Nietzsche -civilização e cultura

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Carlos A. R. de Moura Nietzsche: civilização e cultura Martins Fontes Qual o valor de nossa civilização? É essa pergunta de fundo que norteia a análise a que Nietzsche submete as "idéias modernas", esse conjunto de convicções que norteiam a vida do europeu culti- vado de seu tempo, e que con- tinuam a comandar a existência de sua posteridade. Este livro procura reconstituir os passos principais da crítica nietzschiana a nossa civilização e o seu diag- nóstico sobre o modo como, cala- damente, a moral assume a dian- teira na tarefa de nossa formação, ao contrário da opinião comum que sempre privilegia a economia e a política como os elementos decisivos para a constituição de nossa vida civilizada. É contra essa civilização forjada na matriz cristã, domesticadora e apropria- da apenas para moldar o espírito servo, que Nietzsche promoverá a restauração de uma noção de "cul- tura" cuja certidão de nascimento é escrita em grego antigo, uma cul- tura centrada na idéia de uma disputa perene, apanágio dos "senhores", modelo de uma outra forma de existência e também de uma outra compreensão da filo- sofia. Carlos A. R. de Moura Imagem da capa Albrecht Dürer, SãoJerônimo em seu estúdio, 1514.

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Carlos A. R. de Moura

Nietzsche: civilização e cultura

Martins Fontes

Q u a l o va lor de n o s s a civilização?

É e s s a p e r g u n t a d e f u n d o q u e

nor t e i a a aná l i s e a q u e N i e t z s c h e

s u b m e t e a s " i d é i a s m o d e r n a s " ,

e s s e c o n j u n t o d e c o n v i c ç õ e s q u e

n o r t e i a m a v ida do e u r o p e u cult i ­

v a d o d e s e u t e m p o , e q u e c o n ­

t i n u a m a c o m a n d a r a e x i s t ê n c i a

d e s u a p o s t e r i d a d e . E s t e l i v r o

p r o c u r a r e c o n s t i t u i r o s p a s s o s

p r i n c i p a i s da crítica n i e t z s c h i a n a

a n o s s a c iv i l ização e o s e u d i ag ­

nós t i co s o b r e o m o d o c o m o , cala-

d a m e n t e , a m o r a l a s s u m e a d i a n ­

teira na tarefa de n o s s a f o r m a ç ã o ,

a o c o n t r á r i o d a o p i n i ã o c o m u m

q u e s e m p r e privi legia a e c o n o m i a

e a po l í t i ca c o m o os e l e m e n t o s

d e c i s i v o s p a r a a c o n s t i t u i ç ã o de

n o s s a v i d a c i v i l i z a d a . É c o n t r a

e s sa c iv i l ização forjada na mat r iz

cristã, d o m e s t i c a d o r a e a p r o p r i a ­

da a p e n a s p a r a m o l d a r o e sp í r i t o

se rvo , q u e Nie tzsche p r o m o v e r á a

res tauração d e u m a n o ç ã o d e "cul­

tu ra" cuja c e r t i d ã o d e n a s c i m e n t o

é escrita em g r e g o ant igo, u m a cul­

t u r a c e n t r a d a n a i d é i a d e u m a

d i s p u t a p e r e n e , a p a n á g i o d o s

" s e n h o r e s " , m o d e l o d e u m a o u t r a

fo rma d e ex i s t ênc ia e t a m b é m d e

u m a o u t r a c o m p r e e n s ã o d a filo­

sofia.

Carlos A. R. de Moura

I m a g e m da c a p a Albrecht Dürer, SãoJerônimo em seu estúdio, 1514.

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Nietzsche: Civilização e Cultura

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Carlos Alber to Ribei ro de M o u r a é professor de história da filosofia contemporânea no Departamento de Filosofia da FFLCH da Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq. Foi profes­sor colaborador do Departamento de Filosofia do IFCH da Univer­sidade Estadual de Campinas e professor convidado do Departa­mento de Filosofia da Université de Provence, Aix-en-Provence, França. Publicou Crítica da razão na fenomenologia (Edusp/Nova Stella) e Racionalidade e crise (Discurso Editorial/Editora UFPR).

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Carlos Alberto Ribeiro de Moura

Nietzsche: Civilização e Cultura

Martins Fontes São Paulo 2005

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Copyright © 2005, Livraria Martins Fontes Editora Lida..

São Paulo, para a presente edição.

I a edição

fevereiro de 2005

Acompanhamento editorial

Helena Guimarães Bittencourt

Revisões gráficas

Maria Luiza Favret

Ivani Aparecida Martins Cazarim

Dinarte Zorzanelli da Silva

Produção gráfica

Geraldo Alves

Pagin ação/Fotol itos

Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Moura, Carlos Alberto Ribeiro de

Nietzsche : civilização e cultura / Carlos Alberto Ribeiro de

Moura. - São Paulo : Martins Fontes, 2005. - (Coleção tópicos)

Bibliografia.

ISBN 85-336-2087-X

I. Civilização 2. Cultura 3. Filosofia alemã 4. Nietzsche,

Friedrich Wilhelm, 1844-1900 I. Título. II. Série.

04-8486 CDD-193

índices para catálogo sistemático:

I. Nietzsche : Filosofia alemã 193

Todos os direitos desta edição para a língua portuguesa reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3101.1042

e-mail: [email protected] http://www.martinsfontes.com.br

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ÍNDICE

Apresentação. VII

Introdução. IX

I. O maior dos acontecimentos recentes 1 II. O niilismo europeu 23

III. O privilégio do território moral 57 IV. Ideais de convivência 87 V. Moral de senhores, moral de escravos 111

VI. O sacerdote, o ressentimento e o ideal ascético.. 133 VII. Cristianismo e civilização 159

VIII. Vontade de potência 183 IX. Civilização e cultura 211 X. Vida decadente, vida ascendente 237

XI. Superar o niilismo 263

Conclusão 285

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APRESENTAÇÃO

Este livro é uma introdução ao pensamento de Nietz-sche. Ele foi escrito para o estudante ou o interessado em filosofia que deseje um fio condutor para lhe permitir, ao menos, começar a situar-se no interior do cipoal de afo¬ rismos através dos quais a filosofia de Nietzsche ganha seu corpo. Este caráter introdutório é atestado pela cer­tidão de nascimento do texto aqui publicado: ele foi, ori­ginalmente , um curso oferecido aos estudantes de gra­duação do Depar tamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E, se agora ele surge em letra impressa, é apenas pela generosidade insistente de alguns ex-alunos, que ainda o consideram útil para uma iniciação. Deste curso só retirei as idas e vindas, inevitáveis na exposição oral mas redundantes em um texto escrito, o que por certo não foi o bastante para eliminar o tom coloquial, sempre presente no assunto falado. A finalidade do livro explica a política de referências à obra de Nietzsche aqui adotada. Sempre que possível, reporto o leitor às excelentes tradu­ções disponíveis, como as de Paulo César de Souza, Rubens

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VIII NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃOE CULTURA

Rodrigues Torres Filho ou Thelma Lessa Silveira da Fon­seca. Invariavelmente, privilegiou-se a referência ao nú­mero do aforismo, à parte ou ao capítulo da obra e ao seu parágrafo, para que se possa localizá-la em qualquer edi­ção. E sobretudo quando se trata de obra póstuma, ainda pouco traduzida para o português, a referência é feita pela Sãmtliche Werke, na edição de Colli e Montinari, através da KritischeStudienausgabe. Neste caso, utiliza-se a sigla KSA, antecedida pelo nome da obra ou pelo número do frag¬ mento póstumo e sucedida pelos números do volume e da página, acrescentando-se a referência à tradução, quan¬ do disponível.

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INTRODUÇÃO

I

N e n h u m a u t o r p a r e c e s u s c i t a r t a n t a s d i f i c u l d a d e s

m e t o d o l ó g i c a s p a r a o seu i n t é r p r e t e q u a n t o N i e t z s c h e , o

q u e j á s e e v i d e n c i a p e l a e x u b e r a n t e d i v e r s i d a d e d e inter¬

p r e t a ç õ e s a q u e s u a o b r a foi s u b m e t i d a . E s s a d i v e r g ê n c i a

e n t r e a s i n t e r p r e t a ç õ e s p e r m a n e c e t r i bu tá r i a , e m g r a n d e

p a r t e , d e u m a c o n s t a t a ç ã o m u i t o f r e q ü e n t e e n t r e o s s e u s

c o m e n t a d o r e s : N i e t z s c h e se r ia u m a u t o r " c o n t r a d i t ó r i o " .

A s s i m , na i n t r o d u ç ã o ao s e u Nietzsche, Kar l J a s p e r s j á no¬

t ava q u e , p a r a c a d a a s s e r ç ã o d o au to r , n ã o é n a d a difí¬

ci l e n c o n t r a r o u t r a q u e a refute ou c o n t r a d i g a ' . E as di¬

f e ren tes i n t e r p r e t a ç õ e s de N i e t z s c h e se rão , em g r a n d e par¬

te , o r i u n d a s das d i s t i n t a s m a n e i r a s pe l a s q u a i s s e p e n s o u

e m " r e d u z i r " e s s a s s u p o s t a s c o n t r a d i ç õ e s : se j a p o r u m a

a n á l i s e " p s i c o l ó g i c a " , q u e p r o c u r a v i n c u l a r a s d i f e r e n t e s

fases da o b r a a d i s t i n tos p r o b l e m a s p e s s o a i s do autor, c a l -

c a n d o - s e , d e f o r m a a b u s i v a , n a q u i l o q u e N i e t z s c h e c h a -

1. Jaspers, K., Nietzsche, Paris, Gallimard, 1950, p. 18.

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X NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

m a v a de " p s i c o l o g i a " ; seja por u m a aná l i s e s o c i o l ó g i c a ,

c o m o a de L u k á c s , v i n c u l a n d o as s u p o s t a s c o n t r a d i ç õ e s

às n e c e s s i d a d e s do c o m b a t e i d e o l ó g i c o ; seja por u m a fi¬

losof ia da f i losofia , q u e i n s c r e v e as d i f i cu ldades da obra

e m u m p ro je to o r i u n d o d o " a c a b a m e n t o d a m e t a f í s i c a " .

E m face d e s s a s d i s t i n t a s i n t e r p r e t a ç õ e s q u e t e n t a m

s o l u c i o n a r as " c o n t r a d i ç õ e s " da dou t r ina , va le a p e n a co¬

m e ç a r por n o t a r q u e N i e t z s c h e , por seu l ado , n ã o se pen¬

sava, d e fo rma a l g u m a , c o m o u m autor c o m p l a c e n t e c o m

as " c o n t r a d i ç õ e s " . E em a l g u m a s de suas ca r t a s e le se de¬

fenderá da a c u s a ç ã o de g o s t o p e l o s p a r a d o x o s e h e t e r o -

d o x i a s . E n t r e e s sa a u t o - i m a g e m de N i e t z s c h e e a q u e l a

forjada por s e u s h i s t o r i a d o r e s , qua l e s c o l h e r ? A l é m do

m a i s , N i e t z s c h e t a m b é m n ã o g o s t a v a n e m u m p o u c o da¬

que l e t ipo de a t l e t i s m o in te lec tua l , exe rc i t ado c o m desen¬

vo l tu ra pe lo s s e u s i n t é rp r e t e s , q u e é o de r a p i d a m e n t e ca¬

t a l o g á - l o e m " e s c o l a s " , s i t u a n d o - o n a va l a c o m u m d o s

" i s m o s " t r ad ic iona i s , c o m o o " p s i c o l o g i s m o " , o " i m o r a l i s -

m o " , o " p e s s i m i s m o " . . . , t a n t a s fac i l idades de in terpre ta¬

ção con t ra as qua i s ele n ã o de ixou de a l e r t a r - n o s 2 . M a s , se

2. Cf. Nietzsche a Carl Fuchs, 29 de julho de 1888, apud Lõwith, K., Nietzsxhes Philosophie der Ewigen wiederkehr des Gleichen, Frankfurt, Kohlhammer, 1953, p. 10: "Se algum dia lhe ocorrer escrever algo so­bre mim, caro amigo, então tenha a prudência - que infelizmente nin­guém ainda teve - de me caracterizar, me descrever, mas não me de­preciar. Faça-o com uma simpática neutralidade: parece-me que para isso precisa-se deixar de lado seu pathos, para que a mais sutil espiri¬ tualidade apareça. Eu ainda não terei sido caracterizado com o título de psicólogo, nem com o de escritor (mesmo com o de poeta), nem com o de descobridor de um novo tipo de pessimismo (um pessimis¬ mo dionisíaco, nascido dos fortes, que se dá o prazer de carregar nos seus chifres o problema da existência); nem como imoralista (até hoje a mais rica forma de integridade intelectual, que deve tratar a moral como ilusão, depois que ela mesma tornou-se instinto e inevitabilida-

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INTRODUÇÃO XI

é a s s i m , c o m o " l e r " N i e t z s c h e , u m a u t o r a p a r e n t e m e n t e

c o n t r a d i t ó r i o e c o n f e s s a m e n t e inclass i f icável? A o i n v é s d e

c o m e ç a r e n u n c i a n d o a l g u m p o m p o s o " d i s c u r s o s o b r e o

m é t o d o " , t a l v e z se ja m e l h o r e n t r a r d e s a r m a d o n a se lva ,

s e m q u a l q u e r a r s e n a l , se ja e l e p s i c o l ó g i c o , s o c i o l ó g i c o o u

a t é m e s m o " e s t r u t u r a l i s t a " , p a r a p r o c u r a r ali a l g u m a s r e ­

g r a s d e l e i tu ra , s e m p r e p a s s í v e i s d e r e v i s ã o . E , e m p r i m e i ­

ro lugar , va l e a p e n a c o m e ç a r p o r p e r g u n t a r q u a l é o c a m ­

p o d e " f e n ô m e n o s " q u e N i e t z s c h e p r e t e n d e a n a l i s a r e

q u a l s e r i a a e s p e c i f i c i d a d e d e s e u d i s c u r s o f i losóf ico e m

face d a q u e l e d a t r a d i ç ã o .

I I

" T e n h o o s e n t i m e n t o s e m p r e m a i s c l a ro de q u e o fi­

l ó s o f o , q u e é necessariamente o h o m e m de a m a n h ã e de

d e p o i s d e a m a n h ã , a c h o u - s e e devia a c h a r - s e , n ã o i m ­

p o r t a e m q u a l é p o c a , e m c o n t r a d i ç ã o c o m o p r e s e n t e . A t é

a q u i e s t e s e x t r a o r d i n á r i o s p r o m o t o r e s d a h u m a n i d a d e

q u e c h a m a m o s d e f i l ó so fos e q u e r a r a m e n t e s e a c r e d i ­

t a r a m ' a m i g o s d a v e r d a d e ' , m a s l o u c o s d e s a g r a d á v e i s e

e n i g m a s p e r i g o s o s , c o l o c a r a m s u a ta re fa , s u a r u d e , i n v o ­

l u n t á r i a , i n e l u t á v e l t a re fa , m a s f i n a l m e n t e a g r a n d e z a d e

s u a ta re fa , n e s t a a m b i ç ã o : t o r n a r - s e a m á c o n s c i ê n c i a d e

s e u t e m p o . " 3 E s s e a f o r i s m o , a o a p r e s e n t a r o filósofo c o m o

de). Também não é preciso, nem mesmo desejável, tomar partido em relação a mim: ao contrário, parece-me uma atitude incomparavelmen­te inteligente, em relação a mim, uma certa dose de curiosidade, como diante de uma planta estranha, com uma oposição irônica."

3. Nietzsche, Para além de bem e mal, § 212, Sümtliche Werke, Kri-tische Studienausgabe, Berlin-New York, DTV de Gruyter, 1999, vol. 5, p. 145 (doravante citada como KSA).

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XII NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

a m á c o n s c i ê n c i a d e s e u t e m p o , r e t o m a u m t e m a c a r o a

N i e t z s c h e : a s u a filosofia é " i n a t u a l " , q u e r dizer , e s t á s e m ­

p r e e m d e f a s a g e m e e m c o n t r a d i ç ã o c o m o " t e m p o p r e ­

s e n t e " . D o n d e a conv icção , e x p r e s s a em Ecce homo, de q u e

a l g u n s h o m e n s n a s c e m p ó s t u m o s . E c o m o n ã o se r i a p ó s ­

t u m o , q u e r d izer , i n a t u a l , u m p e n s a m e n t o q u e , a o b u s c a r

i n u t i l m e n t e o s s e u s p a r e s , ex ige d a q u e l e s q u e p o s s a m

faze r p a r t e d e s u a f amí l i a q u e t e n h a m u m m o d o d e p e n ­

s a m e n t o a r i s t o c r á t i c o ; q u e c o n s i d e r e m a e s c r a v i d ã o , o u

q u a l q u e r o u t r o t i p o d e d e p e n d ê n c i a , u m p r e s s u p o s t o d e

t o d a c u l t u r a e l e v a d a ; u m m o d o d e p e n s a m e n t o c r i a d o r

q u e n ã o v i s s e n o m u n d o u m l u g a r d e p a z , o s á b a d o d o s

s á b a d o s , m a s u m t e r r i t ó r i o d e l u t a s ; u m m o d o d e p e n ­

s a m e n t o q u e o l h a s s e p a r a o f u t u r o e t r a t a s s e o p r e s e n t e

c o m d u r e z a ; u m m o d o d e p e n s a m e n t o s e m e s c r ú p u l o s -

i m o r a l , d i z N i e t z s c h e - , q u e q u i s e s s e a d m i n i s t r a r t a n t o

a s b o a s q u a n t o a s m á s q u a l i d a d e s d o s h o m e n s . O n d e

e n c o n t r a r t a i s e s p í r i t o s g ê m e o s ? O fi lósofo t e m c o n s c i ê n ­

cia d e q u e b u s c a r á p o r e les i n u t i l m e n t e . N o s s a é p o c a - d i z

N i e t z s c h e - c a m i n h a n a d i r e ç ã o o p o s t a . A f i n a l , n o s s a

é p o c a q u e r c o m o d i d a d e , p u b l i c i d a d e e m e r c a d o ; n o s ­

s a é p o c a q u e r q u e n o s a j o e l h e m o s d i a n t e d a " i g u a l d a d e

e n t r e o s h o m e n s " e h o n r a e x c l u s i v a m e n t e a s v i r t u d e s d e ­

m o c r á t i c a s ; n o s s a é p o c a c o n f u n d e c u l t u r a e pol í t ica , e la

n ã o é p r ó p r i a p a r a a p r o d u ç ã o do filósofo, m a s s i m p a r a a

e b u l i ç ã o d o e s p í r i t o d e m a g o g o .

E s s e s c o n t r a s t e s , q u e e x p õ e m u m a p r i m e i r a face ta d a

" i n a t u a l i d a d e " d a d o u t r i n a d e N i e t z s c h e , j á i n d i c a m p e l o

m e n o s em r e l a ç ã o a q u e o f i lósofo é a " m á c o n s c i ê n c i a de

s e u t e m p o " . O a l v o p r i m e i r o d e N i e t z s c h e s e r á a q u i l o

q u e e l e c h a m a d e " i d é i a s m o d e r n a s " , q u e r d i z e r , o c o n ­

j u n t o d e " c o n v i c ç õ e s " q u e c o m p õ e m a c o n s c i ê n c i a d o h o ­

m e m c u l t o d e s e u t e m p o . S e n d o a s s i m , s e a fi losofia d e v e

t r a b a l h a r c o n t r a o t e m p o p r e s e n t e e a favor, t a lvez , de um

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INTRODUÇÃO XIII

t e m p o f u t u r o , o s " f e n ô m e n o s " a o s q u a i s e l a d i r i g e s u a

a t e n ç ã o s ã o p r i m a r i a m e n t e a q u e l e s q u e c o n s t i t u e m a n o s ­

s a " c i v i l i z a ç ã o " , t e r m o q u e a b r a n g e a m o r a l , a s a r t e s e a s

c i ê n c i a s , o i d e á r i o s o c i o p o l í t i c o e a r e l ig i ão . E se o f i lósofo

é a m á c o n s c i ê n c i a d e s e u t e m p o é p o r ser, a n t e s d e t u d o ,

a m á c o n s c i ê n c i a d e s u a c ivi l ização: e le s e p e r g u n t a r á p e l o

valor d e s s a c iv i l i zação . N a Genealogia da moral, N i e t z s c h e

a t r i b u i r á c o m o t a re fa a o f i lósofo d o f u t u r o r e s o l v e r o p r o ­

b l e m a do v a l o r e d e t e r m i n a r a h i e r a r q u i a d o s v a l o r e s 4 . Esse

v í n c u l o e n t r e a fi losofia e a q u e s t ã o da c iv i l ização , N i e t z s ­

c h e o e s t a b e l e c i a d e s d e o s s e u s p r i m e i r o s e sc r i to s . E m Ecce homo, a o c o m e n t a r O nascimento da tragédia, e l e a f i r m a

q u e e s t a s u a p r i m e i r a o b r a j á t r a t a v a d o m a i o r d e t o d o s o s

d e v e r e s , a " e d u c a ç ã o s u p e r i o r d a h u m a n i d a d e " , q u e r d i ­

zer , e la j á v i s a v a a q u e s t ã o d a c iv i l i zação . M a s o q u e p e n ­

sar , e x a t a m e n t e , d e s s a " q u e s t ã o " ?

A s s i m t ã o v a g a m e n t e f o r m u l a d a , e s s a " q u e s t ã o " p o ­

d e r i a p a r e c e r , à p r i m e i r a v i s t a , r e a t a r c o m a l g u n s t e m a s

c láss icos d a filosofia. Af inal , o q u e fazia R o u s s e a u , n o Dis­curso sobre as ciências e as artes, s e n ã o e m p r e e n d e r um p r o ­c e s s o c r i m i n a l c o n t r a n o s s a "c iv i l i zação"? P e r g u n t a n d o ali

s e a s c i ê n c i a s e a s a r t e s c o n t r i b u í r a m p a r a m e l h o r a r o u

p a r a c o r r o m p e r o s c o s t u m e s , R o u s s e a u c h e g a v a à r e s p o s ­

t a q u e s e c o n h e c e : " n o s s a s a l m a s s e c o r r o m p e r a m n a m e ­

d i d a e m q u e n o s s a s c i ê n c i a s e n o s s a s a r t e s a v a n ç a r a m e m

d i r e ç ã o à p e r f e i ç ã o " 5 . U m a r e s p o s t a o p o s t a à d e Vol ta i re ,

q u e a p o s t a r a e m u m c a m i n h o p a r a l e l o e n t r e o p r o g r e s s o

d a c iv i l i zação e o m e l h o r a m e n t o d o h o m e m . N i e t z s c h e

n ã o d e i x a d e s u g e r i r q u e a s u a " q u e s t ã o " d a c iv i l i zação

4. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 17, trad. Paulo César de Souza, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 56.

5. Rousseau, J.-J., Discours sur les sciences et les arts, Paris, UGE, Col. 10/18,1963, p. 206.

Page 15: Nietzsche -civilização e cultura

XIV NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

p o d e r i a s e r f o r m u l a d a e x a t a m e n t e n e s s e s t e r m o s . É a s ­

s i m , p o r e x e m p l o , q u a n d o e l e s e re fe re a o " p r o b l e m a n ã o

r e s o l v i d o " , p o r e le p r o p o s t o , a saber , "o p r o b l e m a da civili­

z a ç ã o , a l u t a e n t r e R o u s s e a u e Vol ta i re p o r vo l t a de 1 7 6 0 " 6 .

E o p a r t i d o q u e N i e t z s c h e t o m a r á n e s s a d i s p u t a p o d e p a ­

r e c e r b a s t a n t e c l a ro . Af ina l , n ã o f a l t a m t e x t o s e m q u e e l e

cr i t ica o m i t o " i l u s t r a d o " d e u m a h a r m o n i a e n t r e o p r o ­

g r e s s o d a s l u z e s , d a v e r d a d e e d o b e m d a h u m a n i d a d e ,

i n d i c a n d o s i t u a r - s e c o n t r a V o l t a i r e n e s s e t ó p i c o . C o m o

t a m b é m n ã o f a l t a m t e x t o s e m q u e e l e iden t i f i ca n o s s a c i ­

v i l i z a ç ã o à " d e c a d ê n c i a " , d a n d o a e n t e n d e r s u a a d e s ã o a

u m d i a g n ó s t i c o d e l i n h a g e m r o u s s e a u i s t a . S e n d o a s s i m ,

a s c a r t a s p a r e c e m l a n ç a d a s : s e N i e t z s c h e va i ava l i a r n o s ­

s a " c i v i l i z a ç ã o " é p a r a r e t o m a r , p o r s u a p r ó p r i a c o n t a ,

u m a p r e o c u p a ç ã o q u e j á e r a a q u e l a d o s é c u l o XVIII.

M a s i n t e r p r e t a r a s s i m a t ó p i c a n i e t z s c h i a n a ser ia d e s ­

c o n h e c e r i n t e i r a m e n t e a s u a o r i g i n a l i d a d e . E os s i g n o s

d i s s o s ã o f a c i l m e n t e d e t e c t á v e i s . Po i s q u a n d o s e sa i d a

c o m p a r a ç ã o m e r a m e n t e e x t e r i o r e n t r e o s a u t o r e s p o d e -

s e ver i f ica r q u e , a o s o l h o s d e N i e t z s c h e , Vol ta i re e R o u s ­

s e a u s ã o , n a v e r d a d e , a p e n a s o s e x t r e m o s d e u m m e s m o

c o n t í n u o , e q u e a p o l ê m i c a e n t r e a m b o s n a d a m a i s e r a d o

q u e u m a q u e r e l a d e f amí l i a . Af ina l , e m n o m e d o q u e

R o u s s e a u a p o n t a v a a c iv i l i zação c o m o " c o r r u p t o r a " e o

q u e s igni f icava , ali , a " d e c a d ê n c i a " ? Se a c o r r u p ç ã o de

n o s s a s a l m a s é a p r e s e n t a d a c o m o d i r e t a m e n t e p r o p o r c i o ­

n a l ao p r o g r e s s o d a s a r t e s e d a s c i ênc ias , é p o r q u e " v i u - s e

a v i r t u d e d e s v a n e c e r - s e à m e d i d a q u e a l u z d a q u e l a s se

e l e v a v a e m n o s s o h o r i z o n t e , e o b s e r v o u - s e o m e s m o fe ­

n ô m e n o e m t o d o s o s t e m p o s e e m t o d o s o s l u g a r e s " 7 .

6. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9 [185], KSA, vol. 12, p. 449. 7. Rousseau, J.J., Discours..., cit., p. 206.

Page 16: Nietzsche -civilização e cultura

INTRODUÇÃO XV

E s t á a q u i o s e n t i d o da c e n s u r a r o u s s e a u i s t a à c iv i l i zação:

e la é c o n d e n a d a p o r d i s s i p a r a " v i r t u d e " - e e s t e m e s m o

leitmotiv e s t a r á d i r i g i n d o a cr í t ica de R o u s s e a u a o s "f i ló­

s o f o s " , e s t e s " d e c l a m a d o r e s f ú t e i s " q u e d i s p e n d e m s e u

t e m p o e s g r i m i n d o s e u s " f u n e s t o s p a r a d o x o s " s o l a p a n d o ,

c o m i s so , " o s f u n d a m e n t o s da f é e a n u l a n d o a v i r t u d e " 8 .

Eis o m a l da c iv i l i z ação : e l a s e o p õ e à v i r t u d e , d i z R o u s ­

s e a u . Eis o b e m da c iv i l i zação , d i rá Vol ta i re : e la e s t i m u l a a

v i r t u d e . Eis aí, d i r i a N i e t z s c h e , u m a b r i g u i n h a e n t r e m o n ­

g e s : t o d o s e s t ã o d e a c o r d o q u a n t o a o f u n d a m e n t a l , e n e ­

n h u m d o s l a d o s c h e g a a c o l o c a r e m e x a m e a p r ó p r i a i d é i a

d e " v i r t u d e " , q u e p a r a a m b o s p e r m a n e c e i n q u e s t i o n á v e l .

N ã o l h e s o c o r r e u n u n c a q u e a i d é i a d e " v i r t u d e " seja e x a ­

t a m e n t e a q u e l a q u e d e v e s e r p o s t a e m q u e s t ã o p o r q u e m

q u e r a n a l i s a r o v a l o r de n o s s a civi l ização. Q u a l o va lo r d e s ­

s e i d e a l d e " v i r t u d e " q u e a m b o s q u e r e m p r e s e r v a r ? E a p e ­

n a s c o m a f o r m u l a ç ã o d e s t a p e r g u n t a q u e s e c o m e ç a a

falar c o m s o t a q u e n i e t z s c h i a n o : q u a n d o , s o b a s q u e r e l a s

de superf íc ie , c o m e ç a r m o s a i nves t i ga r os ideais q u e t á c i t a -

m e n t e a s c o m a n d a m , q u e r d i z e r , a q u i l o q u e é i m p l i c i ­

t a m e n t e a d m i t i d o p o r t o d o s o s p a r t i d o s c o m o s e n d o o

" d e s e j á v e l " , a q u i l o q u e " d e v e r i a s e r m a s n ã o é " . N a q u e -

re l a e n t r e R o u s s e a u e Vol ta i re , o i d e a l c o m u m de " v i r t u ­

d e " n ã o é s e q u e r e x a m i n a d o . I s so signif ica d i z e r q u e , ali, a

a n á l i s e d o v a l o r d e n o s s a " c i v i l i z a ç ã o " n a v e r d a d e n ã o foi

n e m m e s m o e s b o ç a d a .

