Nicole Loraux, O Operador feminino.

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Nicole Loraux LES EXPÉRIENCES DE TIRÉSIAS le feminin et l’homme grec Paris: Gallimard, 1989 introdução O operador feminino Este não é um livro sobre as mulheres, ainda que nele se fale, freqüentemente, de mulheres gregas – e, isso, bem antes dos últimos capítulos, consagrados ao estudo de algumas figuras femininas paradoxais. Este é um livro sobre o homem, ou sobre o feminino. E eis que já preciso me explicar quanto a este ou: o que farei – o que passo a fazer, após certas precisões. «A pólis são os homens»: se esse topos, tantas vezes repetido, está certo – se, portanto, a pólis grega realmente equivale ao grupo de seus homens viris (ándres) –, então os modernos historiadores da Antigüidade (que, quanto a eles, preferem falar em «clube de homens») se sentem autorizados a inverter a proposição, e caracterizar a pólis, sobretudo quando ela é democrática 1 , e o político, quando está mais próximo da forma através da qual os gregos o «inventaram», pela «exclusão das mulheres». Fórmula abrupta, que se poderia modular – seria, inclusive, forçoso fazê- lo, apesar da abundância de comentários que suscitou – mas que considerarei como suficientemente exata, desde que nossa atenção se 1 Sabe-se que a exclusão é mais radical em Atenas do que em Esparta. Que essa exclusão seja igualmente em outras épocas «um elemento estrutural da democracia» é o que Geneviève Fraisse demonstra (Musa da razão. A democracia exclusiva e a diferença dos sexos. Aix-en-Provence: Alinea, 1989, p. 199. Ver também a p. 14, a respeito de Sylvain Maréchal, redator do Manifesto dos Iguais do babouvismo). Cf. ainda «La peur et la confusion entre les sexes», ibid, p. 197.

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Nicole LorauxLES EXPÉRIENCES DE TIRÉSIAS

le feminin et l’homme grecParis: Gallimard, 1989

introdução

O operador feminino

Este não é um livro sobre as mulheres, ainda que nele se fale, freqüentemente,

de mulheres gregas – e, isso, bem antes dos últimos capítulos, consagrados ao estudo

de algumas figuras femininas paradoxais.

Este é um livro sobre o homem, ou sobre o feminino.

E eis que já preciso me explicar quanto a este ou: o que farei – o que passo a

fazer, após certas precisões.

«A pólis são os homens»: se esse topos, tantas vezes repetido, está certo – se,

portanto, a pólis grega realmente equivale ao grupo de seus homens viris (ándres) –,

então os modernos historiadores da Antigüidade (que, quanto a eles, preferem falar

em «clube de homens») se sentem autorizados a inverter a proposição, e caracterizar

a pólis, sobretudo quando ela é democrática1, e o político, quando está mais próximo

da forma através da qual os gregos o «inventaram», pela «exclusão das mulheres».

Fórmula abrupta, que se poderia modular – seria, inclusive, forçoso fazê-lo, apesar da

abundância de comentários que suscitou – mas que considerarei como

suficientemente exata, desde que nossa atenção se volte, menos para a realidade

institucional da pólis, do que para as representações que dão ao político seu

fundamento. Assim, trata-se, de fato,

1 Sabe-se que a exclusão é mais radical em Atenas do que em Esparta. Que essa exclusão seja igualmente em outras épocas «um elemento estrutural da democracia» é o que Geneviève Fraisse demonstra (Musa da razão. A democracia exclusiva e a diferença dos sexos. Aix-en-Provence: Alinea, 1989, p. 199. Ver também a p. 14, a respeito de Sylvain Maréchal, redator do Manifesto dos Iguais do babouvismo). Cf. ainda «La peur et la confusion entre les sexes», ibid, p. 197.

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do feminino, e não de mulheres. Do feminino, na medida em que o político grego (e,

mais geralmente, o político?) – eis nossa hipótese – se constitui sobre uma negação: a

negação reiterada e, a cada vez, (re)fundadora, dos benefícios que tiraria o homem

em cultivar dentro de si uma parte feminina. Seria decorrente do «medo da confusão

entre os sexos»? Desejo de separação sem retorno, para melhor atribuir ao anér a

coerência pura de um modelo? Pois a cidadania se diz, habitualmente, sob o modo da

andreía, da virilidade como nome da coragem e, para melhor se atacarem, os

adversários políticos do século IV antes de nossa era tratar-se-ão, mais de uma vez,

um ao outro, de «mulher» – veja-se, por exemplo, as amabilidades trocadas entre

Ésquino e Demóstenes.

Mas, muitas são as evidências que dissimulam, sob o óbvio, questões

precocemente encerradas. Por trás da exaltação do anér, eu decifro a preocupação

em definir o homem-cidadão por meio de uma virilidade que nada de feminino poderia

macular. E, nessa preocupação, vejo o esforço durável do político, para colocar à

margem uma tradição adversa ou, ao menos, outra. Outra tradição, igualmente grega;

e que, da epopéia homérica à legenda heróica, postula que um homem digno deste

nome é mais viril quando abriga dentro de si a feminilidade.

Do cidadão a seu outro, a seus outros, há, sem dúvida, mais de um

discriminante. Mas, na medida em que não se aceita a oposição entre o mesmo e a

alteridade – ainda que, esta, qualificada de «radical» – como a última palavra da

reflexão dos gregos (afinal, Platão sabia, melhor do que ninguém, que o Mesmo

participa do outro), é impossível não perceber que o feminino é o mais rico dos

discriminantes, operador que, por excelência, permite pensar a identidade como

virtualmente trabalhada pelo outro. O que significa que, quando se é um homem

grego, quando se lê os gregos, se deve proceder a operações de pensamento bem

mais complexas do que a verificação repetitiva de um quadro de categorias

antitéticas.

Sem mais tardar, um exemplo. Seja o Sócrates de Aristófanes, às voltas com o

rude Estrepsíades, que deseja ser seu discípulo. A título de primeira lição, o sábio

propõe um exercício sobre os gêneros gramaticais e a forma, masculina ou feminina,

das palavras, na medida em que ela se adequa – ou deve se adequar – à coisa

designada. A questão trata do masculino, a palavra examinada é alektrúon, nome do

galo e, como tal, citada por Estrepsíades na rubrica dos masculinos. Sócrates, então,

exclama: «Vês o que te sucede? A fêmea, tu a chamas “galo”, exatamente como o

macho, já que dizes alektrúon, em um caso, assim como no outro». E Estrepsíades,

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estarrecido, descobre que, para designar a «fêmea», seria preciso recorrer a

alektrúaina, que Sócrates acaba de forjar para as necessidades da causa2. Sem

dúvida, o espectador ateniense devia rir alto e em bom tom; mas pode-se desconfiar

que risse menos da estultice de Estrepsíades do que do absurdo de um filósofo querer

atribuir um feminino à palavra galo. Pois há, no mundo animal, muitos nomes de

forma masculina que, munidos do artigo feminino, podem designar uma fêmea: assim,

kúon, nome do cão, ao qual estão associados esses valores tão negativos que são os

da cadela3; e Estrepsíades havia, justamente, mencionado kúon, em sua lista de

masculinos. No entanto, quanto ao galo, da mesma forma que o carneiro, o bode e o

touro, machos definitivamente designados no masculino, não poderia haver forma

feminina. Ora, Sócrates desprezou kúon, que admite, efetivamente, uma separação

entre o gênero da palavra e o sexo do animal, e escolheu alektrúon, concedendo,

assim, ao galo, uma “gala” – o que implica desfazer a idéia de que um galo é um galo.

Sem nenhuma dúvida, Aristófanes quer fazer o público ateniense rir às custas de um

sábio tão insensato, e a receita é bastante boa. Mas a análise que, buscando maior

compreensão, ganhar certo recuo, decerto adivinhará, sob o burlesco, uma questão

teórica de dimensão inteiramente diferente: o debate autenticamente socrático que,

até os limites do impossível, desdobra o feminino sobre o masculino. Platão,

certamente, não se esqueceria…

É bem verdade que, no que tange ao discurso grego sobre a diferença dos

sexos, é sempre possível contentar-se com idéias bem nítidas. Quem teme a

ambivalência verá, na passagem das Nuvens, uma simples brincadeira do cômico.

