos apontados porEvans-Pritchard é do bastardo, que consiste eminocentar um determinado homem que tivesse sidocomprovadamente apontado como um bruxo,negando que ele pertencesse ao clã1.Eles improvisam e, ao fazerem isto, emboraaparentem raciocinar sob outra ótica, empreendem

um tipo de lógica que nos é bem compreensível -escapando da consequência lógica negando umadas premissas, que é o fato de o bruxo não seralguém do seu sangue.

Quanto à questão de considerar a explicação arespeito da “substância de bruxaria arrefecida”uma questão de elaboração temporária, individual enão uma crença institucionalizada, Triplett (1994,p. 756, tradução nossa) responde que:

Primeiro, Evans-Pritchard refere-se a ela comouma doutrina. Segundo, assim como é fácil verque o raciocínio sobre o exemplo do bastardo éuma elaboração individual desenvolvida paradefender indivíduos específicos sem recusar oualterar a doutrina de bruxaria Azande, assimtambém é fácil ver que a afirmação de que a“substância de bruxaria arrefecida” é real, nãoespecífica. Ela soma algo à consideração Azandea respeito da natureza e causas da bruxaria.A doutrina referida acima permite aos Azande

manter o princípio biológico de que a bruxaria étransmitida por fatores hereditários e, ao mesmotempo, explica o fato de nem todos no clã serembruxos. Quanto à contradição do texto zande deque todos os membros de mesmo sexo de umafamília reconhecidamente bruxa devem ser bruxose a negação zande de que a bruxaria tem, de fato,essa abrangência, Evans-Pritchard(apud TRIPLETT, 1994, p. 757, tradução nossa)tece o seguinte comentário:

Os Azande não percebem a contradição como nósa percebemos pois eles não têm qualquerinteresse teórico no assunto, e aquelas situaçõesnas quais eles expressam seu interesse embruxaria não os forçam a pensar (ou perceber) oproblema. Um homem nunca pergunta a umoráculo... se um certo homem é bruxo. Elepergunta se naquele momento este homem oestá enfeitiçando. Um azande está interessadoem bruxaria somente como um agente emocasiões definidas e em relação a seu interessepróprio, e não como uma condição permanentedos indivíduos.Mais uma vez, Triplett realça que

Evans-Pritchard foi mal lido, como se tivesseafirmado que os Azande não percebem umacontradição e esta posição acaba conduzindoBloor a declarar que os Azande têm uma lógicaalternativa. Contradição é entendida por Bloor como“algo que surge a partir de um problema na práticasocial” (apud TRIPLETT, 1994: 757, traduçãonossa). O sociólogo alega que os Azande nãovêem a contradição porque acreditam que “umacontradição existe porque uma cultura identificaalgo como inaceitável no seu conjunto de crenças”(apud Triplett, 1994: 757, tradução nossa); e osazande, por sua vez, afirmam que não há nada deinaceitável com suas crenças sobre bruxaria. Logo,se para os próprios azande a contradição inexiste,

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significa que eles têm uma lógica própria, diferenteda lógica ocidental e legítima porque serve àestrutura social Azande.

No entanto, Triplett nota que Evans-Pritchard“não diz que os Azande não percebem umacontradição simpliciter. Ele diz que eles nãopercebem a contradição como nós a percebemos”(TRIPLETT, 1994, p. 757, grifos do autor, traduçãonossa); e argumenta que os Azande talvez nãopercebam a contradição como nós porque elacarece, para eles, do significado que teria para nós.Finalmente, Triplett conclui, a partir das evidênciasde Evans-Pritchard, que as respostas dadas pelosazande às questões colocadas acima nos sãobastante compreensíveis e semelhantes à formacomo nós raciocinamos. Não há, dessa forma,razões para afirmar que os azande têm uma lógicaalternativa n

Nota:1 Segundo Evans-Pritchard, para os azande, umhomem pertence ao clã de seu genitor e não de seupater (apud TRIPLETT, 1994).

Referências:BLOOR, D. Knowledge and social Imagery. 2. ed. Chicagoand London: The University of Chicago Press, 1991.EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entreos azande. Edição resumida e introdução: Eva Gilies.Tradução: Eduardo Viveiros de Castro.Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2005.TRIPLETT, T. Is There Anthropological Evidence That Logic IsCulturally Relative? British Journal for the Philosophy ofScience, Oxford, v. 45, n. 2, p. 749-760, Jun. 1994.WINCH, Peter. Understanding a primite society. AmericanPhilosophical Quarterly, v. 1, n. 4, p. 307-324, 1964

* Mestre em Educação Matemática/USP, professoralicenciada de Cálculo da FATEC Arthur Azevedo/MogiMirim-SP, professora de Filosofia da UniversidadeEstadual do Piauí, doutoranda em EducaçãoUnicamp e doutoranda em Filosofia/USP.

1 IntroduçãoO conceito de ecologia populacional se origina

da biologia, quando do estudo de diferentespopulações de organismos (espécies) que seadaptam ao ambiente. O modelo biológicoconsidera a coabitação de espécies diferentes nomesmo ambiente como um processo dinâmico, decompetição por recursos escassos. Em suma, asespécies que melhor se adaptarem àscontingências do meio sobreviverão e prosperarão,

STAKEHOLDERS ERESPONSABILIDADE SOCIALCORPORATIVA sob a perspectiva dateoria da ecologia organizacionalPor Roberta da Rocha Rosa Martins*, Fernando Gimenez**,Luci Michelon Lohmann*** e Jorge Gaio****

Resumo: A teoria da ecologia organizacional no presente trabalho considerou os aspectos da organização edo ambiente, trazendo a ideia de monitoramento ambiental, destacando o papel do ambiente externo,havendo a obrigação de gerir e não apenas conceber as organizações como sistemas abertos, a fim de quese obtenha um ambiente próspero. Sendo inserida a responsabilidade social corporativa no planejamentoestratégico, as ações passam a ser de responsabilidade de toda a organização, trazendo legitimidade para amesma e satisfação para os todos os envolvido (stakeholders).Palavras-chave: Ecologia organizacional. Responsabilidade social corporativa. Stakeholders.

enquanto que as rivais, menos adaptadas,fracassarão e desaparecerão, ou seja, é umprocesso de seleção natural. Tal teoria surgiu dapublicação do artigo de Hannan e Freeman (1977),intitulado de “The population ecology oforganizations”.

Brittain e Wholey (1986) defendem que esteparadigma ecológico influenciou diversas áreas dasciências sociais, como: sociologia, economia e

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administração. Na teoria organizacional, a ecologiapopulacional contribuiu para a classificação dacompetitividade, do crescimento, da inércia e daestratégia das organizações.

Deve-se salientar que a presente teoria pode serestudada sob vários aspectos, quais sejam: daorganização, do ambiente ou do mercadocompetitivo. No entanto, o presente trabalhoconsiderou as perspectivas da organização e doambiente.

Cunha (1999, p. 25) entende que a teoria daecologia organizacional traz consigo a ideia demonitoria ambiental, onde a ecologia organizacionaldestaca “o papel do ambiente externo e tornaexplícita a necessidade de despender cada vezmais tempo com tarefas de monitoria ambiental.Essa idéia que vai ganhando cada vez maisadeptos obriga a gerir (e não apenas a conceber)as organizações como sistemas abertos.”

Sendo assim, não há como se conceber que asorganizações fiquem desatentas aos stakeholdersque as cercam, ou melhor, a todos os interessadosque gravitam em torno delas, com interesses,influenciando em suas decisões e sendoinfluenciados pelas mesmas, direta ouindiretamente.

As organizações devem considerar osinteresses de todos os stakeholders, estando emequilíbrio com os mesmos, para que haja umambiente próspero. Neste sentido, Ullmann (1985)enfatiza que as informações sobre responsabilidadesocial corporativa podem ser utilizadasestrategicamente para uma boa relação com osstakeholders. Apesar de não haver uma definiçãouniversal de stakeholders, os mesmos são deextrema importância para as organizações, hajavista que são detentores de “stakes”, ou seja, deinteresses em relação às mesmas.

Assim, o objetivo deste artigo é a melhorcompreensão da teoria dos stakeholders,juntamente com a responsabilidade socialcorporativa, dentro da teoria da ecologiaorganizacional. Para tanto, utilizou-se da pesquisade ensaio teórico. A seção seguinte apresenta aecologia organizacional; na sequência, aborda ateoria dos stakeholders e a responsabilidade socialcorporativa, na perspectiva da teoria da ecologiaorganizacional, e finaliza com a conclusão.2 Ecologia organizacional

De acordo com Arie de Geus (2000), asempresas sobreviventes são boas na gestão damudança, ou seja, adaptam-se a um mundo cada

vez mais mutável, desenvolvendo uma sensibilidadeao mundo circundante que lhes permite adaptaçãoe reação oportuna às transformações. Parapermanecer em sincronia com o mundo exterior, aorganização deve ser capaz de alterar suaestratégia e adaptar-se a um novo ambiente. Omesmo autor, em seu artigo “A empresa viva” chegaa comparar o aprendizado organizacional com ospássaros, no trabalho do professor Allan Wilson(Universidade de Berkeley).

Hoje em dia, as empresas operam emambientes sobre os quais devem exercer controleou influência. Isto porque a competição global fazcom que as empresas saiam de seus nichosregionais e se aventurem em territórios menosconhecidos.

É importante salientar que a escola ambientalprovém da teoria da contingência, que se contrapõeà ideia da escola clássica, a qual preconizasempre haver uma maneira melhor de se fazer ascoisas. No entanto, as escolhas dependem dealguns fatores, como o tamanho da organização,sua tecnologia, estabilidade e hostilidade doambiente, de modo que empresas diferentes terãocomportamentos diferentes. Por outro lado, adescrição sistemática do ambiente, de acordo comMintzberg, Ahlstrand e Lampel (2000), divide-se emníveis de estabilidade, que são: complexidade,diversidade e hostilidade, o que remete à ideia deque o ambiente é o mesmo para todos e asobrevivência depende de como as organizaçõeslidam com a escassez de recursos.

Em continuidade, Mintzberg, Ahlstrand eLampel (2000) descrevem uma maneira de encarara estratégia determinista, qual seja, a escolaambiental, onde o ambiente é o conjunto de forçasfora da organização, determinando então aestratégia da mesma. Por outro lado, a liderança ea organização, outras duas forças centrais doprocesso de formação estratégica, acabam por setornar subordinadas ao ambiente externo.

Confirmando o mesmo entendimento, Cunha(1999) defende que o papel do gestor acaba sendodiminuído, em decorrência de influências doambiente externo, diluindo-se, então, aracionalidade organizacional. O papel do gestoracaba sendo limitado por um conjunto de quatrofatores, de acordo com Cunha (1999, p. 24), que sebaseia na obra de Hannan e Freeman (1989, p. 41),que são: a forma organizacional, que constrange econduz o comportamento individual; a escassezdos recursos, que dificulta a gestão da mudança; o

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padrão de competição inter e intraorganizacional,que reduz as possibilidades de escolha e faz comque as pressões competitivas amplifiquem o efeitode outros fatores e o efeito das limitações àracionalidade, da forma como são apresentadaspelos psicólogos cognitivos.

Sendo assim, há como se afirmar que a teoriada ecologia organizacional é totalmente diferentedas teorias organizacionais dominantes, queanalisam a organização com autonomia em relaçãoàs influências e interações do ambiente externo.Ainda, a teoria da ecologia organizacional, segundoos mesmos autores, trata de fenômenos totalmenteesquecidos pelas outras teorias, como onascimento e a morte das organizações, padrõesevolutivos das populações organizacionais,limitação de decisão dos gestores e capacidadesadaptativas das empresas, assim como força,inércia, dentre outros. Isto porque, se a evoluçãodas espécies pode ser compreendida no âmbitopopulacional, também o deve ser na evoluçãoorganizacional.