A o c o n t r á r i o , a o s o l h o s d e N i e t z s c h e o s e u m o d o d e

a n a l i s a r a " c i v i l i z a ç ã o " a p o n t a p a r a u m a e s t r a t é g i a d e i n ­

v e s t i g a ç ã o q u e s e r á i n é d i t a p r e c i s a m e n t e p o r s e u r a d i c a ­

l i s m o . É e x a t a m e n t e e s s a s i n g u l a r i d a d e q u e e le s u b l i n h a

a o t r a t a r d a m o r a l , i n d i c a n d o o q u e s igni f ica f aze r u m a

8. Rousseau, ].-]., Discours..., cit., p. 216.

Page 17: Nietzsche -civilização e cultura

XVI NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

"c r í t i c a d o s v a l o r e s m o r a i s " . E s s a cr í t ica , d i z e l e , é " u m a

n o v a e x i g ê n c i a " . E e l a d e s i g n a u m c o n h e c i m e n t o " t a l

c o m o a t é h o j e n u n c a ex i s t iu n e m foi d e s e j a d o " 9 . Af ina l ,

e n q u a n t o p a r a t o d a a t r a d i ç ã o o v a l o r d o s v a l o r e s m o r a i s

e r a v i s t o c o m o u m d a d o i n q u e s t i o n á v e l , a g o r a s e c o l o c a ­

r á s o b s u s p e i t a o p r ó p r i o v a l o r d e s s e s v a l o r e s . A t é h o j e , a s

f i losofias s ó s e p r e o c u p a r a m c o m a " f u n d a m e n t a ç ã o " d o s

v a l o r e s m o r a i s - n e n h u m a s e p r e o c u p o u c o m o va lo r d e s ­

s e s v a l o r e s , n e n h u m a e x e r c e u a cr í t ica d a m o r a l , n i n g u é m

t r a n s f o r m o u , e f e t i v a m e n t e , a c iv i l i zação em q u e s t ã o a s e r

i n v e s t i g a d a . P o r i s s o , a o s o l h o s d e N i e t z s c h e a c e n a i n ­

t e l e c t u a l a l e m ã p e r m a n e c e d o m i n a d a p e l o " l i v re p e n ­

s a d o r " , a l g u é m q u e n u n c a d e v e r e m o s c o n f u n d i r c o m o

" e s p í r i t o l i v r e " . Q u e m é a q u e l e p e r s o n a g e m ? O " l iv re

p e n s a d o r " é u m "c r í t i co" . M a s u m crí t ico q u e a i n d a t r a b a ­

l h a a s e r v i ç o d e u m i d e a l e , a s s i m , n u n c a o s u b m e t e r á a

e x a m e 1 0 . A s u a cr í t ica n u n c a é d i r i g i d a a o i d e a l , m a s a p e ­

n a s à q u e s t ã o d e s a b e r p o r q u e e l e a i n d a n ã o foi a l c a n ç a ­

d o . E q u e a " l i b e r d a d e de e s p í r i t o " d o s a l e m ã e s n ã o é l i­

b e r d a d e o s u f i c i e n t e p a r a q u e e l e s c h e g u e m a c o l o c a r e m

q u e s t ã o o s s e u s p r ó p r i o s " i d e a i s " . E o q u e p e n s a r d e n o s ­

s o s a t e u s , n o s s o s " s o c i a l i s t a s " ? E l e s c r i t i c a m a origem d o s

v a l o r e s m o r a i s , ta l c o m o a c o n c e b e o c r i s t ão . N ã o - d i z e m

e l e s - , o s v a l o r e s m o r a i s n ã o t ê m q u a l q u e r o r i g e m s u p r a -

s e n s í v e l , é a q u i m e s m o q u e e l e s n a s c e m . B r i l h a n t e ! S ó

q u e e l e s c r i t i c a m a o r i g e m d o s v a l o r e s m o r a i s , m a s a c r e ­

d i t a m n e s s e s v a l o r e s t a n t o q u a n t o o c r i s t ã o . Q u e s e v e r i ­

f ique - d i z N i e t z s c h e - o u s o e o a b u s o do e l o g i o ao " a l ­

t r u í s m o " n o s d i s c u r s o s s o c i a l i s t a s - j u s t o d o a l t r u í s m o ,

e s s e v a l o r c r i s t ã o p o r e x c e l ê n c i a . O soc ia l i s t a c o m p a r t i l h a

9. Nietzsche, Genealogia da moral, cit., Prólogo, § 6, p. 14. 10. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 511, KSA, vol. 2,

p. 511.

Page 18: Nietzsche -civilização e cultura

INTRODUÇÃO XVII

o s m e s m o s v a l o r e s m o r a i s c o m o c r i s tão . A p e n a s c o m u m a

d i f e r e n ç a : o soc i a l i s t a é supe r f i c i a l . " Q u e i n g e n u i d a d e ! "

- d i r á N i e t z s c h e - " c o m o se s u b s i s t i s s e a m o r a l q u a n d o

fal ta u m D e u s q u e a s a n c i o n e . U m além é a b s o l u t a m e n t e

n e c e s s á r i o q u a n d o s e q u e r c o n s e r v a r s i n c e r a m e n t e a f é

n a m o r a l . " 1 1

S e n d o a s s i m , s e N i e t z s c h e va i c o l o c a r e m q u e s t ã o a

n o s s a c iv i l i zação , s u a e s t r a t é g i a c o n s e r v a , a o s s e u s o l h o s ,

u m a e s p e c i f i c i d a d e e u m a o r i g i n a l i d a d e q u e d e v e m s e r

p r e s e r v a d a s , a o i n v é s d e a p r e s s a d a m e n t e i n c l u i r m o s s u a

t ó p i c a n o i d e á r i o t r a d i c i o n a l . A s s i m c o m o o r e s u l t a d o q u e

s e e s p e r a d a i n v e s t i g a ç ã o t a m b é m n ã o s e r á c o m e n s u r á -

ve l a o p r o g r a m a d e n o s s o p a s s a d o f i losofante . O q u e p r e o ­

c u p a v a R o u s s e a u , n o p r i m e i r o Discurso, a o e m p r e e n d e r

s e u p r o c e s s o da n o s s a c iv i l i zação? Se a c iv i l i zação é ali e s ­

t i g m a t i z a d a , s e e la é v i s t a c o m o c o r r u p t o r a , o - f u n d o q u e

r e g e a p r e o c u p a ç ã o do f i lósofo é a i d é i a de melhorar a h u ­

m a n i d a d e : se a c iv i l ização c o r r o m p e , é p r e c i s o c u i d a r p a r a

q u e a h u m a n i d a d e , c o n s c i e n t e d e s e u s p e r i g o s , e m p r e e n ­

da o a p e r f e i ç o a m e n t o q u e a c iv i l i zação só t e n d e a inibir .

D o n d e o a p e l o f inal d e R o u s s e a u a o s h o m e n s d e E s t a d o :

s ã o e l e s q u e p o d e m cor r ig i r o s r u m o s e , c o n t r o l a n d o o

d e s t i n o , r e c o l o c a r a h u m a n i d a d e n a t r i l h a d o b e m . M a s

s e r á q u e a cr í t ica n i e t z s c h i a n a à c iv i l i zação t a m b é m se r ia

o r i e n t a d a p e l a m e s m a p r e o c u p a ç ã o c o m o " m e l h o r a m e n ­

t o " d o s h o m e n s ? N ã o . S o b r e t u d o , n ã o . " A ú l t i m a coisa q u e

eu p r o m e t e r i a - d i z N i e t z s c h e - s e r i a ' m e l h o r a r ' a h u m a ­

n i d a d e . E u n ã o c o n s t r u o n o v o s í d o l o s ; o s v e l h o s q u e

a p r e n d a m o q u e s ignif ica t e r p é s de b a r r o . Derrubar ídolos

( m i n h a p a l a v r a p a r a " i d e a i s " ) - i s s o s i m é m e u o f í c i o . " 1 2

11. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[165], KSA, vol. 12, p. 147. 12. Nietzsche, Ecce homo, Prólogo, § 2, trad. Paulo César de Sou­

za, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 18.

Page 19: Nietzsche -civilização e cultura

XVIII NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

Q u e r e r " m e l h o r a r " a h u m a n i d a d e é , n a m a i s o t i m i s t a d a s

h i p ó t e s e s , e r ig i r u m n o v o í d o l o , u m n o v o i d e a l a s e r a t i n ­

g i d o , u m a n o v a " m e t a " p a r a a e x i s t ê n c i a . Q u e m d e s e j a

i s s o n ã o é o " e s p í r i t o l iv re" , m a s s i m o " p r o f e s s o r da m e ­

t a d a e x i s t ê n c i a " , u m d e s e u s m a i s c l a r o s a n t a g o n i s t a s .

N i e t z s c h e o d e s c r e v e l o g o no in í c io de A gaia ciência. E o

" p r o f e s s o r d a m e t a d a e x i s t ê n c i a " q u e , a i n d a n ã o t e n d o

t o m a d o c o n s c i ê n c i a d a c o m é d i a d a v ida , r e i n v e n t a a t o d o

m o m e n t o u m n o v o f im, u m a n o v a m e t a . E s s e p e r s o n a ­

g e m a i n d a e s t á p r e s o à é p o c a d a s m o r a i s e d a s r e l i g iõe s ,

e v o l t a e m e i a p r o p õ e u m n o v o " i d e a l " . D e p o i s d e i n s t i ­

t u í - l o , e l e d i z : " S i m , a v i d a v a l e a p e n a s e r v i v i d a ! S i m , eu

s o u d i g n o de v iver !" ; a v i d a " v o l t a v a a ser, p o r a l g u m t e m ­

p o , u m a co i sa interessante a o s n o s s o s o l h o s " 1 3 . E foi o s u r ­

g i m e n t o c o n s t a n t e d e s s e s p r o f e s s o r e s d a m e t a d a e x i s ­

t ê n c i a , - a s s e g u r a N i e t z s c h e - q u e t e v e p o r e f e i t o a t é

m e s m o m o d i f i c a r a n a t u r e z a h u m a n a : e l a t e m d e a g o r a

e m d i a n t e u m a n e c e s s i d a d e a m a i s , p r e c i s a m e n t e a n e ­

c e s s i d a d e d a c o n s t a n t e r e a p a r i ç ã o d e s e m e l h a n t e s p r o ­

f e s s o r e s c o m s u a s l i ções . O h o m e m t o r n o u - s e u m a n i m a l

s i n g u l a r , cuja e x i s t ê n c i a e s t á s u b m e t i d a a u m a c o n d i ç ã o

d e v i d a s u p l e m e n t a r : " é preciso q u e d e t e m p o s e m t e m ­

p o s e le se f igure s a b e r por que exis te ; s u a e s p é c i e n ã o p o d e

p r o s p e r a r s e m u m a c o n f i a n ç a p e r i ó d i c a n a v i d a ! S e m cre r

e m u m a r a z ã o n a v i d a ! " 1 4 . N ã o . N ã o s e t r a ta , p a r a N i e t z ­

s c h e , d e p r o p o r u m a n o v a m e t a , u m n o v o " i d e a l " m e l h o -

r a d o r d a e x i s t ê n c i a . E l e n ã o v a i r e a t a r c o m o s s e m p r e e s ­

p e r a d o s " p r o f e s s o r e s d a m e t a d a e x i s t ê n c i a " . N e s t e p o n ­

t o , e l e t a m b é m p e r m a n e c e r á " i n a t u a l " .

Se é a s s i m , o e m p r e e n d i m e n t o se r ia p u r a m e n t e nega­

tivo? M a s , p e n s a n d o b e m , q u a l o v a l o r d e s s a c e n s u r a ? Ela

13. Nietzsche, A gaia ciência, I, § 1, KSA, vol. 3, p. 372.

14. Nietzsche, A gaia ciência, I, § 1, KSA, vol. 3, p. 372.

Page 20: Nietzsche -civilização e cultura

INTRODUÇÃO XIX

p o d e m u i t o b e m r e v e l a r a p r i s ã o d o c e n s o r à s u a n e ­

c e s s i d a d e d e u m a n o v a d o u t r i n a d a " m e t a d a e x i s t ê n ­

c ia" , a s u a d e m a n d a s i l enc io sa p o r n o v o s í d o l o s . M a s p a r a

N i e t z s c h e t r a t a - s e e x a t a m e n t e d e i m p l o d i r e s t a exigência

p e r s i s t e n t e , e a g o r a o r e s u l t a d o n ã o s e r á d e f o r m a a l g u ­

m a m a g r o : e l e s ign i f i ca rá u m a t r a n s f o r m a ç ã o d e n o s s a

existência. Af ina l , p o r q u e d e r r u b a r í d o l o s ? N ã o p o r c a u s a

d e a l g u m g r a t u i t o fu ro r i c o n o c l a s t a , m a s s i m p o r q u e a

r e a l i d a d e "foi d e s p o j a d a d e s e u valor , s e u s e n t i d o , s u a v e ­

r a c i d a d e , n a m e d i d a e m q u e s e forjou u m m u n d o idea l . . .

A mentira do i d e a l foi a t é a g o r a a m a l d i ç ã o s o b r e a r e a l i ­

d a d e , a t r a v é s d e l a a h u m a n i d a d e m e s m a t o r n o u - s e m e n -

d a z e fa lsa a t é s e u s i n s t i n t o s m a i s b á s i c o s - a p o n t o de

a d o r a r o s v a l o r e s inversos a o s ú n i c o s q u e l h e g a r a n t i r i a m

o f l o r e s c i m e n t o , o f u t u r o , o e l e v a d o d i r e i t o ao f u t u r o " 1 5 .

A o i n v é s d o t ác i to p l a t o n i s m o d e t o d o s o s " p r o f e s s o r e s d a

m e t a d a e x i s t ê n c i a " , o q u e s e b u s c a a g o r a é d e s e n r a i z a r

a exigência m e s m a d e u m i d e a l - n ã o i n s t i t u i r u m n o v o

i d e a l , m a s v o l t a r p a r a a q u i l o q u e N i e t z s c h e c h a m a r á d e

" i n o c ê n c i a d o v i r - a - s e r " : a n t e s d e t u d o , a d e c i s ã o d e n ã o

m e d i r m a i s a r e a l i d a d e s e g u n d o n o r m a s i d e a i s d a s

q u a i s e la e s t á a f a s t a d a , e m d i r e ç ã o à s q u a i s e l a deveria c a ­

m i n h a r - u m a e s t r a t é g i a q u e s e m p r e t e r á p o r c o n s e q ü ê n ­

cia condenar o m u n d o d o v i r - a - s e r e m n o m e d e s s e s idea i s .

D e s t a p r i m e i r a a p r e s e n t a ç ã o a i n d a m u i t o e s q u e m á -

t ica , r e t e n h a m o s a p e n a s u m a i d é i a n u c l e a r - m a s u m a

i d é i a q u e t e r á c o n s e q ü ê n c i a s . S e N i e t z s c h e p r e t e n d e fa­

z e r u m a a n á l i s e d e n o s s a c iv i l i zação q u e a t é e n t ã o j a m a i s

fora e m p r e e n d i d a , u m a a n á l i s e q u e , p o r s u a r a d i c a l i d a d e ,

d e v e c o l o c a r e m q u e s t ã o t o d o s o s i d e a i s e v a l o r e s v i g e n ­

t e s , a n t e s d e l o u v a r o u l a m e n t a r a m e g a l o m a n i a d o e m -

15. Nietzsche, Ecce homo, cit, Prólogo, § 2, p. 18.

Page 21: Nietzsche -civilização e cultura

XX NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

p r e e n d i m e n t o , c o n v é m s u b l i n h a r o p r o b l e m a t e ó r i c o i m e ­

d i a t o q u e ta l p r o j e t o s u s c i t a . U m p r o b l e m a fi losófico - o u

de cr í t ica da f a c u l d a d e de ju lga r , c o m o d i r i a K a n t : d e onde

fala a q u e l e q u e a s s i m fa la? O n d e s e s i t u a o d i s c u r s o c r í ­

t i c o q u e a v a l i a a t o t a l i d a d e d e n o s s a " c i v i l i z a ç ã o " , s e m

l a n ç a r m ã o d o s i n s t r u m e n t o s a n a l í t i c o s l e g a d o s p o r e s t a

p r ó p r i a t r a d i ç ã o ? P a r a a n a l i s a r a t o t a l i d a d e d e n o s s a c iv i ­

l i z ação s e m p e r m a n e c e r p r e s o a o s e u feit iço o fi lósofo p r e ­

c i sa rá , s o b p e n a d e g r a v e c o n t r a - s e n s o , r e d e f i n i r u m t e r ­

r i t ó r i o a n a l í t i c o q u e se ja i n c o m e n s u r á v e l à q u e l e q u e n o s

foi l e g a d o . A f i n a l , n o s s a " c i v i l i z a ç ã o " n ã o i nc lu i a p e n a s

a m o r a l , a r e l i g i ã o , o i d e á r i o s o c i o p o l í t i c o e a m ú s i c a de

W a g n e r . T a m b é m faz p a r t e d e l a t o d o o l e g a d o d a re f lexão

f i losóf ica e , p o r i s s o m e s m o , a a n á l i s e d e n o s s a c iv i l i za ­

ç ã o e x i g i r á u m a r e a v a l i a ç ã o d o d i s c u r s o f i losóf ico e d a

i d é i a m e s m a d e filosofia, q u e r d izer , e la ex ig i rá a e l a b o r a ­

ç ã o d e u m t e r r i t ó r i o n o v o d e o n d e , a p a r t i r d e a g o r a , s e

fala. S e n d o a s s i m , va l e a p e n a re t raçar , a n t e s d e t u d o , p e l o

m e n o s o c o n t o r n o o m a i s g e r a l d a q u e l e q u e s e r á , p a r a

N i e t z s c h e , o d i s c u r s o f i losófico e n c a r r e g a d o d e " a v a l i a r "

a n o s s a c iv i l i zação . E p a r a fazer i s so , o q u e m a i s i m p o r t a é

d e i x a r o s t e x t o s f a l a r e m , a o i n v é s d e r e a t a r c o m a s u p e r f í ­

cie e , a p r e s s a d a m e n t e , b a t i z a r u m a filosofia d e " i r r a c i o n a -

l is ta" - c o m o se a l g u é m d e t i v e s s e o s d i re i tos a u t o r a i s s o b r e

a p a l a v r a " r a z ã o " .

I I I

Q u a l i m a g e m p o d e r á t e r a filosofia p a r a e m p r e e n d e r

e s t a crí t ica d a c ivi l ização, e e m q u a i s p o n t o s e la d e v e r á c o ­

m e ç a r p o r d i s t a n c i a r - s e d a t r a d i ç ã o q u e a n a l i s a ? E m Ecce

homo, a o c o m e n t a r s u a p r ó p r i a o b r a , N i e t z s c h e n o s o f e -

Page 22: Nietzsche -civilização e cultura

INTRODUÇÃO XXI

r e c e a l g u m a s p i s t a s . E m p r i m e i r o lugar , t r a t a - s e d e u m a

filosofia q u e n u n c a t e r á d i s c í p u l o s , q u e n u n c a f o r m a r á e s ­

co la . A d e s p r o p o r ç ã o " e n t r e a g r a n d e z a d e m i n h a t a re fa

e a p e q u e n e z de m e u s c o n t e m p o r â n e o s " - d i z N i e t z s c h e

- " m a n i f e s t o u - s e n o f a to d e q u e n ã o m e o u v i r a m , s e q u e r

m e v i r a m " 1 6 . N e n h u m a s u r p r e s a : o " i n a t u a l " n ã o fala a o s

h o m e n s c o n t e m p o r â n e o s , s e m p r e s i d e r a d o s p e l a s " i d é i a s

m o d e r n a s " . M a s h á a i n d a o u t r a r a z ã o p a r a i s so , q u e s e r á

e s s e n c i a l : o s " c o n t e m p o r â n e o s " n u n c a e n c o n t r a r ã o , n a

o b r a d e N i e t z s c h e , a q u i l o q u e g o s t a r i a m d e e n c o n t r a r , a

s a b e r , u m a doutrina, a l g o e m q u e s e p o s s a " a c r e d i t a r " .

G é r a r d L e b r u n ins is t ia n e s s e c a r á t e r a - d o u t r i n a l d a f i loso­

fia d e N i e t z s c h e 1 7 . E , d e fa to , q u e m fala p e l a v o z d e Z a r a -

t u s t r a ? A q u i - d i z N i e t z s c h e - n ã o fala u m p r o f e t a , n ã o

fala n e n h u m d a q u e l e s a r r e p i a n t e s h í b r i d o s d e d o e n ç a e

v o n t a d e d e p o t ê n c i a q u e s ã o c h a m a d o s f u n d a d o r e s d e r e ­

l ig iões . A q u i n ã o fala u m f a n á t i c o , a q u i n ã o s e p r e g a , a q u i

n ã o s e ex ige c r e n ç a . S e r i a Z a r a t u s t r a u m s e d u t o r , a l g u é m

q u e a m a s e r s e g u i d o ? Pe lo c o n t r á r i o . O q u e d iz Z a r a t u s t r a

q u a n d o , p e l a p r i m e i r a v e z , r e t o m a p a r a s u a s o l i d ã o ? Z a ­

r a t u s t r a fala e x a t a m e n t e o c o n t r á r i o d o q u e d i r i a u m " s á ­

b i o " , u m " s a n t o " , u m " r e d e n t o r d o m u n d o " o u q u a l q u e r

o u t r o " d e c a d e n t e " . Z a r a t u s t r a n ã o s o m e n t e fala d e o u t r o

m o d o c o m o t a m b é m é d e o u t r o m o d o : " A g o r a p r o s s i g o

s ó , m e u s d i s c í p u l o s ! E v ó s t a m b é m , i d e e m b o r a , e s ó s !

A s s i m o q u e r o . A f a s t a i - v o s d e m i m e d e f e n d e i - v o s c o n t r a

Z a r a t u s t r a ! M e l h o r : e n v e r g o n h a i - v o s d e l e ! Ta lvez e l e v o s

t e n h a e n g a n a d o . " 1 8 Z a r a t u s t r a t a l v e z o s t e n h a e n g a n a d o :

16. Nietzsche, Ecce homo, cit, § 1, p. 17. 17. Lebrun, G., "Por que ler Nietzsche, hoje?", in Passeios ao léu,

São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 32. 18. Nietzsche, Ecce homo, cit., Prólogo, § 4, p. 20.

Page 23: Nietzsche -civilização e cultura

XXII NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

e l e s b u s c a v a m u m a n o v a c r e n ç a , u m a n o v a d o u t r i n a , e

i s s o n ã o l h e s s e r á o f e r t a d o , e l e s n ã o d i s p o r ã o d e u m a i d e o ­

log ia a m a i s p a r a e n r i q u e c e r o c a r d á p i o de s u a s " o p ç õ e s " .

E s t o u l o n g e d e s e r u m f u n d a d o r d e r e l i g i õ e s , d i z N i e t z ­

s c h e . N ã o q u e r o c r e n t e s ; e u n ã o c re io e m m i m m e s m o ; e u

n ã o fa lo j a m a i s p a r a a s m a s s a s 1 9 . D e o n d e v e m e s s a d i s ­

t â n c i a d o d i s c u r s o filosófico d e N i e t z s c h e e m face d o s e m ­

p r e e n d i m e n t o s d o " s á b i o " , d o " s a n t o " e d o " r e d e n t o r d o

m u n d o " ? E s s e s e m p r e e n d i m e n t o s e s t ã o t o d o s e l e s c a l ca ­

d o s e m c o n v i c ç õ e s , e m c e r t e z a s , e s ã o e x a t a m e n t e e s s a s

c o n v i c ç õ e s q u e o s d i s c í p u l o s b u s c a m . M a s Z a r a t u s t r a é

cé t i co , e le n ã o f o r n e c e r á c o n v i c ç õ e s a n i n g u é m . L o g o , e l e

n u n c a s e t o r n a r á c h e f e d e s e i t a . " Q u e n i n g u é m s e d e i x e

i n d u z i r e m e r r o : o s g r a n d e s e s p í r i t o s s ã o cé t i cos . Z a r a t u s ­

t r a é um cé t i co . A força, a liberdade q u e v e m da força e s o -

b re fo rça d o e sp í r i t o prova-se p e l a skepsís. H o m e n s d e c o n ­

v i c ç ã o , em t u d o o q u e é f u n d a m e n t a l q u a n t o a v a l o r e

d e s v a l o r , n e m e n t r a m e m c o n s i d e r a ç ã o . C o n v i c ç õ e s s ã o

p r i s õ e s . " 2 0 A s s i m , q u e m fala s o b o d i s c u r s o d e N i e t z s c h e

é o o p o s t o d o h o m e m d e c o n v i c ç õ e s d a t r a d i ç ã o : q u e m

fala ali é o " e s p í r i t o l i v r e" , u m a f igura a n t i p l a t ô n i c a p o r

e x c e l ê n c i a . E é a e s t e p e r s o n a g e m q u e se d e v e d i r i g i r a

a t e n ç ã o p a r a ve r i f i ca r o q u e s e t o r n a r á , d o r a v a n t e , a " f i ­

l o s o f i a " . Q u a l é o r o s t o d o " e s p í r i t o l i v r e" , e s t e i n i m i g o

c o n f e s s o d a s c o n v i c ç õ e s e d a s c e r t e z a s ?

N i e t z s c h e o d e s c r e v e em Humano, demasiado humano.

O e s p í r i t o l ivre é a l g u é m d e d i c a d o ao c o n h e c i m e n t o , q u e

d e s d e n h a a v e n e r a ç ã o d a s m a s s a s e a t r a v e s s a o m u n d o de

f o r m a t ã o s i l e n c i o s a q u a n t o d e l e sa i . S e n d o " i n a t u a l " , o

19. Nietzsche, "Por que sou um destino", in Ecce homo, cit., § 1, ed. supra, p. 109.

20. Nietzsche, O Anticristo, § 54, Obras incompletas, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 357.

Page 24: Nietzsche -civilização e cultura

INTRODUÇÃO XXIII

e s p í r i t o l ivre n ã o t e m a m a r r a s c o m a " o p i n i ã o p ú b l i c a " .

S e u o p o s t o i m e d i a t o , o h o m e m d e c o n v i c ç õ e s , é a q u e l e

q u e c rê e s t a r e m p o s s e d e v e r d a d e s d e f i n i t i v a s e , p o r i s so

m e s m o , t e m p o r p o s t u l a d o n ã o p o d e r se r r e f u t a d o . O e s ­

p í r i t o l ivre , a o c o n t r á r i o , n u n c a fixa o p i n i õ e s e m c o n v i c ­

ç õ e s : e l e i m p e d e e s s a f ixação p o r c o n s t a n t e s v a r i a ç õ e s e

s ó t e r á a o s e u d i s p o r p r o b a b i l i d a d e s e x a t a m e n t e m e n s u ­

r a d a s 2 1 . A s s i m d e s c r i t o , o e s p í r i t o l ivre é , a n t e s d e t u d o ,

u m e x p e r i m e n t a d o r . N i e t z s c h e o o p õ e a o e s p í r i t o s e r v o .

A s c a d e i a s a s m a i s f o r t e s q u e o e s p í r i t o d e v e r o m p e r p a r a

l i b e r t a r - s e s ã o a s c a d e i a s d o s d e v e r e s , q u e r d ize r , o r e s ­

p e i t o a o s v a l o r e s a n t i g o s e v e n e r a d o s . O e s p í r i t o l ivre va i

d e s i g n a n d o , a s s i m , u m a v o n t a d e d e a u t o n o m i a n a d e ­

t e r m i n a ç ã o d e s i m e s m o e d e s e u s p r ó p r i o s v a l o r e s , u m a

" v o n t a d e d e v o n t a d e l iv re" . A g o r a o e sp í r i t o l ivre t o r n a - s e

u m e x p e r i m e n t a d o r c u r i o s o e m face d o s f r u t o s p r o i b i ­

d o s : e l e s e i n t e r r o g a r á e n t ã o s e n ã o p o d e m o s i n v e r t e r

t o d o s o s v a l o r e s ; s e o b e m n ã o s e r i a o m a l ; s e D e u s n ã o

s e r i a u m a i n v e n ç ã o ; s e n ã o p o d e o c o r r e r q u e t u d o se ja

fa lso . S u a l i b e r d a d e d e e s p í r i t o d e v e r á a b r i r - l h e a v ia p a r a

m a n e i r a s de p e n s a r m ú l t i p l a s e o p o s t a s , o q u e l h e d a r á o

p r i v i l ég io de v i v e r a t í t u l o de e x p e r i ê n c i a 2 2 .

E s s a idé ia d e e sp í r i t o l ivre t r a z c o n s i g o u m a r e c u s a d a

n o ç ã o c l á s s i ca d e v e r d a d e , c o m o u m d o s " v a l o r e s " a s e ­

r e m p o s t o s e m q u e s t ã o , u m d o s i d e a i s d e q u e o e sp í r i t o l i ­

v r e se l i be r t a . Em A gaia ciência, N i e t z s c h e a p r e s e n t a r á o

" d e s e j o d e c e r t e z a " c o m o s i n t o m a d e u m a " v o n t a d e fra­

c a " d o h o m e m d e c o n v i c ç õ e s . O q u a n t o a l g u é m p r e c i ­

s a d e c r e n ç a , o q u a n t o a l g u é m d e s e j a e l e m e n t o e s t á v e l

21. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 292, KSA, vol. 2, p. 322.