Assim, freqüentemente, as análises só fazem comprovar que o esquema de oposições

funciona sem anomalias. E, de fato, nada impede – como o demonstram todos os

textos que se limitam a reafirmar, pura e simplesmente, a oposição – que se sustente

que os gregos sabiam manter, até o fim, a divisão entre os sexos, sobretudo quando

faziam do sexo, como se afirmou, «não somente… um órgão desempenhando uma

função determinada, mas, também, um signo, indicando qual o papel (quais os papéis)

2 Aristófanes. As Nuvens, 659-666: note-se, aliás, que o galo só figura nessa lista por uma bobeada de Strepsíades, que deveria fornecer exemplos de quadrúpedes; o galo é bípede, o que o aproxima ainda mais do homem. Alektrúaina é uma invenção de cômico, tanto quanto he alektrúon, que pode ser encontrado entre os poetas cômicos, ou alektorís. Esses empregos obedecem sempre a um projeto de burlesco, e é portanto pouco sensato afirmar que alektrúon é «empregado também no feminino, no sentido de "galinha" (Pierre Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue grecque – Histoire des mots. Paris: Klincksieck, 1968, s.v. aléxo). Aléktor, o «defensor», o «combativo» serviu «como uma espécie de apelido para designar o galo» (Chantraine, ibid.).3 Ver infra, p. 239.

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que cabe, em um sistema determinado, ao indivíduo que dele é provido»4. Chame-se o

sistema de «sociedade», e o caminho estará aberto para um investimento total e

imediato do sexual, percebido em sua dimensão fisiológica, no social. Foucault não

está muito longe disto, com seu «princípio de isomorfismo entre relação sexual e

relação social», do qual faz a chave do comportamento sexual dos antigos gregos5;

mas o maior alívio é o dos antropólogos da Grécia, a quem os papéis sociais vêm,

bastante oportunamente, liberar de qualquer preocupação em relação ao sexo como

uma terra incógnita. Basta recobrir a diferença dos sexos com a divisão dos papéis:

uma vez realizado o gesto, tudo estará – é o que se afirma – esclarecido. Talvez até

em demasia.

Pois, à força de separar, de repartir os lugares como convém, o pesquisador

sempre encontrará, até mesmo no pensamento biológico dos gregos, a dominância do

masculino – bastando, para isto, escolher bem suas fontes. E, assim, é possível que

não mais lhe surpreenda que as mulheres, que «deveriam ser mais secas do que os

homens»6, sejam frias e úmidas – como acontece a uma africanista que, raciocinando

a partir de seu terreno de estudos, reconstruiu aí a lógica que pretende que o macho

permaneça incontestado em seu corpo quente e seco; mas o helenista, imerso nas

oposições canônicas, sabe que, para os gregos, o macho é quente, e dedica-se, a cada

leitura, a verificá-lo. E assim, também, na discussão sobre a existência de uma

semente feminina, Aristóteles, seguindo o Apolo das Eumênides, que recusa à mulher

qualquer atividade na concepção, terá sempre, como porta-voz dos «gregos», a última

palavra sobre os médicos hipocráticos, que distinguem a participação do masculino e

do feminino7. E, no capítulo dos comportamentos sexuais na sociedade, procurar-se-á,

conforme o caso, estudar o domínio que o sujeito macho exerce sobre si mesmo e

4 Luc Brisson, «Neutrum utrumque. La bisexualité dans l’Antiquité gréco-romaine», in L’Androgyne. Les cahiers de l’hermétisme. Paris: Albin Michel, 1886, p. 32 (sobre sexus, derivando da raiz *sec-, de onde seco, «cortar, separar, dividir»); a necessidade de estabelecer uma boa distância entre os sexos: p. 33-35.5 Michel Foucault, Histoire de la sexualité. 2 – L’usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984, p. 237.6 Françoise Héritier-Augé, «Le sang du guerrier et le sang des femmes. Notes anthropologiques sur le rapport des sexes», Cahiers du GRIF, 29 (hiver 1984-1985: L’Africaine. Sexes et signes), p. 13. O «calor» do homem: ver infra.7 Ver Geoffrey Lloyd, Science, Folklore and Ideology. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 58-111, e, quanto à declaração de Apolo, Loraux, L’invention d’Athènes. Histoire de l’oraison funèbre dans la «cité classique». Paris-La Haye: Éditions de l’EHESS/Mouton, 1981, p. 129 e 144.

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sobre as «práticas de si», ou denunciar a problemática «misoginia» dos gregos8: as

interpretações divergem, mas a dominância é sempre assinalada, no mesmo lugar.

Assim, dando-se a separação por definitivamente estabelecida, o que se ganha

é algo como uma evidência, por exclusão da dificuldade. Mas corre-se um risco,

intelectual, de tomar ao pé da letra os discursos mais edificantes – como o

Econômico, de Xenofontes, que, instalando cada sexo devidamente em seu posto,

inspira tantos textos sobre a mulher grega, ou sobre o anér9. Mas, na medida em que

nos fixamos sobre o terreno da separação, até mesmo os textos menos ideológicos –

como a Ilíada, ou as gestas heróicas – admitem leitura a partir do drástico esquema

de papéis sociais. Designa-se, então, o «indivíduo heróico» pelo nome de Aquiles –

sem contudo conceder a esse indivíduo paradigmático as lágrimas que de fato verte o

herói da Ilíada, ou, quando do anúncio da morte de Patrocles, o irresistível desespero

que, não fôra a intervenção de um de seus companheiros, o teria conduzido a cortar a

própria garganta. E atribui-se ao herói épico a «bela morte» abstrata de todos os

cidadãos-soldados atenienses – privados de qualquer corporeidade, pois que o corpo

não era mais do que um empréstimo feito pela pólis – ainda que, sobre o corpo morto

do campeão idilíaco, tudo seja beleza. Enfim, se é certo, como afirmava Jean-Pierre

Vernant recentemente, que o indivíduo heróico confere uma eminente solidez aos

valores sociais que ele sublima em sua morte10, como pode Aquiles ser, realmente,

considerado como o modelo, ele que, por si mesmo, é tão desprovido desta solidez?

Na verdade, a epopéia jamais estabelece distinções e, isso, até o fim:

masculino e feminino se apresentam aí como dois determinantes essenciais, que

repartem entre si a dominância e que são, no entanto, inseparáveis. Para verificá-lo,

basta reparar tudo que, secretamente, assemelha Aquiles à Helena ou, então, atentar

para Andrômaca, «mulher ideal da Ilíada», mas notavelmente dotada de um nome de

8 «Práticas de si»: Michel Foucault, Histoire de la sexualité… op. cit., 184 p. 18. Ver também p. 64: «questão de medida e de controle… e não de interdito ou permissão»). A misoginia: quem pretende denunciá-la vai direto em Aristóteles, para sublinhar seus «preconceitos» (Said, 1982: 96) Ver também Sissa, em S. Campese, P. Manuli, G. Sissa, Madre Materia. Sociologia e biologia della donna greca. Turim: Boringhieri, 1983, p. 83-145 e o artigo bastante sutil de S. Georgoudi, «Le masculin, le féminin, le neutre», a ser publicado em 1990 em Arethusa.9 Em último lugar, Michel Foucault, Histoire de la sexualité… op. cit., p. 167-183. Lembremos, tal como o faz Suzanne Saïd («Féminin, femme et femelle dans les grands traités biologiques d’Aristote», in E. Lévy (éd.), La femme dans les sociétés antiques. Actes des colloques de Strasbourg (maio de 1980 e março de 1981). Strasbourg, 1982, p. 99), que no Econômico, Xenofontes «define a mulher unicamente em termos negativos».10 Jean-Pierre Vernant, L’individu, la mort, l’amour. Soi-même et l’autre en Grèce ancienne. Paris: Gallimard, 1989, p. 217.

