Niels Bohr-Física Atômica e Conhecimento Humano - Ensaios 1932-1957-Contraponto (1996)

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MINISTERIQ DA EDUCAÇAO PNBEM 2008 ^OIB^

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MINISTERIQ DA EDUCAÇAO

PNBEM2008

^OIB^

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N I E L S B O H R

Física atômica e conhecimento humano

E N S A I O S

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Tradução Vera Ribeiro

Revisão técnica Ildeu de Castro Moreira Instituto de Física da UFRJ

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Prefácio

Esta coletânea de artigos, escritos em ocasiões diversas nos últi­mos 25 anos, constitui uma seqüência a ensaios anteriores, publi­cados pela Cambridge University Press em 1934, num volume in­titulado Atomic Theory and tbe Description of Nature. O tema dos textos é a lição epistemológica que nos foi dada pelo moderno desenvolvimento da física atômica e sua importância para a aná­lise e a síntese em muitos campos do conhecimento humano. Os artigos da edição anterior foram redigidos numa época em que o estabelecimento dos métodos matemáticos da mecânica quântica havia criado uma base sólida para a abordagem sistemática dos fenômenos atômicos, e em que as condições para uma descrição inambígua das experiências, nesse contexto, caracterizavam-se pela noção de complementaridade. Nos artigos aqui coligidos, essa abordagem é mais desenvolvida em sua formulação lógica e adquire uma aplicação mais ampla. Naturalmente, foi inevitável uma boa dose de repetição, mas espera-se que ela possa servir pa­ra um esclarecimento gradativo da argumentação, especialmente no que diz respeito ao uso de uma terminologia mais concisa.

Na elaboração dos pontos de vista em questão, as discussões com colaboradores antigos e atuais do Instituto de Física Teórica da Universidade de Copenhague foram-me de extremo valor. Pela assistência no preparo dos artigos deste volume, sou especialmen­te grato a Oskar Klein e Léon Rosenfeld, atualmente nas universi­

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dades de Estocolmo e Manchester, bem como a Stefan Rozental e Aage Petersen, do Instituto de Copenhague. Gostaria também de estender meus agradecimentos à sra. S. Hellmann por sua ajuda muito eficaz na preparação dos artigos e desta edição.

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Copenhague Agosto de 1957

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Sumário

Introdução, i

Luz e vida, 5Discurso na reunião de abertura do Congresso Internacional sobre Terapia através da Luz, Copenhague, agosto de 1932. Publicado em Nature, 131, 421 (1933).

Biologia e física atômica, 17

Discurso no Congresso de Física e Biologia em memória de Luigi Galvani, Bolonha, outubro de 1937.

Filosofia natural e culturas humanas, 29Discurso no Congresso Internacional de Ciências Antropológicas e Etnoló­gicas, Copenhague, proferido numa reunião no Castelo de Kronborg, Elsi- nore, agosto de 1938. Publicado em Nature, 143, 268 (1939).

O debate com Einstein sobreproblemas epistemológicos na física atômica, 41Contribuição para Albert Einstein: Pbilosopber-Scientist, Evanston, Illinois, The Library of Living Philosophers, Inc., v. 7, 1949, p. 199.

A unidade do conhecimento, 85Discurso proferido numa conferência em outubro de 1954, no contexto do Bicentenário da Universidade de Columbia, Nova York. Publicado em Tbe Unity of Knowledge, Nova York, Doubleday 8c Co., 1955, p. 47.

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Os átomos e o conhecimento humano, 105

Discurso proferido numa reunião da Real Academia Dinamarquesa de Ciên­cias, Copenhague, outubro de 1955.

A ciência física e o problema da vida, 119

Artigo concluído em 1957 e baseado numa Palestra Steno na Sociedade de Medicina da Dinamarca, Copenhague, fevereiro de 1949.

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Introdução

A importância da ciência física para o desenvolvimento do pensa­mento filosófico em geral baseia-se não apenas em suas contribui­ções para o conhecimento, sempre crescente, da natureza de que nós mesmos fazemos parte, mas também nas oportunidades que ela tem oferecido, vez após outra, para o exame e aperfeiçoamento dos instrumentos conceituais. Em nosso século, o estudo da cons­tituição atômica da matéria revelou que a abrangência das idéias da física clássica apresentava uma limitação insuspeitada e lançou nova luz sobre as demandas de explicação científica incorporadas na filosofia tradicional. Portanto, a revisão dos fundamentos para a aplicação inambígua de nossos conceitos elementares, necessária à compreensão dos fenômenos atômicos, tem um alcance que ul­trapassa em muito o campo particular da ciência física.

O ponto principal da lição que nos foi dada pelo desenvolvi­mento da física atômica é, como se sabe, o reconhecimento de uma característica de globalidade* nos processos atômicos, reve­lada pela descoberta do quantum de ação. Os artigos que se se­

* Ao interagir, dois sistemas da mecânica quântica são descritos por uma função de onda global, que, em geral, não pode ser expressa como uma combinação das funções de onda de cada sistema. Portanto, os dois siste­mas terão suas variáveis físicas correlacionadas, mesmo quando distancia­dos um do outro. Por isso diz-se que os fenômenos quânticos apresentam

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guem expõem os aspectos essenciais da situação na física quântica e, ao mesmo tempo, enfatizam os pontos de semelhança que ela exibe com a situação de outros campos do conhecimento, fora do âmbito da concepção mecânica da natureza. Não lidamos aqui com analogias mais ou menos vagas, porém com uma investiga­ção sobre as condições do uso apropriado de nossos meios de ex­pressão conceituais. Tais considerações almejam não apenas nos familiarizar com a nova situação da ciência física, mas, em virtu­de do caráter comparativamente simples dos problemas atômicos, podem ser úteis para esclarecer as condições de uma descrição objetiva em campos mais amplos.

Embora os sete ensaios aqui compilados estejam, pois, intima­mente interligados, eles se incluem em três grupos distintos, ori­ginários dos anos de 1932-1938, 1949 e 1954-1957, respectiva­mente. Os três primeiros artigos, diretamente relacionados com os da edição anterior, discutem problemas biológicos e antropo­lógicos referentes às características de globalidade apresentados pelos organismos vivos e pelas culturas humanas. Evidentemente, não há nenhuma tentativa de oferecer uma abordagem exaustiva desses temas, mas apenas de indicar como os problemas se apre­sentam contra o pano de fundo da lição geral da física atômica.

O quarto artigo versa sobre a discussão, entre os físicos, dos problemas epistemológicos levantados pela física quântica. O ca­ráter desse tema tornou inevitável uma certa referência aos ins­trumentos matemáticos, mas a compreensão dos argumentos não requer nenhum conhecimento especializado. O debate esclareceu novos aspectos do problema observacional, relacionados com o fato de que a interação dos objetos atômicos e dos instrumentos de medida é parte integrante dos fenômenos quânticos. Portanto,

uma “característica de globalidade” [wholeness], não podendo ser reduzi­dos à soma de suas partes. Ao longo dos ensaios reunidos neste volume, o conceito será usado de forma reiterada, tornando-se mais claro o seu signi­ficado. (N. do R.)

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INTRODUÇÃOo 3

os dados obtidos através de diferentes arranjos experimentais não podem ser compreendidos nos moldes costumeiros, e a necessida­de de levar em conta as condições em que a experiência é obtida impõe o modo de descrição complementar.

O último grupo de artigos está intimamente relacionado com o primeiro, mas espera-se que a terminologia aperfeiçoada, utiliza­da para expor a situação da física quântica, tenha tornado mais facilmente acessível a argumentação geral. Em sua aplicação a problemas de alcance mais amplo, enfatizam-se especialmente os pressupostos para um uso inambíguo dos conceitos no relato das experiências. A essência da argumentação é que, para uma descri­ção objetiva e uma compreensão harmoniosa, é necessário, em quase todos os campos do conhecimento, prestar atenção às cir­cunstâncias em que os dados são obtidos.

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Luz e vida

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Como um físico cujos estudos limitam-se às propriedades dos cor­pos inanimados, não foi sem hesitação que aceitei o gentil convite de me dirigir a esta assembléia de cientistas, reunida para pro­mover nossos conhecimentos sobre os efeitos benéficos da luz na cura das doenças. Incapaz que sou de contribuir para esse belo ramo da ciência, tão importante para o bem-estar da humanida­de, eu poderia, quando muito, comentar sobre os fenômenos pu­ramente inorgânicos da luz, que têm exercido especial atração so­bre os físicos de todas as eras, até porque a luz é o nosso principal instrumento de observação. Considerei, no entanto, que talvez fosse interessante, em tal comentário nesta oportunidade, entrar no problema de até que ponto os resultados alcançados no âmbi­to mais restrito da física podem influenciar nossas opiniões sobre a posição que os organismos vivos ocupam no edifício geral da ciência natural. A despeito do caráter sutil dos enigmas da vida, esse problema tem-se apresentado em todas as etapas da ciência. A própria essência da explicação científica consiste na decompo­sição de fenômenos complexos em fenômenos mais simples. No momento, essa é a limitação essencial de que padece a descrição mecânica dos fenômenos naturais revelados pelo recente desen­volvimento da teoria atômica, que trouxe um novo interesse pa­ra esse antigo problema. Esse desenvolvimento originou-se exata­mente do estudo mais rigoroso da interação da luz e dos corpos

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materiais, cujas características frustram certas exigências até ho­je consideradas indispensáveis numa explicação física. Como me empenharei em mostrar, os esforços dos físicos para dominar essa situação assemelham-se, de certa maneira, à atitude perante os aspectos da vida que sempre foi adotada, mais ou menos intuiti­vamente, pelos biólogos. Contudo, quero frisar desde logo que somente nesse aspecto formal a luz, que talvez seja o menos com­plexo de todos os fenômenos físicos, exibe uma analogia com a vida. Esta última mostra uma diversidade que ultrapassa a capaci­dade de compreensão da análise científica.

Do ponto de vista físico, a luz pode ser definida como uma transmissão de energia entre corpos materiais à distância. Como se sabe, esses efeitos encontram uma explicação simples na teoria eletromagnética, que pode ser encarada como uma extensão ra­cional da mecânica clássica, extensão apropriada para suavizar o contraste entre a ação à distância e a ação com contato direto. Nessa teoria, a luz é descrita como oscilações elétricas e magné­ticas acopladas, que só diferem das habituais ondas eletromag­néticas da transmissão de rádio pela maior freqüência de vibração e o menor comprimento de onda. Na verdade, a propagação pra­ticamente retilínea da luz, na qual se baseia a localização dos cor­pos pela visão direta ou através de instrumentos ópticos adequa­dos, depende inteiramente da pequenez do comprimento de onda, comparada às dimensões dos corpos em questão e dos instrumen­tos. Ao mesmo tempo, o caráter ondulatório da propagação da luz constitui não apenas a base de nossa descrição dos fenômenos da cor — que revelaram, na espectroscopia, informações muito importantes sobre a constituição dos corpos materiais —, mas é também essencial para a análise refinada dos fenômenos ópticos. Como um exemplo típico, basta mencionar as figuras de inter­ferência que aparecem quando a luz, proveniente de uma fonte, propaga-se até um anteparo através de dois caminhos diferentes. Aí constatamos que os efeitos que seriam produzidos pelos feixes luminosos separados são reforçados nos pontos do anteparo em

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que as fases das duas ondas coincidem, isto é, onde as oscilações elétricas e magnéticas dos dois feixes têm a mesma direção, ao passo que esses efeitos são enfraquecidos, e podem até desapare­cer, nos pontos em que as oscilações têm direções opostas e onde se diz que as ondas estão fora de fase, uma em relação à outra. Tais figuras de interferência fornecem uma prova tão rigorosa da imagem ondulatória da propagação da luz que essa imagem não pode ser considerada uma hipótese, no sentido usual do termo, devendo, antes, ser encarada como a descrição adequada dos fe­nômenos observados.

No entanto, como todos vocês sabem, o problema da natureza da luz esteve sujeito a uma discussão renovada nos últimos anos, em virtude da descoberta, no mecanismo da transmissão de ener­gia, de um aspecto essencial de atomicidade que é incompreensí­vel do ponto de vista da teoria eletromagnética. De fato, qual­quer transferência de energia pela luz pode remontar a processos individuais, em cada um dos quais é trocado um chamado quan- tum de luz, cuja energia é igual ao produto da freqüência das oscilações eletromagnéticas pelo quantum universal de ação, ou constante de Planck. O evidente contraste entre essa atomicidade do efeito da luz e a transferência contínua de energia na teoria eletromagnética nos propõe um dilema anteriormente desconhe­cido na física. A despeito de sua óbvia insuficiência, não há como substituir a imagem ondulatória da propagação da luz por outra imagem que se apoie em idéias mecânicas comuns. Em especial, convém enfatizar que os quanta de luz não podem ser considera­dos como partículas a que se possa atribuir uma trajetória bem definida, no sentido da mecânica usual. A figura de interferência desaparece se, para nos certificar de que a energia da luz se pro­paga por apenas um dos dois caminhos entre a fonte e o ante­paro, interrompermos um dos feixes com um corpo não trans­parente; da mesma forma, em qualquer fenômeno para o qual a constituição ondulatória da luz seja essencial, é impossível preci­sar a trajetória dos quanta individuais de luz sem perturbar es­

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sencialmente o fenômeno em processo de investigação. Na verda­de, nossa imagem da propagação espacialmente contínua da luz e a atomicidade dos efeitos luminosos são aspectos complementa­res, no sentido de descreverem características igualmente impor­tantes dos fenômenos luminosos. Elas nunca podem ser coloca­das em contradição direta umas com as outras, já que sua análise mais minuciosa, em termos mecânicos, requer arranjos experi­mentais mutuamente excludentes. Essa mesma situação obriga- nos a renunciar a uma explicação causai completa dos fenômenos da luz e a nos contentar com leis probabilísticas, baseados no fa­to de que a descrição eletromagnética da transferência de energia continua válida no sentido estatístico. Isso constitui uma aplica­ção típica do chamado princípio da correspondência, que expres­sa o esforço de utilizar ao máximo os conceitos das teorias clássi­cas da mecânica e da eletrodinâmica, apesar do contraste entre essas teorias e o quantum de ação.

Essa situação talvez pareça muito incômoda. Mas, como tan­tas vezes acontece na ciência quando novas descobertas levam ao reconhecimento de uma limitação essencial em conceitos até en­tão considerados indispensáveis, somos recompensados por obter uma visão mais ampla e uma capacidade maior para estabelecer correlações entre fenômenos que, antes disso, talvez parecessem até contraditórios. Com efeito, a limitação da mecânica clássica, simbolizada pelo quantum de ação, forneceu uma chave para nos­so entendimento da estabilidade intrínseca dos átomos, na qual se baseia essencialmente a descrição mecânica dos fenômenos natu­rais. Evidentemente, sempre foi uma característica fundamental da teoria atômica que a indivisibilidade dos átomos não pode ser compreendida em termos mecânicos, e essa situação permaneceu praticamente inalterada, mesmo depois que a indivisibilidade dos átomos foi substituída pela das partículas elétricas elementares, os elétrons e os prótons de que se compõem os átomos e molécu­las. O ponto a que me refiro não é o problema da estabilidade intrínseca dessas partículas elementares, mas o das estruturas atô­

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micas formadas por elas. Se atacarmos esse problema com o pon­to de vista da mecânica ou da teoria eletromagnética, não encon­traremos base suficiente para explicar as propriedades específicas dos elementos, nem tampouco a existência de corpos rígidos, na qual se apoiam, em última instância, todas as mensurações usadas para ordenar os fenômenos no espaço e no tempo. Essas dificul­dades agora são superadas pelo reconhecimento de que qualquer mudança bem definida de um átomo é um processo individual, que consiste numa transição completa do átomo, a partir de um de seus chamados estados estacionários para outro. Além disso, desde que exatamente um quantum de luz é trocado em um pro­cesso de transição pelo qual luz é emitida ou absorvida por um átomo, somos capazes, por meio de observações espectroscópi- cas, de medir diretamente a energia de cada um desses estados estacionários. A informação daí deduzida também foi corrobora­da, de modo muito instrutivo, pelo estudo das trocas de energia que ocorrem nas colisões atômicas e nas reações químicas.

Nos últimos anos, houve um notável desenvolvimento da física atômica segundo as linhas do princípio da correspondência. Isso nos proporcionou métodos adequados para calcular a energia dos estados estacionários dos átomos e as probabilidades dos proces­sos de transição, tornando nossa descrição das propriedades atô­micas tão compreensível quanto a descrição ordenada da expe­riência astronômica pela mecânica newtoniana. Apesar da maior complexidade dos problemas gerais da física atômica, a lição que nos foi ensinada pela análise dos efeitos luminosos mais simples foi de suma importância para esse desenvolvimento. Assim, o uso inambíguo do conceito de estados estacionários mantém com a análise mecânica dos movimentos intra-atômicos uma relação de complementaridade semelhante à dos quanta de luz com a teoria eletromagnética da radiação. Na verdade, qualquer tentativa de investigar o curso detalhado de um processo de transição implica­ria uma troca de energia incontrolável entre o átomo e os instru­mentos de medida, que perturbaria por completo o próprio equi­

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líbrio energético que pretendéssemos investigar. A descrição me­cânica do experimento, em termos causais, só pode ser consegui­da nos casos em que a ação envolvida é grande em comparação com o quantum, e em que, por conseguinte, é possível uma subdi­visão do fenômeno. Não sendo satisfeita essa condição, a ação dos instrumentos de medida sobre o objeto investigado não pode ser desconsiderada, e acarreta uma exclusão mútua dos vários ti­pos de informação necessários a uma completa descrição mecâni­ca do tipo usual. Essa aparente incompletude da análise mecânica dos fenômenos atômicos provém, em última instância, de desco­nhecermos a reação, inerente a qualquer mensuração, do objeto aos instrumentos de medida. Assim como o conceito geral da re­latividade expressa a dependência essencial de qualquer fenôme­no em relação ao sistema de referência usado para sua descrição no espaço e no tempo, a noção de complementaridade serve para simbolizar a limitação fundamental, encontrada na física atômi­ca, da existência objetiva de fenômenos independentemente dos meios de sua observação.

Essa revisão dos fundamentos da mecânica, que se estende à própria idéia de explicação física, é não apenas essencial para uma apreciação plena da situação na teoria atômica, como cria tam­bém um novo cenário para a discussão dos problemas da vida em sua relação com a física. Isso não significa, de modo algum, que encontremos nos fenômenos atômicos características que exibam uma semelhança mais estreita com as propriedades dos organis­mos vivos do que os efeitos físicos corriqueiros. À primeira vista, o caráter essencialmente estatístico da mecânica atômica pareceria até mesmo entrar em conflito com a organização esplendidamente refinada dos seres vivos. Devemos ter em mente, contudo, que jus­tamente esse modo complementar de descrição dá margem a regu- laridades, nos processos atômicos, que são estranhas à mecânica, mas que são tão essenciais para nossa explicação do comporta­mento dos organismos vivos quanto para a explicação das pro­priedades específicas da matéria inorgânica. Assim, na assimila­

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ção de carbono pelas plantas, da qual também depende tão gran­demente a nutrição dos animais, lidamos com um fenômeno para cujo entendimento a individualidade dos processos fotoquímicos é claramente essencial. Da mesma forma, a estabilidade não mecâ­nica das estruturas atômicas é notavelmente exibida nas proprie­dades características de combinações químicas tão imensamente complexas quanto a clorofila ou a hemoglobina, que desempe­nham um papel fundamental no mecanismo de assimilação das plantas e na respiração animal. Mesmo assim, as analogias prove­nientes da experiência química comum, tal como a antiga compa­ração da vida com o fogo, obviamente não produzem uma expli­cação mais satisfatória dos organismos vivos do que a semelhança entre eles e certos aparelhos puramente mecânicos, como os reló­gios. A rigor, as características essenciais dos seres vivos devem ser buscadas numa organização peculiar, na qual características que podem ser analisadas pela mecânica comum entrelaçam-se com características tipicamente atomísticas, num grau que não encon­tra paralelo na matéria inanimada.

Uma ilustração instrutiva do grau a que essa organização se desenvolve é exibida pela construção e função do olho, para cuja investigação a simplicidade dos fenômenos luminosos foi também de extrema utilidade. Não preciso entrar em detalhes aqui, mas quero apenas lembrar-lhes como a oftalmologia nos revelou as propriedades ideais do olho humano como instrumento óptico. De fato, o limite imposto à formação da imagem pelos inevitáveis efeitos de interferência praticamente coincide com o tamanho das divisões da retina, que têm uma ligação nervosa separada com o cérebro. Além disso, como a absorção de um único quantum de luz por cada uma dessas divisões retinianas é suficiente para uma impressão visual, pode-se dizer que a sensibilidade do olho atin­giu o limite estipulado pelo caráter atômico dos processos lumi­nosos. A eficiência do olho nesses dois aspectos é, na verdade, idêntica à obtida por um bom telescópio ou microscópio ligado a um amplificador adequado, de modo a tornar observáveis os pro­

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cessos individuais. É verdade que, com esses instrumentos, é pos­sível aumentar nossos poderes de observação, mas, em virtude dos limites impostos pelas propriedades fundamentais dos fenô­menos luminosos, nenhum instrumento imaginável seria mais efi­ciente para esse fim do que o olho. Ora, esse refinamento ideal do olho, reconhecido pelo recente desenvolvimento da física, sugere que também outros órgãos, quer sirvam para a recepção de in­formações do meio ambiente, quer para a reação às impressões sensoriais, possam exibir uma semelhante adaptação à sua finali­dade, e que, também nesses casos, o aspecto de individualidade simbolizado pelo quantum de ação seja de importância decisiva no contexto de algum mecanismo amplificador. O fato de ter sido possível traçar esse limite no olho, mas não, até o momento, em nenhum outro órgão, deve-se apenas à extrema simplicidade dos fenômenos luminosos, a que nos referimos anteriormente.

O reconhecimento da importância essencial das características atomísticas no mecanismo dos organismos vivos de modo algum é suficiente, contudo, para uma explicação abrangente dos fenô­menos biológicos. A questão que está em pauta, portanto, é se ainda faltam aspectos fundamentais na análise dos fenômenos na­turais para que possamos chegar a uma compreensão da vida com base na experiência física. A despeito do fato de que os múltiplos fenômenos biológicos são praticamente inesgotáveis, dificilmente se poderá dar uma resposta a essa pergunta sem um exame do sentido a ser atribuído à explicação física, mais penetrante ainda do que aquele a que a descoberta do quantum de ação já nos for­çou. Por um lado, as maravilhosas características constantemente reveladas nas investigações fisiológicas, e que diferem tão mar­cantemente do que se conhece sobre a matéria inorgânica, leva­ram os biólogos a crer que nenhuma compreensão adequada dos aspectos essenciais da vida é possível em termos puramente físi­cos. Por outro, dificilmente se poderia dar uma expressão inam- bígua à visão conhecida como vitalismo, que parte do pressupos­to de que uma força vital peculiar, desconhecida dos físicos, rege

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toda a vida orgânica. Na verdade, penso que todos concordamos com Newton em que o fundamento último da ciência é a expecta­tiva de que a natureza exiba efeitos idênticos em condições idênti­cas. Portanto, se pudermos avançar tanto na análise dos mecanis­mos dos organismos vivos quanto na dos fenômenos atômicos, não deveremos esperar descobrir nenhuma característica alheia à matéria inorgânica. Nesse dilema, convém ter em mente, entre­tanto, que as condições da pesquisa biológica e as da pesquisa física não são diretamente comparáveis, já que a necessidade de manter vivo o objeto de investigação impõe à primeira uma restri­ção que não tem equivalente na segunda. Mataríamos um animal, se tentássemos levar a investigação de seus órgãos ao ponto de sermos capazes de dizer qual o papel desempenhado em suas fun­ções vitais por átomos isolados. Em todos os experimentos com organismos vivos, tem que persistir uma dose de incerteza no que tange às condições físicas a que eles são submetidos, sugerindo-se assim a idéia de que esse mínimo de liberdade que temos de con­ceder ao organismo será exatamente o bastante para lhe permitir, por assim dizer, ocultar de nós os seus segredos mais íntimos. Por esse ângulo, a própria existência da vida deve ser considerada, na biologia, um fato elementar, assim como, na física atômica, a existência do quantum de ação tem que ser tomada como um da­do fundamental, que não pode ser derivado da mecânica usual. Na verdade, a impossibilidade essencial de compreender a estabi­lidade atômica em termos mecânicos mostra uma estreita analo­gia com a impossibilidade de dar uma explicação física ou quími­ca às funções peculiares que caracterizam a vida.

Ao formular essa analogia, entretanto, convém lembrarmos que os problemas apresentam aspectos essencialmente diferentes na física atômica e na biologia. Enquanto, no primeiro campo, es­tamos primordialmente interessados no comportamento da maté­ria em suas formas mais simples, a complexidade dos sistemas ma­teriais pelos quais a biologia se interessa é de caráter fundamental, já que até os organismos mais primitivos contêm grande número

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de átomos. É verdade que o vasto campo de aplicação da mecâni­ca usual, que inclui nossa explicação dos instrumentos de medida usados na física atômica, assenta-se justamente na possibilidade de desconsiderarmos, em larga escala, a complementaridade da des­crição vinculada ao quantum de ação, nos casos em que lidamos com corpos que contenham um grande número de átomos. Mas, apesar da importância essencial dos aspectos atomísticos, é típico da pesquisa biológica nunca podermos controlar as condições ex­ternas a que qualquer átomo isolado é submetido, na mesma medi­da em que é possível fazê-lo nos experimentos fundamentais da física atômica. De fato, nem sequer podemos dizer quais átomos específicos realmente pertencem a um organismo vivo, já que toda função vital é acompanhada por uma troca de material, mediante a qual os átomos são constantemente absorvidos e expelidos da organização que compõe o ser vivo. A rigor, essa troca de matéria estende-se a todas as partes do organismo vivo, num grau que im­pede uma distinção nítida, em escala atômica, entre os aspectos de seu mecanismo que podem ser inequivocamente explicados pela mecânica usual e aqueles para os quais a consideração do quan­tum de ação é decisiva. Essa diferença fundamental entre a pes­quisa física e a biológica implica que não se pode traçar, para a aplicabilidade das idéias físicas aos problemas da vida, nenhum limite bem definido que corresponda à distinção entre o campo da descrição mecânica causai e os fenômenos quânticos propriamente ditos da física atômica. Essa aparente limitação da analogia em questão enraíza-se nas próprias definições das palavras vida e me­cânica, que são, em última instância, uma questão de conveniên­cia. Por um lado, a questão de uma limitação da física na biologia perderia qualquer sentido se, em vez de fazer uma distinção entre organismos vivos e corpos inanimados, estendéssemos a idéia de vida a todos os fenômenos naturais. Por outro lado, se, de acordo com a linguagem comum, reservássemos a palavra mecânica para a descrição causai inambígua dos fenômenos naturais, uma ex­pressão como mecânica do átomo perderia o sentido. Não irei

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adiante nesses aspectos puramente terminológicos, mas acrescento apenas que a essência da analogia em exame é a evidente exclusão entre aspectos típicos da vida, como a autopreservação e a autoge- raçâo de indivíduos, de um lado, e a subdivisão necessária a qual­quer análise física, de outro. Graças a esse aspecto essencial da complementaridade, o conceito de finalismo, que é desconhecido da análise mecânica, encontra um certo campo de aplicação na biologia. Na verdade, nesse sentido, a argumentação teleológica pode ser encarada como um traço legítimo da descrição fisiológi­ca, que leva na devida consideração as características da vida, de um modo análogo ao reconhecimento do quantum de ação no princípio da correspondência da física atômica.

Ao discutir a aplicabilidade de idéias puramente físicas aos organismos vivos, tratamos a vida, é claro, como qualquer outro fenômeno do mundo material. Nem é preciso enfatizar, entretan­to, que essa atitude, que é característica da pesquisa biológica, não implica nenhuma desconsideração do aspecto psicológico da vida. Ao contrário, o reconhecimento da limitação dos conceitos mecânicos na física atômica parecería adequado para conciliar os pontos de vista aparentemente contrastantes da fisiologia e da psicologia. De fato, a necessidade de considerar, na física atômi­ca, a interação dos instrumentos de medida e do objeto investiga­do exibe uma estreita analogia com as dificuldades peculiares à análise psicológica, provenientes do fato de que o conteúdo men­tal é invariavelmente alterado quando se concentra a atenção em qualquer de seus aspectos particulares. Sairiamos muito de nosso assunto se nos estendéssemos nessa analogia, que oferece um esclarecimento essencial sobre o paralelismo psicofísico. Entre­tanto, eu gostaria de enfatizar que as considerações do tipo aqui mencionado são inteiramente opostas a qualquer tentativa de buscar novas possibilidades de influência espiritual sobre o com­portamento da matéria na descrição estatística dos fenômenos atômicos. Por exemplo, é impossível, do nosso ponto de vista, associar um significado inambíguo à opinião, às vezes expressa,

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de que a probabilidade de ocorrência de certos processos atômi­cos no corpo estaria sob a influência direta da vontade. De fato, segundo a interpretação generalizada do paralelismo psicofísico, a liberdade da vontade deve ser considerada como um aspecto da vida consciente que corresponde a funções do organismo que não apenas escapam a uma descrição mecânica causai, mas resis­tem até mesmo a uma análise física levada ao ponto exigido para uma aplicação inambígua das leis estatísticas da mecânica atô­mica. Sem entrar em especulações metafísicas, talvez eu possa acrescentar que uma análise do próprio conceito de explicação começaria e terminaria, naturalmente, por uma renúncia a expli­car nossa própria atividade consciente.