22. Nietzsche, Humano, demasiado humano, Prefácio, § 4, Obras incompletas, cit., p. 88.

Page 25: Nietzsche -civilização e cultura

XXIV NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

p a r a s e a p o i a r , é r e v e l a d o r d o g r a u d e s u a força , o u a n t e s ,

d e s u a f r a q u e z a . E i s so q u e r e s s e d e s e j o d e c e r t e z a s e m a ­

n i f e s t e c o m o d e s e j o d e c e r t e z a re l ig iosa , fi losófica, c i e n t í ­

fica ou " i d e o l ó g i c a " . O e s p í r i t o l ivre é o c o n t r á r i o de um

fraco, e l e n ã o d e s e j a c o n v i c ç õ e s e s t á v e i s , e l e n ã o p r e c i s a

d e c e r t e z a s . A c r e n ç a é d e s e j a d a c o m o u m p o n t o d e a p o i o

p a r a a q u e l e q u e c a r e c e d e v o n t a d e , a q u e l e q u e p r e c i s a

o b e d e c e r a a l g o d e e s t á v e l . P o r q u e a v o n t a d e , e n q u a n t o

a fecção d e c o m a n d o - e n ã o d e o b e d i ê n c i a - , é s e m p r e u m

s i g n o d i s t i n t i v o d e s o b e r a n i a e d e força . A s s i m , q u a n t o

m e n o s u m a p e s s o a d e s e j a c o m a n d a r - s e , c o m m a i s u r g ê n ­

cia e l a e x p e r i m e n t a o d e s e j o d e u m a r e a l i d a d e , u m s e r o u

u m a a u t o r i d a d e q u e a c o m a n d e , e c o m r i g o r : seja u m D e u s ,

u m p r í n c i p e , u m e s t a d o social , u m confesso r , u m p s i c a n a ­

l i s ta , u m d o g m a o u u m a c o n s c i ê n c i a d e p a r t i d o . E m o u ­

t r a s p a l a v r a s , q u a n t o m a i s s e é " f r a c o " , m a i s s e n e c e s s i ­

t a d e u m a c o n v i c ç ã o e m r e l a ç ã o à q u a l s e t e m o d e v e r d e

o b e d i ê n c i a . De ta l f o r m a - d i r á N i e t z s c h e - q u e o c r i s t i a ­

n i s m o t a l v e z d e v a s e u n a s c i m e n t o a u m m o m e n t o d e e x ­

t r a o r d i n á r i a a s t e n i a d a v o n t a d e : e s s a r e l i g i ã o e x p l o r a a o

m á x i m o o d e s e j o d e u m " t u d e v e s " , e x a l t a d o d e s e s p e r a -

d a m e n t e a t é o n ã o - s e n s o p e l a d o e n ç a d o q u e r e r . A o c o n ­

t r á r io , o e sp í r i t o l ivre t e m u m d e s e j o e u m a fo rça d e d e t e r ­

m i n a ç ã o d e si, t e m u m a l i b e r d a d e d o q u e r e r q u e a fa s t a

t o d a c r e n ç a , t o d o d e s e j o de c e r t e z a . O e s p í r i t o l ivre - d i z

N i e t z s c h e - s e e q u i l i b r a r á s o b r e p o s s i b i l i d a d e s c o m o s o ­

b r e c o r d a s , d a n ç a r á n a b o r d a d o s a b i s m o s 2 3 . Z a r a t u s t r a é

b a i l a r i n o , e l e é o e s p í r i t o l ivre p o r exce l ênc i a , a l g u é m q u e

n ã o t e m c o n v i c ç õ e s , u m e x p e r i m e n t a d o r , o p r e c u r s o r d o

filósofo d o fu tu ro . Z a r a t u s t r a é , a n t e s d e t u d o , u m p e r s o ­

n a g e m q u e t e m s e u script c e n t r a d o n a q u i l o q u e a Genea-

23. Nietzsche, A gaia ciência, § 347, Obras incompletas, cit., p. 215.

Page 26: Nietzsche -civilização e cultura

INTRODUÇÃO XXV

logia da moral d e s c r e v e r á c o m o s e n d o a " v e r d a d e i r a l ibe r ­

d a d e d e e s p í r i t o " : e l e s a b e q u e , s e n a d a é v e r d a d e i r o ,

e n t ã o t u d o é p e r m i t i d o - e e l e fa rá u m a e x p e r i m e n t a ­

ç ã o c o m a p r ó p r i a v e r d a d e . M a s d e o n d e v e m o d i r e i t o

d e c i d a d a n i a d e s t e " e s p í r i t o l i v r e" , e n q u a n t o e l e s e o p õ e

a o c o m é r c i o c l á s s i c o c o m a v e r d a d e ? E m u m a p r i m e i r a

a p r o x i m a ç ã o , s u a c e r t i d ã o d e n a s c i m e n t o t e m r e g i s t r o

n a s r e f l exões de N i e t z s c h e s o b r e a fi losofia t r a d i c i o n a l . O

e s p í r i t o l ivre é , em p r i m e i r o lugar , o a n t a g o n i s t a deste h o ­

m e m d e c o n v i c ç õ e s e m p a r t i c u l a r q u e é o m e t a f í s i c o . S e n ­

d o a s s i m , é e m f u n ç ã o d a s r a z õ e s q u e l e v a m N i e t z s c h e

a c r i t i car a f i losofia c l á s s i ca q u e se p o d e c o m e ç a r a c o m ­

p r e e n d e r o e s p a ç o d o e s p í r i t o l ivre , u m e s p í r i t o v i n c u l a d o

a o u t r a n o ç ã o d e " c o n h e c i m e n t o " .

Q u a l e r a o " d e f e i t o h e r e d i t á r i o " d e t o d o s o s f i l ó so ­

fos? A n t e s d e t u d o - d i r á N i e t z s c h e - , a " fa l t a d e s e n t i d o

h i s t ó r i c o " . E l e s n ã o q u e r e m c o m p r e e n d e r q u e o h o m e m

é o r e s u l t a d o d e u m v i r - a - s e r , q u e a p r ó p r i a f a c u l d a d e d e

c o n h e c i m e n t o t a m b é m v e i o a ser . A s s i m , a q u i l o q u e o fi­

lóso fo a p r e e n d e n a r e a l i d a d e d e h o j e , e l e a d m i t e q u e faça

p a r t e d o s d a d o s i m u t á v e i s d a h u m a n i d a d e e p e n s a q u e

e l e s p o d e m f o r n e c e r u m a c h a v e p a r a o e n t e n d i m e n t o d o

m u n d o e m g e r a l . E l e s f a l a m d a ú l t i m a f igu ra d o h o m e m

c o m o s e fo s se a l g o e t e r n o e n ã o r e c o n h e c e m q u e , s e t u d o

v e i o a ser, e n t ã o n ã o e x i s t e m f a t o s e t e r n o s n e m v e r d a d e s

a b s o l u t a s 2 4 . O s f i lósofos s ã o e n g r a ç a d o s : e l e s s e s i t u a m

d i a n t e d o m u n d o d a expe r i ênc i a , d i z N i e t z s c h e - d i a n t e d o

q u e e les c h a m a m d e m u n d o d o s f e n ô m e n o s - , c o m o d i a n ­

t e d e u m a p i n t u r a q u e e s t a r i a feita d e u m a v e z p o r t o d a s e ,

c o m i n a l t e r á v e l f i rmeza , m o s t r a r i a o m e s m o e v e n t o . A g o -

24. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 2, Obras incom­pletas, cit., p. 92.

Page 27: Nietzsche -civilização e cultura

XXVI NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

ra, e l e s s e a t r i b u e m c o m o t a r e f a i n t e r p r e t a r c o r r e t a m e n t e

e s s e e v e n t o , p a r a c o m i s s o ex t r a i r u m a c o n c l u s ã o s o b r e o

" s e r " q u e p r o d u z i u a p i n t u r a . E i s a í o d o g m á t i c o c l á s s i co .

E x i s t e m t a m b é m o s " c r í t i c o s " , a q u e l e s q u e p e n s a m n ã o

s e p o d e r c o n c l u i r d a p i n t u r a a l g o s o b r e s e u a u t o r . M a s

e m a m b o s o s c a s o s , d i r á N i e t z s c h e , n ã o é l e v a d a e m c o n ­

ta a p o s s i b i l i d a d e de q u e a p i n t u r a p o u c o a p o u c o v e i o a

ser , e a l i á s a i n d a e s t á e m p l e n o v i r - a - s e r , e p o r i s s o n ã o

p o d e s e r c o n s i d e r a d a u m a g r a n d e z a f ixa 2 5 . Fo i p o r c a u s a

d e s s e m i t o d e u m a f ix idez d o m u n d o , p o r e s s a r e c u s a d o

v i r - a - s e r q u e o s h o m e n s a c r e d i t a r a m , p o r t a n t o t e m p o ,

n o s c o n c e i t o s e n o m e s d a s c o i s a s c o m o v e r d a d e s e t e r ­

n a s , e p e n s a r a m t e r e f e t i v a m e n t e , n a l i n g u a g e m , o c o n h e ­

c i m e n t o d o m u n d o . M a s q u e o h o m e m a c e i t e a r e a l i d a d e

d o p e r p é t u o v i r - a - s e r h e r a c l i t i a n o : a g o r a , e l e j á e s t a r á c o n ­

d e n a d o a t o r n a r - s e um "esp í r i t o l ivre" , q u e r dizer , o c o n t r á ­

r io d e u m a r r o g a n t e . Af ina l , s e t u d o v e i o a ser, s e n ã o h á

fa tos e t e r n o s n e m v e r d a d e s a b s o l u t a s , " d e a g o r a e m d i a n ­

te o fi losofar histórico é n e c e s s á r i o e, c o m e le , a v i r t u d e da

m o d é s t i a " 2 6 .

V i r t u d e d a m o d é s t i a : q u e d o r a v a n t e o fi lósofo r e n u n ­

cie à p r e t e n s ã o d e e n u n c i a r o c o n j u n t o d a s v e r d a d e s " d e ­

f in i t ivas" , q u e e l e a b d i q u e à s u a m a n i a d e ed i t a r , a c a d a

m o m e n t o , o " m u n d o v e r d a d e i r o e ú n i c o " . A c o n s c i ê n c i a

d o p e r p é t u o v i r - a - s e r d e v e l e v a r - n o s a u m a r e e l a b o r a ç ã o

d a n o ç ã o d e c o n h e c i m e n t o q u e se ja exc lus iva d o u n i v e r ­

so c láss ico d a s c e r t e z a s e c o n v i c ç õ e s . E s t a a d m i s s ã o fi lo­

sóf ica d o v i r - a - s e r s e r á u m d o s f u n d a m e n t o s d a q u i l o q u e

N i e t z s c h e c h a m a r á d e " p e r s p e c t i v i s m o " d e n o s s o c o n h e -

25. Nietzsche, Humano, demasiado humano, § 16, Obras incomple­tas, cit, p. 93.

26. Nietzsche, Humano, demasiado humano, § 2, Obras incomple­tas, cit., p. 92.

Page 28: Nietzsche -civilização e cultura

INTRODUÇÃO XXVII

c i m e n t o : n ã o s e c o n h e c e m v e r d a d e s i m u t á v e i s e m u m

m u n d o q u e e s t á e m p e r p é t u o v i r - a - s e r . D e s t e m u n d o s ó

t e m o s p e r s p e c t i v a s pa rc ia i s , s e m p r e s i t u a d a s , c o n d e n a d a s

a n u n c a s e c r i s t a l i z a r e m e m v e r d a d e s de f in i t i vas , a p e n a s

u m a m u l t i d ã o d e " p o n t o s d e v i s t a " , q u e t ê m t o d o s o m e s ­

m o d i r e i t o d e c i d a d a n i a . E , u m a v e z a f a s t a d a a p r e t e n s ã o

r i d í cu l a d e d e c r e t a r q u e n o s s o r e c a n t o é o ú n i c o d e o n d e

s e t e n h a o d i r e i t o d e t e r u m a p e r s p e c t i v a , o m u n d o v o l t a

a s e r i n f i n i t o , n o s e n t i d o d e q u e " n ã o p o d e m o s r e c u s a r -

l h e a p o s s i b i l i d a d e de prestar-se a uma infinidade de inter­pretações"27. A s s i m , o h o m e m de conv icções , a q u e l e q u e s e

c r ê n a p o s s e d a v e r d a d e , é n o f inal d a s c o n t a s u m p e r s o ­

n a g e m c u r i o s o : e l e q u e r i m p o r s u a o p i n i ã o p o r q u e n ã o

s a b e q u e necessariamente e x i s t e m o u t r a s o p i n i õ e s . P i o r

a i n d a , e l e é o h o m e m q u e p e r d e u o e s p í r i t o d e i n v e s t i g a ­

ç ã o : " A s e r p e n t e q u e n ã o t r o c a d e p e l e m o r r e . O m e s m o

o c o r r e c o m o s e s p í r i t o s i m p e d i d o s d e m u d a r d e o p i n i ã o ;

e l e s c e s s a m d e se r e s p í r i t o s . " 2 8 A s c o n v i c ç õ e s s ã o p r i s õ e s , e

é p r e f e r í v e l s u b s t i t u i r a p a i x ã o p o r p o s s u i r a v e r d a d e p o r

a q u e l a o u t r a , m a i s m o d e s t a , p e l a q u a l s e busca a v e r d a d e ,

s e m c a n s a r - s e d e r e v i s a r e r e e x a m i n a r s e u s c o n h e c i m e n ­

t o s . O e s p í r i t o l ivre é um e x p e r i m e n t a d o r : s u a i n v e s t i g a ­

ç ã o é u m a p e s q u i s a c o n t i n u a d a q u e n ã o q u e r sol id i f icar-se

e m c e r t e z a s . P o r i s s o , N i e t z s c h e va i c o m p a r á - l o a o a n d a ­

r i l h o q u e c a m i n h a a o l éu , s e m p o r t o d e c h e g a d a . E t a m ­

b é m p o r i s s o o e s p í r i t o l iv re n ã o t e r á p a r t i d o , j á q u e e l e

n ã o d i s p o r á d a s a p t i d õ e s r e q u e r i d a s a u m p a r t i d á r i o : r a ­

p i d a m e n t e s e u p e n s a m e n t o o l e v a r á p a r a a l é m d o s p a r t i ­

d o s . O "fi lósofo d o f u t u r o " d e s e n h a d o p o r N i e t z s c h e s e m ­

p r e t e r á i s so e m v i s ta ; e l e s e r á a m i g o d a v e r d a d e , s e m s e r

)

27. Nietzsche, A gaia ciência, § 374, KSA, vol. 3, p. 627. 28. Nietzsche, Aurora, § 573, KSA, vol. 3, p. 330.

Page 29: Nietzsche -civilização e cultura

XXVIII NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

um dogmático; ele nunca desejará uma verdade válida para todos; ele fará da filosofia uma investigação conti­nuada. É a partir daqui que se pode começar a entender o sentido do "ceticismo" de Zaratustra. Ele não será cético nò sentido clássico da palavra - seu ceticismo não será uma paralisia, um sedativo para quem busca a tranqüili­dade. Ele não se comprazerá, como Montaigne, em per­guntar "que sei eu?" - este virtuoso e nobre festim da abstinência. Esse ceticismo - diz Nietzsche - é apenas a expressão intelectual daquilo que, em linguagem corren­te, se chama neurastenia, e esse cético é o doente da von­tade que perdeu o sentido da decisão independente. Za­ratustra é um cético de outra linhagem, o experimentador, um investigador que acordou do sono dogmático 2 9 .

O que pensar desse redesenho nietzschiano da "filo­sofia"? Digamos, antes de mais nada, que ainda não se desvelou nem o seu sentido completo, nem a sua condi­ção de possibilidade, assim como não se formulou sequer a aporia sobre a verdade que tal projeto parece implicar: como decretar que a essência deste mundo é a "vontade de potência" e, ao mesmo tempo, negar valor "ontológi-co" a essa afirmação? Mas, pelo menos, essas indica­ções sumárias podem indicar um caminho a seguir para a interpretação do pensamento de Nietzsche. Vale a pena manter sempre no horizonte as regras de prudência for­muladas por Karl Lõwith, em seu livro já clássico sobre Nietzsche 3 0 . As teses de Nietzsche não são teses filosófi­cas no sentido tradicional da palavra. Se seu pensamento se apresenta de forma não sistemática, é porque ele colo­ca em questão a própria idéia de verdade. Todos os pensa-

29. Sobre a oposição entre os dois ceticismos, cf. Para além do bem e do mal, §§ 209/210, KSA, vol. 5, pp. 140-2.

30. Lõwith, K., Nietzsches Philosophie..., cit, cap. II.

Page 30: Nietzsche -civilização e cultura

INTRODUÇÃO XXIX

d o r e s d o s s é c u l o s a n t e r i o r e s - d i z N i e t z s c h e - m e s m o o s

cé t i cos , a c r e d i t a v a m p o s s u i r a v e r d a d e . " O q u e é n o v o e m

n o s s a p o s i ç ã o a t u a l e m face d a f i losof ia é a c o n v i c ç ã o ,

q u e n ã o foi a d e n e n h u m a é p o c a , d e q u e n ã o p o s s u í m o s

a v e r d a d e . " 3 1 O fi lósofo é a p e n a s o e x p e r i m e n t a d o r , o a n ­

d a r i l h o q u e t r i lha v á r i o s c a m i n h o s p a r a c h e g a r à s u a " v e r ­

d a d e " , u m a v e r d a d e q u e a g o r a d e v e se r s e m p r e p e n s a d a e

e s c r i t a e n t r e a s p a s . O r a , n ã o é d e e s p a n t a r q u e e s s a f i lo­

sof ia e x p e r i m e n t a l a p r e s e n t e t e s e s d i v e r g e n t e s e n t r e si,

q u e a p e n a s n o e sp í r i t o d o s i s t e m á t i c o s e r ã o t r a d u z i d a s p o r

" c o n t r a d i ç õ e s " . A s s i m , q u e n i n g u é m ve ja " c o n t r a d i ç õ e s "

ali o n d e e x i s t e m a p e n a s d i s t i n t o s e x p e r i m e n t o s , d i f e r en t e s

p e r s p e c t i v a s - p r i m e i r a r e g r a p a r a a l e i tu ra de N i e t z s c h e .

O c a r á t e r e x p e r i m e n t a l d a f i losof ia e x p l i c a a s s u a s p r ó ­

p r i a s t r a n s f o r m a ç õ e s , a s s i m c o m o a p a r t i c u l a r i d a d e d a for ­

m a l i t e rá r i a exp l i ca o s e u c o n t e ú d o : e x p e r i m e n t a ç õ e s e x ­

p r e s s a s e m a f o r i s m o s .

É v e r d a d e q u e , d i a n t e d a o b r a d e N i e t z s c h e , n ã o e s ­

t a m o s f r e n t e a u m " s i s t e m a " . N i e t z s c h e cr i t ica o s s i s t e ­

m a s p o r s i m u l a r e m u m m u n d o d o g m a t i c a m e n t e f ixado e

e n c l a u s u r a d o , o q u e faz c o m q u e o p e n s a d o r s i s t e m á t i c o

p e r c a o e s p í r i t o de i n v e s t i g a ç ã o . A q u i , a cr í t ica ao s i s t e m a

c o r r e s p o n d e a u m a v o n t a d e fi losófica d e n o v a s d e s c o b e r ­

t a s e d e h o r i z o n t e s a b e r t o s d e p e s q u i s a . M a s i s s o s ign i f i ­

ca r i a q u e e s t a m o s c o n d e n a d o s a u m a a b s o l u t a d e s o r d e m

d e s s a s " e x p e r i m e n t a ç õ e s " e q u e n ã o h a v e r i a fio c o n d u t o r

q u e p e r m i t i s s e a o l e i t o r s i t u a r - s e n o c i p o a l d o s m ú l t i p l o s

a f o r i s m o s ? I s s o se r ia e q u i v a l e n t e a d i z e r q u e e s t a m o s p r e ­

s o s à a l t e r n a t i v a k a n t i a n a e n t r e o " s i s t e m a " e o " a g r e g a ­

d o " , o q u e n ã o é o c a s o . C o m o n o t a v a , m a i s u m a v e z , Kar l

L õ w i t h , N i e t z s c h e c o m b a t e , n o s i s t e m a , a p e n a s o fa to d e

31. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 3 [19], KSA, vol. 9, p. 52.

Page 31: Nietzsche -civilização e cultura

XXX NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

e s t e s e m p r e fixar o m u n d o ; e l e n ã o c o m b a t e a i d é i a d e

u n i d a d e m e t ó d i c a . A s s i m , a s s u a s e x p e r i m e n t a ç õ e s n ã o

s e r ã o d e s p r o v i d a s d e m é t o d o , e l a s n ã o n o s d e i x a r ã o s e m

r u m o . N i e t z s c h e i n d i c a a d i r e ç ã o d e s e u s e x p e r i m e n t o s a o

d e s c r e v e r a s t r ê s t r a n s m u t a ç õ e s d o e s p í r i t o d e Z a r a t u s t r a

q u e d e s i g n a m , a o m e s m o t e m p o , t a n t o a s m e t a m o r f o s e s

d o e s p í r i t o d a h u m a n i d a d e , n o c u r s o d a h i s t ó r i a , q u a n t o

a s t r a n s f o r m a ç õ e s d a p r ó p r i a filosofia d e N i e t z s c h e : c o m o

o e s p í r i t o s e t o r n a c a m e l o , c o m o o c a m e l o s e t o m a l e ã o ,

c o m o o l e ã o s e t o r n a c r i a n ç a 3 2 . O u e n t ã o , t r o c a n d o e m

m i ú d o s : c o m o o e sp í r i t o s e t o r n a c a m e l o , q u e r dizer , c o m o

s e c o n s t i t u i o p e r í o d o e m q u e d o m i n a a m á x i m a " t u d e ­

v e s " , e m q u e a v o n t a d e é c o m a n d a d a p o r D e u s e p e l a s

m o r a i s ; c o m o o c a m e l o s e t o r n a l e ã o , o u seja , m o m e n t o

e m q u e a m o r t e d o " d e v e r " d á l u g a r a o u t r a m á x i m a , o

" e u q u e r o " , c o m o r e s s u r g i m e n t o d a v o n t a d e e o n a s c i ­

m e n t o d o n i i l i s m o e u r o p e u ; c o m o o l e ã o s e t o r n a c r i ança ,

i s t o é , o m o m e n t o e m q u e p r e v a l e c e a m á x i m a " e u s o u " ,

q u a n d o s e dá a s u p e r a ç ã o do n i i l i smo , a a f i r m a ç ã o do e t e r ­

no r e t o r n o e do amorfati. S e g u n d a r e g r a p a r a a l e i t u r a de

N i e t z s c h e : a n a l i s a r a s s u a s e x p e r i m e n t a ç õ e s n o â m b i t o

d e s s a s d i s t i n t a s t r a n s m u t a ç õ e s . S e n d o a s s i m , v a l e a p e n a

c o m e ç a r p o r s i t u a r - n o s n o p e r í o d o i n t e r m e d i á r i o , a q u e l e

do n i i l i s m o e u r o p e u , j á q u e ali c o m e ç a a c o n s t i t u i r - s e a

n o ç ã o m e s m a d e " f i losof ia" , t a l c o m o e s t a é e n u n c i a d a

p e l o e s p í r i t o l iv re . Q u e m v o s fa la - d i z N i e t z s c h e - " é o

p r i m e i r o n i i l i s t a p e r f e i t o d a E u r o p a " 3 3 . C o m e c e m o s p o r

p e r g u n t a r q u e m e l e é .

32. Nietzsche, "Das três transmutações", Assim falou Zaratustra, Obras incompletas, cit., p. 229.

33. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[411], KSA, vol. 13, p. 189.

Page 32: Nietzsche -civilização e cultura

CAPÍTULO I

O M A I O R D O S A C O N T E C I M E N T O S R E C E N T E S

"O m a i o r dos a c o n t e c i m e n t o s r e c e n t e s - q u e ' D e u s

es tá m o r t o ' , q u e a c r e n ç a no D e u s c r i s tão caiu em descré¬

di to - já c o m e ç a a l a n ç a r s u a s p r i m e i r a s s o m b r a s s o b r e a

E u r o p a . Rara os p o u c o s , pe lo m e n o s , cujos o l h o s , cuja s u s ­

pe i ta n o s o l h o s é forte e re f inada o b a s t a n t e para e s s e e s ­

p e t á c u l o , p a r e c e j u s t a m e n t e que a l g u m sol s e p ô s , q u e

a l g u m a v e l h a , profunda conf i ança v i rou dúv ida : para e les ,

n o s s o v e l h o m u n d o há de a p a r e c e r dia a dia m a i s p o e n t e ,

m a i s d e s c o n f i a d o , m a i s a l h e i o , m a i s v e l h o " 1 . E s t e afo¬

r i s m o de A gaia ciência r e t o m a o t e m a do " a t e í s m o " de

N i e t z s c h e : Z a r a t u s t r a se def ine c o m o o " s e m D e u s " , e a

m o r t e d e D e u s , e s t e " m a i o r d o s a c o n t e c i m e n t o s recen¬

t e s " , c o n d i c i o n a t a n t o os o u t r o s t e m a s q u a n t o a estrutu¬

ra da filosofia de N i e t z s c h e . Em p r ime i ro lugar , c o n d i c i o ¬

na os o u t r o s t e m a s : o a t e í s m o de N i e t z s c h e n ã o é a p e n a s

u m a pa r t i cu l a r i dade ou u m a t e s e en t re ou t r a s de sua fi lo-

1. Nietzsche, A gaia ciência, § 343, Obras incompletas, cit., p. 211.

Page 33: Nietzsche -civilização e cultura

2 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

sofia. Ao c o n t r á r i o , c o m o já o b s e r v a v a L õ w i t h 2 , e le é o

p r e s s u p o s t o de t o d a s a s s u a s o u t r a s d o u t r i n a s , c o m o o

e t e r n o r e t o r n o , a v o n t a d e de p o t ê n c i a , a t r a n s m u t a ç ã o de

t o d o s os v a l o r e s . Da m e s m a fo rma , o a t e í s m o é o pressu¬

p o s t o d o a d v e n t o d o a l é m - h o m e m . Z a r a t u s t r a p r o c l a m a :

" D e u s m o r r e u , o a l é m - h o m e m p o d e v ive r " , q u e r dizer , o

a t e í s m o é e q u i v a l e n t e a u m a cr í t i ca ao " h u m a n i s m o " . Em

s e g u n d o lugar , o a t e í s m o c o n d i c i o n a a e s t ru tu ra da filoso¬

fia de N i e t z s c h e : a p a s s a g e m do "tu d e v e s " ao "eu q u e r o "

é , e m p r i m e i r o lugar , u m r e s u l t a d o d a m o r t e d e D e u s .

P o r q u e é a n t e s de t u d o a par t i r do D e u s c r i s t ã o q u e se dá

d i r e i t o de c i d a d a n i a a u m a e x t r a p o l a ç ã o m á x i m a da idé i a

de " d e v e r " .

C o m o N i e t z s c h e indica na Genealogia da moral, ain¬

da q u e os s e n t i m e n t o s de " d e v e r " e de " o b r i g a ç ã o pes¬

s o a l " t e n h a m s e o r i g i n a d o n a s m a i s a n t i g a s r e l a ç õ e s en¬

tre o s i n d i v í d u o s , a s r e l a ç õ e s e n t r e c o m p r a d o r e v e n d e ¬

dor, e l e s fo ram m o n o p o l i z a d o s e c o n c e n t r a d o s no d e v e r

e na o b r i g a ç ã o em r e l a ç ã o a D e u s . D e s d e e n t ã o , q u a n t o

m a i s s e e x p o n e n c i a a i dé i a d e D e u s , t a n t o m a i o r se rá ,

p r o p o r c i o n a l m e n t e , o s e n t i m e n t o de deve r e de o b r i g a ç ã o

em r e l a ç ã o a e l e . P o s t o i s so , é p r e c i s o c o n c l u i r q u e o ad¬

v e n t o d o D e u s c r i s t ã o , a e x p r e s s ã o m a i s a l ta d o d i v i n o

a l c a n ç a d a a té e n t ã o , fez surg i r na t e r ra o m á x i m o de sen¬

t i m e n t o d e o b r i g a ç ã o . S e n d o a s s i m , p o d e - s e p r e v e r q u e o

t r iunfo c o m p l e t o e de f in i t ivo do a t e í s m o l i be r t a r i a a hu¬

m a n i d a d e d e t o d o s e n t i m e n t o d e o b r i g a ç ã o e m r e l a ç ã o à

s u a o r i g e m 3 . D e s d e e n t ã o , é po r um ú n i c o e m e s m o m o v i ­

m e n t o q u e se o b t é m o e c l i p s e do "tu d e v e s " e a e m a n c i ¬

p a ç ã o do "eu q u e r o " : r e n u n c i a r ao d e v e r é r e e n c o n t r a r o

2. Lõwith, K., Nietzsches Philosophie..., cit , cap. III.

3. Nietzsche, Genealogia da moral, cit., II, § 20, p. 98.

Page 34: Nietzsche -civilização e cultura

O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 3

quere r , é r e d e s c o b r i r o lugar p r i v i l e g i a d o do c o n c e i t o de

" v o n t a d e " , q u e n ã o era r e c o n h e c i d o c o m o e s s e n c i a l e x a ­

t a m e n t e por c a u s a do c r i s t i a n i s m o . E es te se rá o pr imei¬

ro p a s s o para a d e s c o b e r t a s i m é t r i c a de que a r e l ig ião ex¬

p r i m e u m a d e b i l i t a ç ã o d a v o n t a d e , j á q u e a p e n a s u m a

v o n t a d e fraca prefere o b e d e c e r a u m a i n s t â n c i a t r anscen¬

d e n t e a e x e r c e r - s e e n q u a n t o v o n t a d e , quer dizer, a co¬

m a n d a r . D o n d e a r e l a ç ã o q u e N i e t z s c h e e s t a b e l e c e r á en¬

tre a e l e v a ç ã o do " t ipo h o m e m " e o a b a n d o n o de D e u s :

" N u n c a m a i s r e z a r á s , n u n c a m a i s a d o r a r á s , n u n c a m a i s

d e s c a n s a r á s na c o n f i a n ç a s e m fim - te p r o í b e s de parar

d i a n t e d e u m a s a b e d o r i a ú l t i m a , b o n d a d e ú l t i m a , p o t ê n ­

cia ú l t ima . . . o h o m e m , t a lvez , sub i rá cada v e z m a i s a l to ,

d e s d e q u e de ixe de desaguar em um d e u s . " 4 A s s i m , se o

t e m a d o a t e í s m o in f l ex iona t a n t o a s d e m a i s t e s e s d e

N i e t z s c h e q u a n t o a e s t ru tu ra de sua fi losofia, é p r e c i s o

pe rgun ta r , a n t e s de m a i s nada , o que signif ica esta "mor¬

te de D e u s " . E s s a p e r g u n t a é inev i t áve l , j á que N i e t z s c h e

n ã o é o ú n i c o filósofo a dec l a r a r - s e " s e m D e u s " , o que n o s

ob r iga a i nves t iga r a s i n g u l a r i d a d e de seu a t e í s m o . No fi¬

nal de Fé e saber, H e g e l já se refer ia ao s e n t i m e n t o s o b r e

o qual r e p o u s a a re l ig ião dos n o v o s t e m p o s , o s e n t i m e n t o

de q u e D e u s m o r r e u . S e n d o a s s i m , qual a e s p e c i f i c i d a d e

d o a t e í s m o n i e t z s c h i a n o e m face d o s s e u s h o m ô n i m o s

t r a d i c i o n a i s ?