Continuando, os autores argumentam que ateoria da ecologia organizacional tem maiorcapacidade de percepção sobre as ações daorganização de forma mais abrangente, ou seja,tanto de cima para baixo como de baixo para cimae tanto de dentro para fora como de fora paradentro, simultaneamente, em um sistemaconsiderado aberto. O resultado disto é o de seconseguir articular harmoniosamente pressõesexternas com capacidades e necessidadesinternas.

Ademais, Cunha (1999) entende que a teoria emquestão compreende melhor o dinamismo inerenteà formulação, implementação e validação deestratégias. Boeker (apud CUNHA, 1999) afirmaque a competição e o ambiente externo detêmpapel importante na viabilização de tiposestratégicos.

3 Teoria dos stakeholders e responsabilidadesocial corporativa (RSC) na perspectiva dateoria da ecologia organizacional

Cunha (1999) entende que a teoria da ecologiaorganizacional traz consigo a monitoria ambiental,onde a ecologia organizacional destaca o papel doambiente externo, havendo a necessidade de segastar mais tempo com monitoramento ambiental,ideia esta que cada vez ganha mais adeptos, coma obrigação de gerir, e não apenas conceber, asorganizações como sistemas abertos.

Sendo assim, não há como se conceber que asorganizações fiquem desatentas quanto aosstakeholders que as cercam, ou melhor, a todos osinteressados que gravitam em torno delas, cominteresses próprios e que são influenciados pelasmesmas, enquanto também influenciam em suasdecisões, direta ou indiretamente.

Philips, Freeman e Wicks (2003, p. 480)salientam que “a teoria dos stakeholders é umateoria de gestão organizacional e ética.” Esteentendimento, na verdade, pode ser consideradocomo uma das bases da RSC, ressaltando estaaproximação existente entre economia e ética,vindo a concordar com o mesmo ponto de vista deGerde (2000).

As organizações devem considerar osinteresses de todos os stakeholders, estando emequilíbrio com os mesmos, para que haja umambiente próspero. Neste sentido, Ullmann (1985)enfatiza que as informações sobre RSC podem serutilizadas estrategicamente para uma boa relaçãocom os stakeholders. Apesar de não haver umadefinição universal de stakeholders, os mesmossão de extrema importância para as organizações,haja vista que são detentores de “stakes”, ou seja,de interesses em relação à mesma.

Para Kaler (2003), a teoria dos stakeholdersdepende totalmente da identificação de quem sãoos stakeholders. No entanto, existem váriasvertentes. Podem ser compreendidas duasperspectivas importantes em relação aosstakeholders. A primeira é a de Friedman (1998),baseada na escola econômica neoclássica, quepressupõe a maximização dos lucros, segundo aqual os gestores agem apenas em prol dosacionistas. A segunda, defendida por Clarkson(1995), entre outros autores, versa que aorganização é responsável por todos os agentesque venham a afetar e que também sãointeressados nas atividades desenvolvidas pelaorganização e em suas decisões, que não apenasos acionistas, ou seja, é exatamente o caminhodefendido pela teoria da ecologia organizacional.

Para Freeman (1998), criador da definiçãostakeholders, os mesmos são grupos ou indivíduosque se beneficiam ou prejudicam, devido a açõesempresariais, assim como acabam tendo seusdireitos respeitados ou violados devido a isto.Mitchell, Agle e Wood (1997, p. 856) afirmam queos stakeholders são “grupos dos quais ascorporações dependiam para a sua sobrevivência.”Enquanto isso, Clarkson (1995) espraia o

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entendimento de que stakeholders são pessoasque têm ou demandam propriedade, assim comodireitos ou interesses em uma corporação e suasatividades, no passado, presente ou futuro.

Ainda, Carroll (1979, 1991), Meznar, Chrisman eCarroll (1990) e Clarkson (1995) acreditam naligação entre RSC e estratégia da organização,pelas oportunidades e ameaças que podem serevidenciadas em relação aos stakeholders,momento em que se denota claramente a ligaçãoda teoria da ecologia organizacional e seumonitoramento ao ambiente, juntamente com aparte prática, colocada no presente trabalho pelaestratégia de RSC.

Frooman (1999) elegeu mecanismos para queos stakeholders possam vir a interferir na tomadade decisão da organização, quais sejam: asestratégias de retenção e uso, entendidas comodiretas, quando o próprio stakeholder direciona ofluxo de recursos para a organização, e indiretas,quando estes manipulam o fluxo de recursos pormeio de outros. De acordo com o autor, asestratégias de retenção podem ocorrer quando osfornecedores suspendem recursos necessários àorganização. No que tange a estratégia de uso,esta ocorre em decorrência de ressalvasestabelecidas pelos consumidores na compra, oque deve sempre ser cuidadosa e cautelosamentelevado em conta pelas organizações, para queconsigam preservar-se exitosamente.

Ademais, Ullmann (1985) entende haverstakeholders que detêm mais ou menos poder,devendo a organização esforçar-se mais quantomais importante for o stakeholder, ou seja, quantomais poder o mesmo tiver. Owen, Adams e Gray(1996) corroboram o mesmo entendimento. Sendoassim, o monitoramento do ambiente, visto pelaecologia organizacional, deve também atentar paraos maiores ou menores detentores de poder noambiente a ser monitorado.

Existe ainda a classificação dos stakeholdersem primários e secundários, defendida porClarkson (1995). Os primários são subdivididos emprivados e públicos. Stakeholders primáriosprivados são os acionistas, investidores,empregados, clientes e fornecedores, enquanto osstakeholders primários públicos são o governo e ascomunidades. Deve-se lembrar aqui que a RSCdeve existir como estratégia dentro da organização,tanto com o público externo como com o públicointerno da mesma, ou seja, deve atingir desdefuncionários e fornecedores até comunidade e meio

ambiente, dentre outros. Os stakeholderssecundários são, para Clarkson (1995, p. 107), osque “influenciam ou afetam, ou são influenciados ouafetados pela corporação, mas que não seencontram engajados em transações com acorporação e que não são essenciais para a suasobrevivência.” Outra classificação é apresentadapor Donaldson e Preston (1995) que tratam dosstakeholders e dos influenciadores, sendo estesúltimos a mídia e os concorrentes.

Morgan e Hunt (1994) defendem a classificaçãodos stakeholders em quatro grupos: internos(empregados e unidades de negócio), compradores(finais e distribuidores), fornecedores e laterais(governo, competidores e também organizaçõessem fins lucrativos). Por outro lado, Sirgy (2002)acaba dividindo os stakeholders em interno(empregados e diretores), externo (clientes,distribuidores, fornecedores, mídia, meio ambiente,acionistas e comunidade) e, por fim, periféricos(agências governamentais, defensores dosconsumidores, auditores, líderes industriais,associações de comércio, educação superior, entrevários outros).

Para Mitchell, Agle e Wood (1997, p. 866), amaior abrangência existente no conceito destakeholders tem como intento a “sobrevivência daempresa, o bem-estar econômico, o controle dedanos, tirar vantagens das oportunidades, suplantara competição, conquistar amigos e influenciarpolíticas públicas, construindo coalizões, entreoutros.” Concordando com tal entendimento,encontra-se Wilson (2003), quando afirma quequanto mais fortes forem os laços entre aorganização e seus parceiros internos e externos,mais facilmente esta organização chegará a seusobjetivos.

Além disso, Jones (1995) alerta para a questãodos custos de transação, dispondo que adesconfiança entre compradores e fornecedores fazcom que os mesmos fiquem mais altos. Outroproblema que o autor menciona são as atitudesoportunistas dos funcionários, que podem serevitadas caso sejam utilizadas práticas éticas nolongo prazo - mesmo entendimento de Post et al.(2002). Vislumbra-se novamente o casamento quepreconiza a teoria da ecologia organizacional daorganização com o meio, que se dá intimamentepelas relações da mesma com seus stakeholderse estrategicamente nos dias atuais, por meio daRSC, a fim de se obter melhor confiança dosfornecedores e funcionários, o que é preconizado

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pela teoria dos custos de transação de Willianson(1979), ou seja, quanto maior confiança a empresativer com seus stakeholders menos será o seucusto de transação.

A tentativa de se colocar a RSC comoestratégia não é algo novo. Desde 1980, autorescomo Tuzzolino e Armandi (1981), Carroll e Hoy(1984) e Porter e Kramer (2006) refletem sobre aforma como as organizações deveriam responderàs pressões sociais, ajustando essas demandasàs suas estratégias, a fim de obter legitimidade.Como papel mais abrangente das empresas nasociedade, dois princípios surgiram: o princípio dacaridade (fornecimento de ajuda voluntária pelasempresas aos necessitados) e o datutela - stewardship (empresas agindo comorepresentantes públicos e considerando osinteresses de todos os afetados pelas suasdecisões e políticas).

Tais princípios tornaram-se os pilares da RSC.O princípio da caridade fez com que as empresasauxiliassem voluntariamente aos necessitados dasociedade e o princípio da tutela (stewardship) osincentivou a serem representantes (trustees) dointeresse público, ou seja, representando ointeresse dos membros da sociedade afetadospelas operações da corporação (FREDERICK;DAVIS; POST, 1988).

Especificamente em relação à estratégia,Carroll e Hoy (1984) discorrem sobre quatro fatoresque baseiam a política corporativa global, quaissejam: competências e recursos da empresa;oportunidades de mercado; valores e aspiraçõespessoais do grupo de administradores; ereconhecimento das obrigações de segmentos dasociedade.

Porter e Linde (1995) analisam a RSC emrelação à vantagem competitiva; e afirmam quepadrões ambientais, adequadamente desenhados,podem estimular inovações que, por sua vez,podem baixar o custo total de um produto ouagregar-lhe valor. Tais inovações permitem àscompanhias fazer uso mais adequado de seusmeios de produção, desde a matéria-prima até aenergia, compensando, desta forma, o custo damelhoria ambiental. No final das contas, estamelhoria no uso dos meios de produção faz acompanhia mais competitiva, e não menos.

Segundo Ferrel et al. (2000), ao ser inserida aRSC no planejamento estratégico, as açõespassam a ser de responsabilidade de toda aorganização, o que para Zadek (2003) faz com que

haja maior vantagem competitiva sobre osconcorrentes, restando assim o monitoramento doambiente bem evidenciado, segundo diretrizes dateoria da ecologia organizacional.4 Conclusão

A ecologia organizacional é uma ideia muitoatraente por ter um caráter interdisciplinar comoutras ciências; seu conceito básico, desenvolvidopela ecologia populacional, de que os recursos sãolimitados e a sobrevivência da organização dependede como ela se relaciona com o meio, dá margemà interpretação do papel da estratégia nestecontexto. Com esta teoria, abstrai-se a ideiapreconcebida de que a organização não teminfluência nenhuma sobre o meio e vice-versa,salientando o sentido da capacidade de adaptaçãoda organização ao nicho pela escolha da estratégiamais apropriada, aqui calcada na RSC, que acabapor trazer legitimidade para a organização,satisfação para fornecedores e funcionáriose confiança para a sociedade como um todo,englobando-se aqui desde clientes, acionistas,até comunidade em geral (stakeholders).

Sendo a teoria da ecologia organizacionalvoltada para o meio, com o fim de obtenção demelhores estratégias, deve, consequentemente,ser relacionada à teoria dos stakeholders, quefazem parte deste meio, sendo afetados pelasdecisões organizacionais e influenciando asmesmas o tempo todo; seja de maneira direta ouindireta. Com isto, reafirma-se que uma dasestratégias que devem ser abordadas pelasorganizações, atingindo todos os seus stakehlders,independentemente de quais sejam, encontra-se,nos dias atuais, na RSC.