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Amazona e que sofrerá, em seu luto, como morre um guerreiro11. O que relembra as

«contínuas trocas» que, da Índia védica à Grécia, a tradição indo-européia mantém

«na religião, como na legenda, entre o domínio da guerra e o da feminilidade»12: dos

ornamentos femininos de Arjuna às túnicas de Héracles, ou à «pele macia» dos

guerreiros da Ilíada.

Mas chega o dia em que, para tentar superar o seu objeto – e, portanto, ao

adotar certo distanciamento – o historiador da «pólis clássica» é obrigado a tomar

outro rumo, para aquém ou para além, nem que seja somente para poder, no caso de

a ele retornar, introduzir um pouco mais de jogo nas peças bem azeitadas do sistema.

Minha opção, se cabe dizer, foi de retornar ao universo da epopéia clássica. Após

estudar a oração fúnebre como gênero cívico onde ándres e andreía coincidem, já que

esta coincidência é um dever para com a pólis e, portanto, ao concluir uma reflexão

sobre as operações de pensamento às quais procede o autóctone, na pólis de Atenas,

quanto à exclusão das mulheres, a volta à Ilíada (uma vez por ano, conforme o

conselho de Dumézil) – Ilíada onde o guerreiro digno do nome anér conhece,

inevitavelmente, o medo, treme, chora e se faz tratar de mulher sem perder a

virilidade13 – convenceu-me da necessidade, para os que se interessam pelas

formulações gregas da diferença dos sexos, de submetê-las ao registro da troca.

Todas as trocas entre os sexos, e não somente as que caracterizam uma inversão –

onde, no final, tudo tornará a seu lugar, para maior glória da pólis (voltarei ao tema) –

nem tampouco apenas aquelas que misturam os opostos, confundindo as fronteiras.

Mistura, inversão: dois procedimentos que não esgotam, longe de lá, o registro

grego da troca entre os sexos.

Falemos de mistura. É sobre o terreno de uma definição estritamente corporal

da bissexualidade que se encontram figuras incertas, mistas de virilidade e de

feminilidade; note-se – o que não é destituído de interesse – que essa definição tanto é

enunciada no campo da medicina, como fruto da observação, quanto postulada nas

ficções da mitologia. Em Hipócrates, por exemplo: masculinas são as mulheres

11 David Bouvier, «Mourir près des fontaines de Troie. Remarques sur le problème de la toilette funéraire d’Hector dans l’Iliade», Euphrosyne, 15 (11987), p. 18-19, 20 e seg. (desenvolvendo uma sugestão de Segal 1971)12 F. Vian, Les origines de Thèbes. Paris: Klincksieck, 1963, p. 163. Túnicas de Héracles: ver infra, cap. 7. Pele macia: ver infra.13 Medo e tremor: ver infra, cap. 4; nos tratados biológicos de Aristóteles, o medo sempre deve estar do lado da fêmea (Suzanne Saïd, «Féminin, femme et femelle…», op. cit., p. 96). Choro: Hélène Monsacré, Les larmes d’Achille. L’héros, la femme et la souffrance dans la poésie d’Homère. Paris: Albin Michel, 1984. Injúrias: Laura Slatkin, «Les amis mortels. A propos des insultes dans les combats de l’Iliade», L’Écrit du temps, 19 (1988: Négations).

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estéreis, enquanto que os homens estéreis apresentam traços de feminilidade.

Hipócrates, ainda: existe – tudo depende das modalidades da mistura das sementes

na concepção – homens que são puros ándres, ándres ainda viris (andreîoi) em suas

almas, mas cujos corpos não têm a força dos primeiros, e andrógunoi (homens-

mulheres); assim como, do lado das mulheres, há as mais fêmeas e as mais bem

constituídas, outras que já são mais hábeis (thrasúterai), e aquelas que, por sua

audácia, são denominadas andreîai, as «viris». Em seguida, leia-se Platão, legiferando

sobre sexualidade a partir de uma perspectiva cívica em que é preciso, custe o que

custe, separar, e buscando preservar os cidadãos dos amores desregrados, «por

crianças, rapazes e moças, assim como pelas mulheres homens e pelos homens

mulheres (gunaikôn andrôn kaì andrôn gunaikôn)14. Na mitologia, encontra-se o

Andrógino primordial, o Zeus órfico, ou Hermafrodita, dos poetas e dos escultores,

todas estas figuras que os modernos registram na categoria da «bissexualidade».

Uma bissexualidade, sem dúvida, imaginada, mas sempre contemplada apenas do

ponto de vista do corpo – o que, para começar, já limita a noção – e definida como

«possessão de dois sexos por um mesmo ser», ou como uma «acumulação de

sexos»15.

Não há dúvida de que, através dessas figuras e de outras ainda, os gregos

tentaram «pensar o corpo sexuado dos mortais», em uma «anatomia do impossível»

que produz unidades «autárquicas»16. Mas também é bastante provável que,

encerradas como estão em si mesmas, tais figuras só conduzam a um «cortejo de

limitações», imobilizando, ao mesmo tempo, o pensamento, em uma visão medusada.

É possível que só se possa ver o corpo à condição de não nos limitarmos ao corpo. Eu

lanço a hipótese de que os gregos, que imaginaram esses corpos bloqueados, saídos

da mistura e do curto-circuito, também tenham compreendido que um duplo registro

– como, por exemplo, o da metáfora – servia mais ao pensamento do que aquele, ao

mesmo tempo muito disparatado e muito homogêneo, da monstruosidade. E, assim,

apostemos que foi nessa escola que Freud, a partir da «diferença anatômica entre os

sexos», teorizou uma sexualidade «ampliada» ao psiquismo, e uma bissexualidade ao

14 1) Hipócrates, Dos ares, das águas, dos lugares, com as observações de A. Ballabriga, «Les eunuques scythes et leurs femmes. Stérelité des femmes et impussance des hommes en Scythie selon le traité hippocratique Des airs» in: Métis, 1, 1 (1986), p. 121-138; 2) Hipócrates, Do regime, 27-29; 3) Platão, Leis, VIII, 836 b 1.15 Ver, em geral, Luc Brisson «Neutrum…», op. cit. (p. 58: «possessão…»); Maurice Olender 1985, p. 45: (o «cúmulo»); I. Chirassi Colombo, «L’inganno di Afrodite», in I labirinti, op. cit., p. 111. 16 Olender, «Aspects de Baubô. Textes et contextes antiques», Revue de l’Histoire des Religions, 202, 1 (1985), p. 51-55; todas as citações são retiradas desse estudo, de cujas conclusões eu compartilho.

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mesmo tempo generalizada e constitutiva do gênero humano, «de tal forma que o

conteúdo das construções teóricas da masculinidade pura e da feminilidade pura

permaneça incerto17.