II

E m u m d e s e u s e n s a i o s , H e i d e g g e r p e r g u n t a v a - s e

p e l o s i gn i f i c ado des ta f ó r m u l a d e N i e t z s c h e , " D e u s es tá

4. Nietzsche, A gaia ciência, § 285, Obras incompletas, cit., p. 203.

Page 35: Nietzsche -civilização e cultura

4 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃOE CULTURA

m o r t o " 5 . E , c o m o s e m p r e o c o r r e e m s u a s a n á l i s e s , a t e s e

de N i e t z s c h e era ali des t i tu ída de toda e q u a l q u e r s ingula¬

r idade em face de u m a t r ad i ção q u e , no fundo, ela a p e n a s

p ro longa r i a . A m o r t e de D e u s n ã o ser ia s e n ã o a e x p r e s s ã o

final da h i s tó r i a da m e t a f í s i c a e se i n s c r e v e r i a , p o r t a n t o ,

no in te r io r d e s s a h i s t ó r i a : a filosofia de N i e t z s c h e n ã o re¬

p r e s e n t a r i a n e n h u m a rup tu ra c o m u m p a s s a d o q u e ela

a p e n a s levar ia ao seu l imi te e t e rmina r i a , a m o r t e da me¬

taf ís ica s e n d o a s s u n t o d a p róp r i a me t a f í s i c a . M a s s e r á

m e s m o q u e s e p o d e aceitar , s e m m a i s r essa lvas , essa idéia

de q u e o a t e í s m o de N i e t z s c h e n ã o é m a i s do q u e a ex¬

p r e s s ã o c r e p u s c u l a r d e u m m e s m o m o v i m e n t o p r e s e n t e

n a h i s tó r i a d o p e n s a m e n t o ? E s s e m o v i m e n t o , que H e i -

d e g g e r c h a m a d e " m e t a f í s i c a " , t o r n a - s e agora u m a n o i t e

o n d e t o d o s os ros tos p e r d e m sua s i lhue ta própr ia , aplaina¬

dos na m e s m i c e de um diáfano e mi s t e r i o so " e s q u e c i m e n ¬

t o d o se r" . D e s c o n f i e m o s d e s s a s g r a n d e s c o n t i n u i d a d e s

h i s t ó r i c a s que , a q u a l q u e r p r e ç o , q u e r e m fazer c o m que

t u d o seja um. O q u e n ã o s ignif ica , de fo rma a l g u m a , lan¬

çar s u s p e i t a s s o b r e t oda e q u a l q u e r c o n t i n u i d a d e , d e s d e

que esta seja b e m loca l i zada e h i s t o r i c a m e n t e c i rcunscr i ta .

A s s i m , já se af i rmou que o a t e í s m o de N i e t z s c h e ser ia

" p r ó x i m o " à q u e l e da I l u s t r a ç ã o , q u e ao fim e ao c a b o ele

a p e n a s p r o l o n g a r i a 1 . E , por um l ado , n ã o fal tam tex tos que

p o s s a m t razer a l g u m a c a u ç ã o a e s sa i n t e r p r e t a ç ã o . A s s i m ,

N i e t z s c h e n ã o de ixa rá de r e t o m a r , por sua p rópr i a c o n t a ,

o t e m a e o l e m a de Voltaire - écrasez Vinfâme - c o m o a in­

dicar sua f i l iação esp i r i tua l à Aufklarung. I m p r e s s ã o t a n t o

m a i s r ea f i rmada q u a n d o se r e c o r d a que a cr í t ica às idé ias

5. Heidegger, M, "Le mot de Nietzsche 'Dieu est mort'", in Che-mins qui ne mènent nuüepari, Paris, Gallimard, 1962, pp. 173-219.

6. Biser, E., "Ni antéchrist ni a la recherche de Dieu", in Nietz­sche aujourdhui?, Paris, Plon, 1973, vol. II, p. 258.

Page 36: Nietzsche -civilização e cultura

O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 5

de "dever" e "obrigação" pode ser apresentada como um dos slogans publicitários prediletos dos "ilustrados". Afi­nal, o que são as "luzes"? Kant as caracterizava, em um opúsculo célebre, como a recusa de toda autoridade exte¬ rior, que deve ser obedecida, e a conseqüente elevação da humanidade. Assim, dizia Kant, se por todos os lados ou¬ vimos gritar: não raciocine, obedeça, se "o oficial diz: não ra­ciocine, faça seus exercícios! O cobrador: não raciocine, pague! O padre: não raciocine, creia!" 7 , as luzes são exa¬ tamente o contramovimento a esse establishment da obe¬ diência cega. "As luzes se definem como a saída do homem para fora do estado de menoridade, onde ele se mantém por sua própria culpa. A menoridade é a incapacidade de servir-se de seu en tendimento sem ser dirigido por outro. Ela é devida à nossa própria culpa quando resulta não de uma falta de entendimento, mas de uma falta de resolução e de coragem para servir-se dele sem ser dirigido por outro. Sa-pere aude! Tenha a coragem de servir-se de seu próprio entendimento! Eis a divisa das luzes ." 8 Não se pense que, nessas páginas, Kant está prestes a defender a desobe¬ diência civil. Ele vai distinguir cuidadosamente entre o uso público e o uso privado da razão, para que a sociedade ilustrada não termine seus dias em estado de natureza. Mas resta que as "luzes" representam uma desconfiança em face de todo "tu deves", paralela a uma emancipação humana. Nenhuma instância exterior à qual eu devo obe¬ diência, nenhum ordenador de meus deveres: o que falta para mencionar o "eu quero" nie tzschiano? Da mesma forma, se o próprio homem é o responsável por sua " m e -

7. Kant, "Réponse à la question: qu'est-ce que les lumières?", in Oeuvresphilosophiques, Paris, NRF, Pléiade, 1985, vol. II, p. 211.

8. Kant, "Réponse...", in Oeuvres philosophiques, cit., p. 209.

Page 37: Nietzsche -civilização e cultura

6 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

n o r i d a d e " , p a r e c e q u e n ó s j á c o m e ç a m o s a ouv i r N i e t z -

s c h e : a p e n a s a v o n t a d e " f raca" q u e r a s u b o r d i n a ç ã o e

p re fe re o b e d e c e r a c o m a n d a r . M a s b a s t a r i a i s so p a r a fi¬

l iar N i e t z s c h e a o p r o p a l a d o a t e í s m o d o s i l u s t r a d o s ? V a l e

a p e n a p e r g u n t a r , a n t e s de m a i s n a d a , q u a l a n a t u r e z a

d e s s e " a t e í s m o " . E i sso p a r t i c u l a r m e n t e em r e l a ç ã o à ilus¬

t r a ç ã o f r ancesa , j á q u e e m K a n t , c o m o s e s a b e , o D e u s

cuja e x i s t ê n c i a n ã o p o d e se r p r o v a d a p e l a r a z ã o t e ó r i c a

p e r m a n e c e c o m o u m i d e a l e c o m o u m p o s t u l a d o d a ra¬

z ã o p rá t i ca . C o m o di rá N i e t z s c h e , e s s a é a e s p e r t e z a de

K a n t : D e u s n ã o p o d e se r p r o v a d o , m a s t a m b é m n ã o p o d e

s e r re fu tado . . .

C o m o n o t a v a C a s s i r e r , t r a d i c i o n a l m e n t e s e c o n s i d e ¬

ra um t r a ç o e s s e n c i a l da i l u s t r a ç ã o a a t i t u d e cr í t ica e c é t i -

ca em face da r e l i g i ã o 9 . E se i s s o é p a r t i c u l a r m e n t e váli¬

do p a r a a i l u s t r a ç ã o f r ancesa é p o r q u e o écrasez Vinfâme

de V o l t a i r e r e s u m e b e m o s e u e s p í r i t o . P o i s se é v e r d a d e

q u e Vol ta i re a t e n u a sua pa lavra d e o r d e m , e x p l i c a n d o a o

d i s t i n t o p ú b l i c o q u e s u a lu ta é c o n t r a a s u p e r s t i ç ã o , n ã o

c o n t r a a fé, c o n t r a a Igre ja , n ã o c o n t r a a r e l ig i ão , r es ta q u e

sua p o s t e r i d a d e fará letra m o r t a d e s s a s c o n c e s s õ e s a o b o m

t o m e d e m o n s t r a ç õ e s de b o m - m o c i s m o . E s e r á c o n t r a a

r e l i g i ão e sua p r e t e n s ã o de v a l i d a d e q u e se d i r ig i rá o e n -

c i c l o p e d i s m o : o d i s c u r s o r e l i g i o s o s e r á v i s t o a g o r a n ã o

a p e n a s c o m o fa lso , m a s t a m b é m c o m o p e r n i c i o s o a u m a

o r d e m p o l í t i c o - s o c i a l j u s t a . A s s i m , n ã o s e r á difícil reen¬

c o n t r a r , em a l g u m a s p á g i n a s de D ' H o l b a c h , a r e l a ç ã o -

p r é - n i e t z s c h i a n a - e n t r e m a i s r e l i g i ã o , m a i s o b e d i ê n c i a ,

m e n o s força - e s e r í a m o s t e n t a d o s a d izer : m e n o s von ta¬

d e . D ' H o l b a c h a c u s a r á a r e l i g i ão d e e d u c a r o s h o m e n s n o

t e m o r a t i r a n o s i n v i s í v e i s , f a z e n d o - o s s e r v i s e c o v a r d e s

9. Cassirer, E., Filosofia de la ilustración, México, FCE, 1972, p. 156.

Page 38: Nietzsche -civilização e cultura

O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 7

f ren te a o s d é s p o t a s da te r ra , s u f o c a n d o t o d a a força ca¬

p a z de dirigir c o m i n d e p e n d ê n c i a o s e u p r ó p r i o d e s t i n o 1 0 .

Da m e s m a m a n e i r a , s e em N i e t z s c h e a m o r t e de D e u s -

e n q u a n t o r e c u s a d e u m m u n d o s u p r a - s e n s í v e l - t e m c o m o

c o r o l á r i o um r e t o r n o à n a t u r e z a , n ã o é difícil e n c o n t r a r

e s s e m e s m o t e m a n a I l u s t r a ç ã o f rancesa . A s s i m , n o Trai-

té de la tolérance de D i d e r o t há um d i á l o g o e n t r e a natu¬

r eza e o h o m e m , no q u a l se f o r m u l a c l a r a m e n t e a idé ia de

u m a o p o s i ç ã o e n t r e n a t u r e z a e r e l ig i ão , a s s i m c o m o é ex¬

plícita a tese de que a recusa da rel igião é, ipso jacto, u m a

r e c u p e r a ç ã o d o s d i re i tos da n a t u r e z a , i n d e v i d a m e n t e alie¬

n a d o s à q u e l a . Ali , a n a t u r e z a d i r i g e - s e ao h o m e m para di¬

z e r - l h e q u e "é inút i l , ó s u p e r s t i c i o s o , q u e b u s q u e s tua fe¬

l i c i d a d e m a i s a l é m d a s f ron t e i r a s d o m u n d o e m q u e t e

c o l o q u e i . O u s a l i be r t a r - t e d o j u g o d a r e l i g i ão , m i n h a o r ­

g u l h o s a c o m p e t i d o r a , q u e d e s c o n h e c e m e u s d i r e i tos ; re¬

n u n c i a a o s d e u s e s , q u e se a r r o g a r a m o m e u poder , e v o l t a

às m i n h a s le i s . V o l t a ou t ra v e z à n a t u r e z a , da q u a l fugiste;

e la t e c o n s o l a r á , e s p a n t a r á de t eu c o r a ç ã o t o d a s a s angús¬

t ias q u e te o p r i m e m e t o d a s as i n q u i e t u d e s q u e te ator¬

m e n t a m . E n t r e g a - t e à n a t u r e z a , e n t r e g a - t e a t i m e s m o , e

e n c o n t r a r á s , e m q u a l q u e r lugar , f lores n o c a m i n h o d e tua

v i d a " 1 1 . E , se é a s s i m , os j o g o s p a r e c e m fe i tos : o a t e í s m o

de N i e t z s c h e e a q u e l e d o s i l u s t r a d o s p a r e c e m c o n v e r g i r

e t a lvez p o s s a m o s conc lu i r , c o m E u g e n Bi se r , q u e o a t e í s -

mo de N i e t z s c h e e o da I l u s t r a ç ã o s ã o " p r ó x i m o s " .

M a s tal c o n c l u s ã o ser ia m u i t o p rec ip i t ada . E s s a cons¬

t a t a ç ã o de p r o x i m i d a d e e n t r e N i e t z s c h e e a I l u s t r a ç ã o ,

a t e n d o - s e a p o n t o s de c o n v e r g ê n c i a na v e r d a d e n o m i n a i s

10. D'Holbach, Politique naturelle, Discours III, §§ 12 ss., apud Cassirer, Filosofia..., cit., p. 156.

11. Diderot, D., Traité de la tolérance, apud Cassirer, Filosofia..., cit., p. 157.

Page 39: Nietzsche -civilização e cultura

8 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

e per i fé r icos , i ncor re em um d u p l o d e s c o n h e c i m e n t o : em

p r i m e i r o lugar, n ã o se l e v a m em c o n t a a s n u a n ç a s do di to

" a t e í s m o " das l u z e s ; e m s e g u n d o , n ã o s e c o n s i d e r a qual

é o v e r d a d e i r o i n t e r l o c u t o r de N i e t z s c h e , a q u e l e para

q u e m ele a n u n c i a que " D e u s es tá m o r t o " . A s s i m , por u m

l a d o , se Vol ta i re e D i d e r o t c r i t i c am a re l ig ião , e les c o m b a ­

t e m a r e l ig ião positiva, m a s para de f ende r a r e l ig ião natu­

ral. A cr í t ica q u e e les d i r i g e m à re l ig ião n u n c a se rá u m a

tarefa p u r a m e n t e nega t i va , e a idé ia de t o l e r â n c i a se rá o

c o n t r á r i o de u m a ind i f e r ença d i a n t e da q u e s t ã o r e l i g iosa .

Em ou t r a s pa l av ras , se as r e l i g iõe s pos i t ivas s ã o a expres¬

s ã o d e u m d e s v a r i o , b e m d e m o n s t r a d o pe la gue r ra e n t r e

as s e i t a s , n a d a i m p e d e , ao c o n t r á r i o , a e x i s t ê n c i a de u m a

r e l ig i ão na tu ra l , c o n s t i t u í d a a part i r da r a c i o n a l i d a d e hu¬

m a n a , n ã o i m p o s t a d o ex te r io r por a c o n t e c i m e n t o s his¬

t ó r i c o s . Por i s so , o m e s m o au to r q u e p r o c l a m a o écrasez

Vinfâme! n u n c a irá r e n u n c i a r à idé ia de q u e a e x i s t ê n c i a

d e D e u s é u m a v e r d a d e r i g o r o s a m e n t e d e m o n s t r á v e l .

Vo l t a i r e de ixa rá c la ro q u e a p r o p o s i ç ã o "eu ex i s to , l o g o

ex is te um ser n e c e s s á r i o e e t e r n o " n ã o pe rdeu para e le s u a

e v i d ê n c i a e força c o n c l u d e n t e s 1 2 . Para o i l u s t r ado , o ho¬

m e m n ã o d e v e se r p o s s u í d o e d o m i n a d o pe l a r e l i g i ã o

c o m o por u m a força e s t r a n h a , m a s e le p o d e e d e v e apo¬

de ra r - s e d o s e n t i m e n t o r e l i g i o s o , c o m l i b e r d a d e in ter ior .

A c e r t e z a r e l ig iosa n ã o p o d e ser p r o d u z i d a por u m a po¬

t ê n c i a s o b r e n a t u r a l , n e m pe la g r a ç a divina , m a s é o pró¬

prio h o m e m q u e m a l c a n ç a essa ce r t eza , naqu i l o que K a n t

c h a m a r á de " re l ig ião n o s l imi t e s da s i m p l e s r a z ã o " . E D i -

derot c o n c o r d a r á : s e a s r e l ig iões h i s t o r i c a m e n t e d a d a s s ã o

indec id íve i s en t re si, se t odas r e c l a m a m para s i a u n i v e r s a -

12. Voltaire, Additions aux remarques sur les pensées de Pascal, apud Cassirer, Filosofia..., cit, p. 168.

Page 40: Nietzsche -civilização e cultura

O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 9

l i dade , a p e n a s a r e l i g i ão na tu ra l a l c a n ç a v e r d a d e i r a m e n ¬

te a u n i v e r s a l i d a d e e a e t e r n i d a d e . "Tudo o q u e t eve um

c o m e ç o te rá t a m b é m um fim e , ao c o n t r á r i o , o q u e n ã o

n a s c e u t a m p o u c o passa rá . O r a , o j u d a í s m o e o cr is t ianis¬

mo t i ve ram um c o m e ç o e n ã o ex i s t e re l ig ião s o b r e a terra

cujo a n o de n a s c i m e n t o n ã o seja c o n h e c i d o , a n ã o ser a

r e l ig ião na tu ra l . É a que n ã o a c a b a r á n u n c a , e n q u a n t o as

d e m a i s p a s s a r ã o . " 1 3

D o n d e o s l i m i t e s d a e x p r e s s ã o " a t e í s m o " , q u a n d o

ap l i cada à I l u s t r a ç ã o , e o q u a n t o é d u v i d o s o c o n s i d e r a r o

s é c u l o X V I I I c o m o f u n d a m e n t a l m e n t e i r re l ig ioso . N ã o h á

ali, p r o p r i a m e n t e f a l ando , um d e s v i o do c a m i n h o da fé,

m a s s im a e l a b o r a ç ã o de um n o v o ideal de fé, u m a n o v a

fo rma de r e l i g i ã o . D e s d e e n t ã o , a cr í t ica à r e l i g i ã o e sbo¬

ç a d a p e l o i lu s t r ado e s t ava inscr i t a e m u m a p r o b l e m á t i c a

a inda r e l i g i o s a . D o n d e a n u a n ç a do d i to " a t e í s m o " da

Aufklàrung e - o que é o m a i s i m p o r t a n t e - a d i s t ânc ia in¬

finita em que a I l u s t r ação es tava da p r o p o s i ç ã o " D e u s es tá

m o r t o " . A t e í s m o , m a s m u i t o m o d e r a d o , con t ra o D e u s de

A b r a ã o e J a c ó , n u n c a c o n t r a o D e u s d o s f i lósofos e dos

c ien t i s t a s . S e n d o ass im, t o d o c u i d a d o é p o u c o ao se t en t a r

i n s c r e v e r N i e t z s c h e , seja m o d e s t a m e n t e , e m a l g u m a pe¬

q u e n a t r a d i ç ã o d o " a t e í s m o " , se ja m e n o s m o d e s t a m e n t e

em u m a g r a n d e e e n f a d o n h a h i s tó r i a da " m e t a f í s i c a " .

M a s há a i n d a um s e g u n d o a s p e c t o a s e c o n s i d e r a r

q u a n d o se q u e r c i r c u n s c r e v e r o s e n t i d o do " a t e í s m o "

n i e t z s c h i a n o e m a r c a r sua d i s t ânc ia em face dos s e u s con¬

g ê n e r e s t r a d i c i o n a i s . Q u a l é o i n t e r l o c u t o r de N i e t z s c h e

e q u e p ú b l i c o p rec i s a ser i n f o r m a d o de q u e " D e u s es tá

m o r t o " ? No afor ismo 125 de A gaia ciência, o " i n s e n s a -

13. Diderot, D., De la suffisance de la religion naturelle, IV parte, in Oevres, apud Cassirer, Filosofia..., cit., pp. 193-4.

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10 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

to" não anuncia a morte de Deus a uma platéia de fiéis ou de deístas. Ao contrário, essa morte é anunciada àqueles "que não acreditam em Deus" . Signo suficiente de que o acontec imento tem uma dimensão que passou desper¬ cebida aos próprios ateus, e que por isso mesmo não é inútil repetir-lhes, novamente, aquilo que eles já sabem, que Deus morreu: essa "boa nova" deve revelar-lhes algo com que eles ainda não atinaram. Mas algo para o qual seus ouvidos ainda não estão preparados. Por isso, o "in¬ sensato" declara que veio "muito cedo" e que seu tempo "ainda não chegou". Essa situação não é irrelevante para se saber onde está o verdadeiro interlocutor de Nietzsche: ele deve ser procurado no próprio ateísmo filosófico do século XIX alemão. E em relação a esse ateísmo que vai se desenhando a especificidade do ateísmo nietzschia-no e a dimensão inteira do "maior dos acontecimentos recentes" , sequer suspeitada até mesmo por aqueles que acreditam já saber que "Deus está morto".

III

O "ate ísmo" do século XIX alemão era, antes de tudo, o resultado da crise do sistema hegel iano, quando os "jovens hegelianos" tratam de desfazer a unidade que o mestre instituíra entre cristianismo e filosofia - onde a filosofia apenas diria, com boa gramática, o que o cristia¬ nismo já falava, só que expressando-se mal. E o seu mo¬ delo mais acabado era a dissolução da teologia na antro¬ pologia, tal como Feuerbach a empreendera em A essência do cristianismo, de 1841 . Ali, Feuerbach procurava mostrar que a religião - na verdade uma antropologia que esque¬ ceu sua origem demasiado humana - nasce de um duplo

Page 42: Nietzsche -civilização e cultura

O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 11

movimento, de transposição e de depreciação. Pela anᬠlise do movimento de transposição, Feuerbach pretende indicar que o Deus cristão não é senão a própria essência humana, agora hipostasiada. A operação constitutiva da religião é retirar do homem suas forças, qualidades e de¬ terminações essenciais, para divinizá-las sob a forma de seres independentes . "Tu crês no amor, como em uma propriedade divina, porque tu mesmo amas; tu crês que Deus é um ser sábio e bom porque não conheces nada melhor em ti do que a bondade e a inteligência; e tu crês que Deus existe, que ele é portanto sujeito ou ser... porque tu mesmo existes, tu mesmo és um ser." 1 4 Assim, o obje¬ to religioso não é senão a própria essência do homem, tomada como Gegenstand, e a consciência de Deus é uma consciência de si do homem, mas que se desconhece como tal. E é esse desconhecimento que funda a essência pró¬ pria da religião. O homem projeta fora de si a sua essên¬ cia, antes de reencontrá-la nele mesmo: é a consciência dessa alienação, até então despercebida, que deve trans¬ formar a religião na sua verdade - a antropologia. Mas o que significa, para Feuerbach, essa "essência" do homem?

A essência humana é o homem enquanto "ser gené­rico", não enquanto indivíduo. Se o indivíduo é limitado, o gênero não o é: se razão, amor e vontade são limitados enquanto atributos do indivíduo, não o são enquanto atri¬ butos do gênero humano, da essência. Se o Deus dos teó¬ logos é construído com predicados humanos pensados como ilimitados, essa i l imitação, ausente do indivíduo, está presente na espécie, e por isso mesmo a oposição en¬ tre o divino e o humano é ilusória: ela só designa a opo-

14. Feuerbach, L., Uessence du christianisme, Paris, Maspero, 1968, p. 135.

Page 43: Nietzsche -civilização e cultura

12 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

sição entre a essência humana e o indivíduo humano e, se é assim, o objeto e o conteúdo da religião cristã são, do começo ao fim, humanos . E por isso a religião, "pelo me¬ nos a religião cristã, é a relação do homem consigo mesmo ou, mais exatamente , com seu ser, mas uma relação com seu ser que se apresenta como um ser outro que ele. O ser divino não é nada mais que o ser humano, ou antes, que o ser do homem, desembaraçado dos limites do homem in¬ dividual, quer dizer, real e corporal, depois objetivado, quer dizer, contemplado e adorado como um ser próprio, mas outro que ele e distinto dele: é por isso que todas as determinações do ser divino são determinações do ser humano" 1 5 . O teó¬ logo recusa-se a negar o substrato desses predicados. Mas o que é esse substrato senão um nada? Se os atributos de Deus não são senão os atributos de nossa espécie, na ilu¬ são religiosa o homem aliena sua essência, isto é, seu ser genérico - o m e s m o esquema que Marx utilizará para fa¬ zer do trabalho alienado a perda do "ser genérico" do tra¬ balhador. Mas, se é assim, quando se toma consciência de que os predicados divinos são apenas antropomorfismos, representações humanas , deve-se colocar em questão a existência do sujeito desses predicados, que só poderá ser um antropomorfismo a mais, uma pressuposição humana a mais. A existência de Deus deve ser posta em questão, e a teologia deve reconhecer-se como uma antropologia inconsciente. Já para Feuerbach, a tradição era o esqueci¬ mento das origens: a tarefa propriamente materialista da filosofia será restituir à antropologia os seus direitos in¬ devidamente alienados à religião, e alienados unicamen¬ te em razão do esquec imento das origens da própria re¬ ligião, o esquecimento de que aquilo que se toma como

15. Feuerbach, L., Uessence du christianisme, cit., p. 131.

Page 44: Nietzsche -civilização e cultura

O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 13

um p r e d i c a d o s e p a r á v e l do su je i to era, o r i g i n a r i a m e n t e , o

v e r d a d e i r o su je i to , o h o m e m .

E s s a c r í t i ca à t e o l o g i a é u m a tarefa u r g e n t e , v i s t o q u e

o m o v i m e n t o de t r a n s p o s i ç ã o d o s a t r i bu to s h u m a n o s para

D e u s t e m c o m o c o r o l á r i o u m a d e p r e c i a ç ã o d o h o m e m , o

q u e c o n s t i t u i a s e g u n d a c a r a c t e r í s t i c a do f e n ô m e n o reli¬

g i o s o p a r a F e u e r b a c h . A f i n a l , q u e m a n a l i s a a e s s ê n c i a

d a r e l i g i ã o p o d e f a c i l m e n t e p e r c e b e r q u e q u a n t o m a i s s e

a c e n t u a m os a t r i b u t o s de D e u s - q u e c o n s t i t u e m s e u ca¬

r á t e r h u m a n o - , m a i s s e v ê a u m e n t a r a d i s t â n c i a q u e

s e p a r a D e u s do h o m e m , m a i s s e vê a t e o l o g i a n e g a r a

i d e n t i d a d e e n t r e a e s s ê n c i a h u m a n a e a e s s ê n c i a d iv ina ,

m a i s se vê r e b a i x a d o t u d o o q u e é h u m a n o , e n q u a n t o e s s e

h u m a n o é o b j e t o da c o n s c i ê n c i a do h o m e m . E a r a z ã o

d i s s o , p a r a F e u e r b a c h , é s i m p l e s : se t u d o o q u e há de po¬

s i t i vo e e s s e n c i a l na c o n c e p ç ã o q u e se faz do d i v i n o se

r e d u z a o h u m a n o , a g o r a s ó s e p o d e r á te r u m a c o n c e p ç ã o

n e g a t i v a e i n u m a n a d o h o m e m . E m o u t r a s p a l a v r a s , p a r a

e n r i q u e c e r D e u s , o h o m e m d e v e fazer -se p o b r e ; p a r a q u e

D e u s se ja t u d o , o h o m e m n ã o d e v e s e r nada. E p r e c i s o

q u e o h o m e m n ã o se ja n a d a p a r a e le m e s m o , j á q u e t u d o

a q u i l o q u e r e t i r ou d e s i e s t á c o n s e r v a d o e m D e u s . S e o

h o m e m a l i e n o u s u a p r ó p r i a e s s ê n c i a a D e u s , c o m o po¬

de r i a t ê - l a em s i e p a r a s i m e s m o ? N e s s e s e g u n d o a to da

a l i e n a ç ã o , o h o m e m af i rma e m D e u s a q u i l o q u e n e g a e m

s i m e s m o . A s s i m , n e n h u m a s u r p r e s a s e S a n t o A n s e l m o

c o n s i d e r a q u e " q u e m s e d e s p r e z a é e s t i m a d o p o r D e u s .

A q u e l e q u e s e d e s a g r a d a c o n s i g o a g r a d a a D e u s . F a z e -

t e p e q u e n o a o s t e u s o l h o s p a r a ser g r a n d e a o s o l h o s d e

D e u s ; po i s t u s e r á s t a n t o m a i s p r e z a d o p o r D e u s q u a n t o

m a i s d e s p r e z a d o p e l o s h o m e n s " 1 6 . T a n t o m a i s D e u s é h u -

16. Santo Anselmo, Opus Anselmi, Paris, 1721, p. 191, apud Feuerbach, Uessence..., cit, p. 144.

Page 45: Nietzsche -civilização e cultura

14 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

m a n o q u a n t o m a i s o h o m e m s e des faz d e s u a h u m a n i d a ­

de , j á q u e D e u s é em s i m e s m o a h u m a n i d a d e a l i e n a d a

do h o m e m . D e s d e e n t ã o , s e a tarefa do m a t e r i a l i s m o é

r e t o r n a r da r e l i g i ão à s u a v e r d a d e na a n t r o p o l o g i a , o n o v o

a t e í s m o se r á i d ê n t i c o ao fim da a l i e n a ç ã o e p r o m o v e r á o

r e e n c o n t r o do i n d i v í d u o c o m a s u a e s s ê n c i a , a r econc i l i a¬

ç ã o d o h o m e m c o m o s e u " s e r g e n é r i c o " . A s s i m c o m o a

s o c i e d a d e c o m u n i s t a , pa ra o j o v e m M a r x , será o m o m e n ¬

t o d o r e e n c o n t r o d o i n d i v í d u o c o m sua e s s ê n c i a g e n é r i c a :

os a t o r e s f e u e r b a c h i a n o s m u d a r a m , m a s a sua t r a m a per¬

m a n e c e i n a l t e r a d a , e o ú l t i m o a t o n o s r e se rva o m e s m o

happy end.