Dentro deste conjunto teórico, a ecologiapopulacional proporciona uma boa estrutura paradesenvolver um trabalho de pesquisa quantitativo.Há grande curiosidade sobre que motivos fazemcom que algumas organizações, muito similares ecom mesmo nicho, venham a sobreviver ou não.Tal empecilho pode ser averiguado dentro dapresente teoria sob os aspectos da organização,do ambiente ou do mercado competitivo. Noentanto, o presente trabalho considerou asperspectivas da organização e do ambiente.

Percebe-se, dentro da presente pesquisa,algumas limitações, explanadas a seguir.Primeiramente, a dificuldade de aquisição de dadoslongitudinais, que se fazem necessários, mas quesugerem que o pesquisador vá atrás de eventos

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demográficos que são difíceis de capturar ouconstruir.

Outro obstáculo é teórico, de modo que ciclosde vida de organizações sociais não têm a mesmaprevisibilidade e uniformidade de organizaçõesbiológicas. Ademais, ainda existe o impedimento,de certa forma, do apoio teórico calcado na seleçãonatural como mecanismo determinante do sucessoou fracasso das organizações, além dos conceitoscentrais como recursos, nichos e desempenho,que acabam por ser muito abstratos.

Mesmo assim, a teoria da ecologiaorganizacional pode ser tida como inovadora, sendoque aborda assuntos anteriormente deixados delado, como nascimento e morte das organizações,padrões evolutivos das populações organizacionais,limitação de decisão dos gestores e dascapacidades adaptativas das empresas, assimcomo força e inércia, dentre outros

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* Professora da PUC-PR, Mestre em Administraçãode Empresas pela mesma Instituição**Professor do Departamento de AdministraçãoGeral e Aplicada da Universidade Federal do Paraná,doutor pela Manchester Business School - Universityof Manchester*** Professora da PUC-PR, Mestre em Engenharia deProdução e Sistemas pela mesma Instituição**** Professor do Centro de Ciências SociaisAplicadas - Escola de Negócios/PUCPR

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É usual pensar-se que a reflexão, oconhecimento e a produção do novo nascemsempre do desejo. Entretanto, as produções maisfecundas também nascem da insatisfação com oque está posto, da insuficiência das soluções jápropostas e da incapacidade de encontrarrespostas satisfatórias no espectro do realconhecido. Parto, aqui, de uma ideia bastantegeral, a de que a década de 1960 está marcada porleituras e aprisionamentos redutores e já poucocapazes de dar conta de novas necessidades decompreender de forma mais complexa aquele ricoperíodo da história brasileira, história que então seuniversaliza a passos rápidos.

No sentido de contribuir para a expansão dodebate em torno do período, gostaria de proporalguns questionamentos e sugerir, talvez, algunscampos possíveis de pesquisa. Quero recuperaralgumas possibilidades de investigação em tornode quatro eixos principais: as tensões no âmbito dalinguagem; os espaços conquistados pelajuventude em colisão com as velhas estruturas e,em especial, no campo da cultura e dos costumes;a música sinalizando a abertura para o mundo e aimposição autoritária de alguns poucos sentidospara a história, como os sentidos da política e dogênero.

No que concerne às linguagens, sugiro o plural,desde que o jogo do poder e a força impositiva donovo na década de 1960 se expressam e seconstituem no âmbito das mais diversaslinguagens. Trata-se de uma época de quaseincomunicabilidade entre gerações e entre fraçõesdo social e de composição de repertórios própriosde grupos. É significativa a invenção da língua dosjovens e a comunicação dirigida pelo uso de gírias,tão específicas e tão remarcadoras de um socialem ebulição e em intensa criação de novosarranjos sociais, prefiguradores de formas novas de

JUVENTUDE, CULTURA ELINGUAGENS NA DÉCADA DE 1960Por Teresinha Queiroz*Resumo: O artigo analisa a juventude brasileira na década de sessenta a partir das tensões no âmbito dalinguagem, dos espaços conquistados nos campos da cultura e dos costumes, do lugar da música nasinalização da abertura para o mundo em mudança e da imposição autoritária de alguns poucos sentidospara a história, como os sentidos da política e do gênero.Palavras-chave: Brasil anos 60; juventude; política; gênero.

experimentação grupal e de vivência urbana. Ofecundo laboratório que é a vida urbana recobre-sede coloração especial com essa intensificação decontatos entre jovens; contatos agora mediados porum conjunto de aparatos técnicos e informativosadvindos da abertura do País a uma cultura mundialem rápida expansão. Essa expansão corporifica-senão somente nos novos artefatos que alteram erevolucionam o consumo, mas que igualmenteestabelecem novas formas de sociabilidades, quecolidem com as sociabilidades do passado. Tudonesse conjunto de mudanças na década de 1960,no Brasil, contribui para a tribalização dos jovens.É possível destacar nesse conjunto que asidentidades se constroem segundo asaproximações físicas propiciadas pela música,pelas danças, e também pelo partilhar deinformações de revistas dirigidas a esse novosegmento consumidor. É necessário lembrar que oconsumo dos artefatos técnicos e dos objetos, nãonecessariamente novos, expande-se especialmenteentre as populações urbanas e os rearranjossociais ocorrem em torno de TVs, rádios, vitrolas,no consumo partilhado de livros e revistas, nodeglutir de informações de todos os recantos domundo.

Essa urbanidade tecnologicamente mediatizadavai recortando o social de maneira barulhenta. Nãoé sem significado que os ruídos praticados pelajuventude urbana do período e que se preservam namemória e na história rebatem no rock’n’roll, noarranhar estridente das guitarras, na sonoridadeextravagante das lambretas, no arrancar dosautomóveis que são o sonho da juventude douradae da não tão dourada, com seus delírios develocidade e de distinção social. Essa distinçãosocial guarda íntima e estreita relação com aconstrução das novas subjetividades e com abusca da diferença, em momento em que o

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emergente desejo do único está radicalmente feridopelo movimento mais geral de ampliação dasclasses médias, de homogeneização viaescolarização e consumo, enfim, pela ameaça realda avassaladora sociedade de massa.

Parcela da música do período, vista pelo crivodo hoje como um misto de pretensão eingenuidade, é reveladora desse processo desubjetivação dos jovens, em tensão e na contramãodos ventos mais fortes da massificação. OuçamosEduardo Araújo (1967) a bradar, em alto e bomsom, aos quatro ventos:

“Ah! Meu carro é vermelho / Não uso espelhopra me pentear / Botinha sem meia / E só naareia eu sei trabalhar / Cabelo na testa sou odono da festa / Pertenço aos dez mais / Sevocê quiser experimentar / Sei que vai gostar.[...]”.Eduardo Araújo é seguido por sugestivo coro:

“Ele é o bom, é o bom, é o bom” (IMPERIAL,1967). Ou Roberto Carlos, após abandonar seuCalhambeque e exibir-se em um Cadillac, desafiaras curvas da estrada de Santos, imprimindo umsignificado rebelde, mas igualmente desalentado, àvelocidade de seu potente automóvel. Automóvelque possibilita a embriaguez dos sentidos e afastamomentaneamente a solidão, neutralizando a dordo distanciamento espacial e temporal da amada:

“Eu prefiro as curvas / Da estrada de Santos /Onde tento esquecer / Um amor que eu tive / Evi pelo espelho/ Na distância se perder [...]”(CARLOS; CARLOS, 1971).É curioso observar que quase se confundem,

nesses novos processos de subjetivação dosjovens, o carro, o espelho, o eu, e um elementonovo - o tempo vago, disponível, fruído com prazerou não, mas permitido por sociedades e culturascom acumulação suficiente para o deleiteconsumista de alguns, especialmente da classemédia urbana.

Essas novas situações sociais, intensificadas apartir dessas sociabilidades em construção,repercutem e reverberam no campo das linguagens,instituindo novas formas de expressão queconstituem um vocabulário particular. Talvez nesseaspecto o movimento da Jovem Guarda seja oexemplo mais completo da expressão de umajovem classe média urbana, consumidora eigualmente produtora de artefatos, objetos esignificações. Com o intuito de ilustrar essainserção na produção e no consumo, deve ser

lembrado que os componentes principais da JovemGuarda faziam o marketing de um mix variado deprodutos, especialmente no ramo do vestuário(PAIANO, 1996).1

A invenção de novas linguagens pelos jovensremetia não apenas à emergência de novasconfigurações sociais que se operavam pelodeslocamento dos lugares de jovens e não jovens,mas igualmente a fraturas no corpo da juventude.Essas fraturas apareciam em formulações do tipobom moço, bom rapaz, boa moça, moça de família,transviado, maconheiro e outras expressões dovocabulário da época. A depender do lugar em quese buscava situar o jovem, era até necessário pedirdesculpas, como o fez Wanderley Cardoso, aojustificar o fim de um namoro (NUNES, 1967, grifosnosso):

“Parece que eu sabia / Que hoje era o dia / Detudo terminar / Eu logo notei / Quando telefonei/ Pelo seu jeito de falar / Eu nunca pensei /Quem eu tanto amei / Fosse assim medesprezar / [...] / Se amar demais / Ser um bomrapaz / Foi o meu mal.”Neste recorte, aparecem claramente as novas

exigências para o ser homem e a referência amodelos de masculinidade não mais aceitos portodos os jovens. Por contraste, vislumbra-se avalorização de um perfil de namorado distanciadodo bom rapaz, agora detentor de virtudes vistascomo do passado.

As palavras cortam, como armas do consumocultural inovador desse tempo, as rígidas estruturasadvindas das décadas anteriores, lugar daexperiência dos pais desses jovens entãonominados como puritanos ou avançados, defamília ou transviados, subversivos ou o futuro danação. Vistas de agora, as palavras da década de1960 já sofreram a seletividade do tempo, já foramconsumidas no voraz processo da transformaçãodos significados - apreendidos, porém, igualmenteesvaziados e reduzidos pela mutação da história.Desenraizadas e deslocadas, muitas dasexpressões da década de 1960 são hoje apenassimulacros, pois as palavras têm vida e força e sãoproduzidas e consumidas como todos os artefatossociais.

Se, de um certo ângulo, é possível pensar adécada de 1960 como de construção de um novomundo e de novas significações, nãonecessariamente totalizadoras, para os jovens, eque novas palavras e novos significados sãomatéria-prima e veículo do tempo, é igualmente

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possível pensar a linguagem como sendo einstituindo poder para além do mundo da juventude.A linguagem é o lugar da identidade, do encontrodos iguais, mas, ao mesmo tempo, o lugar datensão, da colisão, do conflito. Em relação àspalavras, novas e velhas, elas suscitam medo erecusa, operam distanciamentos.

Torquato Neto, operador por excelência dapalavra, em cuja coluna do jornal “Última Hora”,“Geléia Geral” (CASTELO BRANCO, 2004),assume-a em diversos formatos - cartas enviadas,cartas recebidas, transcrições de autores,traduções, letras de músicas, poemas, textosmemorialísticos, crônicas ligeiras - é o exemplomais acabado desse sentimento, partilhado noperíodo, de medo e de recusa às palavras e depavor aos estilhaços de seus múltiplossignificados. O medo da palavra só encontraparalelo no medo do silêncio - horror igual emfração dessa juventude.