A mistura era uma questão grega. É debaixo da categoria de inversão que os

modernos interpretam a troca entre os sexos, situando sua realização em ritos sociais

que são as festas religiosas e as práticas iniciáticas: festa argiana das hubristiká,

onde homens e mulheres trocam suas vestimentas; ocasião em que os efebos, na

véspera de sua promoção à condição de anér, vestem-se com indumentárias

femininas e dramatizam, assumindo por um tempo a pele de mulher, a passagem para

a plena virilidade; costumes espartanos do casamento, onde a jovem esposa,

sacrificando sua cabeleira, se masculiniza para acolher o esposo, que, assim,

lamentará menos a volta imediata à sociedade dos homens: tais são os exemplos mais

correntemente invocados pelos adeptos da interpretação iniciática. Observe-se que a

noção de inversão é reconfortante, na medida em que não introduz nenhuma brecha

na repartição binária das categorias gregas: uma vez que se procedeu a essas

práticas sempre tradicionais, a distribuição canônica se refaz, intocada, e a ordem

cívica se reafirma ao acomodar, no interior de seu funcionamento regulado, inversões

provisórias, que em nada ameaçam seus fundamentos. Mas as dificuldades teóricas

se fazem evidentes, quando se procura generalizar a inversão como única figura do

imaginário grego e, sob a ameaça de uma extrema simplificação18, aplica-se esta

chave de leitura aos textos. E como seria possível tudo unificar através de uma «lei de

inversão simétrica» quando, nesses ritos, a inversão é sobretudo marcada por uma

dissimetria essencial, que só beneficia os homens?19

É, pois, preciso acompanhar Froma Zeitlin, que, para deslocar essa figura tão

mecânica, analisa o travestismo no seio de gêneros literários tradicionais do teatro

grego, em plena época clássica, e no espaço da pólis. Tragédia, comédia: aí o

travestismo é central, porque, por definição, os papéis femininos são representados

por homens; e, também, porque a intriga pode introduzir o travestismo como recurso

17 «Ampliar o conceito de sexualidade»: prefácio de Freud à quarta edição (1920) dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1991, onde Freud afirma que «a sexualidade ampliada da psicanálise aproxima-se do Eros divino de Platão». Bissexualidade: «Quelques conséquences psychiques de la différence anatomique entre les sexes» (1925), em La Vie sexuelle. Paris: PUF, 1969, p. 131-132.18 Sobre o «perigo da simplificação» que reside na estrita aplicação de uma lógica da polaridade, e acerca de uma outra série de oposições (jovem/adulto, selvageria/cultura): Stella Georgoudi, «Les jeunes et le monde animal: éléments du discours grec sur la jeunesse», in Historicité de l’enfance et de la jeunesse, Actes du colloque international, Athènes, 1986.19 Froma Zeitlin, «Playing the Other: Theater, Theatrically and the Feminine in Greek Drama», Representations, 11 (1985), p. 85

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da ação – só que, nesses casos, a volta atrás não está assegurada (as trocas

pretensamente provisórias acabam mal na tragédia e, na comédia, só beneficiam as

mulheres, sendo sempre possível imputar-lhes o registro de meta-teatro: como não

refletir sobre o jogo do real e da ficção quando um ator, assumindo um papel

feminino, deve representar uma mulher que se disfarça em um homem?). No teatro

de Atenas, são certamente os ándres que fazem tudo: representar, escutar, julgar.

Mas, através da vestimenta feminina que tal cidadão ator carrega, nos acessórios

bastante marcados que, assim como a longa veste tradicional, constituem o costume

teatral, pode-se identificar a clara manifestação da relação que o teatro estabelece

com a feminilidade, como tantos indícios servem para demonstrar, a começar pela

«androginia» do patrono, Dionísio20. E, não restam dúvidas, são ainda os homens que

retiram daí todo prazer e benefício, em razão deste «paradoxo final»: «que o teatro

vise o feminino para imaginar um modelo mais completo do eu masculino».

Interrompo aqui a citação para observar que também se pode, igualmente,

valorizar a importância do gesto que introduz um enclave feminino ao lado da

virilidade: o rígido esquema de oposições acaba por perturbar-se um pouco. É claro

que o homem permanece sendo o destinatário das práticas sociais e das operações de

pensamento, mas, durante a representação dramática, o campo da feminilidade

revelou-se essencial, e foi o feminino que veio modular, e sustentar a necessária

virilidade dos ándres. Agora posso reabrir as aspas e concordar com a idéia de que

«representar o outro» é o que abre a identidade masculino do cidadão «ao terror e à

piedade, emoções habitualmente banidas»21.

Deixemos, por hora, o teatro. Mas voltaremos ainda a encontrar esse

testemunho essencial como o lugar privilegiado de um lógos que, nos tempos áureos

da pólis clássica e na legitimidade cívica, fala uma língua que não é a língua política,

com sua intocável taxionomia de papéis e de lugares.

Talvez seja a hora de enunciar claramente o que o leitor já terá adivinhado, ao

longo deste preâmbulo, no qual pretendi enumerar as vias que não seguiria,

fornecendo as razões pelas quais escolhi outras, ainda a desbastartar: minha

preocupação será o feminino como o objeto mais desejado pelo homem grego.

Sem mais tardar, investiguemos certos procedimentos que visam à

apropriação, pelo pensamento, de algumas das grandes experiências da feminilidade,

das quais sonha-se fazer beneficiar – sobretudo? – o corpo. O que significa dizer que

20 ibid.21 ibid, p. 80. Hipóteses avizinhadas em N. Loraux, Façons tragiques de tuer une femme. Paris: Hachette, 1985, p. 98-102.

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os procedimentos estudados serão da ordem da incorporação, do englobamento, em

uma palavra, da lógica da inclusão. E, isso, não só por se tratar de interiorizar o

feminino, mas também porque, para pensar de maneira global, a inclusão é a

operação teórica que, por excelência, permite superar os esquemas de oposição.

Assim, em um outro terreno e a respeito de um objeto completamente diferente,

Charles Malamoud, estudando a relação entre o vilarejo e a floresta na prática e no

pensamento védico, reflete sobre a função do sacrifício, que não é de «separar

definitivamente o vilarejo e tudo que ele não é, mas de distinguir»; «privilegiar os

habitantes do vilarejo, para que eles possam mostrar sua superioridade sobre o

mundo da floresta que o rodeia, sua aptidão… a captar, a englobar a floresta», «mas

também a propiciá-la, abrindo-lhe um espaço no interior do vilarejo»22. Coloquemos o

anér no lugar do vilarejo, e façamos do feminino o substituto da floresta: eis-nos do

centro da questão. E quando Malamoud baseia o conjunto do procedimento sobre o

caráter «intolerável» da oposição, que leva a «ordem englobante» a integrar em si a

outra, «mesmo sofrendo sua influência, adotando parte de sua linguagem»23, como

exprimir melhor senão através destas palavras que, durante toda a pesquisa, acredito

ter identificado associadas às operações que o pensamento dos homens gregos

realizava para fissurar uma oposição constituinte de seu ser? Oposição por certo

proveitosa, já que ela lhe assegura a dominância, mas que, cabe ainda postular, pode

ser insuportável, ao reservar ao outro sexo, acredita-se, a intensidade do prazer e da

dor.

No brahamanismo, tal como acredita Malamoud, é preciso, pela grandeza do

dharma, integrar a essência da floresta no vilarejo. Eu gostaria de convencer o leitor

de que os gregos, ainda que tão adaptados à ordem cívica, construíram muitos

fantasmas sobre o que o feminino traz ao anér.

Idealmente, o anér exemplar é o modelo da virilidade. Mas, quando o único

sentido para andreía é «coragem», de tanto se mostrar exemplar, o homem-cidadão

acaba se tornando como assexuado. Para usar a linguagem da escola de Praga, dir-se-

ia que, na dupla homem-mulher, ele é o elemento não marcado. Digamos, ao menos,

que o modelo de homem finalmente desencarnado que a oração fúnebre ateniense

exalta não possui corpo. Simples suporte de condutas cívicas, sôma pertencia à pólis,

e a morte do cidadão não é mais do que pagamento dessa dívida.

22 «Village et forêt dans l’idéologie de l’Inde brahmanique», em Charles Malamoud, Cuire le monde. Rite et pensée dans l’Inde ancienne. Paris: La Découverte, 1989, p. 99, 101 (eu sublinho).23 «La brique percée. Sur le jeu du vide et du plein dans l’Inde brahmanique», em Ch. Malamoud, Cuire le monde…, op. cit., p. 91.

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Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias

Por força de não encontrar jamais o outro, o homem masculino – esse sujeito

do político – não tem corpo. O corpo – inclusive o ser sexuado – estaria, inteiramente,

do lado das mulheres, como se só houvesse «um sexo, o feminino»? Como se a mulher

fosse «tudo do sexo e o homem tudo do gênero» (o homem é humano, a mulher seria

a representação mesmo da diferença dos sexos»): e é exatamente isso que,

estonteados pela catástrofe, os mortais, separando-se dos deuses, viram aparecer,

sob a forma de uma jovem noiva chamada Pandora24.