S e r á q u e o " a t e í s m o " de N i e t z s c h e t e r i a a l g u m pa¬

r e n t e s c o c o m o de F e u e r b a c h , e a p r o p o s i ç ã o " D e u s e s t á

m o r t o " ser ia f o r m u l a d a c o m o m e s m o s o t a q u e ? M a i s u m a

v e z , n ã o fa l tam t e x t o s q u e p o s s a m s u g e r i r e s s a in te rpre¬

t a ç ã o . É a s s i m , p o r e x e m p l o , q u a n d o N i e t z s c h e a f i rma

q u e r e r " res t i tu i r a o h o m e m , c o m o p r o p r i e d a d e sua , c o m o

p r o d u ç ã o sua , t oda b e l e z a e s u b l i m i d a d e q u e p ro j e tou so¬

b r e a s c o i s a s r e a i s e i m a g i n á r i a s , p a r a fazer d e s t e m o d o

s u a m a i s b e l a a p o l o g i a . O h o m e m c o m o p o e t a , c o m o

p e n s a d o r , c o m o D e u s , c o m o amor , c o m o p o d e r : oh! , c o m

s u a m a g n a n i m i d a d e r e a l e l e e n r i q u e c e u a s c o i s a s p a r a

e m p o b r e c e r - s e a s i m e s m o , p a r a s e n t i r - s e m i s e r á v e l . E s t a

foi a t é a g o r a a s u a m a i o r a b n e g a ç ã o : a de a d m i r a r e ado¬

rar, e s a b e r o c u l t a r - s e q u e e ra e l e m e s m o o q u e c r i ava

a q u i l o q u e a d m i r a v a " 1 7 . A q u i , N i e t z s c h e p a r e c e r e t o m a r ,

p o r sua p r ó p r i a c o n t a , o s do i s m o v i m e n t o s d e t r anspos i¬

ç ã o e de d e p r e c i a ç ã o q u e c o s t u r a v a m a c r í t i ca f e u e r b a -

c h i a n a à t e o l o g i a . O q u e falta p a r a se a f i r m a r q u e a an¬

t r o p o l o g i a é a v e r d a d e da a l i e n a ç ã o r e l i g i o s a ? M a s e s s a

17. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 12[34], KSA, vol. 9, p. 582.

Page 46: Nietzsche -civilização e cultura

O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 15

i n t e r p r e t a ç ã o se r ia m u i t o a p r e s s a d a . Af ina l , por u m l a d o

o " i n s e n s a t o " se vê na o b r i g a ç ã o de a n u n c i a r a m o r t e de

D e u s a o s p r ó p r i o s a t eus , quer dizer, a o s f e u e r b a c h i a n o s .

Por ou t ro l ado , em OAnticristo, N i e t z s c h e a p r e s e n t a u m a

a v a l i a ç ã o da filosofia a l e m ã q u e l evan t a s u s p e i t a s q u a n t o

ao s e u p r o p a l a d o a t e í s m o . O s a c e r d o t e p r o t e s t a n t e é o

a v ô da filosofia a l e m ã - diz N i e t z s c h e -, e o p r o t e s t a n t i s -

mo é o p e c a d o o r ig ina l des sa filosofia. " B a s t a p r o n u n c i a r

a e x p r e s s ã o ' S e m i n á r i o de T ü b i n g e n ' p a r a s a b e r o q u e

é , no fundo, a filosofia a l e m ã : u m a t e o l o g i a i n s i d i o s a . " 1 8

I s so s ignif ica dizer que se N i e t z s c h e fosse r e e s c r e v e r , por

sua própr ia con ta , a h is tór ia da ideo log ia a l e m ã , ser ia para

classif icar F e u e r b a c h c o m o s e n d o a i n d a a p e n a s u m cris¬

tão a m a i s . A s s i m , para se c o m e ç a r a v i s l u m b r a r o signi¬

f icado do a n ú n c i o da m o r t e de D e u s , é p r e c i s o ver i f icar

c o m o a cr í t ica de F e u e r b a c h à t e o l o g i a p e r m a n e c i a p resa

às i l u s õ e s do o b j e t o c r i t i c ado . A o r i g i n a l i d a d e e a d imen¬

s ã o d o a t e í s m o d e N i e t z s c h e s ã o d a d o s s o b r e t u d o por

sua d is tância em face do " a t e í s m o " da filosofia a l emã , essa

" t e o l o g i a i n s i d i o s a " . Por i s so , v a l e a p e n a vo l t a r , por al¬

g u n s m o m e n t o s , aos t e x t o s d e F e u e r b a c h .

IV

A n a l i s e m o s c o m m a i s d e t a l h e s a idéia de que a an¬

t r o p o l o g i a é a v e r d a d e da t e o l o g i a . E c o m e c e m o s por r e -

t raduzi r e s sa p r o p o s i ç ã o no l éx i co das "Teses p r o v i s ó r i a s "

de F e u e r b a c h : d izer q u e a a n t r o p o l o g i a é a v e r d a d e da

t e o l o g i a é af i rmar que o h o m e m é a v e r d a d e de D e u s , que

18. Nietzsche, OAnticristo, § 10, KSA, vol. 6, p. 176.

Page 47: Nietzsche -civilização e cultura

16 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

o finito é a v e r d a d e do i n f i n i t o 1 9 . Todav i a , c o m o n o t a v a

G é r a r d L e b r u n , e m u m a a n á l i s e q u e m e r e c e ser a t e n t a ­

m e n t e s e g u i d a , a t r avés d e s s a s i dé i a s ser ia e r r ô n e o supo r

q u e a n o ç ã o de " in f in i to" se ja s i m p l e s m e n t e a n u l a d a . Se

a s s i m fosse , c o m o e n t e n d e r q u e F e u e r b a c h p o s s a gaba r -

se de unir as e s s ê n c i a s d iv ina e h u m a n a ? Se a part i r de

a g o r a a pa lavra " d i v i n o " deve ser p o s t a en t r e a s p a s , ser ia

a b s u r d o , no e n t a n t o , falar em " u n i f i c a ç ã o " , se o d iv ino , o

r e l i g i o s o , fosse pura e s i m p l e s m e n t e d i s s o l v i d o 2 0 . A l i á s ,

e m sua p o l ê m i c a c o m M a x S t i rne r , F e u e r b a c h s e d e f e n d e

e x a t a m e n t e da a c u s a ç ã o de ter feito essa d i s s o l u ç ã o : " M a s

eu n ã o d igo de forma a lguma . . . D e u s é nada, a T r i n d a d e é

nada, a fala de D e u s é nada, e tc . Eu a p e n a s m o s t r o que

e l e s não são o q u e s ã o na i l u s ã o da t e o l o g i a . " 2 1 A s s i m , o

"ser inf in i to" n ã o é a p e n a s u m a f icção que um crí t ico do

c r i s t i an i smo vola t i l izar ia , ao r e e n c o n t r a r as d e t e r m i n a ç õ e s

finitas que e s t ã o em sua o r i g e m . Da m e s m a forma, para o

p ro je to de F e u e r b a c h n ã o é su f i c i en te r e t raça r o c a m i n h o

da a l i e n a ç ã o , refazer a g ê n e s e das p r o p r i e d a d e s d iv inas a

par t i r do f in i to . O p r o j e t o e x i g e , a i n d a , q u e se d e s v e l e o

v e r d a d e i r o s e n t i d o que t i n h a a i n f in idade de D e u s . Por

i s so , para e s s e p r o j e t o n ã o b a s t a , de fo rma a l g u m a , des¬

t r o n a r D e u s e n q u a n t o p e r s o n a g e m de c o n t o de fadas . E

p r e c i s o d e t e r m i n a r , a inda , e m q u e s e n t i d o d e v e m o s in¬

t e r p r e t a r s e u s a t r i b u t o s , i s to é , sua " t o d a s u f i c i ê n c i a " ,

sua " toda p o t ê n c i a " , sua " toda b o n d a d e " . Q u e s t ã o q u e

19. Feuerbach, L., "Thèses provisoires pour la reforme de la phi-losophie", in Manifestes philosophiques, Paris, PUF, 1960, p. 111.

20. Lebrun, G., "La speculation travestie", in TRANS/FORM/AÇÃO, n? 1, Assis, 1974, p. 63.

21. Feuerbach, L., "Vessence du christianisme dans son rapport à Uunique et sa propriété", in Manifestes..., cit., p. 111.

Page 48: Nietzsche -civilização e cultura

O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 17

Feuerbach não deixava sem reposta: "Ele é infinito no sen­tido de que o gênero é infinito, não está limitado a um lu¬ gar, um tempo, um indivíduo, uma espécie... ele está aci¬ ma dos homens no mesmo sentido de que a cor está acima das cores, a humanidade acima dos homens. . . ele é o ser perfeito no sentido de que o gênero o é em relação aos in-divíduos.. ." 2 2

É apenas agora que começa a delinear-se a enverga¬ dura da trama toda: uma coisa é provar que o conteúdo do divino tinha a sua verdade apenas no finito; outra coisa é penetrar em sua significação e compreender qual é a ver­dadeira infinidade, a verdadeira ilimitação. É só então que se pode começar a vislumbrar o significado da "desmis-tificação" feuerbachiana, assim como o sentido de seu "ateísmo": o cristão e seu "crítico" compartilham do mes¬ mo ideal e, em vez de subversão do cristianismo, na ver¬ dade há ali apenas um des locamento , já que o infinito teológico só mudou de lugar, descendo do céu para a ter¬ ra. "O mistério da plenitude inesgotável das determina¬ ções divinas não é, portanto, nada diferente do misté¬ rio da essência humana, enquanto ela é infinitamente variada, infinitamente determinável, mas também, precisa¬ mente por essa razão, enquanto ser sensível. E somente na sensibil idade, no espaço e no tempo, que tem seu lugar um ser infinito, realmente infinito, rico em determina-ç õ e s . " 2 3 Assim, vai se determinando a tarefa daquela que será, para Feuerbach, a "verdadeira filosofia" - e também o sentido último daquele "material ismo" tão celebrado por Marx e Engels: "A tarefa da verdadeira filosofia é re¬ conhecer não o finito no infinito mas, ao contrário, o não-

22. Feuerbach, L., Uessence..., cit., pp. 446-7 .

23 . Feuerbach, L., Uessence..., cit., pp. 140 -1 .

Page 49: Nietzsche -civilização e cultura

18 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

finito, o inf ini to no finito; em o u t r o s t e r m o s , n ã o t r a n s p o r

o f in i to no in f in i to , m a s t r a n s p o r o in f in i to no f i n i t o . " 2 4

B e l a d e s m i s t i f i c a ç ã o ! Se a par t i r de a g o r a o inf ini to n ã o se

c h a m a m a i s D e u s o u Esp í r i to , m a s s im " g ê n e r o h u m a n o " ,

os a t o r e s m u d a r a m m a s n ã o os p e r s o n a g e n s , e o script

e s c r i t o há do i s mi l a n o s c o n t i n u a i n s p i r a n d o a n o v a no¬

ve la : é a " v e l h a t o u p e i r a " , dir ia N i e t z s c h e , q u e r e s s u r g e ,

m a i s u m a v e z , a t r á s d a n o v a m á s c a r a . C o m p r e e n d e - s e ,

a s s i m , q u e M a x S t i r n e r c o n s i d e r a s s e e s s e s a t e u s " h o m e n s

m u i t o p i e d o s o s " . Q u e F e u e r b a c h t e n h a l i b e r a d o o s é c u l o

X I X d a t e o l o g i a c láss ica , n ã o h á n e n h u m a dúvida . M a s q u e

e l e o t e n h a l i b e r a d o do c r i s t i a n i s m o , e s t a é o u t r a ques¬

t ão . As " a v a l i a ç õ e s " cr i s tãs p e r m a n e c e m d a n d o o t o m do

n o v o " inf in i to r e a l " - o g ê n e r o h u m a n o q u e s u b s t i t u i o

D e u s d o s f i lósofos e d o s c i e n t i s t a s . S o b e s s e â n g u l o , a

" a n t r o p o l o g i a " p a r e c e se r a ú l t i m a m e t a m o r f o s e da reli¬

g i ã o cr is tã , e p o d e - s e d ize r de F e u e r b a c h o q u e N i e t z s c h e

diz d o s l ivres p e n s a d o r e s e m geral , e s s e s j o v e n s h e g e l i a n o s

de e s q u e r d a : a Igre ja os r e p u g n a , m a s n ã o o s e u v e n e n o 2 5 .

Se o f i lósofo se a t r i bu i c o m o tarefa res t i tu i r à e s s ê n c i a di¬

v i n a o s e u " v e r d a d e i r o s e n t i d o " , é p o r q u e e s sa e s s ê n c i a

n ã o e s t a v a d e s t r u í d a , m a s a p e n a s t r ans f i gu rada e r e b a t i -

z a d a . P r o v a s u p l e m e n t a r , F e u e r b a c h n ã o s e c a n s a d e re¬

pe t i r q u e a d e s t r u i ç ã o do su je i to d o s p r e d i c a d o s d i v i n o s

n ã o s ignif ica j a m a i s a d e s t r u i ç ã o d e s s e s p r ó p r i o s predica¬

d o s : a m o r , j u s t i ç a , s a b e d o r i a s ã o t a n t o p r e d i c a d o s q u e

t ê m u m a s i g n i f i c a ç ã o p r ó p r i a e i n d e p e n d e n t e e q u e en¬

c o n t r a r ã o n o g ê n e r o h u m a n o o s e u v e r d a d e i r o s u j e i t o 2 6 .

24. Feuerbach, L., "Thèses provisoires pour la reforme de la phi-losophie", in Manifestes..., cit., p. 111.

25. Nietzsche, Genealogia da moral, cit., I, § 9, p. 33. 26. Feuerbach, L., Uessence..., cit., p. 139.

Page 50: Nietzsche -civilização e cultura

O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 19

Sendo assim, os antigos valores, avaliações e ideais permanecem vivos no "ateísmo" filosófico do século XIX. Desde então, não é surpreendente que seja aos ateus que se precise anunciar a morte de Deus. A Igreja os repugna, mas não o seu veneno e, sob o seu "ateísmo", é a velha ci­vilização cristã que permanece, já que, de Deus ao gêne¬ ro humano, apenas se rebatizou o divino. E isso permite que se comece a vislumbrar qual a dimensão do ateísmo de Nietzsche em face daquele da filosofia clássica alemã e o quanto essa filosofia pouco percebera sobre o verda¬ deiro significado da morte de Deus. Se este é o maior dos acontecimentos recentes, resta que ele "é grande de¬ mais, distante demais, demasiado à parte da capacidade de apreensão de muitos, para que sequer sua notícia pu¬ desse já chamar-se chegada: sem falar que muitos já sou¬ bessem o que propriamente se deu com isso - e tudo quanto, depois de solapada essa crença, tem agora de cair, porque estava edificado sobre ela, apoiado a ela, arraiga¬ do nela; por exemplo, toda a nossa moral européia" 2 7 . Assim, se a dimensão do acontecimento ainda não foi apreendida pelos europeus, é porque eles não se deram conta de que, com a morte de Deus, todos os valores e ideais de sua civilização perderam sua sustentação. Ateus semiconscientes , eles permanecem valorizando os valo¬ res do mundo cristão, sem perceber que a morte de Deus implica uma desvalorização de todos esses valores. To¬ dos são mais ou menos feuerbachianos, deslocam o di¬ vino para outra região, sem j a m a i s fazer a crítica do pró¬ prio ideal de divindade: a sua recusa da religião será ape¬ nas uma secularização do crist ianismo, como já o era a antropologia de Feuerbach. Por isso, como notava Lebrun,

27. Nietzsche, A gaia ciência, § 343, Obras incompletas, cit., p. 211.

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20 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃOE CULTURA

a verdadeira tópica da crítica à religião só entrará em cena quando estivermos certos de não pensar mais o infinito teológico sob nenhum disfarce, quando ficarmos segu¬ ros de não ter apenas mudado o nome do divino. Por não ter levado em conta essa tópica, o " a t e í smo" de Feuer-bach e de seus epígonos é passível de uma dupla censu¬ ra, e não é de forma alguma redundante avisá-los de que Deus morreu: 1) sua crítica à religião é apenas a transposição da essência divina para outra região; 2) ao manter todos os valores da antiga civilização, eles incor¬ rem no contra-senso de querer conservar a moral cristã sem o Deus que a sancionava. Assim, ainda não se re¬ nunciou ao "tu deves" da teologia quando se conservou o "dever" da moral que ela fundava. O princípio da von¬ tade, o "eu quero", só estará verdadeiramente liberado quando se levar em devida conta que a conseqüência da morte de Deus é a desvalorização de todos os valores; quando se tomar consciência plena, portanto, de que a conseqüência inevitável da morte de Deus é o advento do "niil ismo europeu".

Donde a amplitude da noção nietzschiana de "ateís-mo" , aquilo que constitui, por assim dizer, a sua tripla face. Essa "morte de D e u s " terá, cer tamente, o sentido tradicional de fim da validade da idéia de um ser transcen¬ dente, criador e origem, Deus da fé ou Deus dos filósofos e dos cientistas; mas ela significará também a recusa de todos os substitutos, mais ou menos disfarçados, do infi¬ nito teológico, todas as versões do "Ser genérico"; enfim, a morte de Deus será indissociável da desvalorização de todos os valores por ele sancionados. Mas se isso delimi¬ ta a amplitude do território desse ateísmo, ainda não se disse palavra sobre os seus motivos. Afinal, por que Deus morreu? E quais são as razões que legitimam a singulari-

Page 52: Nietzsche -civilização e cultura

O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 21

dade desse "ateísmo" de Nietzsche em face dos seus ho­mônimos da tradição, a supressão de todos os substitu¬ tos mundanos do infinito teológico, assim como a desva¬ lorização de todos os valores? E preciso perguntar, antes de mais nada, o que significa - e o que legaliza - o ad¬ vento do "niilismo europeu".

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Page 54: Nietzsche -civilização e cultura

C A P Í T U L O II

O NIILISMO E U R O P E U

I

Se a conseqüência da morte de Deus é a irrupção do "niilismo", quem é, exatamente, esse "mais sinistro de to¬ dos os hóspedes"? "Que significa niilismo? Que os valo­res supremos se desvalorizaram. Falta o fim; falta a resposta ao porquê . " 1 Ten temos explicitar um pouco o sentido dessa resposta demasiadamente sucinta. Os valores su¬ premos, a cujo serviço o homem consagrava a sua vida, foram criados, enquanto valores sociais, para o fortaleci¬ mento do homem. Enquanto tais, eles eram considerados como mandamentos de Deus, como "realidades", como mundos "verdadeiros", como esperança e vida futuras. Hoje, em regime de niilismo mais ou menos consciente, o universo nos parece desvalorizado, "carente de senti¬ do". E, para Nietzsche, o "pessimismo" de Schopenhauer era a expressão filosófica desse desalento: se os valores se desvalorizam, é a nossa "existência" que também perde o

1. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[35], KSA, vol. 12, p. 350.

Page 55: Nietzsche -civilização e cultura

24 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

s e u va lo r . E m a l g u n s f r a g m e n t o s p ó s t u m o s , N i e t z s c h e

d i rá q u e o n i i l i s m o , e n q u a n t o " e s t a d o p s i c o l ó g i c o " , faz

s e u a p a r e c i m e n t o e m t r ê s s i t u a ç õ e s 2 . E m p r i m e i r o lugar ,

q u a n d o s e t iver b u s c a d o u m " s e n t i d o " e m t u d o o q u e

o c o r r e , s e n t i d o q u e n ã o s e e n c o n t r a ali , a t é o p o n t o em

q u e a q u e l e q u e o b u s c a v a t e r m i n a p o r a b a t e r - s e . O n i i -

l i s m o é a to r tu ra d e s s e " e m v ã o " . E s s e s e n t i d o p o d e r i a se r

o c u m p r i m e n t o de um c â n o n e é t i c o s u p e r i o r em t u d o o

q u e o c o r r e , o u a r e a l i z a ç ã o , m e s m o parc ia l , d e u m e s t a d o

d e f e l i c idade u n i v e r s a l . U m fim, q u a l q u e r q u e seja e l e ,

s e r v e p a r a da r s e n t i d o à s c o i s a s ; m a s o v i r - a - s e r n ã o pa¬

r e c e r ea l i za r fim a l g u m . A g o r a , o n i i l i s m o é a d e c o r r ê n c i a

d a d e c e p ç ã o q u a n t o a u m a s u p o s t a f i na l idade d o v i r - a -

ser . E as f i losofias da h i s tó r i a , q u e de K a n t a H e g e l f azem

da Weltgeschichte a r e a l i z a ç ã o da idé ia m o r a l , d o r a v a n t e só

p o d e m se r v i s t a s c o m o c o n t o s d e fadas . E m s e g u n d o lu¬

gar, o n i i l i s m o faz s u a i r r u p ç ã o q u a n d o o h o m e m , q u e se

a c r e d i t a v a pa r t e d e u m t o d o o r g a n i z a d o , u m t o d o e m q u e

i m p e r a v a u m a u n i d a d e , e m q u e e l e s e s e n t i a e m c o n e x ã o

p ro funda c o m e s s e t o d o q u e l he é i n f i n i t a m e n t e super io r ,

e m q u e e l e e ra u m m o d o d a d i v i n d a d e , d e s c o b r e q u e n ã o

e x i s t e s e m e l h a n t e t o t a l i d a d e . A g o r a o h o m e m p e r d e a

c r e n ç a e m s e u p r ó p r i o va lo r , v i s t o q u e a t r a v é s d e l e n ã o

a t u a n e n h u m t o d o i n f i n i t a m e n t e v a l i o s o . O n i i l i s m o , en¬

q u a n t o e s t a d o p s i c o l ó g i c o , te rá a i n d a u m a te rce i ra e ú l t i m a

fo rma . D a d o o r e c o n h e c i m e n t o de q u e n e n h u m a finalida¬

de e n e n h u m a g r a n d e u n i d a d e p r e s i d e m o m u n d o do vir-

a-ser , r e s t a a e s c a p a t ó r i a d e c o n d e n a r e s s e m u n d o c o m o

i l u só r io e a c r e d i t a r e m u m m u n d o q u e e s t e j a p a r a a l é m

d e l e . M a s q u a n d o s e d e s c o b r e q u e e s s e m u n d o m e t a f í s i -

2. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [99], KSA, vol. 13, p. 380, e

Obras incompletas, cit., p. 380.

Page 56: Nietzsche -civilização e cultura

O NIILISMO EUROPEU 25

co foi p u r a e s i m p l e s m e n t e i n v e n t a d o , e n t ã o s u r g e a últi¬

m a f o r m a d o n i i l i s m o , q u e e n v o l v e a d e s c r e n ç a e m u m

m u n d o m e t a f í s i c o . A g o r a , a d m i t e - s e o v i r - a - s e r c o m o

ú n i c a r e a l i d a d e , n ã o s e t r i l h a m m a i s o s c a m i n h o s q u e le¬

v a m a o s u l t r a m u n d o s e à s falsas d i v i n d a d e s , m a s n ã o s e

s u p o r t a e s s e m u n d o d o v i r -a - se r , q u e n i n g u é m m a i s p o d e

n e g a r . O q u e p e n s a r d e s s a s t rês f iguras do " n i i l i s m o " ?

A t e r ce i r a e ú l t i m a f igura do n i i l i s m o é a m a i s abran¬

g e n t e de t o d a s e t raz c o n s i g o a v e r d a d e d a s d u a s p r imei¬

r a s . Em p r i m e i r o lugar , é a f igura m a i s a b r a n g e n t e : e l a

d e s i g n a a c o n d e n a ç ã o d o m u n d o d o v i r - a - s e r c o m o u m

t o d o , e n q u a n t o a s o u t r a s f iguras s i g n i f i c a m se ja u m a

c o n d e n a ç ã o d o " p r o c e s s o " , se j a u m a d e s v a l o r i z a ç ã o d o

" h o m e m " . Em s e g u n d o lugar , e la é a v e r d a d e d a s o u t r a s

f iguras , já q u e as d e m a i s t a c i t a m e n t e a s u p õ e m . A pri¬

m e i r a figura a s u p õ e e n q u a n t o d e c e p ç ã o e m face d e u m a

s u p o s t a f i na l idade do v i r - a - s e r . Af ina l , é a u m a t r a n s c e n ¬

d ê n c i a d iv ina q u e d e v e m o s a m a n i a de p e r g u n t a r - n o s pe l a

f ina l idade d o s p r o c e s s o s . " A p e r g u n t a d o n i i l i s m o , ' p a r a

quê?', v e m d o h á b i t o q u e h o u v e a té ago ra , e m v i r t ude d o

q u a l o a lvo p a r e c i a p o s t o , d a d o , e x i g i d o de fora - ou seja ,

p o r a l g u m a autoridade sobre-humana." A s e g u n d a figura

d o n i i l i s m o t a m b é m s u p õ e a terce i ra , a s s im c o m o u m t o d o

o r g a n i z a d o s u p õ e um o r g a n i z a d o r . Po r i s s o , em Pasca l a

i n c e r t e z a c o s m o l ó g i c a o r i u n d a do fim do g e o c e n t r i s m o , o

" s i l ê n c i o d o s e s p a ç o s i n f i n i t o s " , s ó e n c o n t r a v a s u a cu ra

na c e r t e z a o b t i d a p e l a fé. " S e m a fé c r i s tã , p e n s a v a Pas¬

ca l , s e r e i s p a r a v ó s m e s m o s c o m o a n a t u r e z a e a h i s tó r ia ,

um m o n s t r o e um c a o s . N ó s cumprimos e s t a p r o f e c i a . " 4

S e n d o a s s i m , a t e r ce i r a figura do n i i l i s m o r e s u m e t o d a s

3. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[43], KSA, vol. 12, p. 355, e Obras incompletas, cit., p. 382.

4. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[182], KSA, vol. 12, p. 445.

Page 57: Nietzsche -civilização e cultura

26 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

as d e m a i s e traz c o n s i g o a v e r d a d e des tas , e por isso n ã o é

à toa q u e N i e t z s c h e a c h a m a de " forma s u p r e m a do n i i -

l i s m o " . D o n d e a o r i g e m d o n i i l i s m o n a n e g a ç ã o d o D e u s

t r a n s c e n d e n t e e a c o r r e l a ç ã o e n t r e a m o r t e de D e u s e a

d e s v a l o r i z a ç ã o d e t o d o s o s v a l o r e s .

Fo i essa c o r r e l a ç ã o , e x a t a m e n t e , que o s e u r o p e u s n ã o

p e r c e b e r a m e , po r i s so , n ã o a t i n a r a m c o m a d i m e n s ã o e

a n o v i d a d e da m o r t e de D e u s . M a s t a m b é m é p r e c i s o re¬

c o n h e c e r que o s " e u r o p e u s " s ã o d e s c u l p á v e i s por essa

s u p o s t a m i o p i a : afinal, à p r i m e i r a v i s t a e s sa " c o r r e l a ç ã o "

n ã o é t ão c la ra q u a n t o se p a r e c e supor . Por que , exata¬

m e n t e , a m o r t e de D e u s d e v e implicar a d e s v a l o r i z a ç ã o

dos v a l o r e s ? N i e t z s c h e p a r e c e e s t a b e l e c e r en t r e o s dois

e v e n t o s u m a r e l a ç ã o d e p r e m i s s a a c o n c l u s ã o : " Q u e in­

g e n u i d a d e ! C o m o se s u b s i s t i s s e a m o r a l q u a n d o falta um

D e u s que a s a n c i o n e ! Um além é a b s o l u t a m e n t e n e c e s ¬

sá r io , q u a n d o se quer c o n s e r v a r s i n c e r a m e n t e a fé na m o -

r a l . " 5 M a s e s sa r e l a ç ã o d e f u n d a m e n t o a c o n s e q ü ê n c i a

n ã o é t ão c lara e i m e d i a t a a s s i m , p e l o m e n o s para q u e m

leva em c o n t a a h i s tó r i a da filosofia. Q u e seja p r e c i s o ter

a ce r t eza t eó r i ca da ex i s t ênc i a de D e u s para que os va lo r e s

m o r a i s s e j a m v a l i d a d o s , es ta é , s e m dúvida , u m a evidên¬

cia i m e d i a t a para o t o m i s m o : ali só há " b e m " refer ido ao

B e m S u p r e m o ou, c o m o diria N i e t z s c h e , n ã o h á va lo r s e m

u m a i n s t â n c i a l e g i s l a d o r a q u e o p e r a d o ex ter ior . A s s i m ,

S ã o T o m á s e s t i pu l a r á q u e D e u s , c o m o pe r f e i ção d e t o d a s

as pe r fe ições , é o B e m de t o d o s os b e n s , e tudo o m a i s será

di to " b o m " por p a r t i c i p a ç ã o , que r dizer, por ter s e m e ¬

l h a n ç a c o m a b o n d a d e d iv ina . T o d o b e m , e n q u a n t o a p e -

t e c í v e l , o r i e n t a - s e t e l e o l o g i c a m e n t e a o B e m s u p r e m o ; e

c o m o o s u p r e m o , em q u a l q u e r g ê n e r o , é c a u s a de t u d o o

q u e es tá c o m p r e e n d i d o n e l e , o B e m s u p r e m o é o fun-

5. Nietzsche, Fragmentos póstumos, KSA, 2[165], vol. 12, p. 147.

Page 58: Nietzsche -civilização e cultura

O NIILISMO EUROPEU 27

damento dos bens 1 . Assim, São Tomás concordaria com Nietzsche: a morte de Deus traduz-se imediatamente na desvalorização dos valores, já que a certeza na existência do Bem supremo é a condição da certeza relativa aos va¬ lores morais.