Entretanto, com esta referência a TorquatoNeto, migra-se para outro recorte da juventude dosanos 1960. A coluna “Geléia Geral” era dirigida paraum público jovem, sintonizado com as novidadesda cultura nacional e internacional, politizado, declasse média, que não apoia o “sistema”,decodifica as mensagens do articulista e dominaseus códigos de expressão. Aqui a linguagem éessencialmente lugar de recusa ao político, deconstrução de um novo modo de inserção nomundo e também um registro do uso intensivo e,às vezes até abusivo, de gírias. Do repertório emcomum com a Jovem Guarda aparecem, dentreoutras: amizade, bicho, transa, barra limpa, legal,pirado, por fora, maneiro, fogo, chato, barra pesada,quadrado, lance etc. e todo um conjunto devariações.

A invenção de uma nova linguagem, a língua dajuventude, especialmente da juventude urbana declasse média, dourada, transviada, e mesmo a dafração militante, é sobretudo a invenção de umaarma poderosa que esgarça e fatia o social,operando principalmente os afastamentos e asdelimitações de campos no conjunto do social e nointerior de sua frações. Trata-se, em termos maisgerais, de uma verdadeira dialetização da língua, osdialetos assumidos como expressões de lugares,configurando deslocamentos e afirmando os novosenraizamentos juvenis.

Os novos modos de expressão não secircunscrevem aos campos da fala, desde que aconstrução de novas subjetividades, no período,

impossibilita dissociar esses modos novos deexpressão dos objetos e das representações queos significam. Assim, Erasmo Carlos, oTremendão, só se expõe e é apropriado enquantotal, a partir de todo um aparato que reifica oconsumo das novas indústrias de massa. OTremendão, assim o faz, na mediação de seu carrode luxo, de suas calças jeans, de suas reluzentesbotas, dos colares, dos cintos, das pulseiras,todos artefatos com suas respectivas eexaustivamente divulgadas marcas. Deve serlembrado que os ídolos do momento vendiam tãosomente tudo: discos, shows, revistas, livros,roupas, acessórios, calçados, instrumentosmusicais, automóveis, e que esse movimento,como outros em escala mundial, inaugurou a febrede consumo que conhecemos em décadas maisrecentes, e de que os fenômenos Xuxa, Angélica eLuciano Huck são catalisadores possíveis.

Mantidas as devidas diferenças quanto ao modode colocar-se no mundo, e em face da situaçãopolítica vigente, sobretudo após o AI-5, dedezembro de 1968 (VENTURA, 1988), essaindissociabilidade entre o ancorar-se, o refletir, oexpressar-se e o consumir é absolutamenteperceptível na juventude dita militante, objeto demaior interesse e do maior cuidado dos defensores,militares ou não, do regime forte então instituído.Outra vez, o exemplo mais acabado e sobretudopor ter a forma do fragmento diário de um jornal, é overdadeiro mercado que é a coluna Geléia Geral.Torquato Neto (2004) expôs e vendeu, e comembalagens da maior qualidade e refinamento:artistas nacionais e internacionais de diferentestendências musicais, de Ângela Maria aos Beatles,passando por quase todos os baianos, peloscompositores da bossa nova, tendo como produtosprincipais Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costae Maria Betânia; vendeu cinema e todos osartefatos que permitiam realizar esta forma, paraele, de guardar, proteger, preservar e mostrar, paraalém da censura institucional, o Brasil que eraescondido pelos militares; vendeu instrumentosmusicais, exposições, discos a mãos-cheias,revistas, instalações e, claro, shows, shows e maisshows. Eventualmente, sugeriu o consumo doteatro; vendeu Londres, Paris e Nova Iorque,cosmopolita que o é. A coluna era uma verdadeiraode ao consumo. E Torquato anunciou, sem pudor:comprem, comprem, comprem.

No caso de Torquato Neto, essa embriaguez deconsumo foi sobretudo fundada nas possibilidades

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– que a economia do período permitia realizar – dajuventude carioca classe média e zona sul. Ummercado extraordinário que só encontrava paraleloem outras grandes cidades brasileiras. O Rio deJaneiro e São Paulo, de onde partiu o fenômenoJovem Guarda, foram os lugares da produção e asvitrines dos modos e modas dos jovens brasileirosde todos os rincões e que assimilavam, com ascaracterísticas e limitações locais particulares,esses modelos avassaladores. Os aparelhos derádio que habitavam em milhões de laresbrasileiros, a rápida expansão dos sinais de TVpelo Brasil e as centenas de impressos decirculação nacional foram alguns dos mediadoresdesses novos modos e modas. A intensapenetração do novo no mercado foi acompanhadade não menores e extraordinárias reações. O Brasilna década de 1960 foi, sem dúvida, um laboratóriode experimentações, mas igualmente um campode guerra.

Dito desta forma, pode parecer que se estáfazendo referência a uma ilha – a ilha Brasil, vigiadae protegida pela sombra verde do militarismo. Nadamais equivocado do que pensar o Brasil descoladoou dissociado dos vendavais da economia e dacultura que se mundializa a passos rápidos. Não énecessário abandonar a juventude e seus modosde expressão para realçar essa simbiose.Tomemos como recurso uma banda de penetraçãomundial, The Beatles, o modelo mais perfeito donovo formato da revolução social, ícone dajuventude e horror dos seus pais – em face de todaa simbologia que ligava o conjunto às formas dedesobediência, mostradas no vestuário, noconsumo de drogas lícitas e não lícitas, na criaçãodos próprios estilos, na liberação da sexualidade,na recusa ao casamento e na irreverência naescolha dos parceiros, na sedução advinda daerotização dos ritmos, nas ênfases conferidas aobarulho e ao que era visto como seu corolário, aviolência. A esses estilhaços de significados podemser aduzidos outros e sugeridas novas leituras.Tomemos a clássica Imagine, de John Lennon,verdadeira oração à paz e à concórdia, em umtempo de guerras, de intolerância, de tensãocultivada entre metades que dividiam o mundo e emque o Oriente, ainda debaixo de nossos pés, eonde Lennon foi buscar Ioko Ono, era alvo dosmaiores preconceitos e do maior desconhecimento.

Imagine there’s no heaven / It’s easy if you try /No hell below us / Above us only sky / Imagineall the people / Living for today / Imagine there’s

no countries/ It isn’t hard to do / Nothing to killor die for / And no religion too / Imagine all thepeople / Living life in peace / You may say I’m adreamer / But I’m not only one / I hope someday you’ll join us / And the world will be as one /Imagine no possessions / I wonder if you can /No need for greed or hunger / A brotherhood ofman / Imagine all the people / Sharing all theworld /You may say I’m a dreamer / But I’m notonly one / I hope some day you’ll join us / Andthe world will be as one / (LENNON, 1971).Com a maior delicadeza, John Lennon pôs sob

suspeição alguns dos valores mais caros àexperiência social do Ocidente: a crença noparaíso e no inferno, o valor da guerra, onacionalismo, a propriedade privada, realçando autopia da paz e do sonho compartilhado. Essesonho coletivo era o da juventude de todo o mundo,que se opôs ao estabelecido dos adultos e datradição.

Ao tempo em que John Lennon descobria oJapão e era seduzido pelas alternativas de umaoutra cultura – aderindo a uma outra filosofia,experimentando outra religião, adotando novoscostumes no cotidiano e escolhendo uma mulherasiática, “alternativa”, para desespero dasocidentais que lhe devotavam inominável ódio -, aInglaterra, país-síntese da guerra entre as geraçõese sede indiscutível do principal movimento jovem dadécada, ditou as novas tendências do vestuáriomasculino e feminino e impôs os longuíssimoscabelos que aproximam homens e mulheres econfundem sua identificação, em um contexto emque a moda masculina também se feminizava,ganhando ajustamento ao corpo, detalhes e umainfinidade de acessórios. A paquera, palavra nova,revelou o novo costume inglês cosmopolita,invenção dos aglomerados urbanos que passou avigorar em todo o mundo, mote da possívelaproximação entre rapazes e brotos, os últimosvestidos no rigor da moda ditada de Londres. Oreinado era da minissaia e dos vestidos tubo,geométricos, de Mary Quant, e as garotas, quemostravam pernas e barrigas em profusão, já seencaminhavam para o formato, hoje dominante naspassarelas, da anorexia, cujo padrão da época eraa modelo Twiggy.

Em espaços mais abertos, tropicais eiluminados, o nosso “rei” da juventude, RobertoCarlos, sugeria o modelo de broto digno de umapaquera e que, com certo esnobismo diferenciador,chamava a atenção para os seus dotes, a moeda

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do momento. A nova garota ideal assim era cantada(CORRÊA; GONÇALVES, 1971):

Essa garota é papo-firme / É papo-firme, épapo-firme / Ela é mesmo avançada / E sódirige, em disparada / Ela adora uma praia / Esó anda, de minissaia / Está por dentro de tudo/ E só namora / Se o cara é cabeludo / [....] /Manda tudo p’ro inferno / E diz que hoje / Isso émoderno [....].Essa garota papo-firme constituiu o perfeito

contraste da garota triste, romântica, derrotada esuicida no percurso da história amorosa pessoal,cantada por Martinha, e significada nela mesma nopapel de apaixonada pelo “rei”. Nada mais cafonaque a letra da canção, também interpretada porRoberto Carlos (MARTINHA, 1968):

“Eu daria minha vida para você voltar / Eu dariaminha vida p’ra você ficar / Já não tenho nada, anão ser você comigo / Sei que é preciso,esquecer mais não consigo. / Eu daria a minhavida para lhe esquecer / Eu daria minha vidapara não mais lhe ver [...]”.Na época em que a canção foi composta, a

palavra ficar ainda significava permanecer.A figura da jovem anêmica, desesperançada e

sem a presunção up-to-date e sofisticada dosbrotos automobilizados, já agradava somente àparcela dos jovens, às suas mães das geraçõesprecedentes e, talvez, ao bom rapaz, versãomasculina da moça-de-família. Não é à toa que, noimaginário da época, Roberto Carlos preferiaWanderlea, mineira, conservadora, porém,disfarçada de moderna e, para escândalo nacional,casou-se com uma mulher mais velha, desquitada,versão tupiniquim a catalisar o ódio de que IokoOno era alvo em escala mundial.

Na contramão também do modelo desubjetividade cantado por Wanderley Cardoso, em“O bom rapaz”, já vimos que a garota papo-firme sógostava de cabeludos. As dores e as fraturas domundo, em macro e em microdimensões estavampostas nas experiências que os jovens estavaminventando para si.

Nada mais interessante do que observar,apontando para essas fraturas, a letra de “Panis etCircencis”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, queremarcou o distanciamento entre gerações e aruptura de interesses no interior da família(PAIANO, 1996, p. 64):

Eu quis cantar / minha canção iluminada de sol/soltei os panos sobre os mastros no ar /soltei os tigres e os leões nos quintais /mas as pessoas na sala de jantar / sãoocupadas em nascer e morrer / mandei fazer /de puro aço luminoso punhal / para matar o meuamor e matei / às cinco horas na avenidacentral / mas as pessoas na sala de jantar /são ocupadas em nascer e morrer / mandeiplantar / folhas de sonho no jardim do solar /as folhas sabem procurar, procurar / pelo sol eas raízes procurar, procurar / mas as pessoasna sala de jantar / são ocupadas em nascer emorrer / essas pessoas na sala de jantar /essas pessoas na sala de jantar /essas pessoas na sala de jantar.Ao tempo em que o personagem narrador

ocupava-se em cantar sua canção iluminada desol, soltar tigres e leões nos quintais, fazer de açoum luminoso punhal, matar o amor às cinco horasna Avenida Central, plantar folhas de sonhos nojardim do solar, ou seja, em subverter a ordem domundo, as pessoas na sala de jantar permaneciamindiferentemente ocupadas em nascer e morrer.

De forma alegórica e figurativa, o jovem, aqui ummilitante de esquerda, fazia arte, fazia política,consumia e ia a apologia da maconha e constatavaque, qualquer que fosse o seu ato, ele nãoreverberava na sala de jantar, figuração doestabelecido - poder e família, ou os poderes emtodas as suas teias sedentárias.