Para concluir, nem é preciso enfatizar que não pretendi, com nenhuma de minhas observações, expressar qualquer tipo de ce­ticismo quanto ao futuro desenvolvimento das ciências físicas e biológicas. Tal ceticismo, de fato, estaria muito longe da mente dos físicos no momento atual, quando justamente o reconheci­mento do caráter limitado de nossos conceitos mais fundamentais resultou em tão notável desenvolvimento de nossa ciência. Tam­pouco a renúncia a uma explicação da vida impediu o esplêndido progresso ocorrido em todos os ramos da biologia, inclusive os que se revelaram tão benéficos na arte da medicina. Ainda que não possamos estabelecer uma clara distinção física entre a saúde e a doença, decerto não há lugar para ceticismo no campo espe­cial que é objeto deste congresso, desde que não abandonemos a trilha de progresso que vem sendo seguida com tanto êxito desde o trabalho pioneiro de Finsen, e cuja marca distintiva é a mais íntima combinação da investigação dos efeitos medicinais da tera­pia através da luz com o estudo de seus aspectos físicos.

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Biologia e física atômica

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O trabalho imortal de Galvani, que inaugurou uma nova era em todo o campo da ciência, ilustra brilhantemente a extrema fecun- didade de uma combinação íntima da exploração das leis da natu­reza inanimada com o estudo das propriedades dos organismos vivos. Nesta ocasião, portanto, talvez seja oportuno examinar a atitude que os cientistas de todas as épocas têm adotado perante a questão da relação entre a física e a biologia e, em especial, discu­tir a perspectiva criada, nesse contexto, pelo extraordinário de­senvolvimento da teoria atômica nos últimos tempos.

Desde o alvorecer da ciência, a teoria atômica realmente tem estado no centro do interesse, no que diz respeito aos esforços de obter uma visão abrangente da grande diversidade de fenômenos naturais. Assim, já Demócrito, que com tão profunda intuição enfatizou a necessidade do atomismo para qualquer explicação racional das propriedades comuns da matéria, também tentou, como se sabe, utilizar idéias atomísticas para explicar as peculiari­dades da vida orgânica e até da psicologia humana. Em vista do caráter fantasioso dessas concepções materialistas extremadas, foi natural que Aristóteles reagisse, com sua magistral compreensão dos conhecimentos de sua época, tanto na física quanto na biolo­gia, rejeitando por completo a teoria dos átomos, e tentasse forne­cer um arcabouço suficientemente amplo para uma explicação da profusão dos fenômenos naturais com base em idéias essencial­

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mente teleológicas. Por sua vez, o exagero da doutrina aristotélica foi claramente trazido à luz pelo reconhecimento gradativo de leis elementares da natureza, válidas tanto para os corpos inanimados quanto para os organismos vivos.

Ao pensarmos no estabelecimento dos princípios da mecânica, que viriam a se tornar o próprio fundamento da ciência física, talvez não seja sem interesse, nesse contexto, perceber que a des­coberta de Arquimedes do princípio de equilíbrio dos objetos flu­tuantes — que, segundo uma conhecida tradição, foi-lhe sugerido pela sensação de elevação de seu próprio corpo numa banheira — poderia igualmente ter-se baseado na experiência comum da per­da de peso das pedras na água. Do mesmo modo, devemos con­siderar bastante acidental que Galileu tenha sido levado ao re­conhecimento das leis fundamentais da dinâmica observando o movimento pendular de um candelabro na bela catedral de Pisa, e não olhando para uma criança num balanço. Essas analogias pu­ramente externas foram de pouca monta, é claro, para o crescente reconhecimento da unidade essencial dos princípios que regem os fenômenos naturais, comparadas às semelhanças profundas entre os organismos vivos e a maquinaria técnica que foram reveladas pelos estudos da anatomia e da fisiologia, intensamente efetuados na época do Renascimento, sobretudo aqui na Itália.

A nova abordagem experimental da filosofia natural — igual­mente incentivada pela ampliação da imagem do mundo, graças à visão de Copérnico, e pela elucidação dos mecanismos circula­tórios nos corpos dos animais, inaugurada pela grande descober­ta de Harvey — abriu perspectivas que talvez tenham se expres­sado de forma mais marcante na obra de Borelli, que conseguiu esclarecer com detalhes muito minuciosos a função mecânica do esqueleto e dos músculos nos movimentos dos animais. O caráter clássico dessa obra em nada é prejudicado pelas tentativas do próprio Borelli e de seus seguidores de explicar também a ação nervosa e a secreção glandular por meio de modelos mecânicos primitivos, cuja evidente arbitrariedade e primarismo logo susci­

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taram uma crítica generalizada, ainda lembrada pela designação semi-irônica de “ iatrofísicos” que ficou ligada aos adeptos da es­cola boreliana. Do mesmo modo, os esforços — sólidos em sua base — de aplicar o crescente conhecimento das transformações tipicamente químicas da matéria a processos fisiológicos, que en­contraram um expoente tão entusiástico em Sylvius, levaram ra­pidamente, pelo exagero das semelhanças superficiais da diges­tão e da fermentação com as reações inorgânicas mais simples, e por sua aplicação precipitada para fins médicos, a uma oposição que se expressou na rotulação desses esforços prematuros como “iatroquímica” .

Para nós, são evidentes as razões dos insucessos desses esfor­ços pioneiros em utilizar a física e a química numa explicação abrangente das propriedades dos organismos vivos. Não apenas era preciso esperar pela época de Lavoisier para que se revelas­sem os princípios elementares da química, que abririam caminho para o entendimento da respiração e, mais tarde, forneceriam a base para o extraordinário desenvolvimento da chamada química orgânica, como também, antes das descobertas de Galvani, todo um aspecto fundamental das leis da física ainda permanecia ocul­to. É extremamente sugestivo considerar que o germe que, nas mãos de Volta, Oersted, Faraday e Maxwell, iria desenvolver-se numa estrutura de importância rival à da mecânica newtoniana brotou de pesquisas voltadas para fins biológicos. Na verdade, é difícil imaginar que o progresso havido desde os experimentos com corpos eletricamente carregados, por mais fecundos que eles tenham sido nas mãos de Franklin, até o estudo das correntes galvânicas, pudesse ter sido alcançado, se os instrumentos sensí­veis necessários à detecção dessas correntes, depois tão pronta­mente construídos, não tivessem sido fornecidos pela própria na­tureza no tecido nervoso dos animais superiores.

É impossível esquematizar aqui, até mesmo sob a forma de um esboço, o tremendo desenvolvimento da física e da química desde a época de Galvani, ou enumerar as descobertas feitas em todos

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os ramos da biologia no último século. Basta-nos recordar as li­nhas que levaram desde a obra pioneira de Malpighi e Spallan- zani, nesta venerável universidade, até a embriologia e a bacterio­logia modernas, respectivamente, ou do próprio Galvani até as recentes e fascinantes pesquisas sobre os impulsos nervosos. Ape­sar da vasta compreensão assim obtida sobre o aspecto físico e químico de muitas reações biológicas típicas, o maravilhoso refi­namento estrutural dos organismos, bem como sua profusão de mecanismos regulatórios interligados, continuam a ultrapassar a tal ponto qualquer experiência feita com a natureza inanimada, que nós nos sentimos tão distantes como sempre de uma expli­cação da própria vida dentro desses moldes. Na verdade, ao tes­temunharmos as apaixonadas controvérsias científicas referentes à relação que têm com esse problema as recentes descobertas de efeitos venenosos e das propriedades generativas dos chamados vírus, vemo-nos diante de um dilema tão agudo quanto aquele com que se defrontaram Demócrito e Aristóteles.

Nessa situação, é novamente na teoria atômica que se concen­tra o interesse, embora num cenário muito diferente. Não apenas essa teoria — desde que Dalton aplicou as concepções atomís- ticas com tão decisivo sucesso à elucidação das leis quantitativas que regem a constituição dos compostos químicos — tornou-se a base indispensável e o guia infalível de todo o raciocínio na quí­mica, como também o esplêndido aperfeiçoamento da técnica experimental na física deu-nos até os meios para estudar fenôme­nos que dependem diretamente da ação de átomos individuais. Ao mesmo tempo que, dessa maneira, esse progresso eliminou os últimos vestígios do preconceito tradicional segundo o qual, em vista da precariedade de nossos sentidos, qualquer comprovação da existência efetiva dos átomos estaria perenemente fora do al­cance da experiência humana, ele revelou, nas leis da natureza, aspectos ainda mais profundos de atomicidade do que os expres­sos pela antiga doutrina da divisibilidade limitada da matéria. De fato, foi-nos ensinado que o próprio arcabouço conceituai que se

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propunha explicar nossa experiência na vida cotidiana e formu­lar todo o sistema de leis aplicáveis ao comportamento da ma­téria em geral, e que constitui o imponente edifício da chamada física clássica, teria que ser fundamentalmente ampliado para que pudesse abarcar os fenômenos atômicos propriamente ditos. Para avaliar as possibilidades fornecidas por essa nova visão da filo­sofia natural com respeito a uma atitude racional perante os pro­blemas fundamentais da biologia, entretanto, será necessário re­lembrar sucintamente as principais linhas de desenvolvimento que levaram à elucidação da situação na teoria atômica.

O ponto de partida da moderna física atômica, como se sabe, foi o reconhecimento da natureza atômica da própria eletricidade, inicialmente apontada pelas famosas pesquisas de Faraday com a eletrólise galvânica, e estabelecida em definitivo pelo isolamento do elétron nos belos fenômenos de descargas elétricas em gases rarefeitos, que tanta atenção suscitaram no fim do século passado. Embora as brilhantes pesquisas de J.J. Thompson cedo tenham trazido à luz o papel essencial desempenhado pelos elétrons nos mais variados fenômenos físicos e químicos, nosso conhecimento das unidades estruturais da matéria só foi completado com a des­coberta do núcleo atômico por Rutherford, coroando seu traba­lho pioneiro sobre as transmutações radioativas espontâneas de certos elementos pesados. De fato, essa descoberta forneceu, pela primeira vez, uma explicação incontestável para a invariabilidade dos elementos nas reações químicas comuns, nas quais o minús­culo núcleo pesado permanece inalterado, enquanto apenas a dis­tribuição dos elétrons, mais leves, ao seu redor é afetada. Além disso, ela proporcionou uma compreensão imediata não só da ori­gem da radioatividade natural, na qual assistimos a uma explosão do próprio núcleo, mas também da possibilidade, posteriormen­te descoberta por Rutherford, de se induzirem transmutações dos elementos através do bombardeio com partículas pesadas em alta velocidade, que, ao se chocarem com o núcleo, podem provocar sua desintegração.

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O tema deste pronunciamento seria demasiadamente amplia­do se examinássemos mais a fundo o novo e maravilhoso campo de pesquisas inaugurado pelo estudo das transmutações nuclea­res, que será um dos principais temas de discussão entre os físicos neste encontro. O essencial para nossa argumentação não se en­contra, de fato, nessas novas experiências, mas na evidente im­possibilidade de explicar os dados físicos e químicos comuns, com base nos já estabelecidos aspectos principais do modelo atômico de Rutherford, sem nos afastarmos radicalmente das idéias clássi­cas da mecânica e do eletromagnetismo. Com efeito, apesar da mecânica newtoniana ter elucidado a harmonia dos movimentos planetários expressa pelas leis de Kepler, as propriedades de es­tabilidade de modelos mecânicos como o sistema solar — que, quando perturbados, não tendem a retornar ao seu estado ori­ginal — obviamente não têm uma semelhança suficiente com a estabilidade intrínseca das configurações eletrônicas dos átomos, que é responsável pelas propriedades específicas dos elementos. Acima de tudo, essa estabilidade é notavelmente ilustrada pela análise espectral, que, como se sabe, revelou que todo elemento possui um espectro característico, de linhas nítidas, tão indepen­dente das condições externas que proporciona um meio de identi­ficar a composição material até mesmo das estrelas mais distan­tes, através de observações espectroscópicas.

Uma chave para a solução desse dilema, no entanto, já havia sido fornecida pela descoberta de Planck do quantum elementar de ação, que resultou de uma linha de pesquisa física muito dife­rente. Como se sabe, Planck foi levado a essa descoberta funda­mental por sua engenhosa análise de aspectos tais do equilíbrio térmico entre a matéria e a radiação, que, segundo os princípios gerais da termodinâmica, deveriam ser totalmente independentes de quaisquer propriedades específicas da matéria e, por conse­guinte, de quaisquer idéias especiais sobre a constituição atômi­ca. A existência do quantum elementar de ação expressa, a rigor, uma nova faceta da individualidade dos processos físicos, a qual

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é desconhecida das leis clássicas da mecânica e do eletromagnetis- mo, e restringe a validade destas leis basicamente aos fenômenos que envolvem ações grandes em comparação com o valor de um único quantum, tal como fornecido pela nova constante atômi­ca de Planck. Essa condição, embora amplamente satisfeita nos fenômenos da experiência física comum, não é de modo algum aplicável ao comportamento dos elétrons nos átomos e, a rigor, somente a existência do quantum de ação impede a fusão dos elétrons e do núcleo num corpúsculo neutro maciço, de extensão praticamente infinitesimal.

O reconhecimento dessa situação sugeriu prontamente a des­crição da ligação de cada elétron no campo ao redor do núcleo como uma sucessão de processos individuais, pelos quais o áto­mo passa de um de seus chamados estados estacionários para ou­tro desses estados, com emissão de energia liberada sob a forma de um único quantum de radiação eletromagnética. Essa visão, intimamente aparentada com a exitosa interpretação einsteiniana do efeito fotoelétrico, e tão convincentemente corroborada pelas belas pesquisas de Franck e Hertz sobre a excitação das linhas espectrais pelos impactos dos elétrons nos átomos, de fato não apenas forneceu uma explicação imediata para as intrigantes leis gerais das linhas espectrais, destrinçadas por Balmer, Rydberg e Ritz, como também, com o auxílio de provas espectroscópicas, levou gradativamente a uma classificação sistemática dos tipos de ligação estacionária de qualquer elétron num átomo, fornecendo uma explicação completa das notáveis relações entre as proprie­dades físicas e químicas dos elementos, tal como expressas na fa­mosa tabela periódica de Mendeleev. Embora essa interpretação das propriedades da matéria tenha-se afigurado uma realização do antigo ideal de reduzir a formulação das leis da natureza a considerações de números puros — superando até mesmo os so­nhos dos pitagóricos —, o pressuposto básico da individualidade dos processos atômicos implicou, ao mesmo tempo, uma renún­cia essencial à detalhada vinculação causai entre os eventos físi­

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cos, que, ao longo dos séculos, fora o fundamento incontestável da filosofia natural.

Não só se eliminou qualquer possibilidade de retorno a um modo de descrição compatível com o princípio da causalidade, através de experiências inambíguas dos mais variados tipos, como logo se mostrou possível desenvolver as tentativas primitivas ori­ginais de explicar a existência do quantum de ação na teoria atô­mica, transformando-as numa mecânica do átomo propriamente dita, essencialmente estatística e plenamente comparável, em sua coerência e completude, à estrutura da mecânica clássica, da qual ela parece constituir uma generalização racional. O estabeleci­mento dessa nova mecânica, chamada mecânica quântica, que, como se sabe, devemos sobretudo às engenhosas contribuições da nova geração de físicos, de fato esclareceu essencialmente, à parte sua assombrosa fecundidade em todos os ramos da física atômica e da química, a base epistemológica da análise e da síntese dos fenômenos atômicos. O reexame do próprio problema da obser­vação nesse campo, iniciado por Heisenberg, um dos principais fundadores da mecânica quântica, evidenciou pressupostos até então desconsiderados para o uso inambíguo até mesmo dos mais elementares conceitos em que repousa a descrição dos fenômenos naturais. O aspecto crucial, neste ponto, é o reconhecimento de que qualquer tentativa de analisar, à maneira habitual da física clássica, a “ individualidade” dos processos atômicos, condiciona­dos pelo quantum de ação, é frustrada pela inevitável interação dos objetos atômicos em exame com os instrumentos de medida indispensáveis para esse fim.

Uma conseqüência imediata dessa situação é que as observa­ções referentes ao comportamento dos objetos atômicos, obtidas mediante diferentes projetos experimentais, em geral não podem ser combinadas nos moldes habituais da física clássica. Em par­ticular, qualquer procedimento imaginável que vise localizar os elétrons de um átomo no espaço e no tempo implicará, inevita­velmente, uma troca essencialmente incontrolável de momento e

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energia entre o átomo e os aparelhos de medida, aniquilando por completo as notáveis regularidades da estabilidade atômica pelas quais o quantum de ação é responsável. Inversamente, qualquer investigação dessas regularidades, cuja descrição implica, ela mes­ma, as leis de conservação da energia e do momento, imporá, em princípio, uma renúncia no que tange à localização espaço-tem- poral dos elétrons individuais do átomo. Longe de serem incoe­rentes, portanto, os aspectos dos fenômenos quânticos revelados pela experiência obtida nessas condições mutuamente excluden- tes devem ser considerados complementares, de uma maneira to­talmente inédita. O ponto de vista da “complementaridade” , com efeito, de modo algum significa uma renúncia arbitrária à análise dos fenômenos atômicos, mas é, ao contrário, a expressão de uma síntese racional da abundante experiência nesse campo, que ultra­passa os limites a que naturalmente está confinada a aplicação do conceito de causalidade.

Apesar do incentivo dado a essas investigações pelo grande exemplo da teoria da relatividade — que, justamente pela re­velação de pressupostos insuspeitados para o uso inambíguo de todos os conceitos físicos, abriu novas possibilidades de com­preendermos fenômenos aparentemente irreconciliáveis —, deve­mos reconhecer que a situação com que se depara a moderna teo­ria atômica é totalmente sem precedentes na história da ciência física. De fato, toda a estrutura conceituai da física clássica, leva­da a uma unificação e conclusão tão esplêndidas pelo trabalho de Einstein, assenta-se na suposição, bem adaptada a nossa expe­riência cotidiana dos fenômenos físicos, de que é possível discri­minar entre o comportamento dos objetos materiais e a prática de sua observação. Para um paralelo com a lição da teoria atômi­ca acerca da limitada aplicabilidade dessas idealizações costumei­ras, devemos nos voltar, na verdade, para ramos bem diferentes da ciência, como a psicologia, ou até para o tipo de problemas epistemológicos com que já se confrontavam pensadores como Buda e Lao Tsé, ao tentarem harmonizar nossas posições de es­

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pectadores e atores no grande drama da vida. Entretanto, o reco­nhecimento de uma analogia no caráter puramente lógico de pro­blemas que se apresentam em campos tão largamente separados do interesse humano não implica, de modo algum, que se aceite na física atômica qualquer misticismo que seja alheio ao verda­deiro espírito da ciência. Ao contrário, dá-nos um incentivo para examinar se a solução dos paradoxos inesperados com que depa­ramos na aplicação de nossos conceitos mais simples aos fenôme­nos atômicos não nos ajudaria a esclarecer dificuldades concei­tuais em outros campos da experiência.

Também não têm faltado sugestões de que se busque uma cor­relação direta entre a vida, ou o livre arbítrio, e aspectos dos fe­nômenos atômicos, para cuja compreensão o arcabouço da física clássica é, obviamente, estreito demais. De fato, é possível apontar muitos traços característicos das reações dos organismos vivos, como a sensibilidade da percepção visual ou a indução da muta­ção genética pela penetração da radiação, que sem dúvida impli­cam uma ampliação de efeitos dos processos atômicos individuais, semelhante àquela em que se baseia essencialmente a técnica expe­rimental da física atômica. Contudo, a simples constatação de que o refinamento dos mecanismos de organização e regulação dos seres vivos supera qualquer expectativa prévia não nos permite, de maneira alguma, explicar as características peculiares da vida. Com efeito, os chamados aspectos holísticos e finalistas dos fenô­menos biológicos decerto não podem ser imediatamente explica­dos pela característica de individualidade dos processos atômicos, revelada pela descoberta do quantum de ação; antes, o caráter es­sencialmente estatístico da mecânica quântica parece, à primeira vista, até mesmo aumentar as dificuldades de compreendermos as regularidades biológicas propriamente ditas. Nesse dilema, entre­tanto, a lição geral da teoria atômica sugere que o único modo de conciliar as leis da física com os conceitos adequados a uma des­crição dos fenômenos da vida é examinar a diferença essencial das condições de observação dos fenômenos físicos e biológicos.

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Antes de mais nada, devemos nos aperceber de que qualquer arranjo experimental com que possamos estudar o comportamen­to dos átomos que compõem um organismo, tal como isso pode ser feito com átomos isolados nos experimentos fundamentais da física atômica, elimina a possibilidade de manter vivo esse orga­nismo. Inseparavelmente ligada à vida, a troca incessante de ma­téria implica até mesmo a impossibilidade de encararmos um or­ganismo como um sistema bem definido de partículas materiais, à semelhança dos sistemas considerados em qualquer explicação das propriedades físico-químicas corriqueiras da matéria. De fa­to, somos levados a conceber as regularidades biológicas propria­mente ditas como representando leis da natureza complementares às que se adequam à explicação das propriedades dos corpos ina­nimados, numa analogia com a relação complementar que há entre as propriedades de estabilidade dos próprios átomos e um comportamento de suas partículas integrantes que permita uma descrição em termos da localização espaço-temporal. Nesse senti­do, a existência da própria vida deve ser considerada, no tocante a sua definição e observação, um postulado fundamental da bio­logia, não susceptível de análise posterior, do mesmo modo que a existência do quantum de ação, juntamente com a atomicidade última da matéria, compõe a base elementar da física atômica.

Veremos que esse ponto de vista está igualmente distante das doutrinas extremadas do mecanicismo e do vitalismo. Por um lado, ele condena como irrelevante qualquer comparação dos or­ganismos vivos com máquinas, sejam estas as construções relati­vamente simples imaginadas pelos antigos iatrofísicos, sejam os modernos dispositivos de amplificação, sumamente aperfeiçoados, cuja enfatização acrítica nos exporia a merecermos o apelido de “iatroquantistas” . Por outro lado, ele rejeita como irracionais to­das as tentativas de introduzir algum tipo de lei biológica especial que seja incompatível com as regularidades físicas e químicas já estabelecidas, como as que foram revividas, em nossa época, sob o impacto das maravilhosas revelações da embriologia a respeito do

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crescimento e da divisão celulares. Nesse contexto, convém lem­brar, em especial, que a possibilidade de evitar qualquer incoe­rência dessa ordem no âmbito da complementaridade é dada pelo próprio fato de que nenhum resultado da investigação biológica pode ser inequivocamente descrito de outra maneira que não em termos da física e da química, do mesmo modo que qualquer ex­plicação da experiência, mesmo na física atômica, tem que funda­mentar-se, em última instância, no uso dos conceitos indispensá­veis a um registro consciente das impressões sensoriais.

Esta última observação leva-nos de volta ao campo da psicolo­gia, no qual as dificuldades apresentadas pelos problemas de defi­nição e observação nas investigações científicas foram claramente reconhecidas, muito antes de essas questões terem-se agudizado na ciência natural. Com efeito, na experiência psíquica, a impos­sibilidade de distinguir entre os fenômenos em si e sua percepção consciente requer, claramente, a renúncia a uma simples descri­ção causai nos moldes da física clássica, e a própria maneira de usar palavras como “pensamentos” e “sentimentos” para descre­ver essa experiência nos relembra, muito sugestivamente, a com­plementaridade encontrada na física atômica. Não entrarei em maiores detalhes aqui. Quero apenas enfatizar que é justamente essa impossibilidade de distinguir com clareza o sujeito e o objeto, na introspecção, que proporciona o espaço necessário à manifes­tação da volição. No entanto, vincular mais diretamente o livre arbítrio à limitação da causalidade na física atômica, como mui­tas vezes se sugere, é totalmente alheio à tendência subjacente aos comentários feitos aqui sobre os problemas biológicos.

Para concluir esta exposição, espero que a temeridade em que consiste um físico aventurar-se tão além de seu campo restrito de ciência possa ser perdoada, em vista da tão bem-vinda oportuni­dade de discussões proveitosas que é oferecida aos físicos e biólo­gos por este encontro em honra da memória do grande pioneiro a cujas descobertas fundamentais esse dois ramos da ciência tanto devem.

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Filosofia natural e culturas humanas

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Foi com enorme hesitação que aceitei o gentil convite de me diri­gir a esta assembléia de distintos representantes das ciências an­tropológicas e etnográficas, das quais, como físico, naturalmente não tenho conhecimento em primeira mão. Contudo, nesta oca­sião especial, em que até as circunstâncias históricas falam a cada um de nós sobre outros aspectos da vida que não os discutidos no funcionamento normal dos congressos, talvez seja interessante tentar chamar sua atenção, em poucas palavras, para o aspecto epistemológico do recente desenvolvimento da filosofia natural e sua influência sobre os problemas humanos em geral. A despeito da grande separação entre nossos diferentes ramos de conheci­mento, a nova lição que se impôs aos físicos no tocante à cautela com que devem ser aplicadas todas as convenções usuais, tão logo deixemos de nos voltar para a experiência cotidiana, pode real­mente servir para nos lembrar, de nova maneira, os perigos, tão conhecidos dos humanistas, de julgar culturas desenvolvidas em outras sociedades a partir de nosso próprio ponto de vista.

Evidentemente, é impossível traçar uma distinção nítida entre a filosofia natural e a cultura humana. As ciências físicas, na ver­dade, são parte integrante de nossa civilização, não apenas pelo fato de nosso domínio cada vez maior das forças da natureza ha­ver modificado tão completamente as condições materiais da vi­da, mas também porque o estudo dessas ciências contribuiu mui­

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to para esclarecer os antecedentes de nossa própria existência. Nesse aspecto, que significado terá tido não mais nos conside­rarmos dotados do privilégio de viver no centro do universo, cercados por sociedades menos afortunadas, vivendo à beira do abismo, e sim, mediante o desenvolvimento da astronomia e da geografia, havermos reconhecido que todos dividimos um peque­no planeta esférico do sistema solar, que, por sua vez, é apenas uma pequena parte de sistemas ainda maiores? Quão imperiosa não foi também a advertência que recebemos, em nossa época, sobre a relatividade de todos os juízos humanos, através da revi­são renovada dos pressupostos subjacentes ao uso inambíguo até mesmo de nossos conceitos mais elementares, como o espaço e o tempo, os quais, ao revelarem a dependência especial em que es­tão todos os fenômenos físicos do ponto de vista do observador, tanto contribuíram para a unidade e a beleza de toda a nossa vi­são de mundo?

Embora a importância dessas grandes conquistas para nossa visão global seja comumente reconhecida, isso ainda mal chega a acontecer no tocante à insuspeitada lição epistemológica que nos deu a abertura de novíssimos campos de pesquisa física nos últi­mos anos. Nossa penetração no mundo dos átomos, antes vedado aos olhos do homem, é de fato uma aventura comparável às gran­des viagens de descobrimento dos circunavegadores e às ousadas explorações dos astrônomos nas profundezas do espaço celeste. Como se sabe, o maravilhoso desenvolvimento da arte da experi­mentação física não apenas eliminou os últimos vestígios da anti­ga crença em que a precariedade de nossos sentidos nos impediría permanentemente de obter informações diretas sobre os átomos individuais, como até nos mostrou que os próprios átomos com­põem-se de corpúsculos ainda menores, que podem ser isolados e cujas propriedades podem ser investigadas separadamente. Ao mesmo tempo, entretanto, nesse fascinante campo da experimen­tação, aprendemos que as leis da natureza até então conhecidas, que compõem o grande edifício da física clássica, só são válidas

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ao lidarmos com corpos formados por um número praticamente infinito de átomos. De fato, o novo conhecimento concernente ao comportamento de átomos individuais e dos corpúsculos atômi­cos revelou um limite inesperado para a subdivisão de todas as ações físicas, que ultrapassa em muito a antiga doutrina da divi- sibilidade restrita da matéria e confere a cada processo atômico um caráter individual peculiar. Essa descoberta, com efeito, gerou uma novíssima base para que se compreenda a estabilidade intrín­seca das estruturas atômicas, a qual, em última instância, con­diciona as regularidades de todas as experiências corriqueiras.

Quão radical foi a mudança promovida por esse avanço da física atômica em nossa atitude perante a descrição da natureza talvez possa ser mais claramente ilustrado pelo fato de que até o princípio da causalidade, antes considerado o fundamento incon­testável de toda interpretação dos fenômenos naturais, revelou-se um referencial estreito demais para abarcar as regularidades sin­gulares que regem os processos atômicos individuais. Sem dúvida, todos hão de compreender que os físicos precisaram de razões muito convincentes para renunciar ao próprio ideal de causalida­de; mas, no estudo dos fenômenos atômicos, foi-nos repetidamen­te ensinado que questões que se acreditava terem recebido suas respostas finais há muito tempo haviam reservado para nós as mais inesperadas surpresas. Todos vocês, por certo, terão ouvido falar dos enigmas relativos às propriedades mais elementares da luz e da matéria, que tanto intrigaram os físicos nos últimos anos. As aparentes contradições com que deparamos a esse respeito são, na verdade, tão agudas quanto as que deram origem ao de­senvolvimento da teoria da relatividade no começo deste século e, tal como esta, só encontraram explicação através de um exame mais rigoroso do limite imposto pelas próprias novas experiências ao uso inambíguo dos conceitos que entram na descrição dos fe­nômenos. Enquanto, na teoria da relatividade, o ponto decisivo foi o reconhecimento dos modos essencialmente diferentes pelos quais observadores em movimento em relação uns aos outros des­

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crevem o comportamento dos objetos, a elucidação dos parado­xos da física atômica revelou o fato de que a inevitável interação dos objetos e dos instrumentos de medida instaura um limite ab­soluto à possibilidade de falarmos de um comportamento dos ob­jetos atômicos que independa dos meios de observação.