Todavia, se o teólogo concorda com o diagnóstico de Nietzsche e aceita que a certeza da existência de Deus é o suporte da moral, isso só nos permite compreender a lógica da teologia e nos indicaria apenas o quanto Nietz-sche permaneceu preso a ela. Em outras palavras, se a cor¬ relação entre a morte de Deus e a desvalorização dos va¬ lores é convincente para o tomista, é porque ela apenas reafirma seus pressupostos. Essa correlação não seria con¬ vincente, por exemplo, para o leitor de Kant, e no limite só exprimiria a evidência de que quem a formula não me¬ ditou o suficiente sobre a Crítica da razão pura. Afinal, se ali se proibia todo e qualquer conhecimento teórico sobre a existência de Deus, isso não fazia de Kant um fanfarrão do niilismo, nem tornava a Crítica da razão prática um exemplo gritante de inconsistência na filosofia. Dúvida que não deixou de ser insinuada por Victor Goldschmidt. "Por que - pergunta ele -, se Deus estivesse morto, tudo seria permitido? Para acreditá-lo (e desejá-lo) , é preciso nunca ter compreendido a Crítica da razão prática..." Mas não deixa de ser fácil imaginar a resposta de Nietzsche à objeção. Ele poderia muito bem relembrar que Deus, eli¬ minado do conhec imento teórico pela primeira Crítica, permanece como um "postulado" da razão prática, algo que o agente sempre deve supor para realizar a lei moral.

6. São Tomás, Suma contra los gentiles, Madri, BAC, 1967, caps. 40-41.

7. Goldschmidt, V., Platonisme etpensée contemporaine, Paris, Au-bier, 1970, p. 257.

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28 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

Exc lu ído d o d o m í n i o d o c o n h e c i m e n t o t eó r i co , D e u s s u b ­

siste e n q u a n t o " idea l" - e o ideal t r a n s c e n d e n t a l , não sen¬

do o b j e t o de c o n h e c i m e n t o t e ó r i c o , n e m por i sso de ixa de

ter u m a "s ign i f i cação" . E l i m i n e m o s os pos tu l ados da r azão

prá t ica , diria N i e t z s c h e , e v e j a m o s e n t ã o o q u e a c o n t e c e

c o m a mora l ; e l i m i n e m o s até m e s m o a " s ign i f i cação" D e u s

e v e r i f i q u e m o s o q u e r e s t a do i m p e r a t i v o c a t e g ó r i c o . . .

E s t a r í a m o s a p t o s a g o r a a c o m p r e e n d e r a c o r r e l a ç ã o

e n t r e a m o r t e de D e u s e a d e s v a l o r i z a ç ã o d o s v a l o r e s ?

A i n d a n ã o . C o n c e d a m o s t u d o a N i e t z s c h e : o D e u s clássi¬

c o n ã o figura m a i s e m n o s s o h o r i z o n t e n e m c o m o exis¬

t ênc ia d e m o n s t r a d a , n e m c o m o s ignif icação o u p o s t u l a d o .

N e m a s s i m o n i i l i s m o p a r e c e ser a c o n s e q ü ê n c i a neces sá¬

ria da m o r t e de D e u s . E , para p e r c e b ê - l o , b a s t a c o n s u l t a r

Sa r t r e . Afinal , se Sa r t r e s i tua o " p o n t o de par t ida" do ex i s -

t e n c i a l i s m o na e v i d ê n c i a de q u e "se D e u s n ã o ex i s t e , en¬

tão tudo é p e r m i t i d o " , é para concluir , a p a r e n t e m e n t e c o m

N i e t z s c h e , q u e c o m a m o r t e d e D e u s "não e n c o n t r a m o s ,

d i an t e de n ó s , v a l o r e s ou i m p o s i ç õ e s que n o s l e g i t i m e m o

c o m p o r t a m e n t o " 8 . A s s i m , e m r e g i m e d e m o r t e d e D e u s

n ã o h a v e r á m a i s lugar para o esprit de séríeux, a q u e l e q u e

c o n s i d e r a o s v a l o r e s c o m o d a d o s t r a n s c e n d e n t e s , inde¬

p e n d e n t e s d a s u b j e t i v i d a d e h u m a n a 9 . M a s i sso significa¬

ria q u e o e x i s t e n c i a l i s m o é um n i i l i s m o ? De fo rma algu¬

m a . E o e x i s t e n c i a l i s t a p o d e r á " ju lga r m o r a l m e n t e " as

a ç õ e s h u m a n a s , a v a l i a n d o q u e " c e r t a s e s c o l h a s s ã o fun¬

d a d a s no e r ro , e ou t r a s , na v e r d a d e " 1 0 . E , de fato, por q u e

a m o r t e de D e u s exclu i r ia u m a a v a l i a ç ã o m o r a l fundada

na v e r d a d e e no e r ro , que r dizer, na r a z ã o h u m a n a ? N ã o

8. Sartre, J.-P., O existencialismo é um humanismo, Lisboa, Edito­rial Presença, 1964, p. 253.

9. Sartre, J.-P., Vêtre et lenéant, Paris, Gallimard, 1943, p. 674. 10. Sartre, J.-P., O existencialismo... , cit., p. 285.

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O NIILISMO EUROPEU g

há n e n h u m a i n c o e r ê n c i a em O ser e o nada f indar-se c o m

a p r o m e s s a de u m a o b r a s o b r e a m o r a l . E, se é a s s i m , a

c o r r e l a ç ã o q u e N i e t z s c h e e s t a b e l e c e en t r e a t e í s m o e n i i -

l i s m o n ã o ser ia i n t e i r a m e n t e g r a t u i t a ? Ou e n t ã o o q u e ,

afinal, lhe p e r m i t e afirmar essa c o r r e l a ç ã o ? T e n t e m o s elu¬

c idar i s so , a n t e s de a p r e s s a d a m e n t e c e n s u r á - l o por dei¬

x a r - s e p e g a r e m f lagran te de l i to d e i n c o n s e q ü ê n c i a .

II

C o n v é m i n s t a l a r a p e r g u n t a s o b r e a r e l a ç ã o e n t r e a

m o r t e de D e u s e o a d v e n t o do n i i l i s m o no i n t e r i o r da

"His tó r i a de um e r r o " , que N i e t z s c h e narra no Crepúsculo

dos ídolos". A l i , o D e u s c r i s t ã o en t ra em c e n a r e p r e s e n -

11. Nietzsche, "A razão na filosofia", Crepúsculo dos ídolos, Obras incompletas, pp. 332-3. "História de um erro":

1. O verdadeiro mundo, alcançável ao sábio, ao devoto, ao vir­tuoso - eles vivem nele, são ele. (Forma mais antiga da Idéia, relativamente esperta, singela, con­vincente. Transcrição da proposição "eu, Platão, sou a verdade".)

2. O verdadeiro mundo, inalcançável por ora, mas prometido ao sábio, ao devoto, ao virtuoso ("ao pecador que faz penitência"). (Progresso da Idéia: ela se torna mais refinada, mais cativante, mais impalpável - ela vira mulher, ela se torna cristã...)

3. O verdadeiro mundo, inalcançável, indemonstrável, impro-metível, mas já, ao ser pensado, um consolo, uma obrigação, um imperativo. (O velho sol ao fundo, mas através de neblina e skepsis: a Idéia tornada sublime, desbotada, nórdica, kõnigsberguiana.)

4. O verdadeiro mundo - inalcançável? Em todo caso, inalcança-do. E como inalcançado também desconhecido. Conseqüente¬ mente, também não consolador, redentor, obrigatório: a que poderia algo desconhecido nos obrigar?... (Cinzenta manhã. Primeiro bocejo da razão. Canta o galo do posi­tivismo.)

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30 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

t a n d o a p e n a s u m d o s c a p í t u l o s d a h i s t ó r i a d o "verdadei¬

ro m u n d o " , u m a h i s t ó r i a q u e se in ic ia c o m P l a t ã o . O cris¬

t i a n i s m o é a p r e s e n t a d o c o m o u m a das p e l e s c o m a s qua i s

a s e r p e n t e p l a t ô n i c a se r eves t iu , e p o r i s so N i e t z s c h e dirá,

a l h u r e s , q u e o c r i s t i a n i s m o é " p l a t o n i s m o pa ra o p o v o " . A

" m o r t e d e D e u s " é , a s s i m , u m e s t á g i o d a m o r t e d o p l a t o -

n i s m o , e é p o r t a n t o n e s s a r u b r i c a do fim do p l a t o n i s m o

q u e se d e v e p r o c u r a r a o r i g e m da " d e s v a l o r i z a ç ã o d o s va¬

l o r e s " . E , se é a s s i m , v a l e a p e n a r e t o m a r a l g u n s a s p e c t o s

d o p r o c e s s o d e N i e t z s c h e c o n t r a P l a t ã o , q u e é a n t e s d e

t u d o a figura m a i s s o l e n e de sua c r í t i ca ao " d o g m a t i s m o "

f i losóf ico - em um s e n t i d o em q u e o p r ó p r i o K a n t s e r á

um d o g m á t i c o a m a i s .

A n a l i s a n d o a filosofia an t iga , G o l d s c h m i d t af i rma q u e

d e s d e "a s u a a u r o r a a c i ê n c i a g r e g a p r o c u r o u p r o t e g e r o

c o n h e c i m e n t o c o n t r a a d i s p e r s ã o , a h e s i t a ç ã o e o e r r o , e

p r o c u r o u a s s e g u r a r - l h e um o b j e t o um no s e io da mult ipl i¬

cidade das coisas , estável através da mudança , real por trás

d e s u a a p a r ê n c i a " 1 2 . P a r a u m o l h a r n i e t z s c h i a n o , e s s a é

u m a a p r e s e n t a ç ã o n o t á v e l do leitmotiv d a f i losof ia gre¬

ga : a e x c l u s ã o de H e r á c l i t o d e s s e t i p o i d e a l da f i losof ia

5. O "verdadeiro" mundo - uma Idéia que não é útil para mais nada, que não é mais nem sequer obrigatória, uma Idéia que se tornou inútil, supérflua, conseqüentemente uma Idéia refuta¬ da: expulsemo-la! (Dia claro; café da manhã; retorno do bon sens e da serenidade; rubor de vergonha em Platão; alarido dos demônios em todos os es­píritos livres.)

6. O verdadeiro mundo, nós o expulsamos: que mundo resta? o aparente, talvez? ... Mas não! Com o verdadeiro mundo expulsa­mos também o aparente! (Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais longo erro;

ponto alto da humanidade; INCIP1T ZARATHUSTRA.)

12. Goldschmidt, V., A religião de Platão, São Paulo, Difel, 1963, p. 19.

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O NIILISMO EUROPEU 31

grega, o mutismo quanto ao vir-a-ser, marca bem o que será o platonismo e o quanto ele domina esse arquétipo do "grego" forjado por Goldschmidt . O platonismo será, antes de tudo, a identificação do verdadeiro ao estável, do vir-a-ser à aparência. Ele será a radicalização daquilo que Goldschmidt descreve como o modelo do "grego", e que para Nietzsche desenhará o perfil de sua "decadência": as formas são o "ser verdadeiro" 1 3 , elas constituem o "verda¬ deiro mundo" . Radicalização e preparação do cristianis¬ mo: as formas são incorporais e invisíveis, logo, consu¬ ma-se a separação entre o "material" e o "espiritual". Como as formas são o "verdadeiro ser", a ordem material é desacreditada em bloco, a matéria é despojada de razão e de realidade, realidade que se concentra inteiramente nas formas invisíveis, que se deixam imitar ou "partici¬ par": o mundo sensível, enquanto mundo do vir-a-ser, re¬ cebe então a alcunha de "aparência" de uma realidade que não se confunde com ele e está além dele. Se Platão diz que as formas são "reais", é porque elas são eternamen¬ te o que são, porque cada uma delas permanece idêntica a si mesma - porque é "real" o que exclui o vir-a-ser. Por outro lado, as formas também reduzem o múltiplo à uni¬ dade, a alteridade ao mesmo: há uma infinidade de coi¬ sas belas, mas uma só forma do belo, da qual as coisas belas "participam". E o último ato do platonismo já pre¬ parava o primeiro da comédia cristã. Se a forma é "divi¬ na, imortal, inteligível" 1 4 , a multiplicidade das diferentes formas é unificada no "Bem", forma suprema, causa pri¬ meira que dá "existência e essência" às formas inferiores 1 5.

13. Platão, Fedão, 66 C-5, Oeuvres completes, Gallimard, Pléiade,

vol. I, p . 778.

14. Platão, Fédon, 80b, Oeuvres..., cit., p. 799. 15. Platão, República, VI, 509b, Oeuvres..., cit., p. 1098.

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32 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

Desde então, o sábio platônico, ao contrário do "amante de espetáculos" , deve desviar sua investigação da apa­rência para a real idade, da mudança para a estabilida¬ de, da multiplicidade para a unidade, passando do vir-a-ser ao ser.

É esse platonismo, compreendido estri tamente em função da doutrina das formas ou idéias, que para Nietz-sche alonga-se nas metamorfoses do "verdadeiro mundo". Na "História de um erro", esse "verdadeiro mundo" pro¬ longa-se no "além" do cristianismo, nos postulados da ra¬ zão prática de Kant, no incognoscível do positivismo, até a sua supressão. O Deus cristão é apenas uma de suas más¬ caras e a "morte de Deus" deve ser compreendida, antes de tudo, como o fim do "verdadeiro mundo" instituído por Pla tão. Em vários textos, Nietzsche define sua filosofia a partir da idéia de uma "inversão do p la tonismo" . Desde então, é daqui que se precisa partir para compreender a relação entre a morte de Deus e a desvalorização dos va¬ lores. Mas o que significa, exatamente, "inverter" o plato-nismo? Não significa, de forma alguma, colocar o platonis-mo "sobre os seus pés", como um famoso ortopedista ale¬ mão pensou em fazer com a dialética hegel iana. Se fosse apenas isso, o ganho seria bem magro: enquanto Platão valorizava o supra-sensível e desvalorizava o mundo sen¬ sível, Nietzsche faria apenas uma mudança de sinal, man¬ tendo uma hierarquia que já é platônica. A "História de um erro" anuncia o processo no curso do qual o supra-sensí-vel, promovido por Platão a "verdadeiro mundo", foi não apenas destronado de seu cargo supremo e rebaixado na hierarquia, mas sim posto no irreal. "A oposição entre o mundo-aparência e o mundo-verdade - diz Nietzsche -se reduz à oposição entre o mundo e nada." 1 6 Assim, "in-

16. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[185], KSA, vol. 13, p. 371.

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O NIILISMO EUROPEU 33

v e r t e r " o p l a t o n i s m o n ã o é i n v e r t e r a h i e r a r q u i a p l a t ô n i c a

e d e c l a r a r a m o r a o m u n d o s e n s í v e l . M a s , e n t ã o , i n v e r t e r

o p l a t o n i s m o ser ia r e c u s a r o d u a l i s m o o n t o l ó g i c o ? Se de¬

c a p i t a m o s o "ve rdade i ro m u n d o " , s o b r a o m u n d o - a p a r ê n -

c ia , e t a l v e z p e r m a n e ç a m o s p l a t ô n i c o s d e s g o s t o s o s , p o r

n ã o t e r m o s m a i s o m u n d o idea l . A "Hi s tó r i a de um e r r o " ,

e m s e u ú l t i m o a t o , t a m b é m afasta e s sa p o s s i b i l i d a d e : c o m

o fim do s u p r a - s e n s í v e l , e l i m i n o u - s e também o m u n d o

" a p a r e n t e " , q u e s ó m e r e c e e s s a q u a l i f i c a ç ã o c o m o con¬

t r a p o s i ç ã o ao m u n d o " v e r d a d e i r o " . M a s o q u e se q u e r de¬

s i g n a r c o m e s s e " m u n d o " q u e r e s t a a p ó s o fim do "ver¬

d a d e i r o m u n d o " , e q u e n ã o é m a i s o m u n d o - a p a r ê n c i a

de um p l a t ô n i c o in fe l i z? Q u a l é, e x a t a m e n t e , o a lvo e o

r e s u l t a d o d o p r o c e s s o n i e t z s c h i a n o c o n t r a P l a t ã o ?

No prefácio a Para além do bem e do mal, P la tão é cen¬

s u r a d o po r se r o r e s p o n s á v e l pe la i n t r o d u ç ã o do " d o g m a -

t i s m o " na filosofia. O s e u p io r e r ro te r ia s ido um e r ro tipi¬

c a m e n t e d o g m á t i c o : a i n v e n ç ã o do esp í r i to p u r o e do B e m

em s i 1 7 . O q u e é o " d o g m a t i s m o " pa ra N i e t z s c h e ? A l g o

m u i t o d i fe ren te do q u e s ign i f icava pa ra K a n t , q u e o iden¬

t i f icava a o d e s c o n h e c i m e n t o d o s l i m i t e s d a r a z ã o . P a r a

N i e t z s c h e , o f i lósofo " d o g m á t i c o " é a q u e l e q u e e s t a b e l e ¬

ce u m a d e t e r m i n a d a r e l a ç ã o c o m a v e r d a d e . O " d o g m a -

t i s m o " é a p r e t e n s ã o à u n i v e r s a l i d a d e da v e r d a d e , e o s e u

o p o s t o i m e d i a t o s e r á o "f i lósofo d o fu turo" . E s t e , m e s m o

s e n d o " a m i g o d a v e r d a d e " , c e r t a m e n t e n ã o s e r á d o g m á ¬

t i co , v i s t o q u e " seu o r g u l h o , a s s i m c o m o s e u g o s t o , s e in¬

surg i rá e m face d a idé ia d e q u e s u a v e r d a d e d e v a se r u m a

v e r d a d e p a r a t o d o s , o q u e , a té aqu i , foi s e c r e t a m e n t e o de¬

se jo e o p e n s a m e n t o r e s e r v a d o de t o d a s as v i s a d a s d o g -

m á t i c a s " 1 8 . A s s i m , s e P l a t ã o é c e n s u r a d o , n ã o é p e l a d u -

17. Nietzsche, Para além do bem e do mal, Prefácio, K S A vol. 5, p. 12.

18. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 43, KSA, vol. 5, p. 60.

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34 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

plicação ontológica do mundo, mas por aquilo que o con­duzia a essa duplicação, o páthos universalista que o levava a buscar verdades válidas para todos. Era o dogmatismo, assim interpretado, que levava Platão ao essencial ismo, à obsessão pela rubrica "em s i" . Assim, enquanto Platão discorria em tom definitivo sobre o "Bem em si", o discur¬ so do filósofo do futuro será muito diferente; ele dirá que "é preciso desfazer-se desse mau gosto: querer pôr-se de acordo com o grande número. 'Bem' não significa mais bem na boca do vizinho. E como haveria um 'bem co¬ mum'? A expressão envolve uma contradição: o que pode ser comum sempre tem pouco valor" 1 9 .

Isso permite entrever onde estará o centro da "inver¬ são do pla tonismo" proposta por Nietzsche e qual era a démarche de Platão que mais o irritava. Ela estava na cer¬ teza de que a filosofia é capaz de trazer a unanimidade, de estabelecer verdades válidas para todos. O dogmatismo é isso: a convicção de que um dia as polêmicas vão termi¬ nar, e que enfim a filosofia chegará à "unanimidade". E se existe a certeza do fim da polêmica, é porque estamos seguros de que chegaremos a verdades universais, válidas para todos, já que existem essências às quais a dialética,

infalivelmente, nos conduzirá, momento solene em que, enfim, obteremos a definição do "em si". O que é o dog-mat ismo? Antes de tudo, uma confiança cega na palavri¬

nha "razão", acompanhada da certeza acrítica de que existem "essências" às quais nossa razão não deixará de nos conduzir, permitindo que possamos circunscrever definitivamente territórios como o "justo", o "bem", o "belo".. . E isso já começa a indicar onde se localiza uma das raízes do antiplatonismo de Nietzsche: em uma des¬ confiança em face da razão e da verdade, no sentido clás-

19. Nie tzsche , Para além do bem e do mal, § 4 3 , K S A , vol. 5, p. 60 .

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O NIILISMO EUROPEU 35

s ico da pa lavra . É a e s sa s u s p e i t a con t r a a r a z ã o q u e se

p r ec i s a dirigir a a t e n ç ã o , para expl ic i ta r o s e n t i d o e o ad¬

v e n t o d o " n i i l i s m o e u r o p e u "

III

A d e s c o n f i a n ç a de N i e t z s c h e em face da " r a z ã o " e da

" v e r d a d e " já v i n h a à t o n a no a n o de 1 8 7 3 , em Sobre ver­

dade e mentira no sentido extra-moral, texto que, como ele

m e s m o confessa em Humano, demasiado humano, foi es¬

cri to s o b o i m p a c t o do n i i l i smo . A l i já se a p o n t a v a o "quão

l a m e n t á v e l , q u ã o f a n t a s m a g ó r i c o e fugaz, q u ã o s e m fina­

l i dade e g ra tu i to fica o i n t e l e c t o h u m a n o d e n t r o da n a t u -

r e z a " 2 0 . S e m f i n a l i d a d e ? N a v e r d a d e , c o m u m a finalida¬

d e b e m m e s q u i n h a : N i e t z s c h e a p r e s e n t a o i n t e l ec to c o m o

" u m m e i o pa ra a c o n s e r v a ç ã o do i n d i v í d u o " , m a s c o m a

r e s s a l v a de q u e ele só t e m e s sa s e r v e n t i a para os indiví¬

d u o s " f racos" . P io r a inda , e s se i n t e l e c t o , r e d u z i d o a ins¬

t r u m e n t o d e c o n s e r v a ç ã o d a e s p é c i e , e s tá l o n g e d e ter

c o m p r o m i s s o s c o m a v e r d a d e , e o " c o n h e c i m e n t o " é apre¬

s e n t a d o ali c o m o u m i n s t r u m e n t o que s ó d e s d o b r a s u a s

fo rças m e s t r a s "no d i s f a r c e " . E s s a en fá t i ca d e s q u a l i f i c a -

ção da noção clássica de razão é r e tomada em A gaia ciên¬

cia. N ã o t e m o s , diz N i e t z s c h e ali, " n e n h u m ó r g ã o para o

c o n h e c e r , para a ' v e r d a d e ' ; ' s a b e m o s ' (ou a c r e d i t a m o s ou

i m a g i n a m o s ) p r e c i s a m e n t e o t a n t o que , no i n t e r e s s e do

r e b a n h o h u m a n o , da e s p é c i e , p o d e ser útil; e a té m e s m o

o q u e aqu i é d e n o m i n a d o ' u t i l i d a d e ' é , por ú l t i m o , sim¬

p l e s m e n t e u m a c rença , u m a i m a g i n a ç ã o . . . " 2 1 . O n d e s e ori¬

g ina essa d e s c o n f i a n ç a em face da r a z ã o ?

20. Nietzsche, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, Obras incompletas, cit., p. 45.

21. Nietzsche, A gaia ciência, § 354, Obras incompletas, cit., p. 218.

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36 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

Por um lado, não faltam textos em que Nietzsche su¬ gere que a confiança na razão permanece tributária da crença em um Deus veraz. É assim, por exemplo, quando ele afirma que a suposição de que "a razão humana está justificada é a suposição de um caráter honrado e fiel, a con¬ seqüência da fé na veracidade divina, da idéia de um Deus criador de todas as co isas" 2 2 . Tese que um cartesiano sem­pre subscreveria: só se consegue legitimar a razão huma¬ na através da garantia metafísica do Deus veraz e, desde então, o ateísmo é s inônimo de uma suspeita lançada sobre a razão. E a desconfiança de Nietzsche em face da razão proviria de sua recusa em admitir a existência do Deus veraz. Mas essa resposta, aparentemente imediata, apresenta dois inconvenientes graves. Em primeiro lugar, um inconveniente doutrinai: ela faz de Nietzsche alguém que aceita a lógica das Meditações de Descartes, mas não o seu desfecho, e o transforma, por isso mesmo, em um car-tesiano infeliz. Em segundo lugar, um inconveniente me¬ tódico: estaríamos em um flagrante círculo vicioso, já que, para negar o platonismo, quer dizer, o "verdadeiro mun¬ do", no qual o Deus cristão é um dos atores principais, recorre-se a uma desqualificação da razão e, para justifi¬ car a fragilidade da razão, recorre-se à negação de Deus. Assim, antes de acusar Nietzsche quer de incorrer em uma petição de princípio, quer de ser um cartesiano envergo¬ nhado, vale a pena verificar como é, antes de tudo, atra¬ vés de uma determinada análise da linguagem, que ele vai sendo levado a considerar a nossa "razão" como uma ficção que se desconhece como tal.

No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche identifica a "ra¬ zão" a uma "metafísica da l inguagem" - para apresentá-

22. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[132] , KSA, vol. 12, p. 133.

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O NIILISMO EUROPEU 37

la como essencialmente fraudulenta. Fala-se ingenuamen¬ te em "razão na l inguagem", sem se dar conta de quão enganadora é essa "personagem feminina". De tal forma, garante Nietzsche, que devemos até temer que "não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática..." 2 3. E desde Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, já se estabelecia essa correlação entre razão, l inguagem e engano. Ali, ao perguntar-se de onde provi¬ ria, neste mundo, o "impulso à verdade", Nietzsche res¬ ponde evocando, em primeiro lugar, a oposição clássica entre estado de natureza e estado de sociedade, para en¬ contrar o es tabelecimento da verdade na própria origem da sociedade. Pois enquanto o indivíduo isolado "quer conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas, no mais das vezes apenas para a representa¬ ção; mas, porque o homem, ao mesmo tempo por neces¬ sidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes desapareça de seu mundo. Esse tratado de paz traz consigo algo que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmᬠtico impulso à verdade. Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser 'verdade', isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coi¬ sas, e a legislação da l inguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira" 2 4 . Aqui, a referência ao bellum om-nium contra omnes não é de forma alguma gratuita. E em algumas análises de Hobbes que está o quadro completo daquilo que Nietzsche oferece apenas em esboço.

23 . Nietzsche, "A 'razão' na filosofia", Crepúsculo dos ídolos, § 5,

Obras incompletas, cit., p. 331.

24. Nietzsche, Sobre verdade..., § 1, Obras incompletas, cit., p. 46.

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38 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

Ao descrever o estado de natureza, Hobbes indicava que nesse estado os homens nunca se entenderão sobre os valores, nunca alcançarão a unanimidade para designar o bem e o mal, o justo e o injusto. Portanto, ali nunca po¬ deria haver, c o m o pensava Platão, uma solução racio¬ nal para o conflito sobre o significado dos valores. Pois o que é o "bem", o "mal" ou a "justiça"? O nominal ismo de Hobbes , quer dizer, a certeza que de universal, no mun­do, só existem os nomes , pois as coisas nomeadas são sempre individuais e s ingulares 2 5 , vai proibi-lo de atribuir àquelas palavras o méri to de designar essências univer¬ sais, padrões preexis tentes aos quais os agentes deve¬ riam se submeter enquanto sujeitos racionais. É o nomi-nal ismo que proíbe o "dogmat i smo" , no sentido que Nietzsche dará a essa palavra. A tese nominalista é o pri¬ meiro passo para a bellum omnium contra omnes, já que ela determina a impossibilidade completa de qualquer acor¬ do espontâneo entre os homens . Afinal, o que diferencia o "bem" do "mal"? Hobbes dirá que o "bem" se identifica ao "agradável", quer dizer, os homens chamam de "bem" o que lhes agrada e de "mal" o que lhes desagrada 2 6 . E como os homens diferem entre si em sua constituição, eles não concordarão entre si no que se refere à diferença en¬ tre o bem e o mal. S implesmente não existe aquilo que os gregos chamavam de bem puro e simples, o bem tem sen¬ tido apenas em relação a uma pessoa determinada: "bem" e "mal" são nomes impostos às coisas para exprimir a in¬ clinação ou a aversão daqueles que assim as denominam; e como as inclinações dos homens são diferentes, eles vão

25. H o b b e s , Leviatã, I, 4, São Paulo , Abril Cultural , 1974, p. 2 1 .

26. H o b b e s , Elementos de derecho natural y político, I, 7, 3, Madr i ,

CEC, 1979, p. 142.

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O NIILISMO EUROPEU 39

a t r ibu i r d i f e r e n t e m e n t e e s s e s n o m e s p a r a c a r a c t e r i z a r o s

e v e n t o s d e s u a v i d a , v a l o r a d o s s e g u n d o d i f e r e n t e s cr i té¬

r ios , e i s so fará c o m q u e o a n t a g o n i s m o e n t r e e l e s se ja

i n e v i t á v e l : o s h o m e n s "se e n c o n t r a m e m e s t a d o d e guer¬

r a q u a n d o , pe la d i v e r s i d a d e d e s e u s ape t i t e s , m e d e m c o m

d i v e r s a s m e d i d a s o b e m e o m a l " 2 7 . A s s i m , o e s t a d o de

n a t u r e z a é a n t e s de t u d o a a u s ê n c i a de u m a m e d i d a co¬

mum, a s i t u a ç ã o em q u e as p a l a v r a s n ã o t ê m s i g n i f i c a ç ã o

u n í v o c a , j á q u e e las s ã o s e m p r e r e p o r t a d a s à s p r e f e r ênc i a s

d e c a d a u m .