Com esta sucinta abordagem acerca depossíveis aproximações ao tema juventude,cultura e linguagens na década de 1960 no Brasil,espero ter contribuído para iluminar algunsflagrantes dessas relações, evidenciando que esseuniverso jovem em mutação comportou significadosque iam para além dos recortes da política, nassuas vinculações com o estado autoritário e paraalém da centralidade que era posta na revoluçãosexualn

Nota

(1) A propaganda da Coleção Jovem Guarda ilustra astensões da década de 1960 entre as gerações: “[...] oguarda-roupa é uma das áreas críticas na ‘guerra f ina’travada entre os jovens e os ‘coroas’. Os barras-limpas se recusavam sistematicamente a envergaruma ‘beca’ igual à dos mais velhos. Porém,Confecções Camelo acaba de eliminar pelo menosessa ‘área de atrito’. E aí está o Roberto Carlos quenão nos deixa mentir, mora!” (PAIANO, 1996, p. 38).

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* Professora do Departamento de História eGeografia e do Mestrado em História do Brasil/UFPI

MARTINHA. Eu daria minha vida. Intérprete: Martinha. In:MARTINHA. Martinha. Recife: Rozenblit, 1968. 1 discosonoro. Lado A, faixa 4.NUNES, G. O bom rapaz. Intérprete: Wanderley Cardoso. In:CARDOSO, W. O bom rapaz. Rio de Janeiro: Copacabana,1967. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 2.PAIANO, E. Tropicalismo: bananas ao vento no coração noBrasil. São Paulo: Scipione, 1996.TORQUATO NETO. Última hora: geléia geral. In: PIRES, P. R.(Org.). Torquatália: geléia geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.v. 2. p. 197-381.VENTURA, Z. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1988.

ESCRAVIDÃO E VIOLÊNCIA: debatese tendências na historiografia piauiensePor Débora Laianny Cardoso Soares* e Solimar Oliveira Lima**Resumo: o ensaio objetiva apresentar a relação escravidão e violência na historiografia piauiense. Para tanto,diferentes abordagens apresentam as relações escravistas no Piauí. A partir da segunda metade do séculoXX, inicia-se a estruturação das visões do cativeiro assentadas em fontes documentais que resultaram eminterpretações que defendem o paternalismo, a violência e o consenso social.Palavras-chave: Escravidão. Relações escravistas. Violência.

O trabalho escravizado na economia pastorilconstitui-se tema central na historiografia sobre aescravidão no Piauí. Embora assegurando apresença e a importância dos trabalhadoresescravizados na estrutura produtiva, os estudosindicam certa dualidade de padrão de relaçõesescravistas que pouco contribui para acompreensão das raízes da formação social. Odebate concentra-se na relação violência-escravidão e possibilita a estruturação de correntesteóricas que podem ser identificadas nos seguintesposicionamentos: defesa das relaçõespaternalistas, defesa das relações marcadas porviolência apresentando duas tendências, sendouma marcada por diferenciação de tratamento paraescravizados privados e públicos e outra pelaresistência para superação do domínio escravista;e defesa de relações consensuais com resistênciae acomodação dos escravizados. A gênese dainterpretação pode ser encontrada emmemorialistas e viajantes dos séculos XVIII e XIX,que legaram leituras sobre a sociedade piauiense eas relações escravistas a partir de um mundo ruralmarcado por trabalho compulsório aleatório eacessório na lide campeira e relações brandas decontrole (cf. GARDNER, 1942; ALENCASTRE,

1981; SPIX; MARTIUS, 1981).Salvo engano, somente na segunda metade doséculo XX iniciaram-se as pesquisas históricassobre a formação social piauiense, resultando nasprimeiras páginas sobre o cativeiro piauiense,elaboradas com base em documentação oficial.Trata-se de “Pesquisas para a história do Piauí”, de1966, do historiador Odilon Nunes (1996). A obra éuma sistematização da historia do estado eapresenta em um capitulo destinado a análise doprocesso abolicionista a visão do autor sobre aescravidão. As páginas buscam negar a violência,minimizar a presença dos escravizados eapresentar uma sociedade paternalista. Em rigor,trata-se de uma leitura requentada dos viajantes,especialmente Spix e Martius (1938), que poucaimportância deram ao trabalho feitorizado nocriatório. Odilon Nunes (1996, p. 63), porém,superou seus antecessores ao apresentar oscativos como parte do contexto familiar senhorial:

“[...] ordinariamente, tratava de modo paternal suaescravaria, e ainda melhor tratava, se era elepobre, pois disporia apenas de escravos comoserviçais, para pajem, ou trabalhos domésticos, edesde então ficavam integrados na vida familiarcomo criados.”A citação parece exemplar. Para sustentar sua

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ideia de sociedade piauiense escravista, ohistoriador afirmava que a base econômica, apecuária, propiciava a construção de umasociedade de “[...] tendências democráticas, aoexercício da liberdade, donde, o respeito àdignidade humana” (NUNES, 1996, p. 63). Sendoentão, em seu entender, poucos os casos deviolência e crime envolvendo senhores e cativos,pois estes conviviam harmoniosamente. Apeculiaridade da utilização da mão de obra servil noPiauí, segundo Odilon Nunes, estava atrelada àprincipal fonte de riqueza senhorial, a criação degado de forma extensiva, servindo, assim, de forteargumento para reafirmar essa escravidão afávelvivenciada pelos cativos, na qual os senhores nãosentiam a necessidade de brutalizar seustrabalhadores por conta do trabalho, em razão dalida diária não necessitar de grandes esforços nemde muitos braços. Para o historiador, nas relaçõesescravistas, a ocorrência de fatos socialmenteconsiderados hediondos e o uso da truculência porparte senhorial eram casos raros, sendo estasações incitadas pelos escravizados, motivados por“vingança ou baixos instintos” (NUNES, 1996, p.252).

A obra de Nunes, considerada fundante dahistoriografia piauiense, reabilita a escravidão natentativa de imprimir uma imagem de umasociedade afável, civilizada e respeitosa para comas leis que se colocavam acima dos poderes edesejos individuas dos senhores. Além disso, suainterpretação legava ao elemento cativo, e tãosomente a este, a herança de uma má índole queoutrora vicejava na sociedade piauiense quando dosanos iniciais da ocupação do território; processomarcado por lutas e tensões. O escravizado foiresgatado de uma condição de negação deexistência ou de existência minimizada a umaquase invisibilidade social para a condição de umaexistência negativa responsável pelo atraso moral eeconômico da capitania e posterior província.

Odilon Nunes reproduzia as aspirações vigentesnas décadas que antecederam aos últimossuspiros do sistema escravista, marcadas pelapresença de agentes políticos e de um aparatopolicial que tiveram importância crucial para aformação de um cenário favorecedor a um processode civilização moral e religiosa da sociedade, noqual havia um esforço para construir umaambiência urbana com aparência de local civilizadoe com população dócil; comportamento socialpautado no projeto elitista1 de desconstrução das

características herdadas pelos seus primeiroshabitantes.

Seguindo os passos do principal expoente davisão paternalista da escravidão no Piauí,Monsenhor Chaves (1998), em “Obras Completas”,reafirma a memória dos escravizados de “baixosinstintos” de Odilon Nunes. Para MonsenhorChaves os negros cativos “abusavam” dos “bonssenhores, que eram a maioria no Piauí” (CHAVES,1998, p. 91). Maioria não significa totalidade, e ohistoriador, cuidadosamente, deixa os maussenhores no passado da sociedade. Assim, aescravidão no Piauí foi dividida em duas fases. Naprimeira,

“[...] imperou, com certa ênfase, o regime de ferroe fogo, com castigos mais violentos e mais fortes,com o abandono de doentes e dos velhos. Estafase enche todo o período colonial alongando-sepelos começos do Império.” (CHAVES, 1998, p.190).

Percebe-se que a demarcação do período revelao império da crueldade nas relações, haja vista a“primeira fase da escravidão” (CHAVES, 1998, p.190) vigorar por quase a totalidade da experiênciaescravista. A violência é revelada através deanúncios de fugas em jornais da época, nos quaisas marcas nos corpos dos escravizadosdenunciavam os severos castigos infligidos:

[...] em 1848 fugiu uma mulata de nome MariaIsabel, idade de 40 anos pouco mais ou menos,dos sinais abaixo declarados, e conduzindoconsigo uma cabrinha, com 6 mêses pouco maisou menos, ainda pagã [...] os sinais da mulata sãoos seguintes: [...] nas costas abaixo do talho dacamisa tem um pequeno sinal de relho. sobre umdos peitos tem dois sinais: um redondo, de fogo,outro comprido sendo este de relho (CHAVES,1998, p. 194, grifos do autor).

Ao que parece, o grifo do autor tinha o intuito dedemonstrar ao leitor a veracidade e a extensão daviolência. Na sua percepção, os sinais da violênciaseriam menos perceptíveis na segunda fase,caracterizada como sendo “menos árdua e violenta,com tratamento mais cuidadoso aos escravos”(CHAVES, 1998, p. 191). A argumentação do autorbaseia-se no fim do tráfico negreiro e na construçãode medidas para o comprimento dessa lei. Nestaperspectiva, o trato violento dispensado aos cativosfoi modificado a partir de 1850. Na constatação deuma escravidão branda, o autor reforça a bondadesenhorial e apresenta este comportamento comomotivo para práticas abusivas de escravizados, talqual era o caso do

[...] Comandante do corpo de Guarnição, Cel.Manoel Rolemberg Almeida, que se viu forçado apublicar na imprensa o seguinte aviso: “O abaixoassinado, querendo prevenir abusos, faz ciente os

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Snrs. Negociantes desta cidade, que não seresponsabiliza pelas compras feitas a creditos emseu nome por seus escravos, visto sempre fazê-las à moeda” (CHAVES, 1998, p. 191).O olhar do historiador fortalece a construção de

um negro cativo malicioso que não só abusava dosbons senhores como também da sociedadepiauiense que “colocou-se sempre ao lado doescravo” (CHAVES, 1998, p. 191). Para MonsenhorChaves, a imprensa era o principal meio de controleda violência senhorial, divulgando os poucos casosde sevícia e ressaltando a boa índole dos cidadãose seu senso de punição para com aquelessenhores que ultrapassavam os limites socialmenteaceitos, sendo eles pobres ou da elite. As relaçõesescravistas nesta segunda fase seriam entãolimitadas pela postura civilizada da sociedade quese contrapunha aos excessos da violência. Havia,portanto, para o autor, um nível de violênciasenhorial permitido e cuidadosamente zelado.

Somente no início dos anos 1980, as relaçõesescravistas no Piauí foram revisitadas. Embora ofoco da obra de Luiz Mott, “Piauí Colonial”, de1985, não seja a análise das relações escravistas,sua obra muito contribui para o tema. Luiz Mott(2012) apresenta um contraponto à ideia quechama de fantasiosa; de que no sertão pecuaristao trabalho escravizado foi escasso. Para ele,apesar de existir espaços para a mão-de-obra livree indígena, foi mais constante e importante apresença do trabalho do negro nas fazendas degado. Lançando mão de dados estatísticos do finaldo século XVII ao XIX, o autor contesta a tese daincompatibilidade doescravizado e pastoreio edemonstra que o cativo negro foi figura presente emarcante nos sertões. A obra também desfaz omito do absenteísmo. Considera inegável que noprincípio era real a ausência de senhores vivendonessas fazendas existentes no interior do país pordiversos fatores, dentre eles, o difícil acesso ecomunicação. Com o aumento de moradoresnessas localidades pode-se observar que o patrãoausente foi se tornando exceção e não mais aregra, como no início do século XVII. (SOARES, D.L. C.; LIMA, 2011)

Sobre as relações escravistas, Luiz Mott (2012,p. 116) ressalta um tratamento menos opressivo doque em outras áreas produtivas, onde “parece queas condições e relações de trabalho, assim comoas perspectivas de alforria eram muito melhores nazona pecuária do que nos engenhos de açúcar”.Entretanto, o autor apresenta uma carta, escritapor uma escrava de nome Esperança Garcia,

denunciando os maus tratos dispensandos a ela, asuas companheiras e filhos e aos demaisescravizados da fazenda.