Distingo aí pelo menos dois registros – o prazer e a dor – onde essas

interrogações, recentemente formuladas acerca de uma época ainda próxima de

nós25, encontram verificação na Grécia antiga.

Seria o caso de falar em prazer no feminino? Não é certamente o que

aprendemos com os estudos consagrados ao discurso grego dominante na matéria.

Toda uma construção tende, de forma bastante oficial, nas cidades-Estado, a provar

que o gozo sexual é, por direito, a prerrogativa dos machos, as mulheres estando

votadas a dar a luz e a se preparar para tal, devendo se contentar com a parte

cuidadosamente limitada que, no casamento, a austera Hera concede, a contragosto,

a Afrodite26. Mas não é esta versão do problema que o mito de Tirésias apresenta.

Como se sabe, antes de ser o adivinho cuja história acaba por se cruzar com o

caminho de Édipo, Tirésias – é uma das versões do mito – foi mulher. Ou, ao menos,

durante algum tempo, por ter batido, ferido ou morto (em todo caso, por ter

separado) serpentes que copulavam, ele viveu num corpo de mulher. É claro que,

atacando, de novo, um casal de serpentes, Tirésias um dia voltou a ser homem. Mas,

desta passagem pela feminilidade, sobrou-lhe esta experiência dos dois sexos (dos

dois «caráteres», das duas «naturezas», dos dois «prazeres», ou das duas «formas»)

dos quais, de um texto a outro, os autores gregos e latinos falam à exaustão27. Ora, eis

o que sucedeu:

24 Froma Zeitlin, «The Power of Aphrodite: Eros and the Boundaries of the Self in the Hippolytus», in P. Burian (éd), Directions in Euripidean Criticism. Durham, NC: Duke University Press, 1985, p. 70-71. G. Fraisse, Musa da razão…, op. cit., p.82 (citações). Homem-gênero, mulher-sexo: ver Loraux 1981 b p. 80-81.25 Mas, em se tratando da diferença dos sexos e do feminino, é preciso – ao menos no que toca ao Ocidente – é preciso adotar uma bastante longa duração.26 Marcel Detienne, Les jardins d’Adonis. Paris: Gallimard, 1972. Como, aliás, observa Ileana Chirassi Colombo («L’inganno di Afrodite», in I labirinti dell’Eros. Florença: Libreria delle Donne, 1984, p. 111) Afrodite tranquiliza os homens «exibindo a certeza de que a dimensão do éros», quando se tem a sorte de ser homem, «era puramente masculina». 27 Experiência: peirâsthai, expertus esse; sexo: sexus; caráter: trópos; natureza: phúsis e natura; prazer: Vênus; forma: morphé.

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Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias

Um dia em que Zeus se querelava com Hera, sustentando que, no ato sexual, a mulher tinha muito mais prazer, enquanto Hera defendia o contrário, eles resolveram chamar Tirésias para colocar-lhe a questão, já que ele tinha feito a experiência de uma e outra condição. À questão que lhe é colocada, Tirésias responde que, se houvesse dez partes [de prazer], o homem gozaria de uma, e a mulher de nove.28

Isso desperta a cólera de Hera, guardiã da ortodoxia do casamento e furiosa

por ver assim revelado o pouco caso que, confrontadas a Afrodite, as mulheres lhe

dedicam. Para se vingar, ela cega Tirésias, mas Zeus, que se satisfez plenamente com

a resposta, o faz adivinho.

Mas como não é o mago que me interessa aqui, eu deixo de lado o fim dessa

história para me ater ao Tirésias que, por ter experimentado um e outro sexo, sabe o

que é o gozo feminino, a despeito das certezas oficiais. Protetora do casamento cívico,

Hera tinha toda razão de ficar furiosa: bastou esse homem que outrora fôra mulher,

para destruir a reconfortante construção que, colocando as esposas à margem do

prazer, reconduzia os ándres a uma virilidade sem desmentidos e sem surpresas.

Mas, tal como os cômicos atenienses (assim o Aristófanes em Lisístrata), o mítico

Tirésias sem dúvida pensava – ele o sabia por experiência própria – que, nos prazeres

da cama, as mulheres são excelentes «cavaleiras», menos passivas do que afirmam

todos aqueles que, da oposição entre atividade (sempre masculina) e passividade (das

mulheres), fazem o essencial do pensamento grego a respeito da sexualidade29.

Concedo muita importância ao Tirésias que, em uma outra versão, a do poeta

helenístico Calímaco, foi, ao mesmo tempo, tornado cego e adivinho por Atenas, por

haver infringido toda proibição ao admirar o corpo nu da deusa30. Decididamente, os

segredos do feminino são bem guardados e devem sê-lo: em um caso, como no outro,

os olhos mortos de Tirésias testemunham que ele já não tem mais necessidade de ver,

pois ele sabe.

É esse Tirésias que tomo por epônimo – e não o mediador generalizado ao qual

alguns querem reduzi-lo31. Colocando este livro sob o signo de Tirésias, não me

28 Flegon de Trales (=A1), na tradução de L. Brisson (Le mythe de Tirésias. Essai d’analyse structurale. Leyde: Brill, 1976), de cujo precioso dossiê lanço mão; a experiência de Tirésias: ver também A2 (Higino), A3 (Lactâncio), A4, A6 (Ovídio), A8 (Eustáquio), A11 e A13.29 Por exemplo, I. Chirassi Colombo, «L’inganno di Afrodite», in I labirinti, op. cit., , p. 110 (citando Foucault); Michel Foucault, Histoire de la sexualité… op. cit., p. 98-99) pensa que essa opinião é, para um grego, mais essencial do que a do masculino e feminino. Confesso não estar convencida disso.30 Ver infra, cap. 12.31 Luc Brisson, Le mythe de Tirésias, op. cit e «Neutrum…», op. cit., p. 57-59.

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Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias

escapa que, como paradigma do anér arrebatado pela feminilidade, se falará aqui

muito mais de Héracles, de suas vestes e de seu poderoso corpo atravessado de dores

agudas. Talvez fosse suficiente que, pelo menos uma vez, o feminino não estivesse

imediatamente associado ao sofrimento, que lhe é, de hábito, mais facilmente

concedido do que o gozo – mas, paciência! a dor terá também sua hora, em breve e

fartamente. Essa escolha obedece a uma outra razão, talvez mais «séria»,

seguramente mais teórica: pelo que experimentou, assim como por sua função

posterior de adivinho, Tirésias é a própria figura do saber. O canto XI da Odisséia

precisa que somente em seu caso Perséfone concedeu conservar após a morte as

faculdades intelectuais, o que lhe permite manter, em meio às sombras do

esquecimento, a posse memória e consciência; e estas qualidades são preciosas para

introduzir a estudos sobre o operador feminino. Pois trata-se menos de repertoriar

atos ou práticas efetivas, do que seguir o pensamento acerca da diferença dos sexos,

tal como ela atua nas operações intelectuais (seria o caso de dizer psíquicas?)

realizadas sobre o elemento do feminino.

Mais classicamente feminina do que o prazer, sugeríamos, é a dor. E, muito

em particular, a dor ao mesmo tempo aguda e imaginariamente próxima do prazer: a

do parto, que as mulheres devem conhecer para realizar socialmente a reprodução

que sua constituição e a pólis estão de acordo em reconhecer como o próprio de seu

sexo. É com essa dor penetrante (odúne), com o dilaceramento das entranhas (odís)

que sonha o homem grego, e não apenas, como se disse, como eu própria já afirmei,

em «dispensar as mulheres para ter filhos» – a menos que se entenda que só se pode

dispensar as mulheres por haver integrado a feminilidade. Pelo fato de sofrer como

uma mulher, até o viril Héracles realça em si sua virilidade. Claro que não sem

incoerência: a andreía exige a prova heróica da pena, e a mais viva pena pertence ao

leito, e não à guerra32… A conclusão se deduz por si só, supondo-se que um raciocínio

tenha sido realmente necessário para enunciá-lo.