A r e p ú b l i c a s e r á a i n s t i t u i ç ã o de u m a m e d i d a c o m u m

para h o m e n s q u e , n a t u r a l m e n t e , n ã o d i s p õ e m d e n e n h u ­

m a . U m a v e z o h o m e m n a t u r a l t r a n s f o r m a d o e m "cida¬

d ã o " , e le d e v e r á r e c o n h e c e r q u e "as le is c iv is c o n s t i t u e m

para t o d o s os s ú d i t o s a m e d i d a de s u a s a ç õ e s , a s q u e de¬

t e r m i n a m s e s ã o j u s t a s o u in jus t a s , b e n é f i c a s o u prejudi¬

c ia i s , v i r t u o s a s ou v i c i o s a s ; de f o r m a q u e o u s o e de f in i ção

d e t o d o s o s n o m e s s o b r e o s q u a i s n ã o s e e s t e j a d e a c o r d o

e q u e i n c l i n e m à c o n t r o v é r s i a d e v e m e s t a b e l e c e r - s e se¬

g u n d o e s s e s c r i t é r i o s " 2 8 . Em r e g i m e de r e p ú b l i c a a re ta ra¬

z ã o só p o d e r á s e r a r a z ã o do E s t a d o , e é a s u a l e g i s l a ç ã o

q u e va i e s t a b e l e c e r u m a s i g n i f i c a ç ã o c o m u m para a s pa¬

lavras e d e f i n i ç õ e s . M a s o q u e é e s s a r a z ã o do E s t a d o ? Ela

é a p e n a s a r a z ã o de a l g u m h o m e m ou de a l g u n s h o m e n s

q u e o c u p a m o p o d e r s o b e r a n o . P o r i s so , a v e r d a d e "con¬

s e n s u a l " à q u a l se c h e g a na c i d a d e , e s t e Ersatz da inat in¬

g íve l " u n a n i m i d a d e " p l a t ô n i c a , n u n c a p a s s a r á d e u m a

o p i n i ã o pr ivada q u e c o n s e n t i m o s em t o r n a r púb l i ca e obri¬

g a t ó r i a p a r a t o d o s . S e n d o a s s i m , e s s a " u n a n i m i d a d e " , tal

c o m o é o b t i d a n a r e p ú b l i c a h o b b e s i a n a , n u n c a p o d e r á

27. Hobbes, De eive, I, 3, 31, Paris, Sirey, 1981, p. 118.

28. Hobbes, Elementos de derecho..., cit., II, X, 8, p. 367.

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ser a garantia de uma cidade regida pela "verdade" - no sentido que os "filósofos" gostariam que esta palavra ti¬ vesse. O que Hobbes admitia de bom grado, ao reconhe¬ cer que se o soberano, ao elaborar as leis civis, guia-se pela "reta razão", todavia "a razão de nenhum homem, nem a razão de seja que número for de homens , consti¬ tui a cer teza" 2 9 . A unanimidade a que se chega na repúbli¬ ca nunca passará de um "ponto de vista" particular, pro¬ movido a opinião comum, em benefício do fim da "dis¬ córdia". E isso talvez nos ajude a precisar a posição de Nietzsche. Essa ancoragem do "impulso à verdade" na vida gregária, no "rebanho", onde nos reportamos a significa¬ ções que são unívocas apenas por "convenção", explica o nasc imento da oposição entre verdade e mentira, já que agora há o nascimento de um padrão comum, em função do qual se pode medir os desvios individuais.

Mas a adesão a uma compreensão "convencional is-ta" da linguagem seria suficiente, por si só, para se instalar um divórcio geral e radical entre a l inguagem e a verda¬ de? Essa é outra questão. Para afirmar esse divórcio, não basta ser convencionalista . E preciso assegurar-se, ainda, de que por princípio as palavras nunca poderão ser "ex¬ pressão adequada" das coisas. Será necessário reescrever o Crátilo de Platão. Em que ponto preciso se situa o "an-tiplatonismo" ou o "niilismo" de Nietzsche, quando cen¬ tramos a atenção exclusivamente na sua teoria da lingua¬ gem? Retomemos, por um momento , esse diálogo platô¬ nico. O que se investiga ali é a justeza dos nomes , quer dizer, a adequação entre a l inguagem e aquilo que é de¬ signado por ela. Crátilo crê em uma adequação natural entre o sentido dos nomes e as coisas. Hermógenes é um

29. Hobbes , Leviatã, cit., I, V, p. 28.

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O NIILISMO EUROPEU 41

convencionalista e pensa que a justeza das palavras é ape­

nas uma convenção ou acordo, e que portanto qualquer

que seja o nome que se dê a algo, este é um nome justo,

já que nenhum objeto tem seu nome da natureza, mas so¬

mente do uso ou do costume daqueles que o empregam 3 0 .

No diálogo, ao ouvir essa tese de Hermógenes, Sócrates

o adverte de que ela talvez lhe traga embaraços quanto à

verdade. Perguntado se para ele há algo assim como di¬

zer o verdadeiro e dizer o falso, Hermógenes diz que sim,

que há o discurso verdadeiro e o discurso falso, que o dis¬

curso que diz as coisas como elas são é verdadeiro, o que

diz aquilo que elas não são é falso. Mas admitindo isso,

não se precisa aceitar que os nomes também podem ser

ditos verdadeiros ou falsos? Será possível - pergunta Só¬

crates - que um objeto tenha tantos nomes quantos se

atribuam a ele, e durante o tempo em que são atribuídos?

"De minha parte - responde Hermógenes - considero

que não existe outra retidão de denominação do que esta:

é meu direito empregar, para cada coisa, um nome estabe¬

lecido por mim; é teu direito empregar um outro, por sua

vez, estabelecido por ti; o mesmo vale também para os

povos, que por vezes vejo atribuir, cada um às mesmas

coisas, nomes que são só deles, gregos paralelamente ao

resto dos gregos, gregos paralelamente aos bárbaros." 3 1

Eis aí: o que é chamado de "bem" aqui é chamado de

"mal" ali, os nomes são convenções arbitrárias, sem qual¬

quer relação com a natureza das coisas. Razão pela qual

Sócrates vai suspeitar de que Hermógenes é discípulo in-

confesso de Protágoras. Se ele concebe assim a lingua¬

gem, então deve pensar que a essência das coisas é rela-

30. Platão, Cratilo, 383a-e, Oeuvres... , cit., p. 613 .

3 1 . Platão, Cratilo, 385d-e, Oeuvres..., cit., p. 615.

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42 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

t iva a c a d a i n d i v í d u o , q u e o h o m e m é a m e d i d a de to¬

das as co isas e , p o r t a n t o , ta is c o m o elas parecem para m i m ,

ta i s e las são pa ra m i m , e a s s i m as c o i s a s n ã o t ê m em sua

e s s ê n c i a nada de p e r m a n e n t e . E agora S ó c r a t e s p o d e colo¬

car H e r m ó g e n e s e m u m a s i t u a ç ã o e m b a r a ç o s a . - C a r o

H e r m ó g e n e s , v o c ê n ã o a c r e d i t a q u e e x i s t a m h o m e n s

r u i n s ? - C l a r o q u e a c r e d i t o , j á e n c o n t r e i v á r i o s , a s s im

c o m o j á e n c o n t r e i h o m e n s b o n s . - E v o c ê n ã o a c h a que

os b o n s s ã o r a z o á v e i s , o s m a u s n ã o r a z o á v e i s ? - S i m , é

a m i n h a op in ião , S ó c r a t e s ! - M a s en t ão , caro H e r m ó g e n e s ,

se P r o t á g o r a s e s t i v e s s e c o m a r a z ã o , se as c o i s a s fo s sem

ta is c o m o e las p a r e c e m a c a d a u m , ser ia p o s s í v e l dizer

q u e a l g u n s s ã o r a z o á v e i s , ou t ro s n ã o r a z o á v e i s ? - C la ro

q u e n ã o ! E a s s i m H e r m ó g e n e s deve c o n v e n c e r - s e de que

é i m p o s s í v e l que P r o t á g o r a s t e n h a di to a v e r d a d e , pois um

h o m e m n ã o se r ia j a m a i s r e a l m e n t e m a i s s á b i o q u e ou t ro

se a v e r d a d e fosse , para cada u m , s o m e n t e aqu i lo que lhe

p a r e c e . D a q u i virá o p r ó x i m o round, n e c e s s a r i a m e n t e ven¬

cido por S ó c r a t e s . Se P r o t á g o r a s es tá e r r ado , se o h o m e m

n ã o é m e d i d a , e n t ã o as co i sas t ê m ne l a s m e s m a s u m a "es¬

s ê n c i a f ixa", e l a s n ã o s ã o n e m r e l a t i v a s a n ó s , n e m de¬

p e n d e n t e s de n ó s , m a s e x i s t e m por s i m e s m a s , s e g u n d o a

e s s ê n c i a que l h e s é n a t u r a l 3 2 . E daqu i S ó c r a t e s - P l a t ã o ex¬

trairá c o n s e q ü ê n c i a s r e l a t ivas à l i n g u a g e m .

Se os s e r e s t ê m u m a e s s ê n c i a fixa e e x i s t e m por s i

m e s m o s s e g u n d o e s sa e s s ê n c i a q u e l h e s é na tu ra l , e n t ã o

o c o r r e o m e s m o c o m a s a ç õ e s , que t a m b é m s ã o u m a cer¬

t a e s p é c i e d e s e r e s . D e s d e e n t ã o , se rá p r e c i s o c o n c e d e r

q u e a s a ç õ e s s e f azem s e g u n d o sua própr ia n a t u r e z a , não

s e g u n d o n o s s a s o p i n i õ e s . O r a , falar e n o m e a r s ã o a ç õ e s e

t ê m , p o r t a n t o , u m a n a t u r e z a q u e l h e s é p rópr i a . O s n o -

32. Platão, Cratilo, 386d-387b, Oeuvres..., cit., p. 617.

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O NIILISMO EUROPEU 43

mes são instrumentos próprios para enunciar e distinguir a realidade e, desde então, assim como um hábil tecelão se servirá bem do tear, um hábil instrutor se servirá bem do nome - bem, quer dizer, de modo próprio a ensinar. Uma vez concedida essa comparação da linguagem à téc¬ nica, Hermógenes deverá se convencer de que não cabe a qualquer h o m e m estabelecer os nomes . Ou antes, se estabelecer os nomes é obra de um "legislador", ao con¬ trário de seu homônimo hobbesiano esse legislador será um homem raro. Quando fixa os nomes, o legislador pla¬ tônico dirige seus olhos a quê? Ele reproduzirá a forma de nome própria a cada coisa e, sob a direção do dialético, es¬ tabelecerá os nomes conven ien temente . O dialético se serve da linguagem e julga a qualidade de seu instrumen¬ to, assim como o tecelão julga a eficiência do tear. "Em suma, Hermógenes, pode não ser uma pobre tarefa, assim como tu o imaginas, instituir os nomes! Nem mesmo a tarefa de pobres-diabos ou de principiantes! Crátilo diz a verdade quando diz que é por natureza que os nomes pertencem às coisas, e t ambém que não é qualquer um o operário dos nomes , mas somente aquele homem cujo olhar está dirigido para aquilo que, por natureza, é para cada coisa o seu nome; homem capaz de aplicar sobre le­tras, sobre sílabas, a forma dessa coisa ." 3 3 E agora a lin¬ guagem, segundo o Sócrates platônico, será tecida com nomes justos , nomes que exprimem a essência dos ob¬ je tos . Há uma ciência na origem de nossa linguagem e o "bom Hermógenes" deverá ser informado, por Sócrates, de que há grande chance de que os primeiros a instituir os nomes não eram espíritos medíocres, mas sábios nas coisas celestes.

33 . Pla tão , Crátilo, 390d, Oeuvres..., cit., p. 622.

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Por que Hermógenes é tão facilmente enredado nas teias da dialética platônica, e por que Nietzsche não o se¬ ria j amai s? Vale a pena localizar o ponto preciso em que Hermógenes começa a ceder terreno para Sócrates. Este ponto está, manifestamente, ali onde Sócrates pergunta a Hermógenes se existem discursos verdadeiros e discursos falsos, logo, nomes verdadeiros e nomes falsos. Ao admi¬ tir que sim, Hermógenes entrega o seu j o g o : agora Protá-goras estará refutado, não se poderá mais admitir que o homem é a medida das coisas, logo, devem existir essên¬ cias imutáveis dessas coisas, adequadamente expressas pelos nomes etc. Sendo apenas convencionalista, Hermó-genes só pode ser levado a baixar as armas. O trajeto de -Nietzsche será inverso àquele a que Hermógenes se dei¬ xa submeter por Sócrates : ele partirá da tese de uma ina¬ dequação de princípio entre as palavras e as coisas, para concluir então um divórcio radical entre a l inguagem e a verdade. Ali em Verdade e mentira..., a tese convencionalis-ta é indissociável de uma certa reflexão sobre a l inguagem - reflexão que Hermógenes não fazia, o que terminava por obrigá-lo a curvar-se tão rapidamente às "evidên¬ cias" socráticas. Ao filiar-se ao partido "convencionalista", Nietzsche imediatamente formulava a pergunta que Her-mógenes calava: "o que se passa com aquelas convenções da linguagem? São talvez frutos do conhecimento, do sen¬ so de verdade: as designações e as coisas se recobrem? É a l inguagem a expressão adequada de todas as realida-des?" 3 4 . Se o "convencionalista" Hermógenes , admitindo a existência de "discursos verdadeiros" e de "discursos falsos", era docemente constrangido pelo dialético a ad¬ mitir a existência de uma ciência na origem de nossa lin-

34. Nie tzsche , Sobre verdade..., Obras incompletas, cit., p. 47.

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O NIILISMO EUROPEU 45

guagem, o "convencionalista" Nietzsche, caminhando na contramão do roteiro eleito pelo Crátilo, partirá da convic¬ ção de uma inadequação de princípio entre as palavras e as coisas, para concluir o divórcio radical entre a linguagem e a verdade, ou antes, para estabelecer o non sens da oposi¬ ção entre "discursos verdadeiros" e "discursos falsos".

Se em Verdade e mentira... Nietzsche parte da evidên¬ cia de que a l inguagem não é "expressão adequada" da realidade, é porque supõe-se implici tamente ali uma de¬ terminada concepção da l inguagem, que é explicitada no seu Curso de retórica". A tese ali implícita é a de que a re¬ tórica, ao contrário do que pensava a tradição, antes de ser apenas um dos usos da l inguagem, é na verdade a sua es­sência. O que fará da l inguagem um instrumento próprio para persuadir, não para exprimir o verdadeiro. Era Aris¬ tóteles que delimitava o domínio da retórica, frente àque¬ le do "saber", através da oposição entre dois usos da lin-g u a g e m 3 6 . Alguns discursos - diz Aristóteles - são pró¬ prios para instruir: é o caso do discurso do médico, do geômetra, enfim, daquele que sabe. Aqui, a l inguagem é a designação adequada de certos conteúdos e, por isso mesmo, ela instrui. E se bem que esses discursos possam, além de instruir, também persuadir, existe um uso da lin¬ guagem que é próprio apenas para a persuasão. Esse uso é a retórica, e o discurso retórico descobre, em cada caso, o que é próprio para persuadir. Não sendo um discurso que instrui mas que apenas persuade, o discurso retórico não se prende à expressão adequada das coisas, mas faz livre uso das expressões inadequadas, de figuras como as

35. Nietzsche, Curso de retórica, trad. Thelma Lessa da Fonseca, Cadernos de Tradução, 4,1999, Depto. de Filosofia - USP.

36. Aristóteles, Retórica, livro I, cap. 2, 1355b-1356b, Obras, Ma­dri, Aguilar, 1967, pp. 118 ss.

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metáforas, as metonímias etc. Discurso preso ao veros¬ símil e ao possível, a retórica pertence à dialética, não à analítica, ela não exprime adequadamente nem nos ofe¬ rece demonstrações, apenas obtém a adesão do outro na¬ quelas matérias que não são sujeitas à necessidade.

No seu Curso de retórica, é antes de tudo essa apre¬ sentação tradicional da retórica como um dos usos possí¬ veis da l inguagem que chama a atenção de Nietzsche. Usualmente - diz ele - chamamos um autor ou um livro de "retórico" quando vemos nele a utilização intencional de alguns meios artísticos; e fala-se em um uso intencio¬ nal desses meios por oposição a um uso da l inguagem que se tem por "natural", não por "intencional". Todavia - garante Nietzsche - não é difícil provar que aquilo que se chama de "retórica", como uso de uma arte consciente, designa elementos que atuam na língua como uma arte inconsciente. Em outras palavras, não existe uma "natu¬ ralidade" pré-retórica da língua, mas a própria linguagem é o resultado de uma série de artes retóricas. O que deve levar-nos a suspeitar que a oposição aristotélica entre um "uso instrutivo" e um "uso re tór ico" da língua deve ser rejeitada, e que devemos reconhecer toda l inguagem como sendo essencialmente uma retórica. O que Aristó¬ teles chamava de arte retórica - capacidade de extrair de cada coisa aquilo que tem força e causa impressão - é a essência da linguagem. O que representa dizer que deve¬ mos afirmar, da linguagem em geral, aquilo que os clássi¬ cos afirmavam apenas de seu uso retórico: que ela não está dirigida para a verdade, para a essência das coisas, que ela não instrui, mas apenas provoca nos outros um movimen¬ to subjetivo e uma aceitação. Mas por que, nesses anos iniciais do "nii l ismo", a l inguagem é vista por Nietzsche como sendo essencialmente uma arte retórica?

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O NIILISMO EUROPEU 47

Porque aquele que cria a l inguagem não apreende coisas ou processos, mas estímulos; ele não reproduz sen­sações , mas apenas imagens de sensações . A sensação , provocada por uma exci tação nervosa, não apreende a própria coisa; essa sensação se representa no exterior por uma imagem, e o problema é saber como um ato da alma pode ser representado por uma imagem sonora. "Não se­ria necessário, quando deve ter lugar uma perfeita e com¬ pleta reprodução, antes de tudo, que o próprio material de que deve se constituir a reprodução seja o mesmo com que trabalha a a l m a ? " 3 7 Todavia, esse material é algo de es­tranho - ele é um som -, logo, dele só pode resultar uma imagem. Assim, não são as coisas que se tornam presen¬ tes à nossa consciência, mas sim o modo como nos relacio­namos com elas. A essência total das coisas nunca é apreen¬ dida por nós. Nossas emissões sonoras não aguardam que novas percepções e experiências nos dêem um co¬ nhec imento respeitável das coisas. Ao contrário, nossas emissões sonoras ocorrem assim que sentimos o estímulo. Assim, a sensação não incorpora as coisas mas apenas um traço delas e, se é assim, a linguagem é retórica, porque ela transmite apenas uma dóxa, não uma epistéme. Por isso, não devemos considerar mais a retórica apenas como um uso da l inguagem, ao lado de outros - particularmente, ao lado de seu suposto uso "instrutivo". Ao contrário, deve¬ mos considerar a l inguagem como essencialmente retórica. Se os principais meios da retórica são os tropos ou deno¬ minações impróprias - s inédoques, metáforas, metoní -mias -, essas figuras não deverão mais ser vistas como usos desviantes de uma l inguagem que, "naturalmente" , operaria por denominações próprias. Ao contrário, é gra-

37. Nietzsche, Curso de retórica, cit., p. 37.

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48 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

ç a s a o p e r a ç õ e s de m e t á f o r a s , s i n é d o q u e s e m e t o n í m i a s

q u e se c o n s t i t u i a l i n g u a g e m em g e r a l - e t o d a s as pala¬

v ras , do p o n t o de v i s ta de sua s ign i f i cação , s ã o t r o p o s . As¬

s i m , u s u a l m e n t e d i z e m o s q u e o r e t ó r i c o fala " o n d a " n o

l u g a r d e " m a r " , f a z e n d o u m a s i n é d o q u e , o n d e a p a r t e

o c u p a o l u g a r do t o d o . E d i z e m o s t a m b é m q u e e l e faz

u m a m e t á f o r a q u a n d o t o m a u m a c o i s a p o r o u t r a . M a s ,

o b s e r v a n d o b e m - d iz N i e t z s c h e - , e s s e s p r o c e d i m e n t o s

e s t ã o n a o r i g e m d e c a d a pa l av ra . P o i s t o d a s a s p a l a v r a s ,

e m v e z d e e x p o r o v e r d a d e i r o p r o c e s s o , e x p õ e m u m a ima¬

g e m s o n o r a , q u e r dizer , t o m a m u m a c o i s a p o r o u t r a ; e a

l i n g u a g e m n u n c a e x p r i m e a l g o c o m p l e t a m e n t e , m a s ape¬

n a s d e s t a c a u m a m a r c a d a co i sa , q u e p a r e c e s e sob re s sa i r ,

i s to é , e la t o m a a pa r t e p e l o t o d o , pa r t e q u e se s o b r e s s a i

em r e l a ç ã o a q u e m fala. A s s i m , é super f ic ia l o p o r signifi¬

c a ç õ e s " p r ó p r i a s " a s i g n i f i c a ç õ e s " i m p r ó p r i a s " j á q u e , n o

fundo , t o d a a l i n g u a g e m se c o n s t i t u i a par t i r de t r o p o s .

São essas teses do Curso de retórica, subjacentes a Ver­

dade e mentira, que l evam à c o m p r e e n s ã o niil ista da ina¬

d e q u a ç ã o en t r e l i n g u a g e m e v e r d a d e . S ã o e s s a s t e s e s q u e

a f a s t a m N i e t z s c h e d e H e r m ó g e n e s , j á q u e e l a s t ransfor¬

m a m a l i n g u a g e m e m a l g o o r i g i n a r i a m e n t e i n c o m p a t í v e l

c o m o s e u " u s o i n s t r u t i v o " , ta l c o m o e s t e era s o n h a d o

p e l o s g r e g o s . A g o r a , o e s s e n c i a l é q u e n a s pa l av ra s "nun¬

ca i m p o r t a a v e r d a d e " , a " e x p r e s s ã o a d e q u a d a " , v i s to q u e

o " f o r m a d o r da l i n g u a g e m " , l o n g e de e x p r i m i r a d e q u a ¬

d a m e n t e a l g u m a v e r d a d e , " d e s i g n a a p e n a s a s r e l a ç õ e s

d a s c o i s a s a o s h o m e n s e t o m a e m auxí l io p a r a e x p r i m i -

las a s m a i s a u d a c i o s a s m e t á f o r a s " 3 8 . ' " É e s sa c o m p r e e n s ã o

d a l i n g u a g e m c o m o e s s e n c i a l m e n t e r e tó r i c a q u e va i j u n ¬

ta r - se ao n o m i n a l i s m o p a r a t e c e r a cr í t ica n i e t z s c h i a n a ao

38. Nietzsche, Sobre verdade..., Obras incompletas, cit., p. 47.

Page 80: Nietzsche -civilização e cultura

O NIILISMO EUROPEU 49

conceito. E s t e n a s c e no m o m e n t o em q u e a pa l av ra n ã o

d e v e d e s i g n a r m a i s a v i v ê n c i a p r i m i t i v a e i nd iv idua l q u e

e s t a v a n a s u a o r i g e m , m a s s i m i n ú m e r o s c a s o s s e m e ¬

l h a n t e s , q u e r dizer , c a s o s r i g o r o s a m e n t e d e s i g u a i s . O

c o n c e i t o é a i g u a l a ç ã o do n ã o - i g u a l , q u e p a s s a r á a d e s i g ­

n a r c e r t o s u n i v e r s a i s q u e n u n c a e x i s t i r a m na n a t u r e z a . E

s e r á a par t i r d e s s a v o l a t i l i z a ç ã o da i m a g e m s i n g u l a r em

um c o n c e i t o q u e se i n i c i a r á a c o n s t r u ç ã o da g r a n d e pirâ¬

m i d e d o s g ê n e r o s e das e s p é c i e s , c o m a q u a l se p e n s a r á

e m r e g u l a r o m u n d o in tu i t i vo . M a s o s h o m e n s s e e s q u e ­

c e r ã o d e q u e s e u s c o n c e i t o s s ã o a p e n a s r e s í d u o s d e m e ­

tá foras ; e o j o g o de d a d o s do c o n c e i t o n o s e n s i n a r á q u e

d e v e m o s c h a m a r d e " v e r d a d e " o u s o d e c a d a d a d o c o m o

e le é d e s i g n a d o , a s s i m c o m o o r e spe i to às c l a s se s h ie rá r ­

qu i ca s d o s c o n c e i t o s . O i m p u l s o à v e r d a d e surgi rá do es¬

q u e c i m e n t o d e s s e j o g o pr imi t ivo , u m j o g o q u e p o d e r i a n o s

e n s i n a r c o m o , o r i g i n a r i a m e n t e , era P r o t á g o r a s q u e m esta¬

va c o m a r azão , po i s n ã o ex is te pa lavra q u e n ã o seja fruto

de u m a relação com o mundo, a n t e s de d e s i g n a r "o m u n d o " .

M a s , se é a s s im , o q u e N i e t z s c h e p o d e r á c o m p r e e n d e r po r

" v e r d a d e " ? A p e n a s u m " b a t a l h ã o m ó v e l d e me tá fo ras , m e -

t o n í m i a s , a n t r o p o m o r f i s m o s , enf im, u m a s o m a d e r e l a ç õ e s

h u m a n a s , q u e fo ram e n f a t i z a d a s p o é t i c a e r e t o r i c a m e n t e ,

t r a n s p o s t a s , e n f e i t a d a s , e q u e , a p ó s l o n g o u s o , p a r e c e m a

um p o v o só l idas , c a n ô n i c a s e ob r iga tó r i a s : a s v e r d a d e s s ã o

i l u sões das qua i s se e s q u e c e u q u e o s ão , m e t á f o r a s q u e se

t o r n a r a m g a s t a s e s e m força s e n s í v e l , m o e d a s q u e perde¬

r a m sua efígie e a g o r a só e n t r a m em c o n s i d e r a ç ã o c o m o

m e t a l , n ã o m a i s c o m o m o e d a s . " 3 9

F r u t o d e u m a l e g i s l a ç ã o q u e n ã o era p r e s i d i d a p o r

n e n h u m sabe r , a l i n g u a g e m n ã o s e c o a d u n a m a i s à s e x i -

39. Nietzsche, Sobre verdade..., Obras incompletas, cit., p. 48.

Page 81: Nietzsche -civilização e cultura

50 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

g ê n c i a s do Crátilo p l a t ô n i c o , v i s t o q u e " n ã o é l o g i c a m e n ¬

te q u e o c o r r e a g ê n e s e da l i n g u a g e m , e o m a t e r i a l i n t e i r o

no q u a l e c o m o qua l m a i s t a rde o h o m e m da v e r d a d e , o

p e s q u i s a d o r , o f i lósofo , t r a b a l h a e c o n s t r ó i , p r o v é m , se

n ã o d e C u c o l â n d i a das N u v e n s , e m t o d o c a s o n ã o d a es¬

s ê n c i a d a s c o i s a s " 4 0 . D e l i m i t a ç ã o i n s t i t u c i o n a l d e signifi¬

c a ç õ e s a rb i t r á r i a s , a l i n g u a g e m n ã o p o d e e l idi r s u a pre¬

c a r i e d a d e c o n g ê n i t a , e é a p e n a s g r a ç a s à sua c a p a c i d a d e

de e s q u e c i m e n t o q u e o h o m e m p ô d e c h e g a r a c re r q u e e le

p o s s u i u m a v e r d a d e . E i s a í o g rau z e r o do " d o g m a t i s m o " ,

q u e o f i lósofo p l a t ô n i c o n ã o fará s e n ã o e x a c e r b a r . O q u e

é o d o g m a t i s m o , e n q u a n t o p r e t e n s ã o às v e r d a d e s univer¬

s a l m e n t e v á l i d a s ? E le é a p e n a s o c o m e n t á r i o f i losófico do

e s q u e c i m e n t o d a o r i g e m d e m a s i a d o h u m a n a d a s signifi¬

c a ç õ e s d e n o s s a l i n g u a g e m : g r a ç a s a e s s e e s q u e c i m e n t o ,

o d o g m á t i c o ac red i t a r á p o d e r refer i r -se "a n o r m a s q u e va¬

l e m p a r a t o d o s , a c o n c e i t o s q u e t ê m o m e s m o s e n t i d o

p a r a t o d o s , e le a c r e d i t a r á q u e n a ra iz d e n o s s o d i s c u r s o

e x i s t e a l g u m a c o i s a - r a z ã o pu ra , su je i to u n i v e r s a l - ca¬

p a z de diluir t o d a s a s m e n t i r a s , de d e n u n c i a r t o d a s a s ilu¬

s õ e s , profer i r a ú l t i m a pa l av ra . Em s u m a , e l e a c r e d i t a r á

q u e o h o m e m é c a p a z de c o n h e c e r o S e r e de d i z ê - l o em

n o m e d e t o d o s " 4 1 . M a s e s s a r a z ã o n ã o p a s s a d e u m a "me¬

tafís ica d a l i n g u a g e m " q u e , p o r a m n é s i a , p e n s a ter a c e s s o

a o " e m s i " .

M a s e n t ã o é c l a r o q u e , n o i n t e r i o r d e s s a c o n c e p ç ã o

n i e t z s c h i a n a d a l i n g u a g e m , n ã o p o d e h a v e r lugar pa ra ne¬

n h u m " v e r d a d e i r o m u n d o " . D o n d e o n o v o s i g n i f i c a d o

q u e d e v e ser d a d o à n o ç ã o de " n i i l i s m o " , e o q u e se d e v e

40. Nietzsche, Sobre verdade..., Obras incompletas, cit., p. 48. 41. Lebrun, G., "Por que ler Nietzsche, hoje?", Passeios ao léu,

cit., p. 35.

Page 82: Nietzsche -civilização e cultura

O NIILISMO EUROPEU 51

compreender pela morte do Deus cristão, enquanto esse Deus era a expressão e a figura mais sublime do "verda­deiro mundo". O que é o niilismo, esse fenômeno euro¬ peu? Ele é a convicção de que "não existe verdade algu¬ ma; de que não existe nenhuma qualidade absoluta nas coisas, de que não existe 'coisa em si'. Isso é o niilismo e, na verdade, o niilismo o mais ex t remo" 4 2 . Mas isso res¬ ponde imediatamente à questão da qual se partiu. Per¬ guntava-se qual era a relação entre a morte de Deus e a desvalorização de todos os valores. Essa relação não re¬ presenta qualquer retomada envergonhada do tomismo, nem uma falta de reflexão sobre a Crítica kantiana. A morte de Deus e a desvalorização dos valores são even¬ tos simultâneos, enquanto ambos habitam o "verdadeiro mundo". Se não existe "verdadeiro mundo", não há nem Deus nem valores absolutos. E isso porque somos deten¬ tores de uma linguagem, não de um logos.