Estamos diante de um problema epistemológico bastante novo na filosofia natural. No âmbito desta, toda descrição das expe­riências, até então, baseara-se no pressuposto, já inerente às con­venções comuns da linguagem, de que é possível traçar uma dis­tinção nítida entre o comportamento dos objetos e os meios de observação. Esse pressuposto é não só plenamente justificado por toda a experiência cotidiana, como constitui, inclusive, toda a base da física clássica, a qual, justamente pela teoria da relati­vidade, recebeu um arremate tão maravilhoso. No entanto, tão logo começamos a lidar com fenômenos como os processos atô­micos individuais — que, por sua própria natureza, são essen­cialmente determinados pela interação dos objetos em questão e dos instrumentos de medida necessários à definição dos projetos experimentais —, somos forçados a examinar mais de perto a questão do tipo de conhecimento que se pode obter com respeito aos objetos. Nesse aspecto, devemos reconhecer, por um lado, que a meta de todo experimento físico — obter conhecimento em condições passíveis de ser reproduzidas e comunicadas — deixa- nos sem outra alternativa senão utilizar conceitos cotidianos, tal­vez aperfeiçoados pela terminologia da física clássica, não apenas em todos os relatos da construção e manipulação dos instrumen­tos de medida, mas também na descrição dos resultados experi­mentais efetivamente obtidos. Por outro lado, é igualmente im­portante compreender que justamente essa situação implica que nenhum resultado de um experimento concernente a um fenôme­no que, em princípio, esteja fora do âmbito da física clássica pode ser interpretado como dando informações sobre propriedades in­dependentes dos objetos; está, antes, intrinsecamente ligado a uma situação definida, em cuja descrição os instrumentos de me­

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dida que interagem com os objetos também têm uma participa­ção essencial. Este último fato explica as contradições aparentes que surgem quando os resultados obtidos sobre objetos atômicos por diferentes processos experimentais são provisoriamente com­binados numa imagem autônoma do objeto.

Entretanto, as informações sobre o comportamento de um ob­jeto atômico, obtidas em condições experimentais definidas, po­dem, segundo uma terminologia freqüentemente usada na física atômica, ser satisfatoriamente caracterizadas como complemen­tares a qualquer informação sobre o mesmo objeto, obtida por um outro arranjo experimental que exclua o atendimento das pri­meiras condições. Embora esses tipos de informação não possam ser combinados num quadro único por meio de conceitos co­muns, eles de fato representam aspectos igualmente essenciais de qualquer conhecimento do objeto em questão que se possa obter nesse campo. O reconhecimento desse caráter complementar das analogias mecânicas pelas quais se tem tentado visualizar os efei­tos radiantes individuais levou, de fato, a uma solução totalmente satisfatória dos enigmas das propriedades da luz a que aludimos anteriormente. Do mesmo modo, foi somente levando em conta a relação complementar entre as diferentes experiências sobre o comportamento dos corpúsculos atômicos que se tornou possível obter uma pista para compreender o contraste marcante entre as propriedades dos modelos mecânicos comuns e as leis peculiares de estabilidade que regem as estruturas atômicas, que compõem a base de qualquer explicação mais exata das propriedades físicas e químicas específicas da matéria.

É claro que não tenho nenhuma intenção, nesta oportunidade, de examinar mais de perto esses detalhes. Mas espero ter sido capaz de lhes transmitir uma impressão suficientemente clara de que não estamos, de modo algum, envolvidos numa renúncia ar­bitrária no que tange à análise pormenorizada da riqueza quase esmagadora de nossa experiência no campo dos átomos, que vem crescendo rapidamente. Ao contrário, temos que enfrentar o de­

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safio de um desenvolvimento racional de nossos meios de classi­ficar e compreender novas experiências que, por seu próprio ca­ráter, não se encaixam no arcabouço da descrição causai. Esta só é adequada à explicação do comportamento dos objetos na medi­da em que esse comportamento independa dos meios de observa­ção. Longe de conter qualquer misticismo contrário ao espírito da ciência, o ponto de vista da complementaridade consiste, na verdade, numa generalização coerente do ideal de causalidade.

Por mais inesperada que possa afigurar-se essa ocorrência no campo da física, estou certo de que muitos de vocês terão reco­nhecido a estreita analogia entre a situação referente à análise dos fenômenos atômicos, que descrevi, e alguns aspectos característi­cos do problema da observação da psicologia humana. Com efei­to, podemos dizer que a tendência da psicologia moderna pode ser caracterizada como uma reação à tentativa de decompor a ex­periência psíquica em elementos que se possam associar da mes­ma maneira que os resultados das mensurações na física clássica. Na introspecção, é claramente impossível traçar uma distinção ní­tida entre os fenômenos em si e sua percepção consciente, e, em­bora muitas vezes falemos em voltar nossa atenção para algum aspecto particular da experiência psíquica, um exame mais detido evidencia que efetivamente lidamos, nesses casos, com situações mutuamente excludentes. Todos conhecemos o antigo provérbio que diz que, se tentarmos analisar nossas emoções, dificilmente continuaremos a possuí-las. Nesse sentido, reconhecemos entre as experiências psíquicas, para cuja descrição se usam adequa­damente termos como “pensamentos” e “sentimentos” , uma re­lação de complementaridade semelhante à que existe entre ex­periências referentes ao comportamento dos átomos obtidas em diferentes projetos experimentais, e descritas por meio de diferen­tes analogias extraídas de nossas idéias habituais. Com essa com­paração, é claro, de modo algum se pretende sugerir uma relação mais estreita entre a física atômica e a psicologia, mas apenas fri­sar uma questão epistemológica que é comum a ambos os cam­

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pos, e, desse modo, nos incentivar a verificar até onde a solução de problemas físicos relativamente simples pode ser útil para es­clarecer as mais intricadas questões psicológicas com que nos confronta a vida humana, e com as quais os antropólogos e etnó­logos deparam com tanta freqüência em suas investigações.

Agora, aproximando-nos mais de nosso tema — o da perti­nência desses pontos de vista para a comparação das diferentes culturas humanas —, frisaremos, de início, a típica relação de complementaridade que existe entre os modos de comportamen­to dos seres humanos caracterizados pelas palavras “ instinto” e “razão” . Qualquer dessas palavras é usada em sentidos muito diferentes; instinto pode significar poder motivador ou compor­tamento herdado, e razão tanto pode denotar um juízo mais pro­fundo quanto uma argumentação consciente. O que nos interes­sa, entretanto, é apenas a maneira prática como essas palavras são usadas para distinguir as diferentes situações em que se en­contram os animais e o homem. Ninguém há de negar, é claro, nosso pertencimento ao mundo animal, e seria até difícil en­contrar uma definição exaustiva que distinguisse o homem e os outros animais. A rigor, as possibilidades latentes de qualquer organismo vivo não são fáceis de aquilatar, e creio não haver nenhum de nós que, em algum momento, não tenha ficado pro­fundamente impressionado com o grau em que os animais de cir­co podem ser adestrados. Nem mesmo no que tange à transmis­são de informações de um indivíduo para outro seria possível traçar uma distinção nítida entre os animais e o homem, embora, é claro, nosso poder de usar a linguagem nos coloque, nesse aspecto, numa situação essencialmente diferente, não apenas na troca de experiências práticas como, antes de mais nada, na pos­sibilidade de transmitir às crianças, através da educação, as tra­dições referentes ao comportamento e ao raciocínio que com­põem a base de qualquer cultura humana.

Com respeito à comparação entre razão e instinto, é essencial, acima de tudo, reconhecer que nenhum pensamento humano pro­

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priamente dito é imaginável sem a utilização de conceitos, enun­ciados numa linguagem que cada geração tem que reaprender. Esse uso dos conceitos, de fato, não apenas elimina a vida instintiva em larga medida, como também, em grau ainda maior, mantém uma relação única de complementaridade com o sortimento dos instin­tos herdados. Comparada à do homem, a espantosa superioridade dos animais inferiores na utilização das possibilidades da natureza para a manutenção e a propagação da vida decerto encontra sua verdadeira explicação, com freqüência, no fato de que, nesses ani­mais, não podemos identificar nenhum pensamento consciente, em nossa acepção da palavra. Da mesma forma, a surpreendente capacidade dos chamados povos primitivos de se orientar em flo­restas ou desertos, a qual, embora aparentemente perdida nas so­ciedades mais civilizadas, pode ocasionalmente ser revivida em qualquer um de nós, talvez justifique a conclusão de que esses feitos só são possíveis quando não se recorre ao pensamento con­ceituai, que, por sua vez, está adaptado a finalidades muito mais variadas, de importância fundamental para o desenvolvimento da civilização. Pelo simples fato de ainda não haver despertado para o uso dos conceitos, uma criança recém-nascida dificilmente pode ser considerada um ser humano; mas, por pertencer à espécie hu­mana, ela tem, é claro, apesar de ser uma criatura mais desampa­rada do que a maioria dos filhotes de animais, as possibilidades orgânicas de receber, através da educação, uma cultura que lhe permitirá ocupar seu lugar em alguma sociedade humana.

Essas considerações nos colocam prontamente diante da ques­tão de saber se a difundida crença em que toda criança nasce com uma predisposição para adotar uma cultura humana específica é realmente bem fundada, ou se não se deve presumir, antes, que qualquer cultura pode ser implantada e vicejar tendo suportes fí­sicos muito diferentes. Tocamos aí, é claro, num tema de con­trovérsias ainda não resolvidas entre os geneticistas, que têm rea­lizado estudos muito interessantes sobre a herança dos caracteres físicos. No contexto desses debates, entretanto, devemos ter em

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mente, acima de tudo, que a distinção entre os conceitos de genó- tipo e fenótipo, tão fecunda para esclarecer a hereditariedade nas plantas e nos animais, pressupõe essencialmente a influência se­cundária das condições externas de vida sobre as propriedades características da espécie. No caso das características culturais específicas das sociedades humanas, entretanto, o problema se inverte, no sentido de que a base da classificação, nesse caso, são os hábitos tradicionais moldados pela história das sociedades e seus ambientes naturais. Esses hábitos, assim como seus pressu­postos inerentes, devem ser detidamente analisados para que se possa avaliar qualquer possível influência das diferenças biológi­cas herdadas no desenvolvimento e na manutenção das culturas em causa. De fato, ao caracterizar diferentes nações e até diferen­tes famílias dentro de uma nação, podemos considerar os traços biológicos e as tradições espirituais, em larga medida, como sen­do independentes uns dos outros. Seria inclusive tentador reservar o adjetivo “humano”, por definição, para as características que não estão diretamente ligadas à herança corporal.

À primeira vista, talvez pareça que essa atitude equivalería a uma enfatização indevida de aspectos meramente dialéticos. Mas a lição que recebemos de todo o crescimento das ciências físicas é que o germe do desenvolvimento fecundo reside, com freqüência, justamente na escolha adequada das definições. Ao pensarmos, por exemplo, no esclarecimento trazido em vários ramos da ciên­cia pela argumentação da teoria da relatividade, vemos, efetiva­mente, o avanço que pode haver nesses aperfeiçoamentos formais. Como já sugeri em momentos anteriores desta exposição, os pon­tos de vista relativistas decerto também são úteis para promover uma atitude mais objetiva para com as relações entre as culturas humanas, cujas diferenças tradicionais podem assemelhar-se, sob muitos aspectos, às maneiras diferentes e equivalentes pelas quais se pode descrever a experiência física. Contudo, essa analogia en­tre os problemas físicos e os humanísticos tem um alcance limita­do, e seu exagero chegou a produzir uma apreensão equivocada da

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essência da própria teoria da relatividade. A rigor, a unidade da imagem relativista do mundo implica, precisamente, a possibilida­de de que qualquer observador preveja, dentro de seu arcabouço conceituai, como um outro observador irá descrever a experiência dentro do arcabouço que lhe é natural. O principal obstáculo a uma atitude não preconceituosa para com a relação entre as várias culturas humanas, entretanto, são as diferenças profundamente arraigadas dos antecedentes tradicionais em que se baseia a har­monia cultural nas diferentes sociedades humanas, e que excluem qualquer comparação simplista entre essas culturas.

É nesse contexto, acima de tudo, que o ponto de vista da com­plementaridade se oferece como um meio de lidar com a situação. De fato, ao estudarmos culturas humanas diferentes das nossas, temos que lidar com um problema particular de observação que, ante um exame mais rigoroso, mostra muitos traços em comum com os problemas atômicos ou psicológicos, nos quais a intera­ção dos objetos e dos instrumentos de medida, ou a inseparabi- lidade entre conteúdo objetivo e sujeito observador, impede uma aplicação imediata das convenções adequadas à explicação das experiências da vida cotidiana. Especialmente no estudo das cul­turas de povos primitivos, os etnólogos não apenas estão efetiva­mente cônscios do risco de corromper essas culturas através do contato necessário, como até se confrontam com o problema da repercussão desses estudos em sua própria atitude humana. O da­do a que aludo aqui é a experiência, bastante conhecida dos ex­ploradores, do abalo imposto a seus preconceitos, até então não reconhecidos, pela experiência da insuspeitada harmonia inter­na que a vida humana pode apresentar até mesmo em meio a convenções e tradições radicalmente diferentes das deles. Como um exemplo especialmente drástico, talvez eu possa lembrar-lhes, neste momento, até que ponto, em algumas sociedades, os papéis dos homens e das mulheres se invertem, não apenas com respeito aos deveres domésticos e sociais, mas também no tocante ao com­portamento e à mentalidade. Ainda que muitos de nós, numa si­

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tuação como essa, possamos talvez hesitar, a princípio, em admi­tir a possibilidade de que seja um mero capricho do destino que as pessoas em questão tenham sua cultura específica, e não a nossa, e que nós não tenhamos a deles em vez da nossa, está claro que até a mais ínfima suspeita nesse aspecto implica um desvelamento da complacência nacional inerente a qualquer cultura humana alicerçada em si mesma.

Usando a palavra tal como é usada, na física atômica, para caracterizar a relação entre experiências obtidas por diferentes arranjos experimentais, e visualizáveis apenas por idéias mutua­mente excludentes, podemos dizer que as diferentes culturas hu­manas são complementares entre si. Com efeito, cada uma dessas culturas representa um equilíbrio harmonioso de convenções tra­dicionais por cujo meio as potencialidades da vida humana po­dem manifestar-se, de um modo que nos revela novos aspectos de sua ilimitada riqueza e variedade. Naturalmente, não há possibili­dade, nesse campo, de nenhuma relação absolutamente excluden- te, como as que se constatam entre experimentos complementares sobre o comportamento de objetos atômicos bem definidos, já que dificilmente haveria alguma cultura que se pudesse dizer ple­namente autônoma. Ao contrário, todos sabemos, por numerosos exemplos, como o contato mais ou menos íntimo entre diferentes sociedades humanas pode levar a uma fusão gradativa das tradi­ções, dando origem a uma cultura inteiramente nova. Nesse as­pecto, nem é preciso lembrar a importância da miscigenação das populações, através da emigração ou da conquista, para o avanço da civilização humana. Na verdade, a grande perspectiva dos es­tudos humanistas talvez consista em eles contribuírem, através de um crescente conhecimento da história e do desenvolvimento cul­turais, para a eliminação gradativa dos preconceitos, que é a meta comum de todas as ciências.

Como frisei no início desta exposição, está muito além de mi­nha capacidade, é claro, contribuir de maneira direta para a solu­ção dos problemas discutidos entre os especialistas neste congres­

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so. Meu único propósito foi transmitir impressões sobre uma pos­tura epistemológica geral que fomos forçados a adotar, num cam­po tão distante das paixões humanas quanto a análise de simples experimentos físicos. Não sei, no entanto, se terei encontrado as palavras certas para lhes transmitir esta impressão e, antes de con­cluir, talvez me seja permitido relatar uma experiência que, certa vez, lembrou-me muito vividamente minhas deficiências nesse as­pecto. Para explicar a uma platéia que eu não estava usando a palavra preconceito para produzir nenhuma condenação de ou­tras culturas, referi-me, em tom de brincadeira, aos preconceitos tradicionais que os dinamarqueses alimentam em relação a seus irmãos suecos, situados lá fora destas janelas na margem oposta do belo Oresund, com quem lutamos durante séculos dentro das próprias muralhas deste castelo, e de quem recebemos, pelo conta­to ao longo das eras, tão frutífera inspiração. Bem, os senhores podem imaginar o choque que tive quando, depois de minha ex­posição, um membro da platéia aproximou-se de mim e disse que não conseguia entender por que eu odiava os suecos. Obviamente, devo ter-me expressado de maneira muito confusa naquela oca­sião, e temo que também hoje tenha falado de modo muito obscu­ro. Ainda assim, espero não ter falado com tanta falta de clareza a ponto de dar margem a mal-entendidos desse tipo quanto à orien­tação de meus argumentos.

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O debate com Einstein sobre problemas epistemológicos na física atômica

1949

Ao ser convidado pelo Editor da série Filósofos Vivos a redigir um artigo para este volume/' no qual cientistas contemporâneos ho­menageiam as contribuições decisivas de Albert Einstein para o progresso da filosofia natural e reconhecem a dívida de toda a nos­sa geração para com a orientação que sua genialidade nos deu, re­fleti muito sobre a melhor maneira de explicar o quanto devo a ele em matéria de inspiração. Nesse contexto, as muitas ocasiões, ao longo dos anos, em que tive o privilégio de debater com Einstein os problemas epistemológicos suscitados pelo moderno desenvolvi­mento da física atômica voltaram-me vividamente à lembrança, e achei que dificilmente eu poderia tentar fazer melhor do que forne­cer um relato dessas discussões, que me foram do máximo valor e estímulo. Espero também que o relato possa transmitir a círculos mais amplos uma impressão de quão essencial foi a troca franca de idéias para o progresso num campo em que, vez após outra, a ex­periência nova exigiu um reexame de nossas concepções.

Desde o começo, a principal questão em debate foi a atitude a adotar perante o afastamento dos princípios costumeiros da filo­sofia natural, característico do desenvolvimento inédito da física *

* Trata-se do livro Albert Einstein: Philosopber-Scientist, Evanston, Illinois, The Library of Living Philosophers, Inc., v. 7, 1949. (N. do E.)

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que foi iniciado, no primeiro ano deste século, pela descoberta do quantum universal de ação por Planck. Essa descoberta, que revelou uma característica de atomicidade nas leis da nature­za que superava em muito a antiga doutrina da divisibilidade li­mitada da matéria, de fato nos ensinou que as teorias clássicas da física são idealizações, que só podem ser aplicadas de forma inambígua se todas as ações envolvidas forem grandes em com­paração com o quantum. A questão em debate era saber se a re­núncia a um modo causai de descrever os processos atômicos, implicada nos esforços de lidar com essa situação, deveria ser encarada como um afastamento temporário de ideais a serem re­vividos em última instância, ou se estaríamos diante de um passo irrevogável para chegar à harmonia adequada entre a análise e a síntese dos fenômenos físicos. Para descrever os antecedentes de nossas discussões e expor com a máxima clareza possível os argumentos usados pelos pontos de vista contrastantes, achei ne­cessário deter-me um pouco na rememoração de alguns aspectos do desenvolvimento para o qual o próprio Einstein contribuiu tão decisivamente.

Como se sabe, a estreita relação, originalmente elucidada por Boltzmann, entre as leis da termodinâmica e as regularidades es­tatísticas exibidas pelos sistemas mecânicos com muitos graus de liberdade norteou Planck em sua engenhosa abordagem do pro­blema da radiação térmica, levando-o a sua descoberta funda­mental. Enquanto, em seu trabalho, Planck interessou-se primor­dialmente por considerações de caráter essencialmente estatístico e, com grande cautela, absteve-se de conclusões definitivas sobre a extensão em que a existência do quantum acarretava um afasta­mento dos fundamentos da mecânica e da eletrodinâmica, a gran­de contribuição original de Einstein para a teoria quântica (1905) foi justamente o reconhecimento de como alguns fenômenos físi­cos, tais como o efeito fotoelétrico, podem depender diretamente de efeitos quânticos individuais.1 Nesses mesmos anos em que, na elaboração de sua teoria da relatividade, Einstein lançou novas

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bases para a ciência física, ele explorou com espírito intrépido os aspectos inéditos da atomicidade que apontavam para além do arcabouço da física clássica.

Com intuição infalível, Einstein foi gradativamente levado à conclusão de que qualquer processo de radiação implica a emis­são ou a absorção de quanta individuais de luz, ou “fótons” , que apresentam, respectivamente, energia e momento

E - hv e E - ha ̂ (1)

onde h é a constante de Planck, enquanto v e a são o número de vibrações por unidade de tempo e o número de ondas por unidade de comprimento, respectivamente. Apesar de sua fertilidade, a idéia do fóton gerou um dilema bastante imprevisto, já que qual­quer imagem corpuscular simples da radiação seria irreconciliá- vel, obviamente, com os efeitos de interferência, que são um as­pecto essencial dos fenômenos radiantes e só podem ser descritos nos termos de uma imagem ondulatória. A agudeza desse dilema é enfatizada pelo fato de que os efeitos de interferência fornecem nosso único meio de definir os conceitos de freqüência e compri­mento de onda, que entram nas próprias expressões da energia e do momento do fóton.

Nessa situação, não havia como tentar empreender uma análi­se causai dos fenômenos radiantes, mas tão-somente, através do uso conjunto das imagens contrastantes, estimar as probabilida­des de ocorrência dos processos individuais de radiação. Todavia, é muito importante perceber que o recurso às leis da probabilida­de, nessas circunstâncias, tem um objetivo essencialmente diferen­te do conhecido emprego das considerações estatísticas como um meio prático de explicar as propriedades de sistemas mecânicos de grande complexidade estrutural. De fato, na física quântica, não nos confrontamos com complexidades desse tipo, mas com a incapacidade do quadro clássico de conceitos de abarcar o traço peculiar da indivisibilidade, ou “individualidade” , que caracteri­za os processos elementares.

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A falha das teorias da física clássica em dar conta dos fenô­menos atômicos foi ainda mais acentuada pelo avanço de nossos conhecimentos sobre a estrutura dos átomos. Acima de tudo, a descoberta do núcleo atômico por Rutherford (1911) logo revelou como os conceitos mecânicos e eletromagnéticos clássicos eram in­suficientes para explicar a estabilidade intrínseca do átomo. Aqui, mais uma vez, a teoria quântica forneceu uma pista para elucidar a situação. Em especial, verificou-se ser possível explicar a estabili­dade atômica, bem como as leis empíricas que regem os espectros dos elementos, presumindo que qualquer reação do átomo que re­sulte numa alteração de sua energia implicava uma transição com­pleta entre dois chamados estados quânticos estacionários, e que, em particular, os espectros eram emitidos por um processo abrup­to, em que cada transição era acompanhada pela emissão de um quantum de luz monocromática, de energia exatamente igual à de um fóton de Einstein.

Essas idéias, que logo foram confirmadas pelos experimentos de Franck e Hertz (1914) sobre a excitação de espectros pelo im­pacto dos elétrons nos átomos, provocaram uma nova renúncia à modalidade de descrição causai, já que, evidentemente, a interpre­tação das leis espectrais implica que um átomo em estado de exci­tação tem, em geral, a possibilidade de transições, com emissão de fótons, para um ou outro de seus estados de energia mais baixa.De fato, a própria idéia de estados estacionários é incompatível

£'com qualquer diretriz para a escolha entre essas transições, e dá margem apenas à noção das probabilidades relativas dos pro­cessos individuais de transição. O único guia para estimar essas probabilidades era o chamado princípio da correspondência, ori­ginário da busca da mais estreita ligação possível entre a explica­ção estatística dos processos atômicos e as conseqüências a serem esperadas da teoria clássica, que deveria ser válida dentro dos li­mites em que as ações envolvidas em todos os estágios da análise dos fenômenos fossem grandes quando comparadas ao quantum universal.

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O D EBATE COM EIN STEIN 45

Nessa época, ainda não se vislumbrava nenhuma teoria quân- tica dotada de coerência interna. A atitude vigente talvez possa ser ilustrada pela seguinte passagem de uma palestra feita pelo autor em 1913:2

Espero ter-me expressado com suficiente clareza para que vo­cês possam avaliar o grau em que essas considerações entram em conflito com o esquema de concepções admiravelmente coerente que, com acerto, se denominou de teoria clássica da eletrodinâmica. Por outro lado, tentei transmitir-lhes a im­pressão de que — justamente pelo vigor desse conflito — tal­vez também seja possível, no correr do tempo, estabelecer uma certa coerência nas novas idéias.

Um importante avanço no desenvolvimento da teoria quântica foi feito pelo próprio Einstein, em seu famoso artigo de 1917 so­bre o equilíbrio radiante,3 no qual ele mostrou que a lei de radia­ção térmica de Planck podia ser deduzida, de forma simples, de pressupostos compatíveis com as idéias básicas da teoria quân­tica da constituição dos átomos. Para esse fim, Einstein formulou regras estatísticas gerais sobre a ocorrência de transições radian­tes entre os estados estacionários, presumindo não apenas que, quando o átomo é exposto a um campo de radiação, os processos de absorção e emissão ocorrem com uma probabilidade por uni­dade de tempo que é proporcional à intensidade da radiação, mas também que, mesmo na ausência de perturbações externas, ocor­rem processos espontâneos de emissão numa taxa correspon­dente a uma certa probabilidade a priori. Quanto a este último ponto, Einstein enfatizou o caráter fundamental da descrição es­tatística de maneira muito sugestiva, chamando a atenção para a analogia existente entre os pressupostos relativos à ocorrência das transições radiantes espontâneas e as conhecidas leis que re­gem as transformações das substâncias radioativas.

No contexto de um exame minucioso das exigências da termo­dinâmica com respeito aos problemas da radiação, Einstein frisou

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ainda mais o dilema, assinalando que a argumentação implicava que qualquer processo de radiação era “unidirecional” , no senti­do de que não só o momento correspondente a um fóton na dire­ção da propagação é transferido para um átomo no processo de absorção, mas também de que o átomo emissor recebe um impul­so equivalente na direção oposta, embora, na imagem ondulató- ria, não se possa falar em preferência por uma direção única num processo de emissão. A atitude do próprio Einstein perante essas surpreendentes conclusões foi expressa numa passagem no fim de seu artigo (loc. cit., p. 127s), que pode ser traduzida da seguinte maneira:

Esses aspectos dos processos elementares parecem tornar qua­se inevitável o desenvolvimento de um tratamento quântico apropriado da radiação. O ponto fraco da teoria reside em que, por um lado, não se pode obter nenhuma ligação mais estreita com os conceitos ondulatórios, e, por outro, ela deixa ao acaso [Zufall] o tempo e a direção dos processos elementa­res; não obstante, tenho plena confiança na fidedignidade do caminho pelo qual se enveredou.

Quando tive a grande experiência de me encontrar com Eins­tein pela primeira vez, durante uma visita a Berlim em 1920, essas questões fundamentais foram o tema de nossas conversas. As dis­cussões, às quais voltei com freqüência em meu pensamento, acrescentaram a toda a minha admiração por Einstein uma pro­funda impressão quanto a sua atitude imparcial. Certamente, o uso que ele favorecia de expressões pitorescas, como “ondas fan­tasmas [Gespensterfelder] a guiar os fótons” , não implicava ne­nhuma tendência ao misticismo, mas ilustrava, antes, um pro­fundo senso de humor por trás de suas penetrantes observações. Contudo, persistiu uma certa diferença de atitude e visão, já que, com sua capacidade magistral de coordenar experiências aparen­temente contrastantes sem abandonar a continuidade e a causali­dade, Einstein talvez tenha relutado mais em renunciar a esses

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ideais do que alguém para quem a renúncia, nesse aspecto, se afi­gurasse a única maneira de prosseguir na tarefa imediata de coor­denar os múltiplos dados referentes aos fenômenos atômicos, que se acumulavam dia a dia na exploração desse novo campo do conhecimento.

Nos anos subseqüentes, durante os quais os problemas atômi­cos atraíram a atenção de um círculo cada vez maior de físicos, as aparentes contradições inerentes à teoria quântica foram ainda mais agudamente sentidas. Ilustrativo dessa situação foi o debate suscitado pela descoberta do efeito de Stern-Gerlach em 1922. Por um lado, esse efeito deu marcante respaldo à idéia de estados esta­cionários e, em particular, à teoria quântica do efeito Zeeman, desenvolvida por Sommerfeld; por outro, como foi muito clara­mente exposto por Einstein e Ehrenfest,4 ele cumulou de dificulda­des insuperáveis qualquer tentativa de se fazer uma imagem do comportamento dos átomos num campo magnético. Paradoxos similares foram suscitados pela descoberta, por Compton (1924), da alteração do comprimento de onda que acompanhava o es- palhamento dos raios X pelos elétrons. Esse fenômeno, como se sabe, proporcionou uma prova extremamente direta de como era adequada a opinião de Einstein acerca da transferência de energia e momento nos processos radiantes; ao mesmo tempo, ficou igual­mente claro que nenhum modelo simplista de uma colisão cor- puscular podia oferecer uma descrição exaustiva do fenômeno. Sob o impacto dessas dificuldades, houve quem tivesse dúvidas, por algum tempo, até mesmo a respeito da conservação da energia e do momento nos processos radiantes individuais; 5 mas essa vi­são logo teve de ser abandonada, diante de experimentos mais aperfeiçoados, que destacaram a correlação entre a deflexão do fóton e o recuo correspondente do elétron.

A rigor, o terreno para o esclarecimento da situação seria ini­cialmente calçado pela elaboração de uma teoria quântica mais abrangente. Um passo inicial em direção a essa meta foi o reco­

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nhecimento por De Broglie, em 1925, de que a dualidade onda- corpúsculo não se restringia às propriedades da radiação, mas era igualmente inevitável na explicação do comportamento das partículas materiais. Essa idéia, que logo foi convincentemente confirmada por experiências com fenômenos de interferência de elétrons, foi prontamente acolhida por Einstein, que já tinha vis­lumbrado a profunda analogia entre as propriedades da radia­ção térmica e dos gases no chamado estado degenerado.6 A no­va orientação foi seguida com extremo êxito por Schrõdinger (1926), que mostrou, em particular, como os estados estacioná­rios dos sistemas atômicos podiam ser representados pelas solu­ções apropriadas de uma equação de onda a cujo estabelecimen­to ele foi levado pela analogia formal, originalmente traçada por Hamilton, entre os problemas mecânicos e os ópticos. Mesmo assim, os aspectos paradoxais da teoria quântica não só não fo­ram sanados, mas foram até enfatizados pela aparente contra­dição entre as exigências do princípio de superposição geral da descrição ondulatória e a característica de individualidade dos processos atômicos elementares.