Pela mesma ocasião, o anér se apropria de algo da maternidade. Na Grécia,

isso não se passa como em Roma, sobre o terreno do direito, onde «a palavra técnica

para dizer mãe como parturiente, parens, toma… o sentido contrário, de “pai”, ou

descendente em linha paterna»33, e a apropriação do feminino se opera

discretamente, sem que se vá até o ponto de formular enunciados tão delicados como

32 Ver infra, cap. 1 e 2.33 Yan Thomas, «Le "ventre". Corps maternel, droit paternel», Le genre humain, 14 (1986: La valeur), p. 213.

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Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias

o fantasma medieval nomeado «Jesus nossa mãe»34. De toda forma, Pausânias viu, em

Alifeira de Arcádia, um altar de Zeus Lekheátes (do parto), pois foi lá, contaram-lhe os

habitantes, que o deus soberano deu nascimento a Atenas35.

Famosas são as «maternidades» de Zeus, engolindo Métis para dar a luz à

deusa guerreira, ou para realizar a cosmogonia dos órficos36. É quase um apólogo, a

história hesiódica de Métis (sem maiúscula, mêtis é, habitualmente, o apanágio das

condutas femininas), engolida por Zeus que temia que ela desse a luz um filho mais

poderoso do que ele. Pois tudo vai na direção dos desejos do Pai: Zeus repete, embora

com maior sucesso, sobre Métis grávida, o gesto de seu pai Kronos que, habitado por

igual temor, devorava, calmamente, seus filhos, guardando-os em sua nedús (seu

ventre, mas a palavra também pode designar, e freqüentemente designa, a matriz)37.

Ao incorporar em si a mãe, Zeus evita o filho, substituído por uma filha inteiramente

devotada aos direitos do anér. Vale a pena delongar-se um pouco na gestação de

Zeus, muitas vezes representada pelos ceramistas atenienses: verifica-se, então, que

se, do ponto de vista de uma sexualidade limitada aos «atos», a penetração passa por

ser o «ato-modelo» aos olhos dos gregos38, é sob o registro feminino da completude de

um corpo fechado sobre a criança que ele carrega39 – no caso, o de Zeus, que

absorveu uma divindade feminina – que se imagina, na Grécia, a forma de evitar um

poder mais forte do que o de um deus forte.

Para verificá-lo, confronte-se, rapidamente, esta história com o relato védico

que descreve como Indra evitou o nascimento de um ser mais forte que ele, saído dos

amores do Sacrifício com a Palavra. Foi «esgueirando-se no abraço dos dois amantes»

que Indra, «fazendo-se embrião, penetra na matriz e ocupa seu lugar. Ao fim de um

ano, ele nasce e toma o cuidado de arrancar, ao nascer, a matriz que o envelopava».

Palavra não mais dará a luz. «Seu único filho – comenta Malamoud, que relata a

história que transcrevo – é esse embrião divino que a violentou subrepticiamente, e

34 Marie-Christine Pouchelle, «Le corps féminin et ses paradoxes: l’imaginaire de l’intériorité dans les écrits médicaux et religieux (XIIè-XIVè siècle), in La condición de la mujer en la Edad Media. Madrid: Ed. Universidad Complutense, 1986, p. 319-320.35 Pausânias, VIII, 26, 6. Sobre a raiz de lókhos e de lekhó, ver infra, p. 32-34.36 Marcel Detienne, «Zeus. L’Autre. Un problème de maïeutique», in Bonefloy 1981, p. 554; L. Brisson «Neutrum…», op. cit., p. 49-50.37 No tratado hipocrático Da arte (10, 1 e 3: 12, 1), nedús tem o sentido mais geral de «cavidade interna do corpo»; mas, entre o ventre e a matriz, o jogo de palavras é freqüente.38 Michel Foucault, Histoire de la sexualité… op. cit., p. 237.39 Giulia Sissa, Le corps virginal. La virginité féminine en Grèce ancienne. Paris: Vrin, 1987, p. 181-185.

Page 15: Nicole Loraux, O Operador feminino.

Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias

que escolheu renascer dela apenas para mutilá-la»40. O confronto é instrutivo:

certamente, não foi entre os gregos que se fantasmou a penetração (acompanhada

dessa mutilação que é como sua contrapartida brutal). O método de Zeus é mais

suave, ou mais sutil: ele engole e, como entidade feminina, Métis não existe mais,

senão nele e, em virtude de uma alquimia própria ao ventre divino, o filho temido

nascerá uma filha viril…

Ao analisar novamente esta história, a idéia não é, certamente, «enfrentar esse

deus masculino que usurpa o parto»41. À crítica de Marcel Detienne, contestando que

se possa falar, no caso, de «denegação da maternidade das mulheres» (o que se dá,

aceite-se ou não), responder-se-á que nunca é inútil compreender como se constrói

um fantasma, sobretudo quando o ator essencial é o pai dos deuses e dos homens. E o

parto masculino é um fantasma bem grego, ainda que o objetivo final não seja sempre

o de guardar (ou de se assegurar) o poder42. Ainda que não se constitua numa

«usurpação» em ato, esse fantasma implica, para quem escuta tal mito, em se

apropriar, como Zeus, de uma das manifestações mais reconhecidas da feminilidade,

para reforçar a virilidade, sem dúvida mais ameaçada do que poderia parecer.

No outro pólo do horizonte deste livro, gostaríamos de situar Platão e o uso

que faz da metáfora feminina da reprodução, com esse paradoxo que, deslocando a

reprodução para o lado da criatividade espiritual do filósofo, Platão faz da gravidez a

causa ou, ao menos, a preliminar obrigatória do amor. M. F. Burnyeat, que

identificou, com muita sagacidade, tal estranheza, a respeito de uma passagem do

Banquete, acrescenta que, nesse desenvolvimento e ainda em outros, a concepção

parece sempre já ter-se dado, sem outra origem a não ser ela própria, sem que

nenhuma união sexual metafórica a tenha prenunciado na alma43. Que Platão se

recuse a pensar no momento de conjunção entre masculino e feminino na alma do

filósofo é um fato bastante significativo, mas meu projeto não é, aqui, o de interpretar

esta ausência pela invocação da homossexualidade de Platão. Mais vale estudar – o

que será apenas sugerido pelas páginas seguintes – o uso bem pouco figurado da

palavra odís (nome dos partos, e não, como dizem todos os dicionários, da angústia)

40 «Lumières indiennes sur la séduction» in Ch. Malamoud, Cuire le monde…, op. cit., p. 177.41 Marcel Detienne, in G. Gissa e Marcel Detienne, La vie quotidienne des dieux grecs. Paris: Hachette, 1989, p. 236.42 Desse ponto de vista, o livro de R. Zapperi, L’homme enceit (Paris: PUF, 1983) parece em redutor.43 Page DuBois, Sowing the Body. Psychoanalysis and Ancient Representations of Women. Chicago: University of Chicago Press, 1988, p. 169-171; Miles F. Burnyeat, «Socratic Midwifery, Platonic Inspiration», Bulletin of the Institute of Classical Studies, 24 (1977), p. 8 (sobre O Banquete, 206 e) e p. 13.

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Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias

no Banquete e no Fedro; ou ainda, neste último diálogo, as condições através das

quais a alma sofre a entrada do germe e dá à luz, enfim, sob o efeito do desejo44:

melhor seria reler o Teeteto e interrogar as dores de parto estéreis do epônimo do

diálogo.

Ao menos, observe-se que Platão não é, nem o primeiro, nem o único pensador

grego que inverte assim a rede metafórica do feminino em favor do macho, e a seu

serviço – mesmo que somente ele o faça de uma maneira tão deliberadamente

sistemática. Por isso, hesito em deduzir, como já se fez, Aristóteles e a representação

da fêmea como macho defeituoso dessa operação platônica de «instalação

metonímica da mulher no filósofo»45. Mas é bem verdade que a estratégia platônica é

complicada: num perpétuo movimento de oscilação, ela se dedica, em certos textos, a

reabsorver o feminino no anér filosofante, enquanto que, em outros diálogos, o

esforço volta-se inteiramente para a tarefa de torcer o conjunto das representações

do político, inclusive a exclusão do feminino e a rigorosa separação dos sexos, em

benefício do homem filósofo. Não é, por certo, apenas uma coincidência, se essa

segunda operação acaba por se realizar integralmente no Fedon, diálogo sobre a

alma. Entretanto, que, na construção de um modelo masculino «puro», o paradigma

evocado seja o herói Héracles, sobremacho e misógino, mas bastante ligado ao

feminino, eis aí, sem dúvida, um volteio a mais nessa estratégia retorcida, como

procuraremos demonstrar46.