IV

Essa explicitação do niilismo é, ao mesmo tempo, uma primeira chave para se compreender o "perspecti- ' v ismo" de Nietzsche. O "filósofo do futuro" não deseja a unanimidade porque sabe que não existe o "verdadeiro mundo", que somos capazes de obter apenas "perspec¬ tivas" sobre as coisas, pontos de vista localizados e nunca universalizáveis. Esse perspectivismo é uma conseqüên¬ cia imediata do ant ipla tonismo. Aquilo que os filósofos chamavam de "essências" eram apenas as suas perspec¬ tivas sobre as coisas - a just iça "em si" de Platão era ape-

42. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[35], KSA, vol. 12, p. 350.

Page 83: Nietzsche -civilização e cultura

52 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

nas a perspectiva de Platão sobre a justiça ou, então, a sua "interpretação". Mas agora é preciso reconhecer que uma "coisa em si" é tão absurda quanto um "sentido em si", quanto uma "significação em si". Não existe nenhum "fato em si", porque para que um fato possa dar-se, é preciso sempre interpretá-lo de algum modo. Assim, contra o po¬ sitivismo, que se limita ao fenômeno e afirma que "só há fatos", devemos afirmar que "só existem interpretações"; não conhecemos nenhum fato em si, o mundo não tem nenhum sentido fundamental, mas muitíssimos sentidos - isso é o "perspect iv ismo" 4 3 . E esperemos que doravan­te, com a morte de Deus, quer dizer, com o fim do "ver¬ dadeiro mundo" , o dogmático ceda seu lugar ao filósofo do futuro, e que hoje em dia não t enhamos mais "a ridí¬ cula pretensão de decretar que nosso pequeno canto é o único de onde se tenha o direito de ter uma perspectiva. Muito pelo contrário, o mundo, para nós, voltou a ser in¬ finito, no sentido de que não podemos recusar-lhe a possi¬ b i l idade de prestar-se a uma infinidade de interpretações'*. Isso também é o niilismo em suas conseqüências . A acli¬ matação dessa idéia de "interpretação" só é cabível em re¬ gime de niil ismo, em clima de fim de festa para a noção clássica ou dogmática de "verdade".

Mas, se é assim, a partir de agora será preciso redefi¬ nir a própria tópica dá filosofia: doravante ela deve trans¬ formar-se em "filologia". Se os "ideais" estipulados como universais são na verdade uma determinada "perspecti¬ va", se só existem "interpretações", perguntemos o que quer aquele que assim interpreta, que tipo de vida ali se exprime: saúde ou doença, degenerescência ou fortaleci-

43. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[60], KSA, vol. 12, p. 315.

44. Nietzsche, A gaia ciência, § 374, KSA, vol. 3, p. 627.

Page 84: Nietzsche -civilização e cultura

O NIILISMO EUROPEU 5 3

mento? Qual o valor de nossos valores, inclusive daquele que atende pelo nome de "verdade"? Se só existem inter¬ pretações, é lícito perguntar que tipo de vida quer aque¬ le que assim valoriza, que chama "bem" ao altruísmo e "mal" ao egoísmo, que promove o desinteresse como va¬ lor, ou mede a origem das ações pela "utilidade", que cla¬ ma pela igualdade e pelos direitos. O que revelam seme¬ lhantes discursos? Ana l i semos as interpretações como filólogos, e verifiquemos quem fala, por exemplo, ao inter¬ pretar assim a "justiça". Enquanto a tópica do filósofo dog¬ mático centra-se na pergunta "o quê?", a tópica do pri­meiro niilista perfeito será "quem fala?"; se só existem in­terpretações, o que elas exprimem e o que elas valem? Já que não existe mais céu inteligível, aquilo "que" se fala, os ideais professados são apenas a expressão de seu autor, e toda grande filosofia é uma confissão do filósofo, um livro de memórias involuntário, onde se pode reconhecer que as intenções morais (ou imorais) "constituíam o germe pro¬ priamente dito de toda filosofia" 4 5. Assim, antes de lamen¬ tar o fim de nossos "ideais", façamos a filologia dessas inter¬ pretações, verifiquemos o que se exprime através delas, quem assim interpreta. Se Deus morreu, só nos resta in¬ terpretar as interpretações - e apenas quando fizermos isso começaremos a falar com o "sotaque" de Nietzsche.

Isso basta para indicar que a análise nietzschiana de nossa civilização nunca se confundirá com a "crítica da ideologia", no sentido habitual da expressão. Religiões, morais e filosofias nunca serão vistas como representações "falsas", por oposição a uma ciência que desmascararia todas as ilusões. Essa maneira de tratar a ideologia, por oposição à ciência, como uma representação falsa, é inge-

4 5 . Nie tzsche , Para além do bem e do mal, § 6, KSA, vol . 5, p. 19.

Page 85: Nietzsche -civilização e cultura

54 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

n u a m e n t e g rega , e o cr í t ico da i d e o l o g i a é a p e n a s um pla¬

t ô n i c o a m a i s , c o m a s s e n t o no fim da h i s tó r i a u n i v e r s a l . A

f a l s idade de um j u í z o - diz N i e t z s c h e - " n ã o é p a r a n ó s

n e n h u m a o b j e ç ã o c o n t r a e s s e j u í z o : é n i s s o , t a l v e z , q u e

n o s s a l í n g u a n o v a s o a m a i s e s t r a n g e i r a " 4 1 . O q u e impor¬

ta é s a b e r se e s s e j u í z o é a p t o ou n ã o a p r o m o v e r a v ida ,

a c o n s e r v a r a e s p é c i e . Pa ra q u e s e rve e s s a o b s e s s ã o p e l o

v e r d a d e i r o e o fa lso , s e n ã o p a r a r e i t e r a r o p l a t o n i s m o ? O

q u e i m p o r t a é r e c o n h e c e r a q u i l o q u e P l a t ã o e s e u s ep ígo¬

n o s j a m a i s q u i s e r a m , n e m p u d e r a m admi t i r , a sabe r , q u e

" e m t o d o filosofar, a té agora , n u n c a se t r a tou de ' v e r d a d e ' ,

m a s d e a l g o o u t r o , d i g a m o s s a ú d e , futuro, c r e s c i m e n t o ,

p o t ê n c i a , v i d a . . . " 4 7 H á a i n d a u m a s e g u n d a v e r t e n t e pla¬

t ô n i c a da "cr í t ica da i d e o l o g i a " . A p ó s reduz i r os " i d e a i s " a

r e p r e s e n t a ç õ e s fa lsas , o c r í t i co va i se p e r g u n t a r q u e m es¬

tava i n t e r e s s a d o e m e n g a n a r o s p o b r e s m o r t a i s : o h o m e m

da doxa s a b e t ã o p o u c o de s e u s i n t e r e s s e s q u e q u a l q u e r

a s t u t o p o d e i l u d i - l o . M a s o " c r e n t e " n i e t z s c h i a n o n ã o é

e n g a n a d o p o r n i n g u é m e o " i d e a l " q u e e le a d o t a co r r e s¬

p o n d e a u m a necessidade sua , a um d e t e r m i n a d o m o d o de

v ida . A s s i m , se o c r i s t i a n i s m o s o b r e v i v e na " v e l h a Euro¬

p a " , é p o r q u e e l e a i n d a é n e c e s s á r i o à m a i o r p a r t e das

p e s s o a s e p o r q u e o h o m e m é tal q u e , se r e f u t á s s e m o s c e m

v e z e s um ar t igo de s u a c r e n ç a , "se e le p r ec i s a de le n ã o ces¬

s a d e c o n s i d e r á - l o a i n d a c o m o v e r d a d e i r o " 4 8 . A s s i m , re¬

l i g i õ e s , m o r a i s e f i losofias n ã o t ê m c o m o e s s ê n c i a s e r e m

e r r o s o u m e n t i r a s , m a s c o r r e s p o n d e m à n e c e s s i d a d e d e

um t ipo de v ida . Po r i s s o , o p r o c e d i m e n t o de N i e t z s c h e

46. Nietzsche, Para além de bem e mal, § 4, Obras incompletas, cit., p . 270.

47. Nietzsche, A gaia ciência, prefácio da 2a ed., § 2, Obras incom¬ pletas, cit., p. 190.

48. Nietzsche, A gaia ciência, § 347, KSA, vol. 3, p. 581.

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O NIILISMO EUROPEU 55

será sempre o de regredir da obra ao criador, da ação ao agente, do ideal àquele que necessita dele, "de todo modo de pensar e de valorar à necessidade que comanda por trás de le" 4 9 . Isso sendo dito, tratemos de acompanhar Nietz­sche na análise do valor de nossa civilização. Já que esta¬ mos em regime de niilismo, já que nossos valores se des¬ valorizaram, convém perguntar se, de fato, há algo a la¬ mentar com o fim da civilização judaico-cristã.

49. Nie tzsche , A gaia ciência, § 370, Obras incompletas, cit., p. 2 2 1 .

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Page 88: Nietzsche -civilização e cultura

C A P Í T U L O III

O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL

I

A análise nietzschiana do valor de nossa civilização suscita uma questão prévia, que não é de método, mas de tema. Entre todos os conteúdos que compõem a "civili­zação ocidental", a moral será o "objeto" privilegiado pela investigação de Nietzsche. Se nossa civilização é um mapa-múndi composto dos territórios filosofia, ciência, arte, po­lítica e moral, é a moral que merecerá a atenção especial do filólogo. E isso é patente para o leitor da Genealogia da moral. Temos necessidade de uma crítica dos valores mo­rais - diz Nietzsche. O valor desses valores deve ser posto em questão, é a "interpretação moral do mundo" que de­ve ser analisada, visto que "não existem coisas que mais compensem serem levadas a sério" do que os "problemas da moral" 1. De onde vem essa precedência do território moral diante das outras regiões de nossa "civilização"? Por um lado, não se deve imaginar que essa precedência

1. Nietzsche, Genealogia da moral, c i t , Prólogo, § 7, p. 15.

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58 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA

da moral seja sinônima de uma exclusão, do campo da análise, dos demais territórios. Ao contrário, se a moral é privilegiada é porque, através dela, todos os outros con­teúdos de nossa civilização estarão sendo visados. Como não existem fatos, mas apenas interpretações, não existem "fatos morais", e a moral é apenas uma interpretação dos fenômenos. E Nietzsche observará que a interpretação moral conserva um valor imenso enquanto "semiótica". A moral é uma "linguagem de signos", uma "sintomato­logia" e, através dela, revelam-se "as mais preciosas rea­lidades da civilização"2. Assim, se a moral é privilegiada na análise é porque nela temos o núcleo da tarefa forma­dora de nossa civilização. Por isso Nietzsche dirá que as morais "são o principal meio de moldar o homem ao gos­to de um poder criador" - logo, o principal meio de for­mação da humanidade 3.

As morais são o principal meio para se fazer do ho­mem o que se quer? Nada deve ser mais levado a sério do que os problemas da moral? Deve-se confessar que, para nós, à primeira vista esse privilégio e esse poder forma­dor atribuído à moral têm algo de assombroso. E, talvez, já por essas afirmações Nietzsche nos pareça um "inatual". Pelo menos para nós, leitores do "outro lado" do século XIX, já suficientemente acostumados a relegar a "ques­tão moral" entre os epifenômenos da "superestrutura". Para nós, são a instância econômica e a instância política que comandam tudo, e nosso discurso predileto seria mais ou menos assim: "a infra-estrutura econômica é o principal meio para se fazer do homem o que se quer, logo, nada

2. Nietzsche, "Os melhoradores da humanidade", Crepúsculo dos

ídolos, § 1, KSA, vol. 6, p. 98. 3. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 37[8], KSA, vol. 11, p. 580.

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deve ser mais levado a sério que os problemas da econo­mia política". Os problemas da moral como os que mais se deve levar a sério? Isso seria colocar novamente as coi­sas de cabeça para baixo, depois de tanto trabalho para se afastar o "idealismo" e dar direito de cidadania à verdade "materialista". Qual a relevância de se dedicar atenção a certas noções como "piedade", "altruísmo", "desinte­resse"? Que importância poderia ter analisar a origem da repugnância moderna pelo "egoísmo"? Para nós, que freqüentamos outra região da ideologia alemã, tudo isso só pode parecer irrelevante, gratuito e - por que não dizê-lo? - de mau gosto.

Mas será que podemos estar tão seguros assim de nossas "evidências", tão certos de que a moral é um sim­ples epifenômeno e não uma instância formadora? É essa segurança, exatamente, que Nietzsche nunca poderia ter. Ao contrário, uma vez o filósofo situado em um regime em que "tudo é interpretação", é a tese oposta àquela a que nos acostumamos que necessariamente se impõe. Uma vez aceito o império inconteste da "interpretação", é ine­vitável situar-se contra "a doutrina da influência do meio e das causas exteriores: a força interior é infinitamente su­perior; muito do que se considera como influência exterior é apenas adaptação. Meios completamente iguais podem ser interpretados e utilizados de maneiras contrárias: não há fato positivo" 4. Se não há fato positivo, se todo fato é interpretado e apenas após sua interpretação ele pode in­fluir, então no fundo o que exerce influência é aquilo que rege as diferentes interpretações: os "ideais" que coman­dam aquele que interpreta. Se contra o positivismo afir­mamos que não existem fatos, mas só interpretações, uma

4. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[175], KSA, vol. 12, p. 154.

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vez abandonada a mitologia do fato puro, são os ideais in-terpretadores que detêm a última palavra. É por isso que o pequeno positivista, certo de que os fatos econômicos determinam tudo, não cessará de ter surpresas desagra­dáveis. O xá da Pérsia caiu, agora o motor infra-estrutural da história só poderá levar o Irã à modernização. Surpre­sa! O que vem depois do xá é uma república teocrática... Os ideais tingem os fatos com a coloração que quiserem. Por isso, deixemos de supor um sentido unitário nas coi­sas - o mundo é passível de infinitas interpretações. Dei­xemos de ser platônicos! Deixemos também de ser posi­tivistas: abandonemos este prejuízo que é a doutrina da influência do meio e das causas exteriores sobre o ho­mem, esqueçamos a causalidade infra-estrutural. Os ideais comandam mais do que o meio e a sociedade. Por isso, não há nada que mereça ser mais levado a sério do que o problema moral.

Mas será que já estamos prontos para aceitar a legiti­midade dessa tese de Nietzsche? Por um lado, é certo que a partir da idéia de que não há fatos puros, mas apenas interpretações, começamos a compreender o direito des­se privilégio do território moral no interior da doutrina. Mas, por outro lado, também é verdade que a resposta a essa questão, situada nesse grau de generalidade, pode parecer bastante insatisfatória. Pois estaríamos condena­dos a escolher entre duas fórmulas gerais: ou existem fatos puros que determinam as interpretações, a infra-estru­tura comanda a superestrutura, e a moral é um epifenô-mcno derivado e secundário; ou não existem fatos puros mas apenas interpretados, são os ideais que determinam o sentido dos processos, e agora a moral é o que mais deve ser levado a sério. Mas, então, existem fatos puros ou só interpretados? Assim formulada, a questão pode pare-

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cer insolúvel: Tales dizia que tudo é água, Heráclito que tudo é fogo... Façam seus jogos... Sendo assim, em vez de se manter a discussão exclusivamente no plano muito ge­ral dos "princípios", vale a pena particularizá-la, tentando exercitar com Nietzsche, em um setor determinado, aque­le que seria o seu estilo de suspeita.

Foi dito que, para nós, habitualmente situados em um determinado lado da "ideologia alemã" - o lado opos­to àquele onde residem Nietzsche e Max Stirner -, afir­mar que nada deve ser tão levado a sério quanto o proble­ma moral é fazer uma asserção no mínimo extravagante. Para nós, cientes de que o fundamental está na questão socioeconômica, sabedores de que a moral é apenas epi-derme, a ciência da infra-estrutura social é o fundamen­tal. Mas será que podemos estar inteiramente seguros de que nossa "ciência" está desligada de tácitas valora-ções morais? Será mesmo que podemos ter a certeza de que nosso socialismo - aquele mesmo que se autopro-clama "científico" - não está dominado pela moral? E isso não na retórica de campanha, mas mesmo ali onde ele pensa fazer uma análise "objetiva", uma investigação "científica"? Sabe-se que essa purificação da ciência diante das valorações morais, do "ideológico" no sentido amplo da palavra, é um dos principais leitmotives de Althusser 5. Quem se atreve a percorrer as páginas de Lire le capital vai encontrar ali a tese segundo a qual Marx, ao instituir uma "ciência" do social, rompeu todo e qualquer elo com o "ideológico" em geral, logo, desfez todo e qualquer com­promisso também com a moral. Para se constituir como "ciência", um discurso deveria romper as amarras de seu passado com o "ideológico", deveria higienizar qualquer

5. Althusser, L., Lire le capital, Paris, Maspero, 1965.

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relação com os "valores", vestindo aquela improvável ca­rapuça que os weberianos apelidarão de "neutralidade axiológica". E essa ruptura da ciência com o seu passado "ideológico" que Althusser chamará - seguindo Bache-lard - de "corte epistemológico". Após fazer tal "corte", ao construir seu objeto como um "objeto de conhecimen­to", o socialismo científico se tornaria um discurso pu­rificado de qualquer "ideologia", logo, não contaminado por tácitas "valorações morais". Mas será mesmo que podemos estar tão certos assim da eficácia desses "cor­tes epistemológicos", vislumbrados pelo famoso alfaiate francês?

E essa certeza, justamente, que Nietzsche nunca te­ria. O que faz com que o território moral passe a ter uma extensão insuspeitada pelo crítico da ideologia: as inter­pretações morais podem estar sorrateiramente presentes, mesmo ali onde expressamente se pensou em excluí-las. Para Nietzsche, aquilo que Althusser chama de "ideoló­gico" está presente mesmo ali onde ele pensa ouvir um discurso puramente científico, visto que "os juízos morais cristãos voltam a aparecer nos sistemas socialistas e positi­vistas. Falta uma crítica da moral cristã"6. Tal será a suspei­ta de Nietzsche: em que medida toda ciência e toda filoso­fia estiveram, até hoje, sob a influência de juízos morais? Tentemos compreender o alcance dessa suspeita verifi­cando, por exemplo, como o ideal de "sociabilidade" cons­truído por filósofos e "cientistas" é um ideal comandado e determinado pela moral. E, para isso, voltemos a algumas páginas de Rousseau, já que ele teve importância na cons­tituição do ideal de sociabilidade adotado por "nossos so­cialistas". Que ideal de sociabilidade regia a cidade oriun-

6. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2(127], KSA, vol. 12, p. 125.

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da do contrato social? Quando Rousseau descreve sua ci­dade, vai ficando claro que, para ele, a sociabilidade perfei­ta exige do indivíduo nada mais, nada menos do que o "esquecimento de si", quer dizer, a supressão pura e sim­ples de sua própria individualidade. E esse ponto merece alguma atenção.

Com efeito, que problema Rousseau pretendia resol­ver no Contrato social? Simplesmente, o de encontrar "uma forma de associação que defenda e proteja com toda a for­ça comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, todavia só obedeça a si mesmo, e permaneça tão livre quanto antes" 7. Assim, a associação desejada é um certo todo ao qual eu obedeço mas em que, estranhamente, minha obediência não será vivida por mim sob a figura da coerção: devo ao todo social uma completa obediência, mas obedecendo a ele não obe­deço senão a mim mesmo. E uma estranha situação... Que tipo de relação deve existir entre o indivíduo e a sociedade para permitir tal resultado? Como pode haver completa coincidência entre cada um e iodos? A única possibilidade é que este cada um não seja de fato levado em considera­ção e anule-se diante da associação: de alguma forma, mi­nha particularidade deve desaparecer diante desse todo social, para que obedecer a ele seja equivalente a obedecer a mim mesmo; minha particularidade, quer dizer, minhas inclinações, meus desejos, tudo aquilo que me singulariza ou me individualiza em relação aos outros. E minha indi­vidualidade que deve desaparecer para que a cidade se tor­ne efetiva. Em outros termos, para que a cidade seja pos­sível é necessário que o interesse privado seja sempre

7. Rousseau, ].-)., Du contraí social, Paris, UGE, Col. 1 0 / 1 8 , 1 9 6 3 ,

p. 61 .

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idêntico ao interesse geral, é preciso que a vontade parti­cular seja sempre idêntica à vontade geral: apenas sob essa condição aquilo que a sociedade quer não é diferen­te do que eu quero, apenas assim a finalidade da cidade e a finalidade do indivíduo coincidem. Mas coincidem desde que o indivíduo renuncie à sua individualidade, a tudo aquilo que faz dele um particular diante dos demais. E por isso que esse contrato singular terá apenas uma cláu­sula, ou antes, terá cláusulas que se reduzem a uma só, e que será o comentário dessa absorção de cada um no todo: "a alienação total de cada associado com todos os seus di­reitos a toda a comunidade; pois, primeiramente, cada um se doando inteiramente, a condição é igual para todos; e a condição sendo igual para todos, ninguém tem interes­se em torná-la onerosa aos outros" 8. E apenas graças a essa alienação integral que a sociedade torna-se possível. E agora essa sociedade será o contrário mesmo de um agregado de indivíduos em que cada parte permanece in­dependente em relação ao todo. A verdadeira sociedade é uma associação: um todo orgânico, algo muito diferen­te de um somatório de individualidades, constituído por partes que não serão mais independentes de seu todo. E esse modelo orgânico que fará com que não seja arbitrá­rio falar em "membros" do "corpo político". Em um orga­nismo o membro é o corpo e o corpo é o membro; aqui não há distância concebível entre a parte e o todo. Logo, é por princípio que a vontade da sociedade coincide com aquela de seus membros, é por princípio que o interesse comum recobrirá o meu interesse. O corpo nunca vai que­rer o que não é o bem de seus membros e, obedecendo a ele, é a mim mesmo que obedeço. Mas a condição para

8. Rousseau,}.-]., Du contrai social, cit., p. 61 .

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9. Cf. Goldschmidt, V., Anthropologie et politique - les príncipes du système de Rousseau, Paris, Vrin, 1974, pp. 569 ss.

que essa cidade se realize é a transformação do indivíduo em cidadão, a renúncia de cada um à sua particularidade, aos seus interesses e inclinações, para então, perfeitamen­te identificado aos outros, comungar com todos no univer­sal. Não há cidade autêntica sem o "esquecimento de si" - aquilo mesmo que definirá a "virtude" para Robespierre.

Sabe-se que para Rousseau essa sociabilidade abso­luta perseguida no Contrato sempre permanecerá um ideal nunca perfeitamente realizável. Se a socialização exige uma transformação do indivíduo, uma mutação do ho­mem natural que o faça perder a sua singularidade, Rous­seau tem plena consciência de que essa transformação nunca será completa. Se a sociedade é artificial, ela jamais anulará inteiramente o natural. Os cidadãos poderão cha­mar-se membros do corpo político; mas a metáfora orgâ­nica não poderá mascarar o fato de que eles jamais pode­rão unir-se ao corpo político como os verdadeiros mem­bros se unem ao corpo natural, e cada um sempre terá uma existência individual separada da sociedade. Se ávida so­cial é uma desnaturação, ela jamais poderá instalar-nos no artificial puro, e o estado social, mesmo que ele iniba nos­sas inclinações, nunca poderá pura e simplesmente anu­lá-las 9. O ideal de socialização absoluta fracassa porque sempre sobrará algo de natureza em mim, algo de indiví­duo em mim, oposto aos desígnios da sociedade. E o que permanece de natureza em nós, o que permanece de in­dividualidade exclusiva, será sempre fonte de tensões na vida social. É nessa oposição renitente entre indivíduo e cidadão, entre o natural e o artificial, que estará a origem da "miséria humana". Mas, se é verdade que o ideal de so-

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ciabilidade construído no Contrato nunca será inteiramen­te realizável, não é menos verdade que, enquanto ideal, ele é algo em direção ao qual devemos caminhar. Deve­mos caminhar para o "esquecimento de si". Por isso a ci­dade deve exorcizar as inclinações individuais desses átomos turbulentos que são os indivíduos naturais, a so­ciabilidade exige a neutralização das particularidades que individualizam os seus membros. Donde os inúmeros tex­tos em que Rousseau vai vituperar contra tudo que indi­vidualiza os cidadãos, quer dizer, contra tudo que torna uns diferentes dos outros: contra a divisão do trabalho que, ao fazer de um agricultor e de outro, comerciante, individua­liza as pessoas, as particulariza e institui novas barreiras à sociabilidade completa. Donde os elogios de Rousseau a Roma: um romano não era nem Caius nem Lucius, era um romano. O aborrecido é que hoje em dia eles são Caio ou Lúcio, enquanto um é agricultor e o outro é comercian­te. A miséria é a indfvidualização.

O que pensar desse ideal de sociabilidade, inteira­mente construído sobre uma suspeita lançada contra o in­divíduo? Antes de verificar a resposta de Nietzsche a essa pergunta, convém notar que, para ele, "nossos socialistas" apenas farão eco a Rousseau, e também modelarão a sua comunidade futura a partir de uma desconfiança diante do indivíduo. E agora eles pensarão em tornar inteiramen­te realizável aquele ideal que, para Rousseau, deveria ser sempre perseguido, mas infelizmente nunca seria com­pletamente efetivado. E, para convencer-se disso, basta verificar o significado da categoria de "emancipação hu­mana" em um texto como A questão judaica de Marx. Ali, Marx critica Bruno Bauer por reduzir a questão da cidada­nia das minorias não cristãs à emancipação política do Estado, quer dizer, à sua laicização. E ele indicará que a emancipação política nunca se confundirá com a eman-

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cipação humana. Se com a emancipação política o Estado se liberta de um limite, isso não significa que os homens também se libertem desse limite: a religião, suprimida da esfera pública, permanece firme na esfera privada. Mas por que a religião é apresentada ali como um "limite" cuja superação seria por princípio desejável? Simplesmente porque ela diferencia os indivíduos, os particulariza e por isso mesmo os dissocia. Assim, a "questão judaica" perde sua autonomia e se dissolve em um problema mais geral. Afinal, a diferença religiosa é apenas uma entre tantas ou­tras que subsistem de fato na sociedade civil, apesar de te­rem sido abolidas no Estado: diferença entre proprietários e não proprietários, diferença de cultura, diferença de pro­fissão... A oposição básica que caracteriza o mundo mo­derno é aquela entre o indivíduo e o cidadão, uma oposi­ção que de forma alguma se limita ao código econômico, mas envolve também a distância entre o judeu e o cida­dão, entre o protestante e o cidadão, entre o jornaleiro e o cidadão 1 0. E daqui que decorrerá a implicância de Marx com a distinção entre direitos do homem e direitos do cida­dão, esse subproduto da Revolução Francesa que apenas consuma o divórcio entre o homem e ele mesmo. Os direi­tos do homem são aqueles do "indivíduo egoísta" e expri­mem uma sociedade patológica em que os outros são vis­tos não como minha realização, mas como limitação de minha independência. Donde a precariedade da emanci­pação política: a verdadeira emancipação humana só che­gará quando não houver mais nem Caius nem Lucius. A boa sociabilidade exige a supressão do indivíduo. Mas por que "avaliar" a individualidade como um mal, a ponto de se desejar suprimir até mesmo a divisão do trabalho?

10. Marx, K„ La question juive, Paris, UGE, Col. 10 /18 ,1968 , p. 24.

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Esse resultado a que os teóricos chegam lhes teria sido sussurrado pela pesquisa pura? Ao contrário, dirá Nietz­sche, o enfraquecimento e a supressão do indivíduo são uma das últimas "ressonâncias do cristianismo na moral". Se bem que a renúncia ao ego, observa ele, não fosse pon­to doutrinai do cristianismo primitivo, logo em seguida ela se tornou uma das marcas registradas da religião cris­tã. E hoje em dia positivismo, utilitarismo e socialismo prolongam essa herança, e até mesmo reforçam o pathos cristão pelo nivelamento. Deus morreu, mas os homens permaneceram iguais e semelhantes, como eram sob seu olhar. Por isso doutrinas e partidos são melodiosamente unânimes ao "exigir que o ego se renegue" em benefício de uma sociedade harmoniosa, até que o indivíduo "se te­nha tornado algo inteiramente novo e outro" 1 1. E, de fato,

11. Nietzsche, Aurora, § 132, Obras incompletas, c i t , pp. 172-3: "Parece agora que faz bem a todos ouvir dizer que a sociedade está em vias de adaptar o indivíduo às necessidades gerais e que a felicidade e ao mesmo tempo o sacrifício do indivíduo consistem em sentir-se como um membro e instrumento útil do todo: só que no presente ainda se oscila muito sobre onde esse todo deve ser procurado, se em um Esta­do vigente ou a ser fundado, ou na nação ou em uma irmandade de povos ou em novas pequenas comunidades econômicas. Sobre isto há agora muita meditação, dúvida, combate, muita excitação e paixão; mas admirável e melodiosa é a harmonia em exigir que o ego se renegue até que, na forma da adaptação ao todo, receba também de volta seu firme círculo de direitos e deveres - até que se tenha tornado algo in­teiramente novo e outro. Não se quer nada menos - quer se confesse ou não - do que uma transformação radical, e mesmo enfraquecimen­to e supressão do indivíduo; não se cansam de enumerar e acusar tudo que há de mau e hostil, de perdulário, de dispendioso, de luxuoso, na forma que teve até agora a existência individual, esperam dispor de uma economia mais barata, menos perigosa, mais equilibrada, mais uniforme, quando só houver ainda grandes corpos e seus membros. Como bom é sentido tudo aquilo que de algum modo corresponde a esse im­pulso formador de corpo e membros e seus impulsos auxiliares - esta é a correnteza moral básica de nossa época..."

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em nome do que exigir o "esquecimento de si"? Se o sen­timento de comunidade se traduz por um certo "exercício do olhar", pela vontade de uma ótica com a qual se quer tornar impossível olhar a si mesmo, é porque a indivi­dualidade foi avaliada e interpretada como o oposto da moral altruísta, como a sede do egoísmo, e é somente em nome dessa moral que o indivíduo é visto como algo a ser suprimido. O cristão e o socialista são representantes do mesmo ideal moral, e é este ideal que trabalha do interior, fornecendo as avaliações tácitas que comandam a