[...] há grandes trovoadas de pancadas em umfilho meu sendo uma criança que lhe fez extraiosangue pela boca ,em mim não posso explicarque sou um colchão de pancadas, tanto que caiuma vez do sobrado abaixo peiada. Pormisericórdia de Deus escapei [...](MOTT, 2012, p. 141).

A denúncia de Esperança parece ter repercutidotambém na historiografia. A violência era fato.Parecia faltar apenas uma análise sobre a suaintensidade; para tanto, o ponto de partida seriauma revisão da dualidade temporal criada porMonsenhor Chaves. Contudo, o pensamento socialfundou uma nova dualidade, desta feita espacial,não só para o teor das relações, mas também parao uso do trabalho compulsório. Neste particular, aservidão negra no Piauí continuaria a figurar nasanálises da historiadora Tanya Brandão (1999), em“O escravo na formação social do Piauí”, comosecundária nas fazendas de gado.

Esta característica, segundo a pesquisadora,deveu-se a vida rústica do sertão, onde ostrabalhos desenvolvidos pelos negros não estavamdiretamente ligados ao processo produtivoprincipal - a pecuária, mas a tarefas secundárias,como fabricação de telhas, tijolos, artesanatos,trabalhos domésticos e alugueis de seus serviçospelos seus senhores, na agricultura e naconstrução civil. No criatório, o cuidado do gadonos campos e currais seria realizado,predominantemente, por vaqueiros livres. Portanto,ficaria para os trabalhadores escravizados as durase pesadas tarefas da lida nas fazendas.

Tanya Brandão defende ainda que a presençado escravizado nesta região se deu comcaracterísticas distintas no resto do País, sendoabsorvida muito mais como uma demonstração destatus social do que como força de trabalhoatuante, apesar de, do ponto de vista da relaçãosocial, não fugir à regra do sistema escravistaimpregnado no Brasil (BRANDÃO, 1999, p. 154).

Apesar da referência sobre mecanismosrepressores para o controle e domínio dosescravizados, a existência de dois cativeiros noPiauí, o privado e o público, levaram a autora ainferir que os trabalhadores das fazendas públicasgozavam de maiores privilégios e regalias que nasfazendas privadas. Nas propriedades privadas aviolência, principal mecanismo de atuação dosistema escravocrata, se apresentava maisfreqüente, pois o senhor se mantinha presente e

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atento aos movimentos de seus trabalhadores.O comportamento violento dos proprietárioscontrasta com o vivenciado pelos escravizadospúblicos, tanto sob administração jesuítica quantosob domínio da Coroa Lusitana e Império. Nasfazendas públicas era proporcionada aostrabalhadores relativa autonomia, fazendo com queo escravo gozasse de certa liberdade.

Quando se pretende estudar o funcionamento daescravidão no Piauí, faz-se necessário observar,em primeiro lugar, que, de acorodo com o tipo deproprietário, existiam pelo menos dois grupos deescravos: um composto por cativos pertecentes àCoroa e outro que abrangia os de propriedade departiculares. Este fato implicaria na vigência depelo menos dois tipos de tratamentos. [...] Quantoao tratamento dispensando ao escravo do fsco,ocorria fator interessante que provavelmenteimplicaria em forma menos violenta (BRANDÃO,1999, p. 158-160).

A idéia de diferenciação de condições detrabalho e vida dos escravizados é reproduzida efortalecida em “Escravos do sertão”, de MiridamFalci (1995). Entretanto, a autora parte dacoexistência do trabalho livre e escravizado comouma característica peculiar do Piauí paraapresentar uma visão das relações escravistas apartir do batizado e do compadrio entre senhores eescravizados, reforçando assim o consenso e acontratualidade para além do espaço de produção.A proximidade entre classes, segundo ahistoriadora, se reproduz também no espaçoprivado. Apesar de suas pesquisas apontarem queno Piauí esse apadrinhamento por parte doproprietário do escravizado era quase inexistente,ela afirma:

“Mas se os senhores não foram os padrinhos dosescravos no Piauí, outros membros da família dosenhor o foram, Várias vezes os batismos deescravos, foram realizados por irmãos, cunhadosou primos dos senhor.” (FALCI, 1995, p. 100).

Acreditamos, entretanto, que o apadrinhamentopor pessoas livres não foi um ato de vontade únicado escravo ou escrava que batizava o filho. É crívelque havia interesse da parte do senhor e doescravo na escolha do padrinho e em caso dedivergência predominaria a escolha do senhor.Ser padrinho significava dar roupa para a mãe e acriança, comprometer-se com a orientação daqueleser, protegê-lo, comparecer ao ato do batismodemonstrando uma inegável capacidade de estarjunto aos negros, sentindo a sua proximidade,coisas socialmente indesejáveis para um homemlivre de posses numa sociedade escravista.

Os apadrinhamentos de escravos pelos seussenhores ou por parentes dos senhores, e o ritual

de batizado foram considerados pela autora comocerimônia de “confraternização” do grupoescravizado e da família senhorial (FALCI, 1995, p.104). Senhores e escravizados convivendo nosmesmos espaços, de produção e privado, reforça aideia do sistema ameno vivido no sertão. Esta facedo escravismo piauiense encontra, ainda segundoMiridan Falci (1995), um espaço de representaçãotípico: as Fazendas Nacionais. Os grilhões nestaspropriedades eram frouxos e os escravizadosgozavam de uma jornada de trabalho menos árdua.A partir destas propriedades, continuava-se areproduzir o paternalismo e a memória daescravidão ganhava ares de oásis do sertão, onde onegro escravizado viveria em eterna bonança.

Sobre as fazendas públicas e as relaçõesescravistas vivenciadas neste espaço, SolimarLima (2005), em “Braço Forte”, apresenta umaanálise que questiona as visões paternalistas eaponta a freqüente e violenta repressão nasfazendas. Segundo o historiador, nas fazendaspúblicas estruturou-se e organizou-se umaprodução escravista que desenvolviasistematicamente atividades produtivas variadascom a finalidade principal de comercialização.A estrutura produtiva mercantil estava assentadaexclusivamente no trabalho escravizado, naquela otrabalhador cativo era tão imprescindível à produçãopastoril quanto a todas as outras desenvolvidas nasfazendas. A produção de forma dominante demercadorias e a utilização dominante e sistêmicado trabalho escravizado levaram a que uma minoriade propriedades rurais no Piauí fosse umaespecificidade que, antes de indicar exceção,confirmava a regra do escravismo vigente no país(LIMA, 2005, p. 152).

Solimar Lima (2005), contrapondo-se aosolhares dominantes de que a fraca fiscalização e abaixa produção resultariam em trabalhadoresacomodados, desnaturaliza a idéia de que nasfazendas públicas o trabalho escravizado e asrelações escravistas eram amenos. Assim, o autorcompõe um cenário para a escravidão públicapiauiense considerando a contribuição e apresença dos escravizados nas mais diversasatividades desenvolvidas nas propriedades. O teordessas relações é descrita através das práticas decastigos violentos e através da ameaça da violênciacomo forma de controle eficaz para manter aestabilidade das relações escravistas. A gestão doImpério é marcada por denúncias realizadas pelostrabalhadores queixando-se das condutas adotadas

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pelos administradores tornando o controle umprocesso de ambos, criadores e trabalhadores,pois aos escravizados nacionais era permitido adenúncia da exploração excessiva da violência eaos criadores, o dever de disciplinar e dominar.

Assim, para o historiador, o confronto erainevitável tornando esse processo uma estratégiade manutenção da violência e da ordem. Um fatoimportante de controle psicológico descrito peloautor é o sistema de quarta [do total de bezerrosque nascessem, os vaqueiros, que nas fazendaspúblicas em sua maioria eram escravizados,recebiam um quarto das cabeças amansadas], queera usado para criar no trabalhador escravizado ailusão de ser um trabalhador menos explorado,servindo como outra forma de controle e disciplina.O benefício, para os trabalhadores escravizados,colocava limites à exploração e assegurava asobrevivência, pois a acumulação desses bensservia para manter a alimentação dos mesmos nasfazendas.

Nessa complexa teia de relações escravistas,percebe-se uma tendência historiográfica aassinalar a predominância masculina, ficando amemória da mulher fadada ao esquecimento e suahistória sobrepujada pelas conquistas corajosas eousadas dos homens, pois a suposta fragilidadefeminina não permitia que sua presença se unisseharmonicamente às paisagens rudes dos sertões eà lida nos campos. Por mais que a historiografiarecente tenha fechado algumas lacunas dentro dahistória da escravidão no Piauí, abriu, emcontraponto, margens para visões reducionistas docotidiano e da condição feminina dentro docativeiro; recortando desse mosaico apenas suarepresentação enquanto mão de obra secundária epouco significativa para a produção, pois o trabalhohumano “necessário” nas fazendas se limitaria aocriatório e esse por excelência seria de domíniopuramente masculino.

A matriz de exclusão da participação femininaparece nascer da dualidade criada peladiferenciação de condições de trabalho e de vidaentre cativeiro público e privado. Nesta dualidade,aparece, nitidamente, a diferenciação do trabalhoquanto ao gênero. Esta concepção pode serpercebida, com destaque, em Miridan Falci (1995)e Tânya Brandão (1999). Tratando-se das fazendasnacionais, cabe destaque as informaçõesapresentadas por Solimar Lima e Juliana Malherme(2008) sobre a participação feminina no criatório.

No contexto da produção pastoril, a resistência

escrava não se constitui como objeto específico emnenhuma produção historiográfica sobre o Piauí.Ainda que as formas de controle e a resistênciados escravizados sejam enfatizadas e discutidasnos autores citados, apenas Lima (2005) dedicaum capítulo às formas de resistência, mas tomasomente como referência as fazendas da naçãoonde os castigos corporais e as denúnciasaparecem restritos ao âmbito da administração daspropriedades. O autor afirma que as tensões econflitos estavam presentes no cotidianoescravista. Havia a dominação, a exploração, asameaças e os castigos, por um lado; rebeldia enegação da ordem, por outro. Nessa dinâmica,formava-se um quadro de rudez das relaçõessociais na economia pastoril do Piauí.

Muitas são as lacunas e os debates em tornodas discussões sobre o cotidiano dos escravizadosno Piauí e as relações que mantinham no decorrerdeste período. As pesquisas de outrora seocuparam com os espaços produtivos na zona ruraldo Piauí, dando um foco para as relações aliestabelecidas com ênfase no mundo do trabalho.Estudos recentes que ainda permanecem somentenos espaços da academia produzem um novoavanço na temática e redimensionam asdiscussões para espaços urbanos, para o cotidianoe para os meios de ordenamento e repressão dosescravizados. Mairton Celestino da Silva, em suadissertação, “Batuque nas ruas dos negros”,defendida em 2008, no Programa de Pós-graduação em História Social na UniversidadeFederal da Bahia, traz para o panorama daspesquisas a cidade de Teresina como ponto departida para entender as relações sociaisestabelecidas com a mudança da capital e com asnovas sociabilidades experienciadas pelos negros,cativos ou libertos, no final do século XIX, a partirdos conflitos estabelecidos pelo declínio dosistema escravista e das políticas de cerceamentodas manifestações negras. Para isso, a pesquisatem como base documental os relatórios doschefes de polícia e da Secretaria de Polícia, poisas manifestações eram percebidas como tentativasde burlarem o sistema, desembocando assim emprocessos judiciários.