A operação, grega antes de ser ocidental, consistiria, finalmente, nesse

deslocamento através do qual, do corpo da mulher, o feminino passou à alma do

macho, aí sendo reabsorvido no pensamento? Se usamos o termo deslocamento e não

substituição47, é exatamente porque se trata de uma operação que podemos

reconstruir. Com ela, o homem ganha complexidade, enquanto a mulher perde

substância. E, de fato, muito embora as mulheres sejam célebres pela beleza de seus

corpos, o corpo das mulheres tem, na tradição poética grega, qualquer coisa de um

adunaton: da primeira mulher hesiódica, toda exterioridade, à deusa Atenas,

constituída por seus envelopes (péplos, armadura, égide), e cuja nudez incongruente

cega, por ser impensável, sem esquecer Helena, fantasmática em seu brilho. Às

figuras femininas, resta essa silhueta inatingível. Quanto a seu interior, em forma de

44 Ver Fedro, 251 d-e.45 P. DuBois, Sowing the Body…, op. cit., p. 183.46 Ver infra, cap. 8 e 9.47 Como o faz DuBois, Sowing the Body…, op. cit., p. 183 p. 178.

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cavidade, nedús nos dois sentidos, genérico e específico, do termo, ele já alimenta, e

alimentará sem nenhuma dificuldade os devaneios acerca da interioridade48.

Que seja. Mas afirmar, como alguns (algumas) o fazem, que assim a mulher é

esquecida e o homem está pronto para assumir uma posição de domínio inconteste,

seria desconhecer gravemente a natureza das operações psíquicas, que é exatamente

a de nunca se efetuarem impunemente: elas deixam uma marca, não ocorrem sem

deixar vestígios e acarretar perdas. Se o corpo mortal, no éros e na reprodução49, é

experimentado no feminino, e se a alma é vivida sob o modo do corpo é porque há,

indesalojavelmente, corpo na alma. E, há, portanto, na alma do filósofo, ainda que à

sua revelia, algo de mulher que, antes de encontrar repouso nas dores de parto das

quais também fala a República50, vagou, tal como Io grávida das obras de Zeus,

aguilhoada pelo moscardo que a persegue. Por mais que Platão proíba o teatro a seus

guardiães e proscreva qualquer imitação de uma mulher – sobretudo quando ela está

«doente, apaixonada, ou grávida»51, suas almas de filósofos já não se anteciparam a

eles, seguindo por esse caminho?

Já é tempo de deixar Platão, mas não sem antes observar que a definição da

pólis como «comunidade de prazer e de pena» («quando… todos os cidadãos se

regozijam ou se afligem, igualmente, com os mesmos acontecimentos») segue sem

transição o desenvolvimento sobre a comunidade de mulheres, que lhe serve de

fundamento52.

Da alma, voltemos, uma última vez, à pólis, para verificar que a estrita

separação entre feminino e masculino não encontra, na verdade, outro lugar, outras

fronteiras senão as do político. Ou, mais exatamente, as da ideologia do político. Pois,

na Grécia antiga, o político é indubitavelmente mais abrangente do que sugere o seu

discurso oficial, singularmente edificante, que fala do funcionamento irênico da pólis

dos ándres. Basta, no entanto, questionar levemente a pertinência real de tal

discurso53, para que se descubra que, do político, o conflito interior apresenta uma

48 M.-C. Pouchelle, «Le corps féminin et ses paradoxes: l’imaginaire de l’intériorité dans les écrits médicaux et religieux (XIIè-XIVè siècle), in La condición…, op. cit., p. 316, p. 319-321.49 I. Chirassi Colombo, «L’inganno di Afrodite», in I labirinti, op. cit., p. 115.50 República, VI, 490 b (légein odînos).51 República, III, 395 d-e (odínousan).52 República, V, 462 b (mesmo tema que em Eumênides, 9984-986). A comunidade de mulheres: 446-461. Observe-se que, a única diferença natural consistindo no fato de que o homem engendra e a mulher pare (445 e), mulheres e homens também dividem os mesmos trabalhos. Platão, mais complicado do que, em geral, seus adversários querem crer!53 Ver «Repolitiser la cité», in Revue L’Homme, Anthropologie: État des lieux. Paris: Navarin/Le Livre de Poche), 1986, p. 263-283 e N. Loraux, «Le lien de la division», Le Cahier du Collège

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Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias

definição senão adversa, ao menos igualmente essencial – quando, sob o nome de

stásis (sedição), ele é incessantemente recusado, rejeitado da pólis, em cujo centro

deveria encontrar seu lugar. Quando, em uma palavra, ele é negado. Emerge, assim, o

projeto de confrontar essas duas negações, a do conflito, e a do feminino (em cada

caso, o termo marcado do binômio) as duas operando a serviço dos homens e da paz

civil.

E, de fato, na medida em que a ordem cívica se rompe, surgem as mulheres.

Viris, como Clitemnestra, o «tirano» que encarna a única versão possível da

assimilação do masculino por uma mulher, sempre situada – seria surpresa? – junto à

ameaça da tomada de poder; em resumo, é o tempo da ginecocracia54. A menos que a

divisão, generalizada, não cinda a pólis em duas, a guerra civil alastrada: então,

através da brecha aberta na bela totalidade, as mulheres irrompem, freqüentemente

em grupo. Elas sobem aos telhados, se agitam em prol de uma facção, lançam pedras

e telhas sobre os inimigos. E o historiador grego que deve lhes conceder um lugar em

seu relato, interroga-se sobre a verdadeira natureza das mulheres55: hábil, audaciosa

como a das mulheres-homens do tratado Do regime? Ou acovardada, como deve ser a

fêmea, desde que a andreía pertence exclusivamente aos homens? Nos dois casos,

quando mulheres bem reais induzem a que se pare de fantasmar o feminino, para

tentar pensar a noção em meio a uma pólis em crise, é sobre o terreno do conflito que

cabe, sob a pressão da urgência, articular diferença dos sexos e político.

O que equivale a dizer que, entre a reprodução e o combate, entre o prazer e a

pena e uma coragem que não encontra denominação, o feminino é duplo, mas

também como que clivado. Complexo, para não dizer contraditório, como são os

operadores mais férteis. Operador do qual se espera que permita, ao mesmo tempo,

ganhar algum recuo em relação às taxionomias cívicas e articular o político com

aquilo sobre o qual o político não quer nem sequer ouvir falar .

Os treze capítulos do presente livro, em suas versões originais, foram,

inicialmente, concebidos entre 1977 e 1985, em torno do mesmo projeto, que o tempo

se encarregou de precisar, modificar e, mesmo, deslocar (sem que eu me

preocupasse em apagar sistematicamente todos os traços). Esses textos foram

international de Philosophie, 4 (1987), p. 101-124.54 Pierre Vidal-Naquet, «Esclavage et gynécocratie dans la tradition, le mythe, l’épopée», in Le chasseur noir. Formes de pensée, formes de société en Grèce ancienne. Paris-La Haye: Èd. de l’EHESS/Mouton, 1981, p. 267-288.55 Ver infra, cap. 13.

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Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias

escritos uns em decorrência dos outros e revelam uma pesquisa e muitas

interrogações abertas. Ora, do conjunto, quatro foram, numa primeira versão,

destinados a revistas de psicanálise, ou centradas sobre a psicanálise, enquanto que

os demais tocam implicitamente as questões que levanta a psicanálise. Sobre essa

referência tão deliberada eu tentarei, por fim, conceder alguns esclarecimentos.