Ao mesmo tempo, Heisenberg (1925) havia lançado as bases de uma mecânica quântica racional, rapidamente desenvolvida mediante importantes contribuições de Born e Jordan, bem como de Dirac. Nessa teoria, introduziu-se um formalismo em que as variáveis cinemáticas e dinâmicas da mecânica clássica foram substituídas por símbolos sujeitos a uma álgebra não comutativa. A despeito da renúncia às imagens orbitais, as equações canônicas da mecânica de Hamilton mantiveram-se inalteradas, e a constan­te de Planck entrou somente nas regras de comutação

(2 )

aplicáveis a qualquer conjunto de variáveis conjugadas q e p. Através de uma representação dos símbolos por matrizes com ele­mentos referentes às transições entre os estados estacionários, tor­

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nou-se possível, pela primeira vez, uma formulação quantitativa do princípio da correspondência. Convém lembrar aqui que um importante passo preliminar em direção a essa meta foi dado pelo estabelecimento, sobretudo pelas contribuições de Kramers, de uma teoria quântica da dispersão, que se serviu basicamente das regras gerais de Einstein sobre a probabilidade de ocorrência dos processos de absorção e emissão.

Esse formalismo da mecânica quântica logo revelou, através de Schrõdinger, fornecer resultados idênticos aos obteníveis pelos métodos amiúde mais convenientes, em termos matemáticos, da teoria ondulatória. Aos poucos, nos anos subseqüentes, estabe­leceram-se métodos gerais para uma descrição essencialmente quantitativa dos processos atômicos, combinando as caracterís­ticas de individualidade e os requisitos do princípio de superposi­ção, igualmente característico da teoria quântica. Dentre os mui­tos avanços desse período, podemos mencionar, em especial, que o formalismo revelou-se capaz de incorporar o princípio de ex­clusão que rege os estados dos sistemas com diversos elétrons, e que, antes mesmo do advento da mecânica quântica, já fora de­duzido por Pauli de uma análise dos espectros atômicos. A com­preensão quantitativa de um vasto volume de dados empíricos não podia deixar dúvidas quanto à fecundidade e à adequação do formalismo quântico, mas seu caráter abstrato deu origem a um sentimento muito difundido de mal-estar. Na verdade, elucidar a situação iria exigir um exame minucioso do próprio problema observacional da física atômica.

Essa fase do desenvolvimento foi, como se sabe, iniciada em 1927 por Heisenberg,7 que assinalou que o conhecimento obtení­vel sobre o estado de um sistema atômico sempre envolvería uma “indeterminação” peculiar. Qualquer medida da posição de um elétron por meio de um aparelho, tal como o microscópio, que utilize radiação de alta freqüência estará, segundo as relações fun­damentais (1), ligada a uma troca de momento entre o elétron e o instrumento de medida, que será tão maior quanto mais exata for

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a medida da posição que se procurar obter. Comparando essas considerações com as exigências do formalismo quântico, Heisen- berg chamou atenção para o fato de que a regra de comutação (2) impõe uma limitação recíproca na fixação de duas variáveis con­jugadas, q e p, expressas pela relação

Aq - Ap ~ h , (3)

onde Aq e Ap são incertezas"' em p e q adequadamente definidas na determinação dessas variáveis. Ao apontar para a íntima liga­ção entre a descrição estatística da mecânica quântica e as possibi­lidades efetivas de medida, essa chamada relação de indetermina- ção* * * foi, como mostrou Heisenberg, de suma importância para elucidar os paradoxos envolvidos nas tentativas de analisar os efei­tos quânticos tendo como referência as visões físicas costumeiras.

O novo progresso da física atômica foi comentado sob vários ângulos no Congresso Internacional de Física realizado em Como, em setembro de 1927, em comemoração a Volta. Numa palestra feita nessa ocasião,8 defendi um ponto de vista convenientemente denominado “complementaridade” , próprio para abranger os tra­ços característicos de individualidade dos fenômenos quânticos e, ao mesmo tempo, esclarecer os aspectos peculiares do problema observacional nesse campo da experiência. Para esse fim, é decisi­vo reconhecer que, por mais que os fenômenos transcendam o âm­bito da explicação física clássica, a descrição de todos os dados deve ser expressa em termos clássicos. O argumento é que, com a

* Aqui e em outras passagens, preferimos usar “incerteza” , como é mais co­mum, embora Bohr tenha utilizado latitude. Ambas as expressões se refe­rem à largura do intervalo em que uma variável física pode ser encontrada num ato de medida. (N. do R.)

* * A expressão usual é “princípio de incerteza de Heisenberg” . Preferimos manter a forma “relação de indeterminação” , que traduz literalmente a expressão usada pelo autor e é mais afinada com sua interpretação dos fenômenos quânticos. (N. do R.)

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palavra “experimento” , referimo-nos a uma situação em que po­demos dizer aos outros o que fizemos e o que aprendemos, e que, portanto, a explicação do arranjo experimental e dos resultados das observações deve ser expressa numa linguagem inambígua, com a aplicação adequada da terminologia da física clássica.

Esse ponto crucial, que iria tornar-se um grande tema dos de­bates relatados a seguir, implica a impossibilidade de qualquer separação nítida entre o comportamento dos objetos atômicos e a interação com os instrumentos de medida que servem para definir as condições em que os fenômenos aparecem. De fato, a indivi­dualidade dos efeitos quânticos típicos encontra expressão apro­priada no fato de que qualquer tentativa de subdividir os fenôme­nos exige uma mudança do arranjo experimental, introduzindo novas possibilidades de interação entre os objetos e os instrumen­tos de medida, as quais, em princípio, não podem ser controladas. Conseqüentemente, os dados obtidos em diferentes condições ex­perimentais não podem ser compreendidos dentro de um quadro único, mas devem ser considerados complementar es, no sentido de que só a totalidade dos fenômenos esgota as informações pos­síveis sobre os objetos.

Nessas circunstâncias, há um elemento essencial de ambigüi- dade quando se conferem atributos físicos convencionais aos ob­jetos atômicos, como logo se evidencia no dilema relativo às pro­priedades corpusculares e ondulatórias de elétrons e fótons, no qual lidamos com imagens contrastantes, cada qual referindo-se a um aspecto essencial dos dados empíricos. Um exemplo ilustra­tivo de como os aparentes paradoxos são eliminados por um exa­me das condições experimentais em que aparecem os fenômenos complementares também é fornecido pelo efeito Compton, cuja descrição coerente nos apresentou, a princípio, dificuldades tão agudas. Assim, qualquer arranjo adequado para estudar a troca de energia e momento entre o elétron e o fóton deve acarretar, na descrição espaço-temporal da interação, uma incerteza suficiente para definir o número de ondas e a freqüência que entram na rela­

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ção (1). Inversamente, em virtude da inevitável interação com as escalas fixas e os relógios que definem o referencial do espaço- tempo, qualquer tentativa de localizar com maior exatidão a coli­são entre o fóton e o elétron excluiria qualquer descrição mais precisa com respeito ao balanço entre o momento e a energia.

Como foi enfatizado na palestra, um instrumento adequado a um modo de descrição complementar é oferecido, precisamente, pelo formalismo quântico, que representa um esquema puramen­te simbólico que só permite previsões, nos termos do princípio da correspondência, quanto aos resultados que podem ser obtidos em condições especificadas através de conceitos clássicos. Con­vém lembrar aqui que, até na relação de indeterminação (3), lida­mos com uma implicação do formalismo que desafia uma expres­são inambígua, em termos adequados para descrever os pontos de vista físicos clássicos. Assim, uma frase como “não podemos co­nhecer o momento e a posição de um objeto atômico” desde logo levanta questões relativas à realidade física desses dois atributos do objeto, as quais só podem ser respondidas mediante uma refe­rência às condições do uso inambíguo dos conceitos espaço-tem- porais, de um lado, e às leis de conservação dinâmicas, de outro. Embora a combinação desses conceitos no quadro único de uma cadeia causai de acontecimentos seja a essência da mecânica clás­sica, o espaço para regularidades que ficam fora do alcance dessa descrição é proporcionado, justamente, pela circunstância de que o estudo dos fenômenos complementares requer arranjos experi­mentais mutuamente excludentes.

Na física atômica, a necessidade de um exame renovado das bases do uso inambíguo de idéias físicas elementares lembra, de certa maneira, a situação que levou Einstein à sua revisão original da base de toda a aplicação dos conceitos de espaço-tempo, que, por sua ênfase na importância primordial do problema observa- cional, emprestou tamanha unidade à nossa imagem do mundo. A despeito de todo o ineditismo da abordagem, na teoria da rela­tividade a descrição causai é sustentada com qualquer sistema de

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referência considerado. Na teoria quântica, a interação incontro- lável dos objetos e dos instrumentos de medida força-nos a uma renúncia até mesmo nesse aspecto. Esse reconhecimento, ade­mais, de modo algum aponta para uma limitação do alcance da descrição quântica, e o sentido de toda a argumentação exposta na palestra feita em Como foi mostrar que o ponto de vista da complementaridade pode ser considerado como uma generaliza­ção racional do próprio ideal de causalidade.

No debate geral em Como, todos nós sentimos a falta de Eins- tein, mas, pouco tempo depois, em outubro de 1927, tive a opor­tunidade de encontrá-lo em Bruxelas, na V Conferência de Física do Instituto Solvay, que foi dedicada ao tema “Elétrons e fótons” . Nas reuniões do Solvay, Einstein fora, desde o começo, uma fi­gura de extremo destaque. Vários de nós comparecemos à confe­rência com grandes expectativas quanto à reação dele ao estágio mais recente do desenvolvimento, que, a nosso ver, ajudava a esclarecer os problemas que ele mesmo levantara, desde o início, de maneira tão engenhosa. Durante os debates, nos quais todo o assunto foi revisto através de contribuições vindas de muitas partes, e onde os argumentos mencionados nas páginas anteriores também voltaram a ser apresentados, Einstein expressou, no en­tanto, uma profunda preocupação quanto ao grau em que a expli­cação causai no espaço e no tempo era abandonada na mecânica quântica.

Para ilustrar sua atitude, Einstein referiu-se, numa das sessões,9 ao exemplo simples, ilustrado pela figura 1, de uma partícula (elé­

tron ou fóton) que, por um orifício ou uma abertura estreita, passasse através de um diafragma situado a uma certa distân­cia de uma chapa fotográfica. Em virtude da difração da onda, ligada ao movimen­to da partícula e indicada na figura pelas linhas finas, não é possível prever comF I G U R A 1

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certeza, nessas condições, em que ponto o elétron chegará à chapa fotográfica, mas apenas calcular a probabilidade de que, num ex­perimento, ele seja encontrado dentro de uma região qualquer da chapa. Nessa descrição, a aparente dificuldade, que Einstein sentiu com tanta agudeza, está no fato de que, se o elétron for registrado no experimento num ponto A da chapa, estará fora de questão observar um efeito desse elétron num outro ponto (J3), embora as leis da propagação usual da onda não dêem margem alguma para que esses dois eventos sejam correlacionados dessa forma.

A atitude de Einstein deu margem a discussões acaloradas num pequeno círculo, do qual Ehrenfest, que por anos fora amigo ínti­mo de nós dois, participou de maneira muito ativa e proveitosa. Decerto, todos reconhecemos que, no exemplo acima, a situação não apresenta nenhuma analogia com a aplicação da estatística para lidar com sistemas mecânicos complexos, mas faz lembrar, antes, os antecedentes das primeiras conclusões do próprio Eins­tein sobre a unidirecionalidade dos efeitos da radiação individual, que contrasta tão vigorosamente com uma imagem ondulatória simples. Mas as discussões centraram-se na questão de determi­nar se a descrição da mecânica quântica esgotava as possibilida­des de explicar fenômenos observáveis, ou se, como sustentava Einstein, a análise podia ser levada adiante e, em especial, se uma descrição mais completa dos fenômenos poderia ser obtida levan- do-se em conta o balanço detalhado da energia e do momento nos processos individuais.

Para explicar a linha dos argumentos de Einstein, talvez seja ilustrativo examinar, aqui, alguns aspectos simples do balanço en­tre momento e energia ligados à localização de uma partícula no espaço e no tempo. Para esse fim, examinaremos o caso simples de uma partícula que penetre por um orifício num diafragma, sem ou com um obturador para abrir e fechar o orifício, como indicam as figuras 2a e 2b, respectivamente. As linhas paralelas equidistantes à esquerda das figuras indicam a série de ondas planas correspon­dente ao estado de movimento de uma partícula que, antes de che­

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gar ao diafragma, tem um momento P, rela­cionado com o número de ondas cr conforme a segunda das equações (1). De acordo com a difração das ondas ao atravessarem o orifício,

F I G U R A 2 a 5o estado de movimento da partícula à direita do diafragma é representado por uma série de ondas esféricas, com uma abertura angular 0 adequadamente definida e, no caso da figura 2b, também com uma extensão radial limita­da. Conseqüentemente, a descrição desse esta­do envolve uma certa incerteza Ap no compo­

nente de momento da partícula ̂ que é paralelo ao diafragma, e, no caso de um diafragma com obturador, uma incerteza adicional AE da energia cinética.

Já que uma medida da incerteza Aq na localização da partícula no plano do diafragma é fornecida pelo raio a do orifício, e já que Q~ í/a a , obtemos, usando (1), apenas Ap ~ OP ~ h/Aq, de acor­do com a relação de indeterminação (3). Este resultado também poderia ser diretamente obtido, é claro, notando-se que, em virtu­de da extensão limitada do campo de onda no lugar da abertura, a componente do número de ondas paralela ao plano do diafrag­ma acarretará uma incerteza Aa~ 1/a * 1 /Aq. Da mesma forma, a difusão das freqüências dos componentes harmônicos da série ondulatória limitada da figura 2b é, evidentemente, Av~ 1/Áí, onde At é o intervalo de tempo durante o qual o obturador deixa o orifício aberto; portanto, representa a incerteza temporal da passagem da partícula pelo diafragma. A partir de (1), obtemos

AE At ~ h, (4)

novamente de acordo com a relação (3) para as duas variáveis conjugadas £ e í .

Do ponto de vista das leis de conservação, a origem dessas in­certezas que entram na descrição do estado da partícula depois de sua passagem pelo orifício pode ser rastreada até as possibilidades

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de troca de momento e energia com o diafragma ou o obturador. No sistema de referência considerado nas figuras 2a e 2b, a veloci­dade do diafragma pode ser desconsiderada, e apenas uma troca de momento Ap entre a partícula e o diafragma precisa ser leva­da em consideração. O obturador, contudo, que deixa o orifício aberto durante o tempo Aí, move-se com uma velocidade conside­rável, v ~ a/,Aí, e portanto, uma transferência de momento Ap im­plica uma troca de energia com a partícula, que corresponde a

v Ap Ag Ap _ _h__ At At 5

sendo exatamente da mesma ordem de grandeza da incerteza AE fornecida por (4) e, portanto, permitindo o balanço do momento e da energia.

O problema levantado por Einstein foi, então, saber até que ponto um controle da transferência de energia e de momento, envolvida numa localização da partícula no espaço e no tempo, poderia ser usado para uma especificação adicional do estado da partícula depois de ela atravessar o orifício. Aqui, convém levar em consideração que a posição e o movimento do diafragma e do obturador, até este ponto, foram presumidos como exatamente localizados no referencial espaço-temporal. Esse pressuposto im­plica, na descrição do estado desses corpos, uma incerteza essen­cial quanto a seu momento e energia, que obviamente não preci­sam afetar de maneira expressiva as velocidades, se o diafragma e o obturador forem suficientemente pesados. Entretanto, tão logo queremos conhecer o momento e a energia dessas partes do dis­positivo de mensuração, com precisão suficiente para controlar a troca de momento e energia da partícula investigada, perdemos, de acordo com as relações gerais de indeterminação, a possibilida­de de localizá-la exatamente no espaço e no tempo. Logo, temos que examinar até que ponto essa circunstância afetará o uso pre­tendido de todo o dispositivo e, como veremos, esse aspecto cru­cial destaca claramente o caráter complementar dos fenômenos.

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Voltando por um momento ao caso do arranjo simples indica­do na figura 1, não se especificou, até aqui, a que uso ele se desti­na. Na verdade, é somente ao se presumir que o diafragma e a chapa têm posições bem definidas no espaço que é impossível, no contexto do formalismo quântico, fazer previsões mais detalha­das quanto ao ponto da chapa fotográfica em que a partícula se­rá registrada. Se admitirmos, no entanto, uma incerteza suficien­temente grande no conhecimento da posição do diafragma, será possível, em princípio, controlar a transferência de momento para o diafragma e, com isso, fazer previsões mais detalhadas quanto à direção da trajetória do elétron desde o orifício até o ponto re­gistrado. Quanto à descrição quântica, temos que lidar aqui com um sistema de dois corpos, composto tanto pelo diafragma quan­to pela partícula, e é justamente com uma aplicação explícita das leis de conservação a um sistema como esse que nos preocupamos no efeito Compton, no qual, por exemplo, a observação do recuo do elétron por meio de uma câmara-de-nuvens [ou câmara de Wilson] nos permite prever em que direção o fóton que sofreu dispersão acabará podendo ser observado.

entre o diafragma com a abertura e a chapa fotográfica, insere-se um outro diafragma com duas aberturas paralelas, como é mos­trado na figura 3. Se, vindo da esquerda, um feixe paralelo de elétrons (ou fótons) atingir o primeiro diafragma, observaremos na chapa, em condições usuais, uma figura de interferência (fran­jas), indicada pelo sombreamento da chapa fotográfica que apa­rece em visão frontal à direita da figura. Com feixes intensos, esse padrão é construído pela acumulação de um grande número de processos individuais, cada um dos quais dá origem a um peque­

A importância desse tipo de considerações, no decorrer dos debates, foi esclarecida de ma­neira muito interessante pelo exame de um arranjo em que,

F I G U R A 3

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no ponto na chapa fotográfica, e a distribuição desses pontos se­gue uma lei simples, dedutível da análise ondulatória. A mesma distribuição também deverá ser encontrada na descrição estatísti­ca de muitos experimentos, efetuados com feixes tão tênues que, numa única exposição, apenas um elétron (ou fóton) chega à cha­pa fotográfica em algum ponto, exibido na figura como uma es­trelinha. Uma vez que agora, como é indicado pelas setas ponti­lhadas, o momento transferido para o primeiro diafragma deverá ser diferente, caso se tenha presumido que o elétron passou pela fenda superior ou pela fenda inferior do segundo diafragma, Eins- tein sugeriu que o controle da transferência de momento permiti- ria uma análise mais rigorosa do fenômeno e, em particular, pos­sibilitaria decidir por qual das duas fendas o elétron teria passado antes de chegar à chapa.

Um exame mais rigoroso, entretanto, mostrou que o controle sugerido da transferência de momento implicaria uma incerteza no conhecimento da posição do diafragma que eliminaria o surgimen­to dos fenômenos de interferência em questão. De fato, se co é o pequeno ângulo entre as trajetórias hipotéticas de uma partícula que atravesse as fendas superior ou inferior, a diferença da transfe­rência de momento nesses dois casos será, de acordo com (1), igual a haco, e qualquer controle do momento do diafragma com exa­tidão suficiente para medir essa diferença implicará, em virtude da relação de indeterminação, uma incerteza na posição do dia­fragma da ordem de, pelo menos, 1 /oco. Se, como na figura, o diafragma com as duas fendas for colocado no meio, entre o pri­meiro diafragma e a chapa fotográfica, veremos que o número de franjas por unidade de comprimento será justamente igual a aco. Já que uma incerteza na posição do primeiro diafragma, da ordem de l/ou), causará uma incerteza igual nas posições das franjas, decor­re daí que nenhum efeito de interferência poderá aparecer. É fácil demonstrar que o mesmo resultado se aplica a qualquer outro po­sicionamento do segundo diafragma entre o primeiro e a chapa, e também seria obtenível se, em vez do primeiro diafragma, outro

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desses três corpos fosse usado para controlar, para a finalidade sugerida, a transferência de momento.

Esse ponto é de grande importância lógica, uma vez que somente a circunstância de nos ser apresentada uma escolha entre traçar a trajetória de uma partícula ou observar os efeitos de interferência permite que escapemos da necessidade paradoxal de concluir que o comportamento de um elétron ou de um fóton deve depender da presença de uma fenda no diafragma através da qual se possa pro­var que ele não passa. Lidamos aqui com um típico exemplo de como os fenômenos complementares aparecem em arranjos expe­rimentais mutuamente excludentes (cf. p. 51) e ficamos diante da impossibilidade, na análise dos efeitos quânticos, de traçar qualquer distinção clara entre um comportamento independente dos objetos atômicos e sua interação com os instrumentos de medida que ser­vem para definir as condições em que os fenômenos ocorrem.

Nossas conversações sobre a atitude a tomar diante de uma situação inédita, com respeito à análise e à síntese, tocaram, na­turalmente, em muitos aspectos do pensamento filosófico, mas, apesar de todas as divergências de abordagem e opinião, um espí­rito muito bem-humorado animou os debates. Einstein pergun­tou-nos em tom de troça se realmente acreditávamos que o bom Deus jogava dados (“ ... ob der Hebe Gott würfelt” ), ao que re- truquei apontando para a grande cautela, já recomendada pelos pensadores antigos, ao se conferirem atributos à Providência na linguagem cotidiana. Lembro-me também de que, no auge da dis­cussão, Ehrenfest, com seu jeito afetuoso de implicar com os ami­gos, aludiu jocosamente à aparente semelhança entre a atitude de Einstein e a dos oponentes da teoria da relatividade; mas, no instante seguinte, ele acrescentou que não teria sossego enquanto não se chegasse a um acordo com Einstein.

O interesse e a crítica de Einstein deram-nos a todos um incenti­vo muito valioso para que reexaminássemos os diversos aspectos da situação concernente à descrição dos fenômenos atômicos. Para

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6 o FÍSIC A ATÔ M ICA E CO NH ECIM EN TO HUM ANO

mim, foi um estímulo muito bem-vindo esclarecer ainda mais o papel desempenhado pelos instrumentos de medida, de modo que, para ressaltar bastante o caráter mutuamente excludente das con­dições experimentais em que os fenômenos de complementarida­de aparecem, tentei, nessa época, esboçar vários aparelhos em esti­lo pseudo-realista, dos quais as figuras que se seguem constituem exemplos. Assim, para o estudo de um fenômeno de interferência do tipo indicado na figura 3, sugere-se usar um arranjo experimen­tal como o mostrado na figura 4, onde as partes sólidas do apare­

lho, servindo de diafragmas e porta-chapas, são firmemente aparafusadas num suporte co­mum. Num dispositivo como esse, no qual o conhecimento das posições relativas dos dia­fragmas e da chapa fotográfica é garantido por uma rígida co­

nexão, é obviamente impossível controlar o momento trocado en­tre a partícula e as partes separadas do aparelho. A única maneira, nesse arranjo, de garantirmos que a partícula passe por uma das fendas do segundo diafragma é cobrir a outra com uma portinho­la, como indicado na figura; mas, se a fenda for fechada, não have­rá, é claro, nenhum fenômeno de interferência, e simplesmente ob­servaremos na chapa uma distribuição contínua, como no caso do diafragma fixo único mostrado na figura 1.

No estudo dos fenômenos para cuja explicação lidamos com um balanço detalhado do momento, algumas partes do dispositi­vo completo devem ter, naturalmente, a liberdade de se movimen­tar independentemente das demais. Um aparelho desse tipo é es- quematizado na figura 5, onde um diafragma com uma fenda é pendurado por molas finas num suporte sólido atarraxado à base, à qual outras partes imóveis do dispositivo também devem ficar presas. A escala do diafragma, junto com o ponteiro na lateral do suporte, refere-se a estudos do movimento do diafragma que pos-

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O DEBATE COM EIN STEIN 6 1

sam ser necessários para uma estimativa do momento transferido para ele, permitindo que se tirem conclusões quanto à deflexão sofrida pela partícula na passagem pela fenda. Entretanto, já que qualquer leitura da escala, como quer que seja efetuada, implicará uma variação incontrolável no momento do diafragma, sempre haverá, de acordo com o princípio de indeterminação, uma rela­ção recíproca entre nosso conhecimento da posição da fenda e a exatidão do controle do momento.

Nesse mesmo estilo semi-sério, a figura 6 representa parte de um aparelho adequado ao estudo de fenômenos que, em contraste com os que acabamos de discutir, implicam explicitamente a loca­lização temporal. Ele consiste num obturador rigidamente conec­tado a um relógio robusto, apoiado na base, que tem um diafrag­ma e na qual também devem ser fixadas outras peças de caráter similar, reguladas pelo mesmo relógio ou por outros, padroniza­dos em relação a ele. O objetivo especial da figura é enfatizar que um relógio é uma máquina cujo funcionamento pode ser com­pletamente explicado pela mecânica comum, e que não é afetada nem pela leitura da posição de seus ponteiros nem pela interação de seus acessórios e de uma partícula atômica. Assegurando a abertura do orifício num momento definido, um aparelho desse tipo poderia ser usado, por exemplo, para uma medição exata do tempo que leva um elétron ou um fóton para ir do diafragma até algum outro lugar, mas, evidentemente, não daria nenhuma pos­sibilidade de controlar a transferência de energia para o obtu­

rador, no intuito de tirar conclusões quanto à energia da partícula que passa pelo diafragma. Se estivermos interessados nessas conclusões, de­veremos, é claro, usar um arranjo em que os dis­positivos de obturação já não poderão servir de relógios exatos, mas em que o conhecimento do instante em que o orifício do diafragma é aber­to implicará uma incerteza ligada à precisão da mensuração da energia pela relação geral (4).F I G U R A 5

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A consideração desses dispositivos mais ou menos práticos e de seu uso mais ou menos fictício revelou-se muito instrutiva para dirigir a atenção para certos aspectos essenciais dos problemas. O principal, aqui, é a distinção entre os objetos investigados e os instrumentos de medida que servem para definir, em termos clássi­cos, as condições em que os fenômenos aparecem. A propósito, podemos assinalar que, para ilustrar as considerações precedentes, não é relevante constatar que os experimentos que implicam um controle exato da transferência de momento ou de energia das par­tículas atômicas para corpos pesados, como os diafragmas e os obturadores, seriam muito di­fíceis de efetuar, se é que se­riam exeqüíveis. A única coisa decisiva é que, em contraste com os instrumentos de medi­da apropriados, esses corpos, juntamente com as partículas, constituiríam, nesse caso, o sis­tema a que teria que ser apli­cado o formalismo quântico.Com respeito à especificação das condições para uma aplicação bem definida do formalismo, é ainda essencial que todo o dispositivo experimental seja levado em conta. Na verdade, a introdução de qualquer outro aparelho na trajetória de uma partícula, como um espelho, por exemplo, pode­ría produzir novos efeitos de interferência, que influenciariam es­sencialmente nas previsões referentes aos resultados a serem final­mente registrados.

O grau em que a renúncia à visualização dos fenômenos atômi­cos nos é imposto, pela impossibilidade de sua subdivisão, é ex­pressivamente ilustrado pelo exemplo seguinte, para o qual Eins- tein chamou a atenção desde cedo e ao qual voltou muitas vezes. Quando um espelho semi-refletor é colocado na trajetória de um fóton, deixando duas possibilidades para sua direção de propaga­

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ção, o fóton pode, ou ser registrado numa e apenas numa de duas chapas fotográficas situadas a grandes distâncias nas duas direções em questão, ou então, em se substituindo as chapas por espelhos, podemos observar efeitos que exibem uma interferência entre as duas séries ondulatórias refletidas. Assim, em qualquer tentativa de representação pictórica do comportamento do fóton, depara­ríamos com esta dificuldade: sermos obrigados a dizer, por um lado, que o fóton sempre escolhe uma das duas trajetórias e, por outro, que se comporta como se houvesse passado por ambas.

São justamente os argumentos desse tipo que relembram a im­possibilidade de subdividir os fenômenos quânticos e revelam a ambigüidade de qualquer imputação de atributos físicos habi­tuais aos objetos atômicos. Em particular, convém perceber que — sem contar a descrição do posicionamento e da regulagem de tempo dos instrumentos que compõem o dispositivo experimen­tal — qualquer utilização inambígua de conceitos espaço-tempo- rais na descrição dos fenômenos atômicos limita-se ao registro de observações que se referem a marcas numa chapa fotográfica, ou a efeitos de amplificação similares, praticamente irreversíveis, como o crescimento de uma gota d’água em volta de um íon nu­ma câmara-de-nuvens. Embora, é claro, a existência do quantum de ação seja responsável, em última instância, pelas propriedades dos materiais de que são construídos os instrumentos de medida e dos quais depende o funcionamento dos dispositivos de regis­tro, essa circunstância não é relevante para os problemas da ade­quação e da completude da descrição quântica em seus aspectos aqui discutidos.

Esses problemas foram instrutivamente comentados, sob dife­rentes ângulos, na reunião do Solvay,10 na mesma sessão em que Einstein levantou suas objeções gerais. Nessa ocasião, surgiu tam­bém um interessante debate a respeito de como falar do apareci­mento de fenômenos sobre os quais só se podem fazer previsões de caráter estatístico. A questão era se, com respeito à ocorrência de efeitos individuais, deveriamos adotar uma terminologia pro­

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posta por Dirac, dizendo que estávamos interessados numa esco­lha feita pela “natureza” , ou se, como sugerido por Heisenberg, deveriamos dizer que estávamos lidando com uma escolha do “observador” que constrói os instrumentos de medida e faz a lei­tura de seus registros. Qualquer terminologia desse tipo, entre­tanto, pareceria dúbia, já que, por um lado, não é propriamente razoável dotar a natureza de volição, no sentido corriqueiro, en­quanto, por outro, certamente não é possível que o observador influa nos acontecimentos passíveis de surgir nas condições que ele instaura. A meu ver, não há outra alternativa senão admitir que, nesse campo da experiência, lidamos com fenômenos indivi­duais, e que nossas possibilidades de manejar os instrumentos de medida só nos permitem fazer uma escolha entre os diferentes ti­pos complementares de fenômenos que queremos estudar.