A população escravizada no RecenseamentoGeral do Império de 1872 (cf. FREITAS, 1988;CHAVES, 1998; NUNES, 2007) é uma pequenafração em comparação ao todo da população, masestá destacada como a mão de obra principal paraas atividades diárias e a vida árdua do século XIX, e

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principal obstáculo para as mudanças dos hábitosda Província do Piauí, tornando o tão sonhadoprogresso um processo repleto de conflitos. Nessepanorama, a formação de um aparato policial quereordenasse as manifestações negras se fazianecessária. É através das sociabilidades negrasque o autor identifica as relações escravistas epercebe a resistência escrava como uma forma deadaptação ao sistema, de negociação demelhorias, de acordo e barganhas.

Se no entorno de Teresina as experiências negrasse f izeram marcantes, nas ruas da cidade, aquestão não era diferente. Mesmo correndo orisco da repressão policial e da punição por partede seus senhores, os batuques dos negrosresistiram durante o período da Escravidão. Apresença negra na cidade era tão perceptível queruas eram definidas como de circulação epresença exclusiva dos negros. Era nesses locaisque os tambores, as sociabilidades, os conflitos eas negociações se davam com mais intensidade(SILVA, 2008, p. 125).O historiador ressalta também a possibilidade

de uma reprodução de valores e de uma culturanegra em Teresina, pois o que pelas autoridadesera visto como desordem e bagunça, para osnegros era uma tentativa de reproduzir oscostumes africanos e de fortalecer os laços entreos seus pares. Com Mairton Celestino da Silva(2008), iniciou-se uma tendência para a análise dasrelações escravistas a partir da resistência negra,das ações dos órgãos de repressão e demanutenção da ordem, bem como dassociabilidades negras, não mais exclusivamenteescravizados, no meio urbano. As relaçõesescravistas, a partir da constituição da Secretariade Polícia, são analisadas por Francisca RaquelCosta, em “Escravidão e conflitos” - dissertaçãodefendida em 2009 no Programa de Pós-graduaçãoem História do Brasil na Universidade Federal doPiauí (UFPI) -, onde a autora estudou as principaisformas de resistência escrava e de controle nosespaços privados e públicos dentro do contexto dasegunda metade do século XIX. O cotidiano dosescravizados é traçado a partir da identificação edas descrições dos fenótipos existentes nosdocumentos da Secretaria e nos anúncios de fugasnos jornais. Violência e resistência são destacadascomo partes de um mesmo processo dedominação escravista.

Podemos fazer duas leituras a partir dasdescrições encontradas nas fontes consultadas:se, por um lado, as cicatrizes e marcas de “relhos”nos escravos significavam a violência do sistemaescravista no Piauí; por outro, eram sinônimo deresistência desses trabalhadores escravizados,isto é, quanto mais resistiam, mais apresentavamcicatrizes que simbolizavam os atos deresistência (COSTA, 2009, p. 19).

Destacando a violência física e a violênciapsicológica promovida por senhores e feitores emespaços privados, a historiadora traçou um quadroque revela os delicados limites da violênciasenhorial e da violência publica. Os conflitos etensões, na segunda metade do XIX, passaram aser mediados pelo Estado diante da incapacidadesocial da autoridade senhorial lidar comdeterminadas situações que poderiamdesestabilizar a ordem social. Para tanto, o poderprivado acionava a polícia para aplicar os devidoscastigos e procedimentos, ainda que os espaçosprivados continuassem utilizados, especialmentepelos grandes proprietários, como espaços depunição e forma de reafirmar um poder que ruíajuntamente com o sistema escravista.

As relações escravistas, as experiências evivências dos escravizados vão sendo delineadasnas pesquisas recentes ampliando-se a análisepara o espaço urbano e para as relações dosescravizados com os demais componentesempobrecidos da sociedade, os libertos e livres.Focando a cidade de Teresina como ponto departida para a análise das sociabilidades festivas elúdicas da população negra e nas estratégias de“inclusão social e cultural” na cidade que acabavade se tornar a capital da Província, Talyta Sousadefendeu a dissertação “Filhos do sol do equador”,em 2012, no Programa de Pós-graduação emHistória do Brasil, na UFPI. Na obra, a historiadoraapresenta o cotidiano da população negra e suasestratégias partindo da análise do trabalho, do lazere principalmente da formação da irmandade de SãoBenedito, que era uma das principais naorganização das festas sacro-profanas, nas quais asociedade se relacionava com os negrosescravizados e os mesmos conseguiam delinear asua história e a sua cultura na cidade. Para TalytaSousa (2012, p. 56),

A aparente liberdade existente nos centrosurbanos proporcionava aos escravizados asmesmas violências que sofria o escravizado rural.Essa violência corresponde à violência simbólica,um tipo de violência que é exercida em parte comconsentimento de quem a sofre. [...] Assim, aescravidão urbana constitui-se como umacontradição, como sugeriu Leila Mezan Algrani,pois os momentos longe do senhor, ao mesmotempo em que proporcionavam a criação de umambiente próprio para usufruir da liberdade, eratambém a reafirmação de sua condição deescravizado, [...].A pesquisadora trata as festas e a inserção dos

negros como membros da irmandade de SãoBenedito, em Teresina, como uma reelaboração dacondição de excluídos sociais, onde se construíam

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identidades sociais expressivas, dando aoportunidade de ter um auxílio a invalidez, doenças,e de inserção na sociedade, diminuindo osentimento de opressão do sistema escravista.Como visto, pouca é a produção sobre a escravidãono Piauí. A evolução do pensamento social sobre otema apresentado na historiografia revela,nitidamente, duas percepções teórico-metodológicas (a resistência escrava e aresistência-acomodação escrava), a exemplo dodebate nacional, que buscam compreender aformação social tomando como referência asrelações escravistas. Em que pesem avanços,aparecem ainda imperfeitas as interpretações sobrea sociedade piauiense escravista

Notas:1 Assim como nas principais capitais brasileiras, com aindependência e o advento de uma possível proclamação daRepública, surgiu um movimento elistista de transformar ascidades em locais de gente civilizada e afável, no qual ospadrões europeus influenciavam fortemente as mudançasfísicas e posturais dos habitantes, não diferente na Provínciado Piauí. Ver mais em Carvalho (2007).

ReferênciasALENCASTRE, J. M. P. de. Memória cronológica, histórica ecorográfica da província do Piauí. 2. ed. Teresina: Comepi,1981.BRANDÂO, T. M. O escravo na formação social do Piauí.Teresina: Edufpi, 1999.CARVALHO, J. M. A construção da ordem. 3. ed. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2007.COSTA, F. R. Escravidão e conflitos. 2009.152 f. Dissertação(Mestrado em Historia do Brasil)Programa de Pós-graduaçãoem História do Brasil, Universidade Federal do Piauí,Teresina, 2009.

* Mestranda em História do Brasil/UFPI([email protected]);** Professor do Departamento de CiênciasEconômicas e do Mestrado em História do Brasil/UFPI, Doutor em História/PUCRS([email protected])

CHAVES, M. Obra completa. 2. ed. Teresina: FundaçãoCultural Monsenhor Chaves, 1998.FALCI, M. B. K. Escravos do sertão. Teresina: FundaçãoCultural Monsenhor Chaves,1995.FREITAS, Clodoaldo. História de Teresina. Teresina:Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1988.GARDNER, G. Viagens no Brasil. [S.I.]: Nacional, 1942.LIMA, S. O. Braço forte.Passo Fundo: UPF, 2005.LIMA, S. O.; MALHERME, J. M. B. Cotidiano e trabalho demulheres negras nas fazendas escravistas do Piauí. In:LIMA, S. O. Sertão Negro. Rio de Janeiro: Booklink; Teresina:Matizes, 2008. p.168-178.MOTT, L. R. B. Piauí colonial. Teresina: APL; Fundac; Detran,2012.NUNES, O. Pesquisa para a história do Piauí. Teresina:Imprensa Oficial, 1996. v. 4.NUNES, O. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina:Fundapi; Fundação Monsenhor Chaves, 2007.SILVA, M. C. Batuque na rua dos negros. 2008. 140 f.Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal da Bahia,Salvador, 2008.SOARES, D. L. C.; LIMA, S. O. Escravidão e liberdade. In:Simpósio Nacional de História, 26., 2011, São Paulo. Anais...São Paulo, 2011.SOUSA, T. M. L. Filhos do Sol do Equador. 2012. 246 f.Dissertação (Mestrado em História do Brasil) - Programa dePós-graduação em História do Brasil, Universidade Federaldo Piauí, Teresina, 2012.SPIX, J. B. V.; MARTIUS, C. F. P. Viagem pelo Brasil. Rio deJaneiro: Imprensa Nacional, 1938.

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A aplicação de conceitos de Antonio Gramsciao temário internacional, os estudos relacionadosao desenvolvimento, às desigualdades globais e àsorganizações internacionais são alguns dos temasde pesquisa do Professor Craig N. Murphy,vinculado à Universidade Massachussets Boston.O único texto do autor traduzido no Brasil foiescrito a quatro mãos com o falecido diplomataitaliano de carreira Enrico Augelli (AUGELLI &MURPHY, 2007) e versa sobre uma interpretaçãode conceitos gramscianos voltados aos EstadosUnidos e sua política exterior recente com oTerceiro Mundo. Faz parte de uma coletâneareunida por Stephen Gill (GILL, 2007) dedicada aanálises que têm como tema articulador opensamento de Gramsci e as relaçõesinternacionais. Apresentar e avaliar criticamente olivro de Murphy informado acima é o objetivo destetexto.

Debruçando-se sobre o livro em pauta nestaresenha (MURPHY, 1994) dedicado à temática dasorganizações internacionais, é possível identificarum traço diferenciador em relação a algumas obrasvoltadas ao assunto (BARKIN, 2006; HERZ &HOFFMANN, 2004; SEITENFUS, 2012). Enquantoas últimas enfatizam uma abordagem tradicional,fortemente ancorada nos aspectos formais,jurídicos e de retrospecto meramente institucionalde tais organizações, o esforço de Murphy é aelaboração de sua contextualização histórica apartir das distintas visões de mundo e das forçassociais de cada período. Esta é a tônicaidentificadora das três periodizações dasorganizações internacionais desde 1850: as UniõesInternacionais (1850-1914), a Liga das Nações(1914-1945) e a ONU (de 1945 em diante). Umconceito central que perpassa tais diferentesperíodos é o de uma governança global, umconjunto de arranjos, regras formais e informais,agendas, organizações, instituições, idéias queorientam o plano internacional sem a existência deum governo ou poder centralizado.