Historiadores e antropólogos da Grécia evitam geralmente qualquer referência

à psicanálise em seus próprios trabalhos, e ainda que apresentem, cada um, muitas

razões para explicar essa prudente desconfiança, o argumento que aparece, a seus

olhos, como mais decisivo é o de que a noção de sexualidade tal qual «nós» a

conhecemos, não é grega. Apelam todos para Foucault, que, em seu último livro,

busca «desviar-se da evidência familiar» dessa «noção tão quotidiana, tão recente» e

que declara que os gregos não conheceram «uma noção assemelhada à da

sexualidade»56. Confesso que tais afirmações são, para mim, maiores ocasiões de

espanto do que de esclarecimento, pois, sem considerar a sexualidade como uma

invariante, vejo um invariante da sexualidade no fato de que, em todos os momentos

da história, ela se constituiu, em boa parte, dos pensamentos que cada homem ou

cada grupo estabeleceu acerca de seu ser sexuado. E, trabalhando sobre o homem

grego e o feminino, rapidamente levanta-se a hipótese de que, em grande parte de

sua reflexão, os gregos só pensavam (ou, ao menos, pensavam bastante) na diferença

sexual e nas maneiras de usá-la em proveito do homem, muito mais do que verificar

sem fim que, na oposição do ativo e do passivo, o homem está do lado do ativo – não

nos esqueçamos que uma das definições do cidadão é ser, alternadamente, aquele

que comanda e aquele que se comanda, sem que por isto, na segunda posição, o anér

se feminilize.

Acrescente-se que, se o político é tão freqüentemente considerado como o

ponto cego da psicanálise, não deixa de ser interessante, inversamente, investigar os

problemas da diferença sexual (que Freud decerto não inventou, embora tenha

inventado questões que permanecem decisivas para sua compreensão) coloca para o

político, desde sua presumida invenção pelos gregos. Ao adotar o feminino como

operador da diferença, não se tratava, no entanto, nem de aderir nem de atacar as

hipóteses freudianas sobre a sexualidade feminina, já que a pesquisa concernia, antes

de mais nada, o homem grego em sua relação com o outro. De forma que não se

invocou, em nenhum momento, a questão da inveja do pênis, mas, de maneira

recorrente, de uma inveja dos homens gregos que convém reconhecer por sua mais

56 M. Foucault, Histoire de la sexualité… op. cit., p. 43-44.

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justa designação, como «desejo de gravidez»57: o desejo de se emprenhar de

sensações penetrantes que, por sua intensidade tão feminina, deveriam,

precisamente, ser proibidas ao cidadão paradigmaticamente viril. Em outros termos,

por haver tentado compreender o que o áner, afirmado como sujeito do político, pode

fantasmar a respeito do feminino, talvez se tenha encontrado uma antiga versão da

reflexão sobre «essa catástrofe… de ser homem» da qual Lou Andréas-Salomé falava,

em suas cartas, a Freud58. O que não significa que eu tenha procurado verificar a

idéia de uma «realização» que levaria cada sexo «às fronteiras do outro» 59. Programa

que não deixa de ser fascinante: só que o historiador trabalha com o que tem às

mãos, e, na representação das mulheres gregas, o feminino, sendo cobiçado pelo

outro sexo, mostrou-se mais dividido – ou, no mínimo, menos constituído – do que se

poderia pensar, sem uma real abertura para o masculino. E como, aliás, poderia ser

diferente? Em um universo de representações à medida dos ándres, poder-se-ia

esperar outra coisa, além de um acesso subterrâneo ao discurso oficial, proclamado,

de uma ponta à outra, por um locutor genérico que fala em nome dos homens, se

dirigindo aos homens60?

Do ponto de vista do objeto, estes eram os limites compulsórios. Quanto aos

resultados, o leitor que avalie. Ao menos, no que tange ao método, concebi a

referência à psicanálise como um suplemento de liberdade. Menos como um

empréstimo de teses, ou como vontade de aplicá-las a qualquer preço, do que como

um convite à construção. Construção para satisfazer a pulsão de compreender e para

abordar o objeto em sua especificidade. Construi operações de pensamento gregas a

respeito da condição, indissociavelmente psíquica e corporal, de ser sexuado. Espero

ter, assim, discriminado a parte que cabe à história e a que cabe ao invariante.

É possível – risco ao qual se expõe todo aquele que trabalha com fronteiras –

que eu não contente, finalmente, nem os historiadores, nem os psicanalistas. Os

primeiros, porque eles preferem que os helenistas se restrinjam prudentemente a seu

território, reservando-lhes o glorioso pónos da interpretação; os últimos, porque eles

57 Sobre essa expressão, ver M.-C. Pouchelle, «Le corps féminin et ses paradoxes: l’imaginaire de l’intériorité dans les écrits médicaux et religieux (XIIè-XIVè siècle), in La condición…, op. cit., p. 319.58 A esse respeito, ver as observações de Marie Moscovici em Il est arrivé quelque chose. Approches de l’événement psychique. Paris: Ramsay, 1989, p. 139.59 Lou-Andréas Salomé, L’amour du narcissisme. Paris: Gallimard, 1980, p. 193.60 Descobri, em um artigo de que só tomei conhecimento após a redação deste prefácio, as reflexões de Maurice Olender acerca do mito de Tirésias e do fato de que a mulher «se funde em uma cosmogonia viril, na qual deve assumir uma posição em, por e contra o imaginário masculino». («De l’absence de récit», in Le récit et sa représentation. Paris: Payit, 1978, p. 178.

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desconfiam de qualquer trabalho que suponha construções, exigindo do pesquisador

que intervenha em sua pesquisa com tudo que é – e, antes de tudo, com suas próprias

opções. Só me restava acreditar que valeria a pena assumir estes riscos.

Antes de dar a palavra a meu livro, uma precisão ainda me parece necessária.

Ao recusar qualquer psicanálise aplicada (de forma que não nos interessamos por

Héracles em função de sua relação com Hera, mas para melhor analisar o que, no

pano de fundo dessa relação de submissão revoltada, o imaginário grego do anér

podia bordar) eu também renunciei à interpretação das intrigas a partir do ponto de

vista de seus atores. Apesar das amigáveis pressões, eu não acreditei dever dizer o

que Tirésias «realmente» viu, pois o poema de Calímaco, em sua discrição, sugere

somente que ele viu – se posso me permitir tal neologismo – o « invoyable». E, apesar

da sugestão que foi feita, também não julguei dever afirmar que, ao ver a nudez de

Atenas, é a mãe que Tirésias acreditou ver nua61, porque a mãe de Tirésias era amiga

da deusa e que, projetando sobre Atenas a figura materna, o jovem homem decifrava,

nela, a nudez. Do inconsciente de Tirésias, nada há a saber, mas muito sobre as

construções gregas acerca de sua cegueira. E muito sobre o que, nessa história, um

leitor (um auditor) grego podia ser levado a pensar sobre a feminilidade de Atenas.

Assim, evitei recorrer a interpretações que, de pronto, teriam fixado sentidos para

nós – o que poderíamos chamar de técnica do “é isto”, e que sempre convém evitar: é

a mãe, é a homossexualidade dos gregos, etc., e eis que nos imobilizamos aí, nos

dando já por satisfeitos…

Se há, em uma reflexão, curtos-circuitos – sobretudo quando ela se dá por

objeto a diferença dos sexos – então seus traços só podem ser reconstituídos através

do ritmo lento dos ensaios e erros, refreando-se a própria pulsão interpretativa. É

isto, também, o que significa falar como historiador(a) do homem grego, tal como ele

se fabula na operação sobre o feminino.

61 Não que a questão não deva ser levantada, quando ela é minimamente formulada em grego: ver N. Loraux , «Matrem nudam: quelques versions grecques», L’écrit du temps, 11 (1986: Destins des mythes), p. 35-54. Sabe-se, por outro lado, que a própria Atenas era oficialmente «mãe» em Élis: mas o que se poderia retirar dessa informação localizada?