Os problemas epistemológicos em que tocamos aqui foram mais explicitamente examinados em minha contribuição para a edição de Naturwissenschaften que comemorou o septuagésimo aniversário de Planck, em 1929. Naquele artigo, também foi feita uma comparação entre a lição extraída da descoberta do quantum universal de ação e o desenvolvimento que se seguiu à descoberta da velocidade finita da luz e que, através do trabalho pioneiro de Einstein, trouxe tão grande esclarecimento sobre alguns princípios básicos da filosofia natural. Na teoria da relatividade, a ênfase no fato de que todos os fenômenos dependem do sistema de referên­cia abrira caminhos inéditos para se descobrirem leis gerais da físi­ca, de alcance ímpar. Na teoria quântica, afirmei, a compreensão lógica de regularidades fundamentais antes insuspeitadas, regendo os fenômenos atômicos, exigira o reconhecimento de que não se pode fazer nenhuma separação nítida entre o comportamento in­dependente dos objetos e sua interação com os instrumentos de medida que definem o sistema de referência.

Nesse aspecto, a teoria quântica apresenta-nos uma situação inédita na ciência física, mas chamei atenção para a analogia mui­to estreita, no tocante à análise e à síntese da experiência, com a

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situação encontrada em muitos outros campos do conhecimento e do interesse humanos. Como se sabe, muitas das dificuldades da psicologia originam-se no posicionamento diferente das linhas de separação entre o objeto e o sujeito, na análise de vários aspec­tos da experiência psíquica. Na verdade, palavras como “pensa­mentos” e “sentimentos” , igualmente indispensáveis para ilustrar a variedade e o alcance da vida consciente, são usadas de um mo­do complementar, semelhante ao da coordenação espaço-tempo- ral e das leis de conservação dinâmicas na física atômica. Uma formulação precisa dessas analogias implica, é claro, complexida­des terminológicas, e a melhor indicação da postura do autor tal­vez se encontre numa passagem do artigo que sugere a relação mutuamente excludente que sempre existirá entre o uso prático de qualquer palavra e as tentativas de lhe dar uma definição es­trita. Contudo, o objetivo principal dessas considerações, que fo­ram também inspiradas pela esperança de influenciar a atitude de Einstein, foi apontar para as perspectivas de ressaltar os proble­mas epistemológicos gerais através da lição extraída de uma expe­riência física nova, mas fundamentalmente simples.

Na reunião seguinte com Einstein, na Conferência do Instituto Solvay de 1930, nossas discussões tomaram um rumo bastante dramático. Como a objeção à visão de que o controle da troca de momento e energia entre os objetos e os instrumentos de medida seria eliminada se esses instrumentos cumprissem sua finalidade de definir o sistema espaço-temporal dos fenômenos, Einstein ex­pôs a tese de que esse controle deveria ser possível quando as exi­gências da teoria da relatividade fossem levadas em consideração. Em particular, a relação geral entre a energia e a massa, expressa em sua famosa fórmula

E = mc2, (5 )

deveria permitir, através de uma simples pesagem, medir a ener­gia total de qualquer sistema e, com isso, em princípio, controlar

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a energia transferida para ele em sua inte­ração com um objeto atômico.

Como um arranjo adequado para esse fim, Einstein propôs o dispositivo indicado na figura 7, composto de uma caixa com uma abertura lateral, que poderia ser aber­ta ou fechada por um obturador acionado

por um relógio no interior da caixa. Se, no começo, a caixa con­tivesse uma certa quantidade de radiação e o relógio fosse pro­gramado para abrir o obturador por um intervalo curtíssimo num instante escolhido, seria possível conseguir que um único fó- ton fosse liberado pela abertura num instante conhecido com to­da a precisão que se desejasse. Além disso, aparentemente tam­bém seria possível, pesando-se a caixa inteira antes e depois desse evento, medir a energia do fóton com toda a precisão desejada, o que definitivamente entraria em contradição com a indetermina- ção recíproca do tempo e das quantidades de energia na mecânica quântica.

Essa argumentação foi um sério desafio e deu origem a um exame minucioso de todo o problema. No fim do debate, para o qual o próprio Einstein contribuiu efetivamente, ficou claro, no entanto, que a tese não era susten­tável. De fato, no exame do proble­ma, verificou-se que era necessário examinar mais de perto as conse- qüências da identificação da massa inercial com a massa gravitacional, decorrente da aplicação da relação (5). Em particular, seria essencial levar em conta a relação entre a ta­xa, ou ritmo, do relógio e sua posi­ção num campo gravitacional — co­nhecida pelo desvio para o vermelho das linhas no espectro solar —, de- F I G U R A 8

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O DEBATE COM EINSTEIN 67

corrente do princípio de equivalência de Einstein entre os efeitos da gravidade e os fenômenos observados em sistemas de referên­cia acelerados.

Nossa discussão concentrou-se na possível aplicação de um aparelho que incorporasse o dispositivo de Einstein, desenhado, na figura 8, no mesmo estilo pseudo-realista de algumas das figu­ras precedentes. A caixa, mostrada com um corte para exibir seu interior, fica suspensa numa balança de mola e é provida de um ponteiro para a leitura de sua posição numa escala presa ao su­porte da balança. Assim, a pesagem da caixa pode ser feita, com qualquer exatidão Am considerada, ajustando-se a balança em sua posição zero, através de pesos adequados. A questão essen­cial, então, é que qualquer determinação dessa posição com uma dada exatidão Aq implicará uma incerteza mínima Àp no controle do momento da caixa, vinculado a Aq pela relação (3). Essa incer­teza, por sua vez, obviamente deve ser menor do que o impulso total que, durante todo o intervalo T do procedimento de pe­sagem, possa ser dado pelo campo gravitacional a um corpo de massa Am, ou

~-T- < T ■ g ■ A (6) Aq

onde g é a constante proveniente da gravidade. Quanto maior a precisão da leitura q do ponteiro, mais longo deve ser, conseqüen- temente, o intervalo de tempo do procedimento de pesagem T, para que se obtenha uma dada precisão Am na pesagem da caixa com seu conteúdo.

Ora, de acordo com a teoria da relatividade geral, um relógio, ao ser deslocado na direção da força gravitacional por uma quan­tidade de Aq, altera sua taxa de tal modo que sua leitura, no de­correr de um intervalo de tempo T, variará numa quantidade AT, fornecida pela relação

ATT ( 7 )

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Comparando (6) e (7), portanto, vemos que, depois do procedi­mento de pesagem, haverá, segundo nosso conhecimento do ajus­te do relógio, uma incerteza

AT > hc1 Am

Juntamente com a fórmula (5), essa relação, por sua vez, leva a

AT • AE > /?,

de acordo com o princípio de indeterminação. Conseqüentemente, a utilização do aparelho como meio de medir com precisão a ener­gia do fóton nos impediria de controlar o instante de seu escape.

Assim, essa discussão, tão ilustrativa do poder e da coerência dos argumentos relativistas, enfatizou mais uma vez a necessida­de de se fazer uma distinção, no estudo dos fenômenos atômicos, entre os instrumentos de medida apropriados, que servem para definir o sistema de referência, e as partes que devem ser encara­das como objetos sob investigação, e na explicação das quais não se podem desconsiderar os efeitos quânticos. A despeito dessa confirmação sumamente sugestiva da solidez e do grande alcance do estilo de descrição quântico, Einstein, numa conversa poste­rior comigo, expressou sua inquietação a respeito da aparente falta de princípios solidamente fundamentados para a explicação da natureza, com o que todos pudemos concordar. De meu pon­to de vista, entretanto, só pude responder que, ao lidar com a tarefa de introduzir ordem num campo inteiramente novo da ex­periência, dificilmente poderiamos confiar em quaisquer princí­pios costumeiros, por mais amplos que fossem, a não ser pela exigência de evitar incoerências lógicas. Nesse aspecto, o forma­lismo matemático da mecânica quântica deveria, com certeza, cumprir todos os requisitos.

A reunião do Solvay de 1930 foi a última ocasião em que, nas discussões comuns com Einstein, pudemos nos beneficiar da in­fluência estimulante e mediadora de Ehrenfest, mas, pouco antes

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de seu falecimento em 1933, profundamente deplorado, ele me dis­se que Einstein estava longe de se dar por satisfeito e que, com sua argúcia habitual, havia discernido novos aspectos da situação que reforçavam sua atitude crítica. De fato, examinando melhor as possibilidades de aplicação de um dispositivo de balança, Einstein havia discernido métodos alternativos que, embora não permitis­sem a utilização originalmente pretendida por ele, pareciam am­pliar os paradoxos para além das possibilidades de solução lógica.

Einstein havia assinalado que, após uma pesagem preliminar da caixa com o relógio e o subseqüente escape do fóton, ainda se ficava com a opção de repetir a pesagem ou abrir a caixa e com­parar a leitura do relógio com a escala de tempo padrão. Por con­seguinte, nessa etapa, ainda teríamos a liberdade de escolher se queríamos extrair conclusões sobre a energia do fóton ou sobre o momento em que ele deixara a caixa. Sem interferir de modo al­gum com o fóton entre seu escape e sua interação posterior com outros instrumentos de medida apropriados, ficaríamos, portan­to, aptos a fazer previsões exatas, concernentes ou ao momento de sua chegada, ou à quantidade de energia liberada por sua ab­sorção. Entretanto, já que, de acordo com o formalismo quântico, a especificação do estado de uma partícula isolada não podia pro­duzir uma conexão bem definida com a escala de tempo e uma determinação exata da energia, poderia parecer que esse formalis­mo não oferece meios para uma descrição adequada.

Mais uma vez, o espírito investigativo de Einstein havia levan­tado um aspecto peculiar da situação da teoria quântica, o qual, de maneira realmente surpreendente, ilustrava até que ponto ha­víamos transcendido, nela, a explicação costumeira dos fenôme­nos naturais. Ainda assim, não pude concordar com a linha de suas observações, tal como relatadas por Ehrenfest. Em minha opinião, não havia outro meio de julgar inadequado um forma­lismo matemático logicamente coerente senão demonstrando que suas conseqüências se afastavam da experiência, ou provando que suas previsões não esgotavam as possibilidades de observação, e a

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argumentação de Einstein não podia ser direcionada para nenhum desses fins. De fato, temos de reconhecer que, no problema em questão, não estamos lidando com um único arranjo experimental especificado, mas referimo-nos a dois arranjos diferentes e mutua­mente excludentes. Num deles, a balança, juntamente com outro aparelho, como um espectrômetro, é usada para estudar a transfe­rência de energia por um fóton, e noutro, um obturador regulado por um relógio padronizado, juntamente com outro aparato de tipo similar, regulado com precisão em relação ao relógio, é usado para estudar o tempo de propagação de um fóton numa dada dis­tância. Em ambos os casos, como também foi presumido por Eins­tein, espera-se que os efeitos observáveis estejam em completo acordo com as previsões da teoria.

Esse problema torna a enfatizar a necessidade de examinar todo o dispositivo experimental, cuja especificação é imperativa para qualquer aplicação bem-definida do formalismo quântico. A pro­pósito, pode-se acrescentar que paradoxos do tipo imaginado por Einstein também são encontrados em arranjos simples, como o es­quema tizado na figura 5. De fato, após uma mensuração prelimi­nar do momento do diafragma, é-nos oferecida, em princípio, a alternativa de, quando um elétron ou um fóton tiver passado pela abertura, repetir a mensuração do momento, ou controlar a posi­ção do diafragma e, então, fazer previsões pertinentes a observa­ções alternativas posteriores. Também é possível acrescentar que obviamente não faz diferença, com respeito aos efeitos observáveis que se podem obter com um arranjo experimental definido, se nos­sos planos de construir ou manejar os instrumentos são estabeleci­dos de antemão, ou se preferimos adiar a conclusão de nosso pla­nejamento até um instante posterior, quando a partícula já está a caminho em sua trajetória de um instrumento para outro.

Na descrição quântica, nossa liberdade de construir e manipu­lar o arranjo experimental encontra sua expressão apropriada na possibilidade de escolhermos os parâmetros, classicamente defini­dos, que entram em qualquer aplicação adequada do formalismo.

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Com efeito, em todos esses aspectos, a mecânica quântica exibe uma correspondência com a situação que nos é conhecida na física clássica, que é tão próxima quanto possível quando se considera a individualidade inerente aos fenômenos quânticos. Assim, pela simples contribuição para salientar tão claramente esse ponto, a preocupação de Einstein foi, mais uma vez, um estímulo muito bem-vindo à exploração dos aspectos essenciais da situação.

A reunião seguinte do Instituto Solvay, em 1933, foi dedicada aos problemas da estrutura e das propriedades dos núcleos atômi­cos, campo no qual grandes avanços tinham sido feitos justamen­te naquele período, graças às descobertas experimentais e a novas aplicações fecundas da mecânica quântica. Nem é preciso lem­brar, nesse contexto, que justamente os dados obtidos pelo estudo das transformações nucleares artificiais constituíram uma prova muito direta da lei fundamental de Einstein sobre a equivalência da massa e da energia, que iria revelar-se um guia de importância cada vez maior nas pesquisas em física nuclear. Também é possí­vel mencionar o quanto o reconhecimento intuitivo de Einstein da íntima relação entre a lei das transformações radioativas e as leis da probabilidade que regem os efeitos individuais da radiação foi confirmado pela explicação quântica das desintegrações nuclea­res espontâneas. Com efeito, lidamos aqui com um típico exem­plo do modo de descrição estatístico, e a relação complementar entre a conservação da energia-momento e a localização espaço- temporal é notavelmente exibida no famoso paradoxo da pene­tração das partículas em barreiras de potencial.

Einstein não compareceu a esse encontro, que se deu numa épo­ca ensombrecida pelos trágicos acontecimentos do mundo político que tão profundamente iriam influenciar seu destino, e que tanto agravariam suas responsabilidades a serviço da humanidade. To­davia, poucos meses antes, numa visita a Princeton, onde ele esteve como convidado do recém-fundado Instituto de Estudos Avança­dos, ao qual logo depois se ligaria em caráter permanente, eu tive­

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ra a oportunidade de voltar a falar com ele sobre os aspectos epis- temológicos da física atômica, mas a divergência de nossas abor­dagens e modos de expressão ainda criava obstáculos ao enten­dimento mútuo. Até então, relativamente poucas pessoas haviam participado das discussões relatadas neste artigo. Mas a atitude crítica de Einstein perante as opiniões sobre a teoria quântica, a que muitos físicos aderiam, logo foi levada ao conhecimento pú­blico, através de um trabalho11 intitulado “Pode a descrição quân­tica da realidade física ser considerada completa?” , publicado em 1935 por Einstein, Podolsky e Rosen.

A argumentação desse ensaio baseou-se num critério que os autores expressaram na seguinte frase: “ Se pudermos, sem pertur­bar um sistema de maneira alguma, prever com certeza (isto é, com probabilidade igual a um) o valor de uma quantidade física, existirá um elemento de realidade física correspondente a essa quantidade física.” Através de uma exposição elegante das conse- qüências do formalismo quântico no tocante à representação de um estado de um sistema composto de duas partes que estiveram em interação por um intervalo de tempo limitado, mostrou-se, a seguir, que diferentes quantidades, que não podem ser fixadas na representação de um dos sistemas parciais, podem ser previstas, ainda assim, por medidas realizadas no outro sistema parcial. De acordo com seu critério, portanto, os autores concluíram que a mecânica quântica “não fornece uma descrição completa da reali­dade física” , e expressaram sua crença em que deveria ser possível elaborar uma descrição mais adequada dos fenômenos.

Graças à lucidez e ao caráter aparentemente incontestável da argumentação, o artigo de Einstein, Podolsky e Rosen criou um rebuliço entre os físicos e desempenhou um grande papel na dis­cussão filosófica em geral. A questão, por certo, é de caráter mui­to sutil e serve para enfatizar até que ponto, na teoria quântica, ficamos fora do alcance da visualização pictórica. Veremos, po­rém, que lidamos aí com problemas exatamente do mesmo tipo dos levantados por Einstein nas discussões anteriores. Num artigo

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publicado poucos meses depois,12 tentei mostrar que, do ponto de vista da complementaridade, as aparentes incoerências eram com­pletamente eliminadas. A linha de argumentação foi, em essência, idêntica à exposta nas páginas anteriores, mas o objetivo de re­cordar o modo como a situação foi discutida naquela época talvez seja um pretexto para eu citar alguns trechos de meu artigo.

Depois de me referir às conclusões deduzidas por Einstein, Po- dolsky e Rosen com base em seu critério, escrevi:

Tal argumentação, entretanto, dificilmente pareceria capaz de afetar a solidez da descrição quântica, que se baseia num for­malismo matemático coerente, que abrange automaticamente qualquer processo de mensuração como o indicado. A aparente contradição apenas revela, de fato, uma insuficiência essencial do ponto de vista costumeiro da filosofia natural para fornecer uma explicação racional de fenômenos físicos do tipo pelo qual nos interessamos na mecânica quântica. Com efeito, a intera­ção finita entre o objeto e os instrumentos de medida, condicio­nada pela própria existência do quantum de ação, acarreta — em virtude da impossibilidade de controlar a reação do objeto sobre os instrumentos de medida, para que estes cumpram sua finalidade — a necessidade de uma renúncia definitiva ao ideal clássico de causalidade e de uma revisão radical de nossa atitu­de perante o problema da realidade física. Na verdade, como veremos, um critério de realidade como o proposto pelos auto­res citados contém — por mais cautelosa que possa afigurar-se sua formulação — uma ambigüidade essencial, ao ser aplicado aos problemas efetivos com que lidamos aqui.

No que tange ao problema especial tratado por Einstein, Po- dolsky e Rosen, mostrou-se, em seguida, que as conseqüências do formalismo, com respeito à representação do estado de um sis­tema composto de dois objetos atômicos em interação, corres­pondem aos argumentos simples mencionados nas páginas prece­dentes, no contexto da discussão sobre os arranjos experimentais adequados ao estudo de fenômenos complementares. De fato,

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embora qualquer par q t p de variáveis conjugadas de espaço e de momento obedeça à regra da multiplicação não comutativa ex­pressa por (2), e portanto só possa ser determinado com incerte­zas recíprocas fornecidas por (3), a diferença ql - q2 entre duas coordenadas espaciais referentes aos componentes do sistema co­mutará com a soma p1 + p2 das componentes correspondentes do momento, como decorre diretamente da comutabilidade de q1 com p2 e de q2 com px. Tanto q1 - q2 quanto pl + p2> portanto, podem ser determinados com exatidão num estado do sistema complexo e, por conseguinte, podemos prever os valores de qA ou pl5 se q2 ou p2? respectivamente, forem determinados por medidas diretas. Se, como as duas partes do sistema, tomarmos uma par­tícula e um diafragma, tal como esquematizado na figura 5, ve­remos que as possibilidades de especificar o estado da partícula através de medidas feitas no diafragma correspondem justamente à situação descrita na p. 60 e novamente discutida na p. 70, onde se mencionou que, depois de a partícula passar pelo diafragma, temos, em princípio, a alternativa de medir a posição do diafrag­ma ou seu momento, e, em cada um desses casos, fazer previsões sobre observações posteriores referentes à partícula. Como foi re­petidamente enfatizado, a questão principal aqui é que essas me­didas exigem arranjos experimentais mutuamente excludentes.

A argumentação do artigo foi resumida no seguinte trecho:

De nosso ponto de vista, vemos agora que o enunciado do cri­tério supramencionado da realidade física, proposto por Eins- tein, Podolsky e Rosen, contém uma ambigüidade quanto ao sentido da expressão “sem perturbar um sistema de maneira alguma” . É claro que, num caso como o que acabamos de exa­minar, não há como falar numa perturbação mecânica do sis­tema investigado durante a última etapa crítica do processo de medida. Mesmo nesse estágio, entretanto, existe, essencial­mente, a questão de uma influência sobre as próprias con­dições que definem os tipos de previsões possíveis acerca do comportamento futuro do sistema. Uma vez que essas condi­

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ções constituem um elemento inerente à descrição de qualquer fenômeno a que se possa ligar apropriadamente o termo “rea­lidade física” , vemos que a argumentação dos mencionados autores não justifica sua conclusão de que a descrição quântica é essencialmente incompleta. Ao contrário, essa descrição, co­mo se evidencia pela discussão anterior, pode ser caracterizada como uma utilização racional de todas as possibilidades de interpretação inambígua das medidas, compatível com a inte­ração finita e incontrolável entre os objetos e os instrumentos de medida no campo da teoria quântica. De fato, novas leis físicas cuja coexistência se afiguraria, à primeira vista, incom­patível com os princípios básicos da ciência só surgem a partir da exclusão mútua de quaisquer dois procedimentos experi­mentais que permitam a definição inambígua de quantidades físicas complementares. É justamente essa situação inteiramen­te nova, no que tange à descrição dos fenômenos físicos, que a noção de complementaridade almeja caracterizar.

Relendo esses trechos, sinto-me profundamente cônscio de que me expressei de forma deficiente. Isso deve ter tornado muito difí­cil apreciar a linha de argumentação, que pretendia destacar a ambigüidade essencial presente numa referência aos atributos físi­cos dos objetos, quando se lida com fenômenos em que não é pos­sível fazer uma distinção nítida entre o comportamento dos obje­tos em si e sua interação com os instrumentos de medida. Espero, entretanto, que o presente relato das discussões com Einstein nos anos anteriores, que tanto contribuíram para nos familiarizar com a situação da física quântica, possa dar uma impressão mais clara da necessidade de uma revisão radical dos princípios básicos da explicação física, a fim de restabelecer a ordem lógica nesse campo da experiência.

As opiniões do próprio Einstein, naquela época, foram expostas num artigo intitulado “Física e realidade” , publicado em 1936 no Journal of tbe Franklin Institute.13 Partindo de uma exposição muito esclarecedora sobre o desenvolvimento gradativo dos princí­

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pios fundamentais nas teorias da física clássica e sobre sua relação com o problema da realidade física, Einstein sustenta, ali, que a des­crição quântica deve ser considerada meramente como um meio de explicar o comportamento médio de um grande número de sistemas atômicos. Sua atitude perante a crença de que ela ofereceria uma descrição exaustiva dos fenômenos individuais é expressa nos se­guintes termos: “Acreditar nisso é possível, logicamente, sem con­tradição; mas é tão sumamente contrário a meu instinto científico, que não posso renunciar à busca de uma concepção mais completa.”

Ainda que essa atitude parecesse equilibrada em si, ela impli­cou, no entanto, uma rejeição de toda a argumentação exposta nas páginas precedentes, que visava a demonstrar que, na mecâ­nica quântica, não lidamos com uma renúncia arbitrária a uma análise mais pormenorizada dos fenômenos atômicos, mas com o reconhecimento de que tal análise está em princípio excluída. A individualidade peculiar dos efeitos quânticos nos apresenta, no que tange à compreensão de dados bem definidos, uma situa­ção inédita, imprevista na física clássica e incompatível com as idéias convencionais que servem para nossa orientação e adap­tação à experiência corriqueira. Foi nesse aspecto que a teoria quântica exigiu uma nova revisão das bases do uso inambíguo de conceitos elementares, como um passo adicional no desenvolvi­mento que, desde o advento da teoria da relatividade, tem sido tão característico da ciência moderna.

Nos anos seguintes, os aspectos mais filosóficos da situação da física atômica despertaram o interesse de círculos cada vez maio­res e, em particular, foram debatidos no II Congresso Internacio­nal pela Unidade da Ciência, realizado em Copenhague em julho de 1936. Numa palestra feita nessa ocasião14 tentei, em especial, frisar a analogia existente, nos aspectos epistemológicos, entre a limitação imposta à descrição causai na física atômica e as situa­ções encontradas em outros campos do conhecimento. Um objeti­vo principal desses paralelos foi chamar a atenção para a necessi­

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dade, em muitos campos de interesse humano geral, de enfrentar problemas de natureza semelhante aos surgidos na teoria quân- tica e, desse modo, prover um cenário mais familiar para o modo de expressão aparentemente extravagante que os físicos desenvol­veram para enfrentar suas agudas dificuldades.

Além dos traços complementares que são patentes na psicolo­gia e que já foram brevemente mencionados, também é possível encontrar exemplos dessas relações na biologia, sobretudo no que concerne à comparação entre os pontos de vista mecanicista e vi- talista. Justamente com respeito ao problema observacional, esta última questão fora objeto de uma comunicação, anteriormente, no Congresso Internacional sobre Terapia através da Luz, realiza­do em Copenhague em 1932,15 onde fora assinalado, aliás, que até o paralelismo psicofísico concebido por Leibniz e Espinoza obteve um alcance mais amplo através do desenvolvimento da fí­sica atômica. Perante o problema da explicação, esse desenvolvi­mento nos obriga a adotar uma atitude que faz lembrar a antiga sabedoria, que afirma que, ao buscar a harmonia na vida, nunca se deve esquecer que, no drama da existência, nós mesmos somos, a um tempo, atores e espectadores.

Enunciados como esse evocariam em muitas mentes, é claro, a impressão de um misticismo subjacente, estranho ao espírito da ciência; no citado Congresso de 1936, portanto, procurei desfazer tais mal-entendidos e explicar que a única questão em jogo era o esforço de esclarecer as condições, em cada campo do conheci­mento, da análise e da síntese da experiência.14 Contudo, temo que, nesse aspecto, eu tenha tido pouco sucesso em convencer meus ouvintes, para quem a dissidência entre os próprios físicos era, naturalmente, uma causa de ceticismo quanto à necessidade de chegar a tais extremos na renúncia às exigências costumeiras, no que concerne à explicação dos fenômenos naturais. Até por força de um novo debate com Einstein em Princeton, em 1937, onde não fomos além de uma divertida disputa sobre que partido Espinoza teria tomado, se tivesse vivido para testemunhar o de­

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senvolvimento de nossa época, fui vivamente lembrado da impor­tância da mais extrema cautela em todas as questões de termino­logia e dialética.

Esses aspectos da situação foram especialmente discutidos nu­ma reunião em Varsóvia, em 1938, organizada pelo Instituto In­ternacional de Cooperação Intelectual da Liga das Nações.16 Os anos anteriores haviam assistido a um grande progresso na física quântica, em virtude de diversas descobertas fundamentais acer­ca da composição e das propriedades dos núcleos atômicos, bem como de importantes avanços do formalismo matemático que le­vava em conta as exigências da teoria da relatividade. Neste últi­mo aspecto, a engenhosa teoria quântica do elétron, formulada por Dirac, forneceu uma impressionante ilustração do poder e da fertilidade do modo de descrição geral da mecânica quântica. No fenômeno da criação e aniquilação de pares de elétrons, de fato, lidamos com novas características fundamentais da atomicidade, que estão intimamente ligadas aos aspectos não clássicos da esta­tística quântica expressos no princípio de exclusão, e que exigi­ram uma renúncia ainda mais ampla à explicação em termos de representações pictóricas.

Enquanto isso, a discussão dos problemas epistemológicos da física atômica atraía a atenção, num grau até então desconheci­do. Ao comentar as opiniões de Einstein sobre a incompletude do modo de descrição quântico, entrei mais diretamente nas ques­tões terminológicas. Nesse contexto, fiz uma advertência especial contra certas expressões, comumente encontradas na literatura da física, tais como “perturbação dos fenômenos pela observa­ção” ou “criar atributos físicos para os objetos atômicos através de medidas” . Tais expressões, que podem servir para nos lembrar dos aparentes paradoxos da teoria quântica, são igualmente pro­pensas a causar confusão, já que palavras como “fenômenos” e “observações” , bem como “atributos” e “medidas” , são usadas de um modo que dificilmente seria compatível com a linguagem comum e com a definição prática.

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Como modo de expressão mais apropriado, defendi a apli­cação exclusiva da palavra fenômeno para se fazer referência a observações efetuadas em circunstâncias especificadas, incluin­do uma descrição de todo o dispositivo experimental. Com essa terminologia, o problema observacional fica livre de qualquer complexidade especial, uma vez que, nos experimentos efetivos, todas as observações são expressas por enunciados inambíguos, que se referem, por exemplo, ao registro do ponto em que um elétron chega a uma chapa fotográfica. Além disso, falar dessa maneira presta-se perfeitamente a enfatizar que a interpretação física apropriada do formalismo quântico simbólico equivale apenas a previsões, de caráter determinado ou estatístico, perti­nentes a fenômenos individuais, que surgem em condições defini­das por conceitos da física clássica.

Apesar de todas as diferenças entre os problemas físicos que deram origem ao desenvolvimento da teoria da relatividade e da teoria quântica, respectivamente, a comparação dos aspectos pu­ramente lógicos da argumentação relativista e da complementar revela semelhanças espantosas, no que tange à renúncia à impor­tância absoluta dos atributos físicos convencionais dos objetos. Do mesmo modo, não levar em conta a constituição atômica dos próprios instrumentos de medida, na descrição da experiência real, é uma característica comum das aplicações da relatividade e da teoria quântica. Assim, a dimensão diminuta do quantum de ação, comparado às ações envolvidas nos experimentos usuais, inclusive na disposição e manuseio dos aparelhos físicos, é tão essencial na física atômica quanto o é o imenso número de áto­mos que compõem o mundo na teoria geral da relatividade, que, como muitas vezes se assinala, exige que as dimensões dos apare­lhos para medir ângulos sejam pequenas, em comparação com o raio de curvatura do espaço.

Na palestra de Varsóvia, comentei da seguinte maneira a utili­zação de um simbolismo não diretamente visualizável na teoria da relatividade e na teoria quântica:

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Até os formalismos que, nas duas teorias, dentro de seu âmbi­to, fornecem meios adequados para compreender qualquer ex­periência concebível exibem profundas analogias. Na verdade, a espantosa simplicidade da generalização das teorias físicas clássicas, obtida pelo uso da geometria multidimensional e da álgebra não comutativa, respectivamente, assenta-se basica­mente, em ambos os casos, na introdução do símbolo conven­cional V-T. O caráter abstrato dos formalismos em pauta, num exame mais minucioso, é realmente tão típico da teoria da re­latividade quanto da mecânica quântica e, sob esse aspecto, é puramente uma questão de tradição que a primeira teoria seja considerada uma conclusão da física clássica, e não um primei­ro passo fundamental na completa revisão de nossos meios conceituais de comparar observações, que o moderno desen­volvimento da física nos impôs.

Verdade seja dita, confrontamo-nos, na física atômica, com di­versos problemas fundamentais não solucionados, especialmente com respeito à estreita relação entre a unidade elementar de carga elétrica e o quantum universal de ação; mas não há maior ligação entre esses problemas e os aspectos epistemológicos aqui discu­tidos do que entre a adequação da argumentação relativista e a questão dos problemas até hoje não resolvidos da cosmologia. Tanto na relatividade quanto na teoria quântica, estamos inte­ressados em novos aspectos da análise e da síntese científicas e, quanto a isso, é interessante notar que, até na grande era da filo­sofia crítica dos cem anos anteriores, tratou-se apenas de saber até que ponto era possível fornecer argumentos a priori em favor da adequação da localização espaço-temporal e da conexão cau­sai da experiência, mas nunca de generalizações racionais ou limi­tações intrínsecas dessas categorias do pensamento humano.

Embora, nos últimos anos, eu tenha tido várias oportunidades de me reunir com Einstein, os debates contínuos, dos quais sem­pre recebi novos impulsos, até hoje não levaram a uma visão co­mum quanto aos problemas epistemológicos da física atômica, e

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nossas visões opostas talvez se expressem com sua máxima cla­reza numa edição recente de D ia le c t ic a que traz uma discus­são geral desses problemas. Reconhecendo, entretanto, os muitos obstáculos ao entendimento mútuo no que concerne a um assunto em que a abordagem e os antecedentes estão fadados a influen­ciar a atitude de todos, acolhi de bom grado esta oportunidade de uma exposição mais ampla da elaboração através da qual, a meu ver, uma verdadeira crise na ciência física foi superada. A lição que recebemos disso parece ter-nos feito dar um decisivo passo à frente na infindável luta pela harmonia entre conteúdo e forma, e ter-nos ensinado, mais uma vez, que nenhum conteúdo pode ser apreendido sem um arcabouço formal, e que qualquer forma, por mais útil que se tenha mostrado antes, pode revelar-se estreita de­mais para abarcar novas experiências.

Sem dúvida, numa situação como esta, em que foi difícil che­gar a um entendimento mútuo não apenas entre os filósofos e os físicos, mas até entre físicos de diferentes escolas, as dificuldades enraízam-se, não raro, na preferência por um certo uso da lingua­gem, que se sugere a partir das diferentes linhas de abordagem. No Instituto de Copenhague, onde, ao longo desses anos, vários jovens físicos de diversos países reuniram-se para debater, costu­mamos muitas vezes, quando em dificuldade, consolar-nos com chistes, entre eles o velho dito sobre os dois tipos de verdade. A um tipo pertencem afirmações tão simples e claras que, obvia­mente, uma asserção oposta seria indefensável. O outro tipo, as chamadas “verdades profundas” , compõe-se de afirmações em que o oposto também contém uma verdade profunda. Ora, o de­senvolvimento de um novo campo geralmente atravessa estágios em que o caos é gradualmente substituído pela ordem; mas é tam­bém no estágio intermediário, onde a verdade profunda prevale­ce, que o trabalho é realmente excitante e inspira a imaginação em sua busca de um esteio mais firme. Nesses esforços de buscar o equilíbrio apropriado entre a seriedade e o humor, a personali­dade do próprio Einstein destaca-se como um grande exemplo.

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Ao expressar minha confiança em que, através de uma coopera­ção singularmente fecunda de toda uma geração de físicos, esta- mo-nos aproximando da meta em que a ordem lógica nos permi­te, em grande medida, evitar a verdade profunda, espero que isso seja feito dentro do espírito dele, e possa servir de desculpa para vários enunciados das páginas precedentes.

Os debates com Einstein, tema deste artigo, estenderam-se por muitos anos, que assistiram a um grande progresso no campo da física atômica. Quer nossos encontros efetivos tenham sido de lon­ga ou curta duração, eles sempre deixaram em minha mente uma impressão profunda e duradoura. Ao redigir este relato, estive, por assim dizer, discutindo com Einstein o tempo todo, mesmo ao exa­minar temas aparentemente muito distantes dos problemas debati­dos em nossos encontros. Quanto ao relato das conversas, tenho ciência, é claro, de estar confiando apenas em minha própria me­mória, assim como estou preparado para a possibilidade de que muitos aspectos do desenvolvimento da teoria quântica, no qual Einstein desempenhou tão grande papel, afigurem-se a ele sob um prisma diferente. Confio, entretanto, não ter deixado de transmitir uma impressão adequada do quanto significou, para mim, poder beneficiar-me da inspiração que todos retiramos de qualquer con­tato com Einstein.

NOTAS

1. A. Einstein, Ann. Phys., 17, 132 (1905).2. N. Bohr, The Theory of Spectra and Atomic Constitution. Cambridge :

Cambridge University Press, 1922.3. A. Einstein, Pbysik. Z., 18, 191 (1917).4. A. Einstein e P. Ehrenfest, Z. Pbysik, 11, 31 (1922).5. N. Bohr, H.A. Kramers e J.C. Slater, Pbil. Mag., 47, 785 (1924).6. A. Einstein, Berl Ber., 261 (1924); 3 e 18 (1925).7. W. Heisenberg, Z. Pbysik, 43, 172 (1927).8. Atti dei Congresso Internazionale dei Fisici, Como, set. 1927 (reproduzido

em Nature, 121, 78 e 580, 1928).

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9. Instituí International de Physique Solvay, Rapport et discussions du 5e Conseil, Paris, 1928, p. 253ss.

10. Idem, p. 248ss.11. A. Einstein, B. Podolsky e N. Rosen, Pbys. R e v 47, 777 (1935).12. N. Bohr, Phys. Rev., 48, 696 (1935).13. A. Einstein,/. Pranklin Inst., 221, 349 (1936).14. N. Bohr, Philosophy of Science, 4, 289 (1937).15. IIe Congrès International de la Lumière, Copenhague, 1932 (reproduzido

neste volume, p. 5).16. New Theories in Physics, Paris, 1938, p. 11.17. N. Bohr, Dialectica, 1, 312 (1948).

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A unidade do conhecimento

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Antes de tentar responder à pergunta sobre até que ponto é possí­vel falar em unidade do conhecimento, podemos indagar qual o sentido da própria palavra conhecimento. Não pretendo envere­dar por um discurso filosófico acadêmico, para o qual eu dificil­mente possuiria a erudição necessária. Todo cientista, no entanto, confronta-se constantemente com o problema da descrição objeti­va da experiência, expressão que usamos para uma comunicação inambígua. Nosso instrumento básico, naturalmente, é a lingua­gem comum, que atende às necessidades da vida prática e do in­tercâmbio social. Não nos interessaremos aqui pelas origens dessa linguagem, mas sim por seu alcance na comunicação científica e, em especial, pelo problema de como se pode preservar a objetivi­dade quando aumentam as experiências que vão além dos aconte­cimentos da vida cotidiana.

O aspecto principal a reconhecer é que todo conhecimento se apresenta dentro de um arcabouço conceituai adaptado para ex­plicar a experiência prévia, e que qualquer referencial desse tipo pode revelar-se estreito demais para abranger novas experiências. A pesquisa científica, em muitos campos do conhecimento, de fato comprovou reiteradamente a necessidade de abandonar ou remo­delar pontos de vista que, por sua fecundidade e sua aplicabili­dade aparentemente irrestrita, eram considerados indispensáveis à explicação racional. Embora essas transformações tenham sido

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iniciadas por estudos especiais, elas implicam uma lição geral que é importante para o problema da unidade do conhecimento. Com efeito, a ampliação do arcabouço conceituai não apenas serviu pa­ra restabelecer a ordem nos respectivos ramos do conhecimento, como também revelou analogias em nossa postura com respeito à análise e à síntese da experiência em campos aparentemente dis­tintos do conhecimento, sugerindo a possibilidade de uma descri­ção objetiva cada vez mais abrangente.

Ao falar em arcabouço conceituai, referimo-nos meramente à representação lógica inambígua das relações entre as experiên­cias. Essa atitude também se evidencia no desenvolvimento histó­rico, no qual a lógica formal já não é nitidamente distinguida dos estudos da semântica, ou mesmo da sintaxe filológica. Um papel especial é desempenhado pela matemática, que contribuiu muito decisivamente para o desenvolvimento do raciocínio lógico e que, por suas abstrações bem definidas, fornece uma ajuda de valor inestimável para expressar relações harmoniosas. Contudo, em nossa discussão, não consideraremos a matemática pura como um ramo separado do conhecimento, mas como um aperfeiçoa­mento da linguagem geral e que a suplementa com instrumentos apropriados para representar relações para as quais a expressão verbal corriqueira é imprecisa ou confusa. Nesse contexto, pode- se enfatizar que, pela simples evitação da referência ao sujeito consciente, que permeia a linguagem cotidiana, o uso de símbolos matemáticos assegura a inambigüidade de definição exigida pela descrição objetiva.

O desenvolvimento das chamadas ciências exatas, que se ca­racterizam pelo estabelecimento de relações numéricas entre me­didas, foi decisivamente fomentado, com efeito, por métodos matemáticos abstratos, originários da busca imparcial de cons­truções lógicas generalizantes. Essa situação é especialmente ilus­trada na física, que originalmente abrangia todo conhecimento concernente à natureza de que nós mesmos fazemos parte, mas, pouco a pouco, passou a significar o estudo das leis básicas que

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regem as propriedades da matéria inanimada. A necessidade, até mesmo nesse tema relativamente simples, de prestar uma atenção constante ao problema da descrição objetiva influenciou profun­damente a atitude das escolas filosóficas ao longo dos séculos. Em nossos dias, a exploração de novos campos da experiência revelou pressupostos insuspeitados para a aplicação inambígua de alguns de nossos conceitos mais elementares e, com isso, deu- nos uma lição epistemológica relacionada com problemas que ul­trapassam em muito o domínio da ciência física. Por conseguin­te, talvez convenha iniciar nossa discussão por um breve relato desse desenvolvimento.

Iríamos longe demais se recordássemos em detalhe como foi que, com a eliminação das idéias e argumentos cosmológicos mí­ticos referentes à finalidade de nossas ações, construiu-se um es­quema coerente da mecânica, baseado no trabalho pioneiro de Galileu, que atingiu grande perfeição através da mestria de New- ton. Acima de tudo, os princípios da mecânica newtoniana signi­ficaram um amplo esclarecimento do problema da causa e efeito, permitindo, a partir do estado de um sistema físico definido num dado instante por quantidades mensuráveis, a previsão de seu estado em qualquer ocasião posterior. Sabe-se perfeitamente o quanto esse tipo de explicação determinista ou causai levou à concepção mecanicista da natureza e passou a figurar como um ideal da explicação científica em todos os campos do conhe­cimento, independentemente do modo de obtenção do conheci­mento. Nesse contexto, por conseguinte, é importante que o es­tudo de campos mais amplos da experiência física tenha revelado a necessidade de uma consideração mais rigorosa do problema observacional.

Em seu amplo campo de aplicação, a mecânica clássica apre­senta uma descrição objetiva, no sentido de se basear num uso bem definido de imagens e idéias referentes aos acontecimentos da vida cotidiana. Contudo, por mais racionais que possam ter-se

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afigurado as idealizações empregadas na mecânica newtoniana, elas ultrapassaram em muito, na verdade, a gama de experiências a que se adaptam nossos conceitos elementares. Assim, o uso ade­quado das próprias noções de espaço e tempo absolutos está in- trin secamente ligado à propagação praticamente instantânea da luz, que nos permite localizar os corpos a nosso redor, indepen­dentemente de sua velocidade, e dispor os acontecimentos numa única seqüência temporal. Mas a tentativa de elaborar uma expli­cação coerente dos fenômenos eletromagnéticos e ópticos revelou que diferentes observadores, movimentando-se com grandes velo­cidades uns em relação aos outros, coordenam os acontecimentos de maneiras diversas. Não apenas esses observadores podem ter uma visão diferente das formas e posições dos corpos rígidos, co­mo também eventos em pontos separados do espaço, que talvez pareçam simultâneos a um observador, podem ser julgados por outro como ocorrendo em momentos diferentes.

Longe de dar margem a confusões e complicações, a explora­ção do grau em que a explicação dos fenômenos físicos depende do ponto de vista do observador revelou-se um guia de valor ines­timável para desvendar leis físicas gerais, comuns a todos os ob­servadores. Preservando a idéia do determinismo, porém con­fiando apenas nas relações entre medidas inambíguas, referentes, em última instância, a coincidências dos acontecimentos, Einstein conseguiu reformular e generalizar todo o edifício da física clássi­ca, além de conferir à nossa imagem do mundo uma unidade que superou todas as expectativas prévias. Na teoria da relatividade geral, a descrição baseia-se numa métrica espaço-temporal qua- dridimensional com curvatura, que explica automaticamente os efeitos gravitacionais e o papel singular da velocidade dos sinais luminosos, que representa um limite superior para qualquer uti­lização coerente do conceito físico de velocidade. A introdução dessas abstrações matemáticas pouco conhecidas, mas bem defi­nidas, não implica nenhuma ambigüidade, mas fornece uma ilus­tração instrutiva de como uma ampliação do arcabouço concei-

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tual proporciona os meios adequados para eliminar os elementos subjetivos e aumentar o alcance da descrição objetiva.

Novos e insuspeitados aspectos do problema observacional foram revelados pela exploração da constituição atômica da ma­téria. Como se sabe, remonta à Antigüidade a idéia de uma divi- sibilidade limitada das substâncias, introduzida para explicar a persistência de suas propriedades características a despeito da di­versidade dos fenômenos naturais. Entretanto, quase que até nos­sos dias, as idéias atomísticas foram consideradas essencialmente hipotéticas, no sentido de parecerem inacessíveis à confirmação direta pela observação, em virtude da precariedade de nossos ór­gãos sensoriais e de nossos instrumentos, eles mesmos compostos de incontáveis átomos. Não obstante, com o grande progresso da química e da física nos últimos séculos, as idéias atomísticas re­velaram-se cada vez mais fecundas. Em particular, a aplicação direta da mecânica clássica à interação de átomos e de moléculas, em sua movimentação incessante, levou a uma compreensão ge­ral dos princípios da termodinâmica.

Neste século, o estudo de propriedades recém-descobertas da matéria, como a radioatividade natural, confirmou convincente­mente as bases da teoria atômica. Em particular, mediante o de­senvolvimento de aparatos amplificadores, tornou-se possível es­tudar fenômenos essencialmente dependentes de átomos singulares, e até obter um extenso conhecimento da estrutura dos sistemas atô­micos. O primeiro passo foi o reconhecimento do elétron como componente comum a todas as substâncias. Um aperfeiçoamento essencial de nossas idéias sobre a composição atômica foi obti­do pela descoberta de Rutherford do núcleo atômico, que contém, num volume extremamente pequeno, quase toda a massa do átomo. A invariabilidade das propriedades dos elementos nos processos fí­sicos e químicos comuns é diretamente explicada pela circunstância de que, nesses processos, embora seja possível influir grandemente na ligação do elétron, o núcleo permanece inalterado. Ao demons­trar a transmutabilidade dos núcleos atômicos por agentes mais po­

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derosos, entretanto, Rutherford abriu um campo de pesquisa intei­ramente novo, a que muitas vezes se faz referência como alquimia moderna, o qual, como se sabe, acabaria por levar à possibilidade de se liberarem imensas quantidades de energia armazenadas nos núcleos atômicos.

Embora muitas propriedades fundamentais da matéria tenham sido explicadas pela imagem simples do átomo, ficou evidente, desde o princípio, que as idéias clássicas da mecânica e do eletro- magnetismo não bastavam para explicar a estabilidade essencial das estruturas atômicas, tal como exibida pelas propriedades es­pecíficas dos elementos. Entretanto, um indício para a elucidação desse problema foi fornecido pela descoberta do quantum univer­sal de ação, à qual Planck foi levado, no primeiro ano de nosso século, por sua penetrante análise das leis da radiação térmica. Essa descoberta revelou, nos processos atômicos, uma caracterís­tica de globalidade inteiramente desconhecida da concepção me­cânica da natureza, e tornou evidente que as teorias da física clás­sica são idealizações, válidas apenas na descrição de fenômenos em cuja análise todas as ações sejam suficientemente grandes para permitir que se despreze o quantum. Embora essa condição seja amplamente satisfeita nos fenômenos em escala comum, depa­ramos, nos fenômenos atômicos, com regularidades de um tipo muito novo, que desafiam a descrição pictórica determinista.

Uma generalização racional da física clássica que admitisse a existência do quantum, mas preservasse a interpretação inambí- gua dos dados experimentais que definem a massa inercial e a carga elétrica do elétron e do núcleo, representava uma tarefa muito difícil. Através dos esforços conjuntos de toda uma gera­ção de físicos teóricos, no entanto, elaborou-se aos poucos uma descrição coerente e, em ampla medida, exaustiva dos fenômenos atômicos. Essa descrição serve-se de um formalismo matemático em que as variáveis das teorias físicas clássicas são substituídas por símbolos sujeitos a operações não comutativas, que envol­vem a constante de Planck. Em virtude do próprio caráter dessas

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abstrações matemáticas, o formalismo não admite uma interpre­tação pictórica nos moldes costumeiros, mas visa diretamente a estabelecer relações entre as observações obtidas em condições bem definidas. Correspondendo à circunstância de que diferen­tes processos quânticos individuais podem ocorrer num dado ar­ranjo experimental, essas relações são de caráter intrinsecamente estatístico.

Através do formalismo da mecânica quântica, conseguiu-se uma descrição detalhada de uma imensa quantidade de dados ex­perimentais referentes às propriedades físicas e químicas da ma­téria. Além disso, adaptando o formalismo às exigências da inva- riância relativista, foi possível, dentro de amplos limites, ordenar conhecimentos novos e rapidamente crescentes sobre as proprie­dades das partículas elementares e a constituição dos núcleos atô­micos. Apesar do assombroso poder da mecânica quântica, o afas­tamento radical da explicação física costumeira e, acima de tudo, a renúncia à própria idéia do determinismo deram margem a dúvi­das, na mente de muitos físicos e filósofos, quanto a estarmos li­dando com um expediente temporário ou confrontados com um passo irrevogável com respeito à descrição objetiva. O esclareci­mento desse problema exigia, na verdade, uma revisão radical dos fundamentos da descrição e da compreensão da experiência física.

Nesse contexto, devemos sobretudo reconhecer que, mesmo quando os fenômenos transcendem o âmbito das teorias físicas clássicas, a explicação do arranjo experimental e o registro das observações devem ser fornecidos em linguagem clara, adequada­mente suplementada pela terminologia física técnica. Essa é uma exigência lógica evidente, já que a própria palavra “experimento” refere-se a uma situação em que possamos dizer aos outros o que fizemos e o que aprendemos. Todavia, a diferença fundamental com respeito à análise dos fenômenos na física clássica e na física quântica é que, na primeira, a interação dos objetos e dos instru­mentos de medida pode ser desprezada ou compensada, ao passo que, na segunda, essa interação é parte integrante dos fenômenos.

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A globalidade essencial de um fenômeno quântico propriamente dito encontra sua expressão lógica, com efeito, na circunstância de que qualquer tentativa de subdividi-lo, de maneira bem defini­da, exigiria uma alteração do arranjo experimental que seria in­compatível com o surgimento do próprio fenômeno.

Em particular, a impossibilidade de um controle separado da interação dos objetos atômicos e dos instrumentos indispensáveis à definição das condições experimentais impede a combinação irres­trita da localização espaço-temporal com as leis de conservação di­nâmicas em que se baseia a descrição determinista na física clássi­ca. Na verdade, qualquer utilização inambígua dos conceitos de espaço e tempo refere-se a um arranjo experimental que implica uma transferência de momento e energia, incontrolável em princí­pio, para escalas fixas e relógios sincronizados, exigidos para a de­finição do sistema de referência. Inversamente, a explicação de fe­nômenos caracterizados pelas leis de conservação do momento e da energia implica, em princípio, uma renúncia à detalhada locali­zação espaço-temporal. Essas circunstâncias encontram expressão quantitativa nas relações de indeterminação de Heisenberg, que es­pecificam a incerteza recíproca para a determinação das variáveis cinemáticas e dinâmicas na definição do estado de um sistema fí-

o

sico. De acordo com o formalismo quântico, entretanto, essas re­lações não podem ser interpretadas em termos de atributos de ob­jetos referidos a imagens clássicas. Lidamos, nesse caso, com as condições mutuamente excludentes de uso inambíguo dos próprios conceitos de espaço e tempo, de um lado, e das leis dinâmicas de conservação, de outro.

3 J

Nesse contexto, fala-se às vezes em “perturbação dos fenôme­nos pela observação” ou em “criação de atributos físicos para objetos atômicos pelo ato de medida” . Tais expressões, no entan­to, tendem a provocar confusão, já que, nelas, palavras como fe­nômenos e observação, assim como atributos e medidas, são usa­das de um modo incompatível com a linguagem comum e com a definição prática. Nos moldes da descrição objetiva, é realmente

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mais apropriado usar a palavra fenômeno para fazer referência apenas a observações obtidas em circunstâncias cuja descrição inclua uma explicação de todo o arranjo experimental. Nessa terminologia, o problema observacional da física quântica é des­pojado de qualquer complexidade especial e, além disso, é-nos lembrado diretamente que todo fenômeno atômico é fechado, no sentido de que sua observação baseia-se em registros obtidos por meio de dispositivos de amplificação adequados e de funciona­mento irreversível, como, por exemplo, marcas permanentes nu­ma chapa fotográfica, provocadas pela penetração dos elétrons na emulsão. Com respeito a isso, é importante perceber que o formalismo quântico permite aplicações bem definidas que se re­ferem apenas a esses fenômenos fechados. Ele também represen­ta, nesse aspecto, uma generalização racional da física clássica, em que cada etapa do curso dos acontecimentos é descrita por quantidades mensuráveis.

Naturalmente, a liberdade de experimentação, pressuposta na física clássica, é preservada, e corresponde à livre escolha de ar­ranjos experimentais a que a estrutura matemática do formalismo quântico ofereça a incerteza apropriada. A circunstância de que, em geral, o mesmo dispositivo experimental pode gerar registros muito diferentes é pitorescamente descrita, vez por outra, como uma “escolha da natureza” entre essas possibilidades. É desneces­sário dizer que essa expressão não implica nenhuma alusão a uma personificação da natureza, mas simplesmente aponta para a im­possibilidade de determinar, nos moldes habituais, diretrizes para o curso de um fenômeno indivisível fechado. Aqui, a abordagem lógica não consegue ir além da dedução das probabilidades relati­vas de aparecimento dos fenômenos individuais em condições ex­perimentais dadas. Nesse aspecto, a mecânica quântica representa uma generalização coerente da descrição mecânica determinista, que ela abrange como um limite assintótico, no caso de fenôme­nos físicos em escala suficientemente grande para permitir que se despreze o quantum de ação.

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Uma característica notável da física atômica é a relação inédita entre fenômenos observados em condições experimentais que exi­jam conceitos elementares diferentes para sua descrição. De fato, por mais contrastantes que pareçam essas experiências, na tenta­tiva de conceber um desenrolar dos processos atômicos em mol­des clássicos, elas têm que ser consideradas complementares, no sentido de que representam conhecimentos igualmente essenciais sobre os sistemas atômicos e, juntas, esgotam esses conhecimen­tos. A noção de complementaridade não implica, de modo algum, um desvio de nossa postura de observadores imparciais da natu­reza, mas deve ser encarada como a expressão lógica de nossa situação no que tange à descrição objetiva nesse campo da expe­riência. O reconhecimento de que a interação dos instrumentos de medida e dos sistemas físicos investigados constitui uma parte in­tegrante dos fenômenos quânticos não só revelou uma insuspei- tada limitação da concepção mecânica da natureza, tal como ca­racterizada pela atribuição de propriedades distintas a sistemas físicos, como também nos forçou, na ordenação da experiência, a prestar a devida atenção às condições de observação.

Voltando à controvertida questão do que deve ser exigido de uma explicação física, é preciso ter em mente que a mecânica clás­sica já deixara implícita a renúncia de uma causa para o movimen­to uniforme e, além disso, que a teoria da relatividade ensinou-nos como devem ser tratadas as teses de invariância e equivalência, como categorias da explicação racional. Da mesma forma, na des­crição complementar da física quântica, temos que lidar com outra generalização autoconsistente, que permite a inclusão de regulari- dades decisivas para a explicação das propriedades fundamentais da matéria, mas transcende o âmbito da descrição determinista. A história da ciência física, portanto, demonstra como a explora­ção de campos cada vez maiores da experiência, ao revelar limita­ções insuspeitadas àas idéias costumeiras, aponta novos caminhos para o restabelecimento da ordem lógica. Como passaremos a mostrar agora, a lição epistemológica contida no desenvolvimento

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da física atômica faz-nos lembrar uma situação similar com respei­to à descrição e compreensão de experiências que ultrapassam em muito as fronteiras da ciência física, e nos permite descobrir traços comuns que promovem a busca da unidade do conhecimento.

O primeiro problema com que deparamos ao sair do domínio próprio da física é a questão do lugar dos organismos vivos na descrição dos fenômenos naturais. Originalmente, não se fazia ne­nhuma distinção clara entre a matéria animada e a inanimada, e é sabido que Aristóteles, ao frisar a integridade dos organismos in­dividuais, opôs-se às concepções dos atomistas e, até na discussão dos fundamentos da mecânica, preservou idéias como as de finali­dade e potência. Entretanto, em decorrência das grandes desco­bertas da anatomia e da fisiologia na época do Renascimento, e especialmente do advento da mecânica clássica, em cuja descrição determinista qualquer referência à finalidade é eliminada, sugeriu- se uma concepção inteiramente mecanicista da natureza. Grande número de funções orgânicas pôde ser compreendido pelas mes­mas propriedades físicas e químicas da matéria que encontravam ampla explicação com base em simples idéias atomicistas. É fato que a estrutura e funcionamento dos organismos envolvem uma ordenação de processos atômicos que, vez por outra, pareceram difíceis de conciliar com as leis da termodinâmica, exigindo uma abordagem sistemática da desordem existente entre os átomos que compõem um sistema físico isolado. Entretanto, quando se leva suficientemente em conta a circunstância de que a energia livre necessária para manter e desenvolver os sistemas orgânicos é con­tinuamente suprida por seu ambiente, através da nutrição e da res­piração, fica claro que não há, nesse aspecto, nenhuma violação das leis físicas gerais.

Nas últimas décadas, obtiveram-se grandes avanços em nosso conhecimento da estrutura e do funcionamento dos organismos e, em particular, tornou-se evidente que as regularidades quânticas desempenham neles, sob muitos aspectos, um papel fundamental.

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Não só essas regularidades estão na base da notável estabilidade das estruturas moleculares altamente complexas que formam os componentes essenciais das células responsáveis pelas proprieda­des hereditárias das espécies, como também a pesquisa sobre as mutações produzidas pela exposição dos organismos a radiações penetrantes oferece uma notável aplicação das leis estatísticas da física quântica. Além disso, verificou-se que a sensibilidade dos ór­gãos da percepção, tão importante para a integridade dos orga­nismos, aproxima-se do nível dos processos quânticos individuais, e que os mecanismos de amplificação desempenham um papel im­portante, sobretudo na transmissão das mensagens nervosas. Mais uma vez, todo esse desenvolvimento, embora de uma nova ma­neira, trouxe para o primeiro plano a abordagem mecanicista dos problemas biológicos. Mas, ao mesmo tempo, agudizou-se a ques­tão de saber se a comparação entre os organismos e alguns siste­mas altamente complexos e aprimorados, como as modernas cons­truções industriais ou as máquinas de calcular eletrônicas, fornece a base apropriada para uma descrição objetiva das entidades auto- reguladoras que os organismos vivos apresentam.

Voltando à lição epistemológica geral que nos foi dada pela físi­ca atômica, devemos, em primeiro lugar, reconhecer que os pro­cessos fechados estudados na física quântica não são diretamente análogos às funções biológicas, para cuja manutenção faz-se ne­cessária uma troca contínua de matéria e energia entre o organis­mo e o ambiente. Além disso, qualquer arranjo experimental que permitisse o controle dessas funções no grau exigido por sua des­crição bem definida em termos físicos seria proibitivo para a livre manifestação da vida. Essa mesma circunstância, entretanto, suge­re uma atitude perante o problema da vida orgânica que ofereça um equilíbrio mais apropriado entre as abordagens mecanicista e finalista. De fato, assim como o quantum de ação aparece na des­crição dos fenômenos atômicos como um elemento sobre o qual não é possível nem exigida uma explicação, a noção de vida é ele­mentar na ciência biológica, na qual, ao tratarmos da existência e

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evolução dos organismos vivos, estamos interessados em manifes­tações de possibilidades da natureza a que pertencemos, e não no resultado dos experimentos que possamos efetuar. Na verdade, devemos reconhecer, ao menos em termos de tendência, que os requisitos de descrição objetiva são atendidos pelo modo caracte- risticamente complementar como, na prática, a pesquisa biológica usa, de um lado, os argumentos baseados nos recursos da ciência física e química, e, de outro, os conceitos diretamente referentes à integridade do organismo, que transcendem o âmbito dessas ciên­cias. A questão principal é que somente pela renúncia a uma expli­cação da vida, no sentido corriqueiro, conquistamos a possibilida­de de levar em conta suas características.

E claro que, tanto na biologia quanto na física, preservamos nossa postura de observadores imparciais, e a questão é apenas a das diferentes condições de compreensão lógica da experiência. Isso também se aplica ao estudo do comportamento inato e condi­cionado dos animais e do homem, ao qual os conceitos psicoló­gicos prestam-se prontamente. Mesmo numa abordagem suposta­mente behaviorista, dificilmente se podem evitar esses conceitos, e a própria idéia de consciência se apresenta quando lidamos com comportamentos de tão alto grau de complexidade que sua descri­ção implica, virtualmente, a introspecção por parte do organismo individual. Aqui, temos de lidar com aplicações mutuamente ex- cludentes das palavras instinto e razão, ilustradas pelo grau em que o comportamento instintivo é reprimido nas sociedades hu­manas. Embora, na tentativa de explicar nosso estado mental, de­paremos com dificuldades ainda maiores no que tange à imparcia­lidade observacional, ainda assim é possível sustentar, em larga medida, os requisitos da descrição objetiva, até mesmo na psicolo­gia humana. Nesse contexto, é interessante notar que embora, nas etapas iniciais da ciência física, fosse possível confiar diretamente em aspectos dos acontecimentos da vida cotidiana que permitiam uma explicação causai simples, a descrição essencialmente com­plementar do conteúdo de nossa mente foi usada desde a origem

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das linguagens. De fato, a rica terminologia adaptada a essa co­municação não aponta para um curso ininterrupto dos aconteci­mentos, mas para experiências mutuamente excludentes, caracte­rizadas por diferentes separações entre o conteúdo em que nossa atenção se concentra e o pano de fundo indicado pela expressão “nós mesmos” .

Um exemplo especialmente marcante é fornecido pela relação entre situações nas quais ponderamos sobre os motivos de nossos atos e aquelas em que experimentamos um sentimento de voli- ção. Na vida normal, essa oscilação da distinção é mais ou menos intuitivamente reconhecida, mas os sintomas caracterizados co­mo “confusão de egos” , que podem levar à dissolução da per­sonalidade, são bem conhecidos da psiquiatria. O uso de atribu­tos aparentemente contrastantes, referidos a aspectos igualmente importantes da mente humana, de fato apresenta uma analogia notável com a situação da física atômica, na qual fenômenos complementares requerem, para sua definição, diferentes concei­tos elementares. Acima de tudo, a circunstância de que a própria palavra “consciência” refere-se a experiências passíveis de serem retidas na memória sugere uma comparação entre as experiências conscientes e as observações da física. Nessa analogia, a impossi­bilidade de fornecer um conteúdo inambíguo para a idéia de sub­consciente corresponde à impossibilidade da interpretação pictó­rica do formalismo quântico. A propósito, pode-se dizer que o tratamento psicanalítico das neuroses restabelece o equilíbrio do conteúdo da memória do paciente por lhe trazer uma nova expe­riência consciente, e não por ajudá-lo a sondar os abismos de seu subconsciente.

Do ponto de vista biológico, só podemos interpretar as carac­terísticas dos fenômenos físicos concluindo que toda experiência consciente corresponde a uma impressão residual do organismo, que equivale a um registro irreversível, no sistema nervoso, do re­sultado de processos que não são acessíveis à introspecção e que dificilmente se adaptariam a uma definição exaustiva pela aborda­

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gem mecanicista. Certamente, os registros em que está envolvida a interação de numerosas células nervosas são essencialmente dife­rentes das estruturas permanentes de qualquer célula isolada do organismo que esteja ligada à reprodução genética. Do ponto de vista finalista, entretanto, podemos frisar não apenas a utilidade dos registros permanentes, em sua influência sobre nossas reações a estímulos posteriores, como também a importância de que as gerações seguintes não sejam prejudicadas pelas experiências efe­tivas dos indivíduos, mas dependam somente da reprodução das propriedades do organismo que se provaram úteis para a aquisi­ção e a utilização do conhecimento. Em qualquer tentativa de le­var adiante a investigação, devemos estar preparados, é claro, pa­ra deparar com dificuldades crescentes a cada passo, e é sugestivo que os conceitos simples da ciência física percam sua aplicabili­dade imediata, em grau cada vez maior, quanto mais nos aproxi­mamos dos aspectos dos organismos vivos que se relacionam com as características de nossa mente.

Para ilustrar esse argumento, podemos fazer uma breve refe­rência ao velho problema do livre arbítrio. Pelo que já foi dito, é evidente que a palavra volição é indispensável para uma descrição exaustiva dos fenômenos psíquicos, mas o problema é até que ponto podemos falar em liberdade de agir de acordo com nos­sas possibilidades. Enquanto se adotam concepções rigidamente deterministas, a idéia dessa liberdade fica obviamente excluída. Contudo, a lição geral da física atômica, e, em particular, do al­cance limitado da descrição mecanicista dos fenômenos biológi­cos, sugere que a capacidade que os organismos têm de se adaptar ao ambiente inclui o poder de escolher o caminho mais apropria­do para esse fim. Por ser impossível julgar essas questões em bases puramente físicas, é de suma importância reconhecer que a ex­periência psicológica pode oferecer informações mais pertinentes sobre os problemas. O ponto decisivo é que, se tentarmos prever o que outra pessoa decidirá fazer numa dada situação, não só de­veremos nos empenhar em conhecer todos os seus antecedentes,

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inclusive a história de sua vida, em todos os aspectos que possam ter contribuído para formar seu caráter, como deveremos tam­bém reconhecer que aquilo a que visamos, em última instância, é nos colocarmos em seu lugar. Naturalmente, é impossível dizer se uma pessoa quer fazer algo por se acreditar capaz de fazê-lo, ou se é capaz de fazê-lo porque quer, mas dificilmente se poderia con­testar que temos a sensação, por assim dizer, de sermos capazes de estar fazendo sempre o que compreendemos como o melhor numa dada circunstância. Do ponto de vista da descrição objeti­va, nada pode ser acrescentado ou retirado daí e, nesse sentido, podemos falar, tanto prática quanto logicamente, em livre arbí­trio, de um modo que deixe a margem adequada para o emprego de palavras como responsabilidade e esperança, que, por sua vez, são tão pouco definíveis em separado quanto outras palavras in­dispensáveis à comunicação humana.

Essas considerações apontam para as implicações epistemoló- gicas da lição referente a nossa posição observacional, que o de­senvolvimento da ciência física deixou impressa em nós. Em troca da renúncia às exigências habituais da explicação, ela oferece um meio lógico de compreendermos vastos campos da experiência, exigindo uma atenção adequada à instauração da distinção obje- to-sujeito. Uma vez que, na literatura filosófica, às vezes se faz referência a diferentes níveis de objetividade ou subjetividade, ou mesmo de realidade, pode-se enfatizar que a noção de um sujeito último, bem como de concepções como realismo e idealismo, não tem lugar na descrição objetiva tal como a definimos; mas essa circunstância não implica, é claro, nenhuma limitação do alcance da investigação em que estamos interessados.

Havendo tocado em alguns dos problemas da ciência que se relacionam com a unidade do conhecimento, volto-me agora para a outra questão levantada em nosso projeto, ou seja, se há uma verdade poética, espiritual ou cultural distinta da verdade cientí­fica. Com toda a relutância de um cientista em enveredar por es­

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ses campos, arrisco-me a comentar essa questão, numa atitude se­melhante à indicada no que foi dito antes. Tomando a discussão sobre a relação que existe entre nossos meios de expressão e o campo da experiência por que nos interessamos, é fato que somos diretamente confrontados com a relação entre a ciência e a arte. O enriquecimento que a arte pode nos trazer origina-se em seu poder de nos relembrar harmonias que ficam fora do alcance da análise sistemática. Pode-se dizer que a arte literária, a arte pictó­rica e a arte musical compõem uma seqüência de modos de ex­pressão em que a renúncia cada vez mais ampla à definição, ca­racterística da comunicação humana, dá à fantasia uma liberdade maior de manifestação. Na poesia, em particular, esse propósito é alcançado pela justaposição de palavras relacionadas com situa­ções observacionais mutáveis, com isso unindo emocionalmente múltiplos aspectos do conhecimento humano.

Apesar da inspiração exigida por toda obra de arte, talvez não seja irreverente comentar que, mesmo no auge de seu trabalho, o artista depende da mesma base humana comum em que nos sus­tentamos. Em particular, devemos reconhecer que uma palavra como improvisação, que vem à boca tão prontamente ao falar­mos de realizações artísticas, aponta para um aspecto essencial a toda comunicação. Não apenas, na conversa corriqueira, somos mais ou menos inconscientes das expressões verbais que escolhe­mos para comunicar o que nos vai pela mente, como também, até mesmo nos textos escritos, onde temos a possibilidade de reconsi­derar cada palavra, a questão de a deixarmos como está ou de a modificarmos exige, para ser respondida, uma decisão final que equivale, essencialmente, a uma improvisação. A propósito, no equilíbrio entre a seriedade e o humor, que é característico de to­das as realizações verdadeiramente artísticas, somos lembrados dos aspectos complementares que se evidenciam na brincadeira infantil e são não menos apreciados na vida madura. De fato, se sempre nos esforçarmos por falar com muita seriedade, correre­mos o risco de, muito cedo, parecermos ridiculamente entediantes

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para nossos ouvintes e para nós mesmos; porém, se tentarmos brincar o tempo todo, logo nos descobriremos, como também o farão nossos ouvintes, no estado de espírito desesperador dos bu- fões dos dramas de Shakespeare.

Numa comparação entre a ciência e a arte, é claro, não deve­mos esquecer que, na primeira, lidamos com esforços conjuntos e sistemáticos para aumentar a experiência e desenvolver conceitos apropriados para sua compreensão, o que se assemelha a carregar e encaixar tijolos num edifício; na segunda, são-nos apresentados esforços individuais, mais intuitivos, para evocar sentimentos que lembrem a globalidade de nossa situação. Aqui, estamos num pon­to em que a questão da unidade do conhecimento contém, eviden­temente, uma ambigüidade, como a própria palavra “verdade” . De fato, no que concerne aos valores espirituais e culturais, tam­bém somos lembrados de problemas epistemológicos ligados ao equilíbrio adequado entre nosso desejo de um modo globalizante de encarar a vida, em seus aspectos multifacetados, e nosso poder de nos expressarmos de maneira logicamente coerente.

Nesse aspecto, pontos de partida essencialmente diferentes são adotados pela ciência, que visa ao desenvolvimento de métodos gerais de ordenação da experiência humana comum, e pelas reli­giões, que se originaram nos esforços de promover uma harmonia de visão e comportamento nas comunidades. É claro que, em qual­quer religião, todos os conhecimentos compartilhados pelos mem­bros da comunidade foram incluídos no arcabouço geral, que tem como um de seus conteúdos primordiais os valores e ideais enfa­tizados no culto e na fé. Por conseguinte, a relação inerente entre conteúdo e forma mal chegou a requerer atenção, até que o pro­gresso posterior da ciência acarretou uma nova lição cosmológica ou epistemológica. O curso da história fornece muitas ilustrações quanto a esses aspectos. Podemos nos referir, em especial, ao ver­dadeiro cisma entre ciência e religião que acompanhou o desenvol­vimento da concepção mecanicista da natureza, na época do Re­nascimento europeu. De um lado, muitos fenômenos até então

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encarados como manifestações da providência divina afiguraram- se conseqüências de leis gerais e imutáveis da natureza. De outro, os métodos e pontos de vista da física eram muito distantes da ênfase nos valores e ideais humanos, essenciais à religião. Como traço comum às escolas da chamada filosofia empírica e crítica, prevaleceu, portanto, uma atitude de distinção mais ou menos va­ga entre o conhecimento objetivo e a crença subjetiva.

Ao enfatizar a necessidade, na comunicação inambígua, de prestar a devida atenção à instauração da separação objeto-su- jeito, entretanto, o desenvolvimento moderno da ciência criou uma nova base para o uso de palavras como conhecimento e crença. Acima de tudo, o reconhecimento de limitações intrínse­cas na noção de causalidade ofereceu um cenário em que a idéia de predestinação universal foi substituída pelo conceito de evo­lução natural. Com respeito à organização das sociedades huma­nas, podemos frisar, em especial, que a descrição da posição do indivíduo em sua comunidade apresenta aspectos tipicamente complementares, relacionados com a fronteira cambiante entre a apreciação dos valores e o contexto em que eles são julgados. Sem dúvida, toda sociedade humana estável requer a imparciali­dade, especificada nas normas judiciais, mas, ao mesmo tempo, uma vida sem apego à família e aos amigos seria, obviamente, privada de alguns de seus valores mais preciosos. Todavia, em­bora a combinação mais íntima possível de justiça e caridade re­presente uma meta comum de todas as culturas, convém reco­nhecer que qualquer ocasião que requeira a aplicação rigorosa da lei não deixa espaço para a manifestação de caridade, e que, inversamente, a benevolência e a compaixão podem entrar em conflito com as idéias de justiça. Esse ponto, miticamente ilustra­do em muitas religiões pela luta entre divindades que personi­ficam esses ideais, é enfatizado, na antiga filosofia oriental, na advertência de que nunca devemos esquecer, em nossa busca de harmonia na vida humana, que, no palco da vida, nós mesmos somos atores e espectadores.

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Ao comparar diferentes culturas, alicerçadas nas tradições promovidas por acontecimentos históricos, deparamos com a di­ficuldade de aquilatar a cultura de uma nação pautando-nos nos antecedentes das tradições de outra. Nesse aspecto, a relação en­tre as culturas nacionais tem sido ocasionalmente descrita como complementar, embora essa palavra não possa ser tomada, nesse contexto, no sentido estrito em que é empregada na física atômica ou na análise psicológica, onde lidamos com características inva­riáveis de nossa situação. De fato, não só o contato entre as na­ções resultou amiúde na fusão de culturas, preservando elementos valiosos das tradições nacionais, como também a pesquisa antro­pológica vem-se tornando, sistematicamente, uma fonte de suma importância para elucidar aspectos comuns do desenvolvimento cultural. Na verdade, dificilmente se poderia separar o problema da unidade do conhecimento e o esforço pela compreensão uni­versal, como meio de elevar a cultura humana.

Ao concluir esta comunicação, sinto que devo desculpar-me por falar de temas tão gerais com tanta referência ao campo es­pecial de conhecimento representado pela ciência física. Tentei indicar, porém, uma atitude geral sugerida pela grave lição que recebemos desse campo em nossa época, e que me parece ter im­portância para o problema da unidade do conhecimento. Essa atitude pode ser resumida pelo empenho em adquirir uma com­preensão harmoniosa de aspectos cada vez mais amplos de nossa situação, reconhecendo que nenhuma experiência é definível sem um arcabouço lógico, e que qualquer aparente desarmonia só pode ser eliminada por uma ampliação apropriada do quadro conceituai.

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Os átomos e o conhecimento humano

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A exploração do mundo dos átomos feita neste século pratica­mente não tem paralelos na história da ciência, no que concerne ao progresso do conhecimento e ao domínio da natureza de que nós mesmos somos parte. Entretanto, cada ampliação do conheci­mento e das habilidades conduz a uma responsabilidade maior; e a realização da promessa de riqueza e de eliminação dos novos perigos da era atômica confronta toda a nossa civilização com um grave desafio, que só pode ser enfrentado mediante a cooperação de todos os povos, fundamentada numa compreensão mútua da confraternidade humana. Nesta situação, é importante perceber que a ciência, que não conhece fronteiras nacionais e cujas reali­zações são um patrimônio comum da humanidade, tem unido os homens, em todas as eras, em seus esforços para elucidar os fun­damentos de nosso saber. Como tentarei mostrar, o estudo dos átomos, que viria a acarretar conseqüências tão extensas e cujo progresso baseou-se numa cooperação mundial, não apenas apro­fundou nosso discernimento de um novo campo da experiência, como também lançou nova luz sobre os problemas gerais do co­nhecimento.

A princípio, talvez pareça surpreendente que a ciência atômica contenha uma lição de natureza geral, mas convém lembrar que, em todas as etapas de seu desenvolvimento, ela tratou de proble­mas profundos do conhecimento. Assim, os pensadores da Anti-

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güidade, presumindo um limite para a divisibilidade das substân- cias5 tentaram descobrir um fundamento para compreender as ca­racterísticas de permanência exibidas pelos fenômenos naturais, a despeito de sua multiplicidade e variabilidade. Embora as idéias atomistas tenham contribuído de maneira cada vez mais fecunda para o desenvolvimento da física e da química desde o Renasci­mento, elas foram consideradas uma hipótese até o início deste século. Na verdade, presumia-se que nossos órgãos sensoriais, eles mesmos compostos de inúmeros átomos, eram toscos demais para observar as partes mais diminutas da matéria. Essa situação, en­tretanto, iria modificar-se substancialmente com as grandes des­cobertas da virada do século. Como se sabe, o progresso da téc­nica experimental tornou possível registrar os efeitos de átomos isolados e obter informações sobre partículas mais elementares, que, como se constatou, formam os próprios átomos.

Apesar da profunda influência exercida pelo antigo atomismo no desenvolvimento da concepção mecanicista da natureza, foi o estudo de experiências astronômicas e físicas imediatamente aces­síveis que permitiu desvendar as regularidades expressas na cha­mada física clássica. A frase de Galileu, segundo a qual a explica­ção dos fenômenos deveria basear-se em quantidades mensuráveis, tornou possível eliminar as visões animistas que por tanto tempo haviam impedido a formulação racional da mecânica. Nos Princi­pia de Newton, lançaram-se as bases de uma descrição determi­nista que permitisse, a partir do conhecimento do estado de um sistema físico num dado momento, prever seu estado em qualquer momento posterior. Dentro dos mesmos moldes, foi possível ex­plicar os fenômenos eletromagnéticos. Isso, no entanto, exigiu que a descrição do estado dos sistemas incluísse, além das posições e velocidades dos corpos eletrificados e imantados, a intensidade e a direção das forças elétricas e magnéticas em cada ponto do espaço num momento dado.

Por muito tempo, julgou-se que o arcabouço conceituai carac­terístico da física clássica proporcionava o instrumento correto

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OS Á TO M O S E O C O N H ECIM EN TO HUM ANO 107

para a descrição de todos os fenômenos físicos, e até mesmo que ele se adequava à utilização e ao desenvolvimento das idéias atô­micas. Naturalmente, em sistemas como os corpos comuns, que são compostos de um imenso número de partes integrantes, não havia possibilidade de uma descrição exaustiva do estado dos sis­temas. Sem abandonar o ideal determinista, entretanto, tornou-se possível, com base nos princípios da mecânica clássica, deduzir regularidades estatísticas que refletiam muitas das propriedades dos corpos materiais. Muito embora as leis mecânicas do movi­mento permitissem uma inversão completa do curso de processos isolados, a explicação plena da característica de irreversibilidade dos fenômenos do calor foi encontrada no equilíbrio estatístico da energia, resultante da interação das moléculas. Essa grande extensão da aplicação da mecânica enfatizou ainda mais a indis- pensabilidade das idéias atomistas para a descrição da natureza e descortinou as primeiras possibilidades de contar os átomos das substâncias.

Mas o esclarecimento das bases das leis da termodinâmica iria abrir caminho para o reconhecimento, nos processos atômicos, de um traço de globalidade que ultrapassava em muito a antiga doutrina da divisibilidade limitada da matéria. Como se sabe, a análise minuciosa da radiação térmica tornou-se o teste do alcan­ce das idéias físicas clássicas. A descoberta das ondas eletromag­néticas já havia fornecido uma base para o entendimento da pro­pagação da luz, explicando muitas das propriedades ópticas das substâncias, mas os esforços para explicar o equilíbrio da ra­diação confrontaram essas idéias com dificuldades insuperáveis. A circunstância de que, nesse caso, era preciso lidar com argu­mentos baseados em princípios gerais, independentes de pressu­postos especiais acerca dos componentes das substâncias, levou Planck, no primeiro ano deste século, à descoberta do quantum universal de ação, que mostrou com clareza que a descrição física clássica era uma idealização de aplicabilidade restrita. Nos fenô­menos em escala comum, as ações envolvidas são tão grandes, em

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comparação com o quantum, que este pode ser desconsiderado. Todavia, nos processos quânticos propriamente ditos, depara­mos com regularidades que são completamente alheias à concep­ção mecanicista da natureza e desafiam a descrição determinista pictórica.

A tarefa com que a descoberta de Planck confrontou os físicos não foi nada menos que, através de uma análise minuciosa dos pressupostos em que se baseava a aplicação de nossos conceitos mais elementares, abrir espaço para o quantum de ação numa generalização racional da descrição física clássica. Durante o de­senvolvimento da física quântica, que tantas surpresas acarretou, fomos repetidamente lembrados das dificuldades de nos orien­tarmos num campo da experiência que está longe daquele a cuja descrição nossos meios de expressão encontram-se adaptados. O progresso rápido foi possibilitado por uma ampla e intensa co­laboração entre físicos de muitos países, cujas abordagens diver­sificadas ajudaram, de maneira extremamente fecunda, a enfocar o problema com nitidez cada vez maior. Nesta oportunidade, é claro, não será possível discorrer em detalhe sobre as contribui­ções individuais, mas, como pano de fundo para as considerações que se seguem, quero recordar-lhes brevemente alguns dos traços principais desse desenvolvimento.

Enquanto Planck limitou-se cautelosamente a argumentos esta­tísticos e enfatizou as dificuldades de abandonar os fundamentos clássicos na descrição detalhada da natureza, Einstein apontou ou- sadamente para a necessidade de levar em conta o quantum de ação nos fenômenos atômicos individuais. No mesmo ano em que aprimorou tão harmoniosamente o arcabouço da física clássica, ao estabelecer a teoria da relatividade, ele mostrou que a descrição das observações de efeitos fotoelétricos exigia que a transmissão de energia a cada um dos elétrons expelidos das substâncias cor­respondesse à absorção de um chamado quantum de radiação. Como a idéia de ondas é indispensável à explicação da propagação

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da luz, não havia como simplesmente substituí-la por uma des­crição corpuscular. Portanto, ficava-se diante de um dilema pecu­liar, cuja solução iria exigir uma análise rigorosa do alcance dos conceitos pictóricos.

Como se sabe, essa questão foi ainda mais acentuada pela des­coberta de Rutherford do núcleo atômico, o qual, apesar de suas dimensões diminutas, contém quase toda a massa do átomo, e cuja carga elétrica corresponde ao número de elétrons do átomo neu­tro. Isso forneceu uma imagem simples do átomo, que sugeriu de imediato a aplicação de idéias mecânicas e eletromagnéticas. No entanto, estava claro que, de acordo com os princípios da física clássica, nenhuma configuração de partículas elétricas podia pos­suir a estabilidade necessária à explicação das propriedades físicas e químicas dos átomos. Em particular, segundo a teoria eletromag­nética clássica, todo movimento dos elétrons em torno do núcleo atômico produziria uma radiação contínua de energia, implicando uma rápida contração do sistema, até que os elétrons se unissem ao núcleo numa partícula neutra, de dimensões infinitamente pe­quenas em relação às que devem ser atribuídas aos átomos. To­davia, nas leis empíricas das linhas espectrais dos elementos, até então inteiramente incompreensíveis, encontrou-se um indício da importância decisiva do quantum de ação para a estabilidade e as reações radiantes do átomo.

O ponto de partida passou a ser, nesse caso, o chamado postu­lado quântico, segundo o qual toda troca de energia de um átomo é resultado de uma transição completa entre dois de seus estados estacionários. Presumindo ainda que todas as reações atômicas ra­diantes implicam a emissão ou a absorção de um único quantum de luz, os valores energéticos dos estados estacionários puderam ser determinados a partir dos espectros. Ficou patente que nenhu­ma explicação da indivisibilidade dos processos de transição, ou de seu aparecimento em determinadas condições, poderia ser for­necida dentro do referencial da descrição determinista. Entretan­to, mostrou-se possível examinar as ligações dos elétrons nos áto­

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mos, que refletiam muitas das propriedades das substâncias, com a ajuda do chamado princípio da correspondência. Com base nu­ma comparação com o curso classicamente esperável dos proces­sos, buscaram-se diretrizes para uma generalização estatística da descrição que fosse compatível com o postulado quântico. Toda­via, ficou cada vez mais claro que, para se obter uma explicação coerente dos fenômenos atômicos, era preciso renunciar ainda mais ao uso de imagens, e que era necessária uma reformulação radical de toda a descrição para abarcar todas as características que o quantum de ação acarretava.

A solução, encontrada em decorrência das contribuições enge­nhosas de muitos dos mais eminentes físicos teóricos de nossa época, foi surpreendentemente simples. Como na formulação da teoria da relatividade, encontraram-se instrumentos adequados em abstrações matemáticas altamente desenvolvidas. As quanti­dades que, na física clássica, são usadas para descrever o estado de um sistema foram substituídas, no formalismo quântico, por operadores simbólicos cuja comutabilidade é limitada por regras que levam em conta o quantum. Isso implica que não é possível atribuir simultaneamente valores definidos a quantidades como as coordenadas posicionais e os respectivos componentes de mo­mento das partículas. Assim, o caráter estatístico do formalismo é exibido como uma generalização natural da descrição da física clássica. Além disso, essa generalização permitiu uma formulação coerente das regularidades que limitam a individualidade das par­tículas idênticas e que, como o próprio quantum, não podem ser expressas em termos das imagens físicas usuais.

Através dos métodos da mecânica quântica, foi possível ex­plicar um enorme volume de dados experimentais sobre as pro­priedades físicas e químicas das substâncias. Não só a ligação dos elétrons nos átomos e moléculas foi pormenorizadamente escla­recida, como também se obteve um profundo discernimento da constituição e das reações dos núcleos atômicos. Com respeito a isso, podemos mencionar que as leis de probabilidade das trans­

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mutações radioativas espontâneas foram harmoniosamente incor­poradas na descrição estatística da mecânica quântica. Ademais, a compreensão das propriedades das novas partículas elementares, observadas nos últimos anos no estudo das transmutações dos nú­cleos atômicos em altas energias, passou por um progresso con­tínuo, resultante da adaptação do formalismo aos requisitos de invariância da teoria da relatividade. Nesse ponto, contudo, ve- mo-nos diante de novos problemas, cuja solução obviamente re­quer novas abstrações, capazes de combinar o quantum de ação com a carga elétrica elementar.

Apesar da fecundidade da mecânica quântica nesse campo tão vasto da experiência, a renúncia às exigências habituais feitas à explicação física levou muitos físicos e filósofos a duvidar de que estivéssemos lidando com uma descrição exaustiva dos fenôme­nos atômicos. Em particular, externou-se a opinião de que o mo­do de descrição estatístico deveria ser encarado como um expe­diente temporário, substituível, em princípio, por uma descrição determinista. O debate rigoroso dessa questão, entretanto, levou ao esclarecimento de nossa situação como observadores na física atômica e nos deu a lição epistemológica a que nos referimos no início desta palestra.

Posto que a meta da ciência é aumentar e ordenar nossa expe­riência, toda análise das condições do conhecimento humano de­ve assentar-se em considerações sobre o caráter e o alcance de nossos meios de expressão. Nossa base, é claro, é a linguagem desenvolvida para a orientação em nosso meio e para a organi­zação das comunidades humanas. Repetidamente, porém, a am­pliação da experiência suscitou questões quanto à suficiência dos conceitos e idéias incorporados na linguagem cotidiana. Em virtu­de da relativa simplicidade dos problemas físicos, eles se prestam especialmente para investigar o uso de nossos meios de expressão. De fato, o desenvolvimento da física atômica nos ensinou como é possível criar um arcabouço suficientemente amplo para uma des­

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crição exaustiva de novas experiências, sem abandonar a lingua­gem comum.

Nesse contexto, é imperativo reconhecer que, em todo relato de uma experiência física, devem-se descrever as condições e as observações experimentais através dos mesmos meios de expres­são usados na física clássica. Na análise de partículas atômicas isoladas, isso é possibilitado pelos efeitos irreversíveis de ampli­ficação — como a marca deixada numa chapa fotográfica pelo impacto de um elétron, ou uma descarga elétrica produzida num dispositivo de contagem —, e as observações concernem apenas a onde e quando a partícula é registrada na chapa, ou a sua ener­gia na chegada ao contador. Naturalmente, essa informação pressupõe o conhecimento da posição da chapa fotográfica em relação às outras partes do arranjo experimental, tais como dia­fragmas reguladores e obturadores que definam a localização es- paço-temporal, ou corpos eletrificados e imantados que determi­nem os campos de força externos que atuam sobre a partícula e permitem as medidas da energia. As condições experimentais po­dem ser variadas de muitas maneiras, mas o importante é que, em cada situação, sejamos capazes de comunicar aos outros o que fizemos e o que aprendemos. Portanto, o funcionamento dos instrumentos de medida tem que ser descrito dentro do quadro das idéias físicas clássicas.

Uma vez que todas as medidas concernem a corpos suficiente­mente pesados para permitir que o quantum seja desprezado em sua descrição, não há, estritamente falando, nenhum novo pro­blema observacional na física atômica. A amplificação dos efeitos atômicos, que permite fundamentar a explicação em quantidades mensuráveis e confere aos fenômenos um caráter fechado pecu­liar, só faz enfatizar a irreversibilidade característica do próprio conceito de observação. Enquanto, nos moldes da física clássica, não há diferença, em princípio, entre a descrição dos instrumen­tos de medida e os objetos investigados, a situação é essencial­mente diferente quando estudamos fenômenos quânticos, uma

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vez que o quantum de ação impõe restrições à descrição do estado dos sistemas por meio de coordenadas espaço-temporais e quanti­dades de momento-energia. Uma vez que a descrição determinista da física clássica pauta-se na suposição de uma compatibilidade irrestrita da localização espaço-temporal com as leis de conserva­ção dinâmicas, obviamente somos confrontados, nesse caso, com o problema de determinar, no que tange aos objetos atômicos, se essa descrição pode ser inteiramente preservada.

Verificou-se que, na descrição dos fenômenos quânticos, o pa­pel da interação dos objetos com os instrumentos de medida era de especial importância para esclarecer esse ponto fundamental. Assim, como Heisenberg enfatizou, a localização de um objeto num domínio espaço-temporal limitado envolve, de acordo com a mecânica quântica, uma troca de momento e energia entre o ins­trumento e o objeto, que é tão maior quanto menor é o domínio escolhido. Portanto, foi de extrema importância investigar até que ponto a interação provocada pela observação podia ser leva­da em conta separadamente na descrição dos fenômenos. Essa questão foi o foco de muitos debates, havendo surgido muitas propostas visando a um controle completo de todas as interações. Nessas considerações, entretanto, não se deu a devida atenção ao fato de que a própria descrição do funcionamento dos instrumen­tos de medida implica que qualquer interação destes instrumentos com os objetos atômicos, decorrente do quantum, é inseparável do fenômeno.

De fato, todo arranjo experimental que permita o registro de uma partícula atômica num domínio espaço-temporal limitado exige padrões de medida fixos e relógios sincronizados que, por sua própria definição, excluem o controle do momento e da ener­gia transmitidos para eles. Inversamente, uma aplicação inambí- gua das leis de conservação dinâmicas na física quântica exige que a descrição dos fenômenos implique uma renúncia, em princípio, à localização espaço-temporal detalhada. Esse caráter mutuamen­te excludente das condições experimentais faz com que todo o ar­

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ranjo experimental tenha que ser levado em conta numa descrição bem definida dos fenômenos. A indivisibilidade dos fenômenos quânticos encontra sua expressão coerente no fato de que toda subdivisão definível exige uma mudança do arranjo experimental, com o aparecimento de novos fenômenos individuais. Assim, o próprio fundamento de uma descrição determinista desaparece, e o caráter estatístico das previsões é evidenciado pelo fato de que, num mesmo arranjo experimental, em geral aparecem observa­ções que correspondem a diferentes processos individuais.

Tais considerações não apenas esclareceram o dilema antes mencionado, com respeito à propagação da luz, como também resolveram por completo os paradoxos correspondentes que con­frontam a representação pictórica do comportamento das partí­culas materiais. Aqui, é claro, não podemos buscar uma explica­ção física no sentido costumeiro, mas tudo o que podemos pleitear de um novo campo de experiências é a eliminação de quaisquer contradições aparentes. Por maiores que sejam os contrastes exi­bidos pelos fenômenos atômicos em diferentes condições experi­mentais, esses fenômenos devem ser chamados de complementa­res, no sentido de que cada um deles é bem definido e de que, juntos, eles esgotam todo o conhecimento definível sobre os ob­jetos em questão. O formalismo quântico, cujo único objetivo é compreender observações obtidas em condições experimentais descritas por conceitos físicos simples, fornece justamente esse ti­po de explicação complementar exaustiva para um campo muito grande de experiências. A renúncia à representação pictórica en­volve apenas o estado dos objetos atômicos, enquanto o funda­mento da descrição das condições experimentais, bem como nossa liberdade de escolhê-las, são inteiramente preservados. Todo esse formalismo, que só pode ser aplicado a fenômenos fechados, deve ser considerado, sob todos os aspectos, uma generalização racio­nal da física clássica.

Em vista da influência da concepção mecanicista da natureza no pensamento filosófico, é compreensível que às vezes se tenha

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visto na noção de complementaridade uma referência ao observa­dor subjetivo, incompatível com a objetividade da descrição cientí­fica. Naturalmente, em todos os campos da experiência, devemos manter uma clara distinção entre o observador e o conteúdo das observações, mas devemos reconhecer que a descoberta do quan- tum de ação lançou uma nova luz sobre os próprios fundamentos da descrição da natureza, revelando pressupostos até então des­percebidos no uso racional dos conceitos em que se baseia a comu­nicação da experiência. Na física quântica, como vimos, a explica­ção do funcionamento dos instrumentos de medida é indispensável à definição dos fenômenos, e devemos distinguir entre o sujeito e o objeto, por assim dizer, de tal maneira que cada caso isolado assegure a aplicação inambígua dos conceitos físicos elementares empregados na descrição. Longe de conter qualquer misticismo alheio ao espírito da ciência, a noção de complementaridade apon­ta para as condições lógicas da descrição e da compreensão da ex­periência na física atômica.

Tal como fizeram os avanços anteriores na ciência física, a li­ção epistemológica da física atômica deu origem, naturalmente, ao exame renovado do uso de nossos meios de expressão, tendo em vista a descrição objetiva em outros campos do conhecimento. A própria ênfase colocada no problema observacional levanta a questão da posição dos organismos vivos na descrição da nature­za e de nossa própria situação como seres pensantes e atuantes. Muito embora tenha sido possível, em certa medida, dentro do contexto da física clássica, comparar organismos com máquinas, ficou claro que essas comparações não levavam suficientemente em conta muitas das características da vida. A inadequação da concepção mecanicista da natureza para descrever a situação do homem é particularmente evidente nas dificuldades implícitas na distinção primitiva entre alma e corpo.

Os problemas com que deparamos nessa área estão obvia­mente vinculados ao fato de que a descrição de muitos aspectos

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da existência humana requer uma terminologia que não tem um fundamento imediato em simples imagens físicas. Entretanto, o reconhecimento da aplicabilidade limitada dessas imagens na explicação dos fenômenos atômicos dá um indício de como os fenômenos biológicos e psicológicos podem ser compreendidos dentro do contexto da descrição objetiva. Tal como antes, é im­portante estar ciente, aqui, da separação entre o observador e o conteúdo das comunicações. Enquanto, na concepção mecanicis- ta da natureza, a distinção sujeito-objeto era fixa, dá-se espaço a uma descrição mais ampla através do reconhecimento de que o uso coerente de nossos conceitos requer tratamentos diferentes para essa separação.

Sem tentar fornecer nenhuma definição exaustiva da vida or­gânica, podemos dizer que um organismo vivo caracteriza-se por sua integridade e sua adaptabilidade, o que implica que uma des­crição das funções internas de um organismo e de sua reação aos estímulos externos amiúde requer um “finalismo” , que é desco­nhecido da física e da química. Embora os resultados da física atômica tenham encontrado uma multiplicidade de aplicações na biofísica e na bioquímica, os fenômenos quânticos individuais fe­chados não exibem, é claro, nenhum traço que sugira a noção de vida. Como vimos, a descrição dos fenômenos atômicos, exausti­va dentro de um vasto domínio da experiência, baseia-se na livre utilização dos instrumentos de medida necessários a uma aplica­ção adequada dos conceitos elementares. Num organismo vivo, entretanto, tal distinção entre os instrumentos de medida e os ob­jetos investigados dificilmente poderia ser mantida até o fim. De­vemos estar preparados para o fato de que todo arranjo experi­mental que pretenda descrever o funcionamento do organismo, que é bem definido no sentido da física atômica, será incompatí­vel com a manifestação de vida.

Na pesquisa biológica, as referências às características de inte­gridade e às reações finalistas dos organismos são usadas junta­mente com informações cada vez mais detalhadas sobre a estrutu­

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ra e os processos regulatórios, que resultaram em tão grandes progressos, inclusive na medicina. Aqui, temos que lidar com a abordagem prática de um campo em que os meios de expressão usados para a descrição de seus vários aspectos referem-se a con­dições de observação mutuamente excludentes. Nesse contexto, há que se reconhecer que as atitudes denominadas de mecanicis- tas e finalistas não são pontos de vista contraditórios, mas exi­bem, antes, uma relação complementar, que está ligada a nossa posição de observadores da natureza. Para evitar mal-entendidos, no entanto, é essencial notar que — em contraste com a explica­ção das regularidades atômicas — a descrição da vida orgânica e a avaliação de suas possibilidades de desenvolvimento não podem almejar ser completas, mas apenas se basear num arcabouço con­ceituai suficientemente amplo.

Na descrição das experiências psíquicas, encontramos condi­ções de observação e meios correspondentes de expressão que se distanciam ainda mais da terminologia da física. À parte a me­dida em que o emprego de palavras como instinto e razão na descrição do comportamento animal é necessário e justificável, a palavra consciência, aplicada ao próprio sujeito e a outrem, é indispensável ao se descrever a condição humana. Enquanto a terminologia adaptada à orientação no ambiente pôde tomar co­mo ponto de partida imagens físicas simples e idéias de causali­dade, a explicação de nossos estados mentais exigiu um modo de descrição tipicamente complementar. Com efeito, o uso de pala­vras como pensamento e sentimento não se refere a uma cadeia causai firmemente interligada, mas a experiências que excluem umas às outras, em virtude das diferentes distinções entre o con­teúdo consciente e o pano de fundo a que frouxamente chama­mos “nós mesmos” .

A relação entre a experiência de um sentimento de volição e a ponderação consciente sobre os motivos de nossos atos é espe­cialmente esclarecedora. A indispensabilidade desses meios de ex­pressão, aparentemente contrastantes, para descrever a riqueza

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da vida consciente faz-nos lembrar, de um modo surpreendente, a maneira como os conceitos físicos elementares são empregados na física atômica. Nessa comparação, todavia, devemos reconhe­cer que a experiência psíquica não pode ser submetida a men- surações físicas, e que o próprio conceito de volição não se refere a uma generalização de uma descrição determinista, mas aponta, desde o início, para características da vida humana. Sem entrar na antiga discussão filosófica sobre o livre arbítrio, quero apenas mencionar que, numa descrição objetiva de nossa situação, o uso da palavra volição corresponde de perto ao de termos como espe­rança e responsabilidade, que são igualmente indispensáveis à co­municação humana.

Chegamos aqui a problemas que afetam a confraternidade hu­mana, e nos quais a variedade dos meios de expressão origina-se da impossibilidade de caracterizar, mediante qualquer distinção fixa, o papel do indivíduo na sociedade. O fato de as culturas humanas, desenvolvidas em diferentes condições de vida, exibi­rem tantos contrastes no que diz respeito às tradições aceitas e aos padrões sociais permite, num certo sentido, que chamemos essas culturas de complementares. Entretanto, de modo algum lidamos, nesse caso, com características definidas e mutuamente excluden- tes, tais como as que encontramos na descrição objetiva de pro­blemas gerais da física e da psicologia, mas sim com diferenças de atitude que podem ser apreciadas ou melhoradas por um maior intercâmbio entre os povos. Em nossa época, quando, mais do que nunca, o conhecimento e a habilidade crescentes ligam o des­tino de todos os povos, a cooperação internacional na ciência tem tarefas de amplo alcance, que podem ser favorecidas também pela conscientização das condições gerais do conhecimento humano.

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A ciência física e o problema da vida

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Foi um prazer aceitar o convite da Sociedade de Medicina de Co- penhague para fazer uma das Palestras Steno com que a Socieda­de relembra esse famoso cientista dinamarquês, cujos feitos são admirados em grau cada vez maior não só neste país, mas em todo o mundo científico. Como meu tema, escolhi um problema que tem ocupado a mente humana ao longo das eras, e pelo qual o próprio Niels Steensen* tinha um profundo interesse: de que modo as experiências físicas podem nos ajudar a explicar a vida orgânica em suas ricas e variadas manifestações? Como tentarei mostrar, o desenvolvimento da física nas últimas décadas e, em particular, a lição referente a nossa posição de observadores da natureza de que fazemos parte, recebida através da exploração do mundo dos átomos, por tanto tempo vedado a nós, criou um no­vo cenário para nossa atitude diante dessa questão.

Mesmo nas escolas filosóficas da Grécia antiga encontramos opiniões divergentes acerca dos meios conceituais adequados pa­ra explicar as marcantes diferenças entre os organismos vivos e outros corpos materiais. Como se sabe, os atomistas considera­

* É essa a forma dinamarquesa do nome de Nicolaus Steno (1638-1686), ce­lebrizado por sua descoberta do canal excretor da glândula parótida, por seu estabelecimento das bases da estratigrafia, pela observação dos fósseis e por seu pioneirismo na tectônica. (N. da T.)

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vam que uma divisibilidade limitada de toda a matéria era ne­cessária para explicar não só os fenômenos físicos simples, mas também o funcionamento dos organismos e as experiências físicas correlatas. Aristóteles, por outro lado, refutou as idéias atomís- ticas e, em vista da integridade exibida por todo organismo vivo, sustentou a necessidade de introduzir na descrição da natureza conceitos como os de perfeição e finalidade.

Por quase 2 mil anos, essa situação permaneceu basicamente inalterada. Só no Renascimento ocorreram as grandes desco­bertas da física e da biologia, que iriam trazer novos estímulos. O progresso na física consistiu, acima de tudo, na superação da idéia aristotélica das forças motrizes como causa de todo movi­mento. O reconhecimento por Galileu de que o movimento uni­forme é uma manifestação da inércia, bem como sua ênfase na força como causa da mudança de movimento, iriam converter-se na base do desenvolvimento da mecânica, que Newton, para a admiração de sucessivas gerações, dotou de uma forma sólida e completa. Essa chamada mecânica clássica eliminou qualquer referência ao finalismo, já que o curso dos acontecimentos foi descrito como uma conseqüência automática de condições ini­ciais dadas.

O progresso da mecânica não pôde deixar de causar a mais viva impressão em toda a ciência contemporânea. Em particular, os estudos anatômicos de Vesalius e a descoberta da circulação sangüínea por Harvey sugeriram uma comparação entre organis­mos vivos e máquinas, que funcionariam de acordo com as leis da mecânica. Na vertente filosófica, foi sobretudo Descartes que fri­sou a semelhança entre os animais e os automata, mas ele atribuiu aos seres humanos uma alma em interação com o corpo numa certa glândula cerebral. A insuficiência dos conhecimentos con­temporâneos sobre esses problemas foi enfatizada por Steno em sua famosa conferência de Paris sobre a anatomia do cérebro, que é prova do grande poder de observação e da mentalidade aberta que caracterizaram toda a obra científica de Steno.

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A CIÊNCIA FÍSIC A E O PRO BLEM A DA VIDA I Z I

Os avanços posteriores na biologia, especialmente após a in­venção do microscópio, revelaram que a estrutura orgânica e os processos regulatórios apresentam um refinamento insuspeitado. Ao mesmo tempo que as idéias mecanicistas, desse modo, encon­traram aplicações cada vez mais vastas, os chamados pontos de vista vitalistas ou finalistas, inspirados no esplêndido poder de regeneração e adaptação dos organismos, foram repetidamente expressos. Em vez de retornar a idéias primitivas de uma força vital que atuaria sobre os organismos, essas concepções enfati­zaram como a abordagem física era insuficiente para explicar as características da vida. A guisa de uma exposição ponderada da situação tal como se apresentava no início deste século, eu gosta­ria de me referir ao seguinte enunciado de meu pai, o fisiologista Christian Bohr, na introdução de seu artigo “Sobre a expansão patológica do pulmão” , publicado na edição comemorativa do aniversário da Universidade de Copenhague em 1910:

Tanto quanto se pode caracterizar a fisiologia como um ramo especial das ciências naturais, sua tarefa específica é investigar os fenômenos peculiares do organismo como um objeto em­pírico dado, a fim de chegar a uma compreensão das diversas partes da auto-regulação e de como estas compensam umas às outras e se harmonizam com as variações das influências exter­nas e dos processos internos. Assim, é da própria natureza des­sa tarefa relacionar a palavra finalismo com a manutenção do organismo e considerar finalistas os mecanismos de regulação que servem a essa manutenção. E justamente nesse sentido que usaremos, no que se segue, a noção de “finalismo” em refe­rência às funções orgânicas. Mas, para que a aplicação desse conceito em cada caso isolado não seja vazia ou até enganosa, deve-se exigir que ela seja sempre precedida de uma investi­gação do fenômeno orgânico considerado, suficientemente mi­nuciosa para esclarecer passo a passo a maneira especial pela qual ele contribui para a manutenção do organismo. Embora essa exigência — que não requer mais do que a demonstração científica de que a noção de finalismo, no caso considerado, é

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usada de acordo com essa definição — possa parecer evidente, ainda assim talvez não seja desnecessário enfatizá-la. De fato, as investigações fisiológicas trouxeram à luz regulações de ex­tremo refinamento, em tamanha profusão, que é tentador de­signar qualquer manifestação de vida observável como fina­lista, sem empreender uma investigação experimental de seu funcionamento detalhado. Através de analogias, que se apre­sentam com muita facilidade em meio à diversidade das fun­ções orgânicas, é simplesmente um passo a mais interpretar esse funcionamento a partir de um juízo subjetivo sobre o ca­ráter especial de finalismo do caso considerado. É evidente, porém, dado o nosso conhecimento estreitamente limitado so­bre o organismo, a freqüência com que esse juízo pessoal pode ser errôneo, como é ilustrado por muitos exemplos. Nesses ca­sos, a falta do esclarecimento experimental dos pormenores do processo constitui a causa dos resultados errôneos do procedi­mento. A suposição apriorística do finalismo do processo or­gânico, no entanto, é em si muito natural como princípio heu­rístico e pode, em virtude da extrema complexidade e da difícil compreensão da situação do organismo, ser até mesmo indis­pensável para a formulação do problema especial da investiga­ção e para a busca de maneiras de solucioná-lo. Contudo, uma coisa é o que pode ser convenientemente usado pela investiga­ção preliminar, e outra é o que pode ser justificadamente con­siderado um resultado efetivamente obtido. Com respeito ao problema da finalidade de uma dada função para a manuten­ção de todo o organismo, esse resultado, como frisamos ante­riormente, só pode ser garantido por uma demonstração deta­lhada das maneiras pelas quais tal finalidade é atingida.

Citei essas observações, que expressam a atitude do círculo em que cresci e cujas discussões ouvi em minha juventude, por­que elas proporcionam um ponto de partida adequado para a investigação do lugar dos organismos vivos na descrição da na­tureza. Como tentarei mostrar, o moderno desenvolvimento da física atômica, ao mesmo tempo que aumentou nosso conheci­

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A CIÊNCIA FÍSIC A E O PRO BLEM A DA VIDA 12.3

mento sobre os átomos e sua constituição por partículas mais elementares, revelou a limitação de princípio da chamada con­cepção mecanicista da natureza, e com isso criou um novo cená­rio para o problema — de enorme pertinência para nosso tema — do que podemos entender por explicação científica e do que podemos exigir dela.

Para expor a situação da física com a máxima clareza possível, começarei por lembrar-lhes a atitude extremada que, sob o im­pacto do grande sucesso da mecânica clássica, foi expressa na fa­mosa concepção de Laplace sobre uma máquina universal. Todas as interações dos componentes dessa máquina seriam regidas pe­las leis da mecânica e, por conseguinte, uma inteligência que co­nhecesse as posições e velocidades relativas dessas partes, num dado momento, poderia prever todos os acontecimentos subse- qüentes do mundo, inclusive o comportamento dos animais e do homem. Em toda essa concepção, que, como se sabe, desempe­nhou um importante papel na discussão filosófica, não se presta a devida atenção aos pressupostos da aplicabilidade dos concei­tos indispensáveis à comunicação da experiência.

Nesse aspecto, o recente desenvolvimento da física deu-nos uma lição premente. Já a grandiosa interpretação dos fenômenos do calor como um movimento incessante das moléculas nos gases, líquidos e sólidos chamara a atenção para a importância das con­dições de observação na explicação das experiências. Obviamente, não havia possibilidade de uma descrição detalhada dos movimen­tos das inúmeras partículas entre si, mas apenas de deduzir regula- ridades estatísticas do movimento do calor por meio de princípios mecânicos gerais. Portanto, o contraste singular entre a reversibi- lidade dos processos mecânicos simples e a irreversibilidade típica de muitos fenômenos termodinâmicos foi esclarecido pelo fato de que a aplicação de conceitos como temperatura e entropia referia- se a condições experimentais incompatíveis com um controle com­pleto dos movimentos de cada molécula.

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Considerou-se freqüentemente que a manutenção e o cresci­mento dos organismos vivos entravam em contradição com a ten­dência ao equilíbrio da temperatura e da energia num sistema físico isolado, tendência garantida pelas leis termodinâmicas. En­tretanto, convém lembrarmos que os organismos são continua­mente supridos de energia livre pela nutrição e pela respiração, e que a mais rigorosa investigação fisiológica nunca revelou nenhum desvio dos princípios termodinâmicos. No entanto, o reconheci­mento dessas semelhanças entre os organismos vivos e as máqui­nas a motor comuns não basta, é claro, para responder à questão da posição dos organismos na descrição da natureza, questão esta que obviamente requer uma análise mais profunda do problema observacional.

Esse exato problema, de fato, destacou-se de maneira inespera­da com a descoberta do quantum universal de ação. Ele expressa uma característica de globalidade nos processos atômicos que im­pede a distinção entre a observação dos fenômenos e o compor­tamento independente dos objetos, característica da concepção mecanicista da natureza. Nos sistemas físicos na escala usual, a representação dos acontecimentos como uma cadeia de estados descritos por quantidades mensuráveis baseia-se na circunstância de que todas as ações, nesse caso, são grandes o bastante para permitir que se despreze a interação dos objetos e dos corpos usa­dos como instrumentos de medida. Nas condições em que o quan­tum de ação desempenha um papel decisivo e em que, portanto, essa interação é parte integrante dos fenômenos, não se pode atri­buir na mesma medida um curso mecanicamente bem definido.

O colapso das imagens físicas comuns com que deparamos nessa área expressa-se de maneira notável nas dificuldades de fa­larmos sobre as propriedades dos objetos atômicos independente­mente das condições de sua observação. Na verdade, pode-se cha­mar um elétron de partícula material carregada, já que as medidas de sua massa inercial sempre fornecem o mesmo resultado e qual­quer transmissão de eletricidade entre sistemas atômicos sempre

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corresponde a um certo número das chamadas unidades de carga. No entanto, os efeitos de interferência que aparecem quando os elétrons atravessam cristais são incompatíveis com a idéia me- canicista do movimento de partículas. Deparamos com aspectos análogos no conhecido dilema referente à natureza da luz, uma vez que os fenômenos ópticos requerem a noção de propagação de ondas, enquanto as leis de transmissão do momento e da ener­gia nos efeitos fotoelétricos atômicos referem-se à concepção me­cânica de partículas.

Essa situação, inédita na ciência física, exigiu uma nova análise dos pressupostos da aplicação dos conceitos usados para a orienta­ção em nosso entorno. Na física atômica, é claro, preservamos a liberdade, através da experimentação, de formular perguntas à natureza, mas temos de reconhecer que as condições experimen­tais, que podem ser variadas de muitas maneiras, são definidas so­mente por corpos tão pesados que, na descrição de suas funções, podemos desconsiderar o quantum. As informações concernentes aos objetos atômicos consistem unicamente nas marcas que eles deixam nesses instrumentos de medida, como, por exemplo, um ponto produzido pelo impacto de um elétron numa chapa fotográ­fica instalada no arranjo experimental. O fato de essas marcas se deverem a efeitos irreversíveis de amplificação dota os fenômenos de um caráter singularmente fechado, que aponta diretamente para a irreversibilidade, em princípio, da própria noção de observação.

A situação especial da física quântica, entretanto, consiste so­bretudo em que as informações obtidas dos objetos atômicos não podem ser compreendidas se nos ativermos às linhas de aborda­gem típicas da concepção mecanicista da natureza. O simples fato de que, num mesmo arranjo experimental, em geral podem surgir observações pertinentes a diferentes processos quânticos indivi­duais implica uma limitação, em princípio, do modo de descrição determinista. A exigência de uma divisibilidade irrestrita em que se alicerça a descrição física clássica é também claramente incom­patível com a característica de globalidade dos fenômenos quân-

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ticos típicos, que implica que qualquer subdivisão definível requer uma alteração do arranjo experimental, o que dá origem a novos efeitos individuais.

Para caracterizar a relação entre os fenômenos observados em diferentes condições experimentais, introduziu-se o termo com­plementaridade, a fim de enfatizar que esses fenômenos esgotam, em conjunto, todas as informações definíveis sobre os objetos atô­micos. Longe de conter uma renúncia arbitrária à explicação física costumeira, a noção de complementaridade refere-se diretamente à nossa posição de observadores, num campo da experiência em que a aplicação inambígua dos conceitos usados na descrição dos fenômenos depende essencialmente das condições de observação. Através de uma generalização matemática do arcabouço concei­tuai da física clássica, foi possível elaborar um formalismo que dá margem à incorporação lógica do quantum de ação. A chamada mecânica quântica visa diretamente à formulação de regularida- des estatísticas a partir de dados obtidos em condições observa- cionais bem definidas. A completude em princípio dessa descrição depende da manutenção de idéias da mecânica clássica, numa extensão que abarca qualquer variação definível das condições ex­perimentais.

O caráter complementar da descrição quântica expressa-se cla­ramente quando se explicam a composição e as reações dos siste­mas atômicos. As regularidades referentes aos estados energéticos dos átomos e moléculas, responsáveis pelos espectros característi­cos dos elementos e pelas valências das combinações químicas, só aparecem em circunstâncias em que se exclui o controle das posi­ções dos elétrons dentro do átomo e da molécula. Nesse contexto, é interessante notar que a aplicação fecunda de fórmulas estrutu­rais na química baseia-se exclusivamente no fato dé que os núcle­os atômicos são muito mais pesados que os elétrons. Entretanto, no que diz respeito à estabilidade e às transmutações dos próprios núcleos atômicos, as características quânticas tornam a ser deci­sivas. Somente numa descrição complementar que transcenda o

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âmbito da concepção mecânica da natureza é possível encontrar espaço para as regularidades fundamentais que respondem pelas propriedades das substâncias de que se compõem nossos instru­mentos e nossos corpos.

O progresso no campo da física atômica, como se sabe, teve ampla aplicação nas ciências biológicas. Em particular, posso men­cionar a compreensão que obtivemos da estabilidade peculiar das estruturas químicas nas células responsáveis pelas propriedades he­reditárias da espécie, e das leis estatísticas de ocorrência de muta­ções produzidas pela exposição dos organismos a agentes especiais. Além disso, efeitos de amplificação semelhantes aos que permitem a observação de partículas atômicas individuais desempenham um papel decisivo em muitas funções do organismo. Desse modo, fri­sa-se o caráter irreversível dos fenômenos biológicos típicos, e a direção temporal inerente à descrição do funcionamento dos orga­nismos é singularmente marcada por utilizarem a experiência pas­sada ao reagir a estímulos futuros.

Nesse desenvolvimento promissor, estamos diante de uma ex­tensão muito importante — e, por seu caráter, dificilmente limi­tada — da aplicação de idéias puramente físicas e químicas aos problemas biológicos. Já que a mecânica quântica afigura-se uma generalização racional da física clássica, toda essa abordagem pode ser chamada de mecanicista. A questão, entretanto, é em que sentido esse progresso eliminou os fundamentos que permi­tiam a aplicação dos chamados argumentos finalistas na biologia. Aqui, temos de reconhecer que a descrição e a compreensão dos fenômenos quânticos fechados não exibe nenhum traço indica­tivo de que uma organização de átomos seja capaz de se adaptar ao ambiente do modo como o testemunhamos na manutenção e evolução dos organismos vivos. Além disso, convém frisar que uma descrição exaustiva, no sentido da física quântica, de todos os átomos continuamente trocados no organismo é não apenas inviável, como exigiria também, obviamente, condições observa- cionais incompatíveis com a manifestação da vida.

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Entretanto, a lição referente ao papel desempenhado pelos ins­trumentos de observação na definição dos conceitos físicos ele­mentares fornece uma pista para a aplicação lógica de noções co­mo finalismo, desconhecidas da física, mas que se prestam muito prontamente à descrição dos fenômenos orgânicos. De fato, nesse cenário, é evidente que as atitudes denominadas mecanicistas e finalistas não apresentam visões contraditórias sobre os proble­mas biológicos, mas enfatizam, antes, o caráter mutuamente ex- cludente de condições observacionais igualmente indispensáveis em nossa busca de uma descrição cada vez mais rica da vida. Aqui não há possibilidade, é claro, de uma explicação semelhante à que a física clássica dá sobre o funcionamento de construções mecâni­cas simples ou de complexas calculadoras eletrônicas. Estamos in­teressados na investigação mais ampla dos pressupostos e do al­cance de nossos meios de expressão conceituais, que se tornou tão característica do desenvolvimento mais recente da física.

À parte todas as diferenças no tocante às condições observa­cionais, a comunicação das experiências biológicas contém tão pouca referência ao observador subjetivo quanto a descrição dos dados feita pela física. Assim, não foi necessário, até hoje, exa­minar mais de perto as condições de observação características da explicação dos fenômenos psicológicos, na qual não podemos contar com o quadro conceituai desenvolvido para nossa orienta­ção na natureza inanimada. Entretanto, o fato de que a experiên­cia consciente pode ser lembrada, e de que, portanto, deve-se su­por que esteja ligada a alterações permanentes na constituição do organismo, aponta para uma comparação entre os experimentos psíquicos e as observações da física. Com respeito às relações en­tre as experiências conscientes, também encontramos traços que fazem lembrar as condições de compreensão dos fenômenos atô­micos. O rico vocabulário usado nas comunicações dos estados de nossa mente refere-se, de fato, a um modo tipicamente com­plementar de descrição, que corresponde a uma mudança contí­nua do conteúdo em que a atenção é focalizada.

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Comparadas à expansão do modo mecânico de descrição exi­gida para dar conta da individualidade dos fenômenos atômicos, a integridade do organismo e a unidade da personalidade con­frontam-nos, é claro, com uma nova generalização do quadro de utilização racional de nossos meios de expressão. Nesse aspecto, convém enfatizar que a distinção entre sujeito e objeto, necessá­ria a uma descrição inambígua, é preservada na maneira como, em toda comunicação que contenha uma referência a nós mes­mos, introduzimos, por assim dizer, um novo sujeito que não figura como parte do conteúdo da comunicação. Nem é preci­so frisar que é justamente essa liberdade de escolha da distinção sujeito-objeto que dá margem à multiplicidade dos fenômenos conscientes e à riqueza da vida humana.

A atitude perante os problemas gerais do conhecimento a que nos levou o desenvolvimento da física neste século difere essen­cialmente da abordagem desses problemas na época de Steno. Isso não significa, entretanto, que tenhamos abandonado o caminho de enriquecimento do conhecimento, trilhado por ele com tão gran­des resultados, mas sim que nos demos conta de que a luta pela beleza e pela harmonia, que marcou o trabalho de Steno, exige uma revisão sistemática dos pressupostos e do alcance de nossos meios de expressão.

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I?»

A divisão cartesiana entre sujeito e objeto dominou a

mente humana nos três últimos séculos. Será preciso muito

tempo, até que o problema da realidade e do conheci­

mento seja amplamente compreendido a partir de outra

matriz. Isso, no entanto, é necessário. A teoria quântica

não divide mais o mundo em grupos de diferentes objetos,

separados de nós, mas em grupos de diferentes interações,

que incluem o observador. Quem, neste livro, reflete sobre

isso é Niels Bohr, pioneiro dessa revolução.