O primeiro período delimitado por Murphy,

Resenha: Sociedade civil internacional,organizações internacionais e GramsciPor Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos*

MURPHY, N. Craig: INTERNTATIONAL ORGANIZATION AND INDUSTRIAL CHANGE – Global Governancesince 1850, Cambridge: Polity Press, 1994.

aquele das Uniões Internacionais (1850-1914), foimarcado por uma visão liberal e kantiana demundo. A crença de que o desenvolvimento docomércio internacional aprofundaria a paz e acooperação, sem perder de vista a busca dosinteresses das burguesias nacionais, os interessesdos distintos Estados, o fortalecimento de suasrespectivas sociedades civis, o aprofundamento dacooperação e desenvolvimento científico etecnológico, além de reproduzir a ordem imperial ecolonial num contexto da emergência da SegundaRevolução Industrial. Seriam exemplares dasorganizações identificadas com tal perspectiva aUnião Telegráfica Internacional (1865), a UniãoPostal Universal (1874) e o Escritório Internacionaldo Trabalho (1901), dentre muitas outras. Noperíodo em questão, não se pode ignorar também aconjugação dos interesses de algumas burguesiasnacionais com remanescentes da velha nobreza doantigo regime. Tais nobres foram patrocinadores devárias conferências sobre distintos temas decooperação técnico-científica e também de caráterdiplomático (MURPHY, 1994). Um fortenacionalismo e um desenvolvimento desigual dasprincipais potências também seriam a marca desseperíodo, um dos pontos determinantes para oepílogo desta etapa com a emergência da PrimeiraGuerra Mundial e o consequente fim de váriasorganizações e componentes da governançainternacional em questão (MURPHY, 1994).

No que toca ao período da Liga das Nações(1919-1945), chama a atenção a abordagem deMurphy para o liberalismo extremado queidentificou boa parte das forças sociais relevantesno período. Como desdobramento disto, é notável odistanciamento da realidade por parte do modocomo a Liga das Nações conduziu toda a suaatuação. Alheia inclusive em relação aos Estados-membros – que não contribuíam para aorganização. Seus custos foram cobertos pordoações de mecenas milionários. Ainda assim, aorganização não teve recursos suficientes para seufuncionamento. Murphy também destaca a

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necessidade de construir uma nova governançaglobal mais inclusiva, na qual as organizaçõesassociadas com a Liga buscassem de certa formaequalizar os diferentes Estados como parte de umaorientação para prevenir um novo conflito deproporções mundiais. Contudo, tal imperativo nãofoi concretizado pela Liga.

Foi justamente essa perspectiva mais inclinadaa uma orientação de cunho mais keynesiano quemarcou todo o sistema de organizações (UNCTAD,UNICEF, etc.) associado à ONU desde 1945 até osanos 1970. Com um vínculo mais efetivo com osEstados, a ONU teve atuação relevante na buscade resolução de conflitos e no financiamento, emalguns casos, de programas de desenvolvimentoem países terceiromundistas, ainda que isto tenhacorroborado políticas de governos de orientaçãopopulista. Marcou o período em questão, assimcomo o das uniões internacionais, um caráter maiscoercitivo1. Tal ponto foi ausente no interregno daLiga das Nações. Evidentemente que asorganizações associadas à ONU atuaram naperspectiva de fortalecer a hegemonia norte-americana. Como parte disto, organizações como oFMI (Fundo Monetário Internacional) direcionaramprincipalmente no fim da Guerra Fria políticasliberais no Terceiro Mundo e no Leste Europeu queresultaram em crises que reforçaram tal quadrohegemônico (MURPHY, 1994).

Ainda que se aponte as virtudes e méritos dolivro de Murphy, não se pode omitir suasvicissitudes. Cite-se apenas algumas, dentre váriasomitidas aqui em função dos limites de espaço.

O livro é marcado por um preocupante ecletismoque vê várias compatibilidades entre o ideário liberalde Adam Smith e as formulações de Marx semmaior argumentação ou referência a autores quesustentem tal relação. O marxista Antonio Gramscié apontado como autor que combina idéiasrealistas, marxistas e liberais, proporcionando umavisão mais completa do plano internacional do quea perspectiva liberal. Novamente neste caso,Murphy carece de argumentação e fontes. Valendo-se de edições mutiladas do pensamento deGramsci e não da completa edição crítica de seuopus carcerário (GRAMSCI, 1975), Murphy vai aléme identifica o conceito de uma sociedade civilinternacional na obra do comunista italiano. Murphyassocia o conceito mencionado às organizaçõesinternacionais e todo o seu aparato. Tal conceitonão existe na obra gramsciana. Até porque asociedade civil conforme Gramsci conforma uma

unidade orgânica entre Estado e sociedade civil. Noplano internacional, isto teria como desdobramentoum Estado mundial. A perspectiva metodológicagramsciana de “tradução” (ressignificação nãomecânica) da categoria de sociedade civil paraoutras especificidades históricas e culturais sequeré cogitada neste caso. Em conjunto com aperspectiva gramsciana, Murphy vê o quadrointernacional como “anárquico”. Ou seja, desenhaum quadro competitivo e anti-social do além-fronteiras em perspectiva hobbesiana, ignorando ainterpretação histórico-social de Gramsci derivadade Marx que é incompatível com o pressupostoahistórico de uma inerente natureza humana e dosEstados de cunho egoísta e ambicioso.

Ecletismo à parte, deve ser registrado quealguns conceitos aparecem e não são sequerexplicados em notas de rodapé. A título deexemplificação, mencione-se o raciocínioeconômico do “efeito Owen”, mostrando certadespreocupação com o leitor leigo.

A questão das fontes é outro ponto preocupantedo ecletismo de Murphy. Usar fontesconceitualmente divergentes não é um problema apriori. O cerne está na justificativa e no modo comose trabalha tais conceitos e fontes de modo quenão se tornem incompatíveis. Por outras palavras,que tais fontes não entrem em choque dentro deuma mesma linha de argumento. O ecletismoconsiste no “uso de conceitos fora dos seusrespectivos esquemas conceituais e sistemasteóricos, alterando os seus significados”(OLIVEIRA, 1995, p. 263). Ou ainda, que abordemconceitos e categorias divergentes entre si comose fossem parte do mesmo problema ou da mesmaformulação.

A filiação de Murphy à teoria crítica dasrelações internacionais (COX, 1981) é anunciada nolivro. Assim sendo, deveria ser adotado o princípioda historicidade do tratamento dos vários assuntosque compõem o temário internacional. Todavia, oque se vê no apêndice metodológico do livro deMurphy é tributário de um procedimento quecontraria a anunciada historicidade no tratamentodas fontes. Murphy simplesmente efetua umacontabilidade de fontes disponíveis sobredeterminadas organizações internacionais paraidentificar as instituições e respectivas variáveisrelevantes a serem abordadas. Como compatibilizarfontes disponíveis como uma totalidade histórica ede variáveis defendida pelo pioneiro da teoria críticanas relações internacionais, Robert W. Cox? Tal

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Referências:AUGELLI, E. & MURPHY, C.: Gramsci e as relaçõesinternacionais: uma perspectiva geral com exemplos dapolítica recente dos Estados Unidos no Terceiro Mundo. In:GILL, S. (org.): Gramsci, materialismo histórico e relaçõesinternacionais, Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p. 201-226.

* Professor Assistente Doutor I da UniversidadeEstadual Paulista, campus de Marília. Coordenadordo grupo interinstitucional de pesquisa “Marxismo ePensamento Político” do Centro de EstudosMarxistas-UNICAMP e professor colaborador doPrograma de Pós-Graduação em Ciência Política daUnicamp.

1 Murphy usa metaforicamente a figura do panóptico de modoampliado para para explicar tal caráter coercitivo do sistemainternacional e da governança internacional. O panóptico foium mecanismo projetado pelo filósofo Jeremy Bentham(1748-1832) para controle das prisões. Ele consistia nalocalização privilegiada do vigilante, que possuía visãocentralizada sobre todas as celas. Nas celas, seusocupantes não tinham visão do todo nem podiam perceber seo vigilante se encontrava em seu lugar de observação. Istosempre passava a sensação de haver alguém vigiandomesmo que isto não ocorresse de fato. Gradativamente, opanóptico foi amplamente incorporado na arquitetura e nosprojetos urbanísticos das cidades até os dias atuais. Opanóptico apareceu nas análises de Michel Foucault paraexplicar parte das questões “microscópicas” de controle nointerior das sociedades. Ver a respeito FOUCAULT, 2001.

questão passa ao largo do livro de Murphy. Istodenota haver muito ainda a avançar nacompatibilização teórico-prática-metodológica noâmbito dos estudos críticos e gramscianos emRelações Internacionais. O livro de Murphy éexemplar de tais desafios a serem enfrentadospelos teóricos críticos e estudiosos de AntonioGramsci

BARKIN, J. S.: International Organization: Theories andInstitutions, New York: Palgrave Macmillan, 2006.COX, R. W.: Social Forces, States and World Orders:Beyond International Relations Theory, In: Millenium: Journalof International Studies, Vol. 10, No. 2, p. 126-155, 1981.FOUCAULT, M.: Microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Graal,2001.GILL, S. (org.): Gramsci, materialismo histórico e relaçõesinternacionais, Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.GRAMSCI, A.: Quaderni del Carcere, Torino: Einaudi, 1975.HERZ, M. & HOFFMANN, A. R.: Organizações Internacionais:história e práticas, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.MURPHY, C. N.: International Organization and IndustrialChange – Global Governance since 1850, Cambridge: PolityPress, 1994.OLIVEIRA FILHO, J. J.: Patologias e regras metodológicas,In: Estudos Avançados, 9 (23), p. 263-268, 1995.SEITENFUS, R.: Manual das organizações internacionais,Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

ExpedienteINFORME ECONÔMICOAno 14 - n. 29 - abr. 2013 Reitor UFPI: Prof. Dr. José Arimatéia Dantas LopesDiretor CCHL: Prof. Dr. Nelson Juliano Cardoso MatosChefe DECON: Profa. Ms. Janaina Martins VasconcelosCoord. Curso Economia: Prof. Dr. Antônio Carlos de AndradeEditor-chefe: Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima ([email protected])Editora-assistente: Economista Esp. Enoisa Veras ([email protected])Conselho Editorial: Prof. Dr. Aécio Alves de Oliveira/UFC, Prof. Dr. Alvaro Bianchi/Unicamp, Prof. Dr. Antônio Carlos deAndrade/UFPI, Prof. Dr. Leandro de Oliveira Galastri/Unicamp, Prof. Esp. Luis Carlos Rodrigues Cruz Puscas/UFPI,Prof. Dr. Luizir Oliveira/UFPI, Prof. Dr. Marcos Del Roio/UNESP, Prof. Dr. Marcos Cordeiro Pires/UNESP, Prof. Dr. RodrigoDuarte Fernandes dos Passos/UNESP, Prof. doutorando Samuel Costa Filho/UFPI, Profª Drª Socorro Lira/UFPI,Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima/UFPI, Prof. Dr. Vitor de Athayde Couto/UFBA, Prof. Dr. Wilson Cano/Unicamp,Economista Ms. Zilneide O. Ferreira.Revisão: Zilneide O. Ferreira e João Paulo Santos MourãoProjeto gráfico: Neulza BangoimJornalista responsável: Prof. Dr. Laerte Magalhães/DCS-UFPIEndereço para correspondência: Universidade Federal do Piauí-CCHL-DECON-Campus IningaTeresina-PI CEP: 64.049-550 Fone: (86)3215-5788/5789/5790 - Fax: (86)3215-5697Tiragem:1.000 exemplaresImpressão: Gráfica-UFPIParceria: Conselho Regional de Economia 22ª Região-PISiteDECON: http://www.ufpi.br/economia.

Números anteriores das publicações do Curso deEconomia - Informe Econômico e Texto de Discussão -, bem como informaçõessobre o referido Curso, encontram-se no site da UFPI, na página do DECON: www.ufpi.br/economia.

Os artigos foram revisados, respeitando-se o estilo individual da linguagem literária dos autores, conforme a 5.ª edição do VocabulárioOrtográfico da Língua Portuguesa (VOLP, 2009), aprovado pela Academia Brasileira de Letras.

Esta publicação possui classificação Qualis, sistema de avaliação CAPES, nas áreas: Economia, Interdisciplinar, História, Serviço Social,Filosofia, Ciência Política e Relações Internacionais, Ciências Ambientais, Sociologia e Geografia. Mais informações: WebQualis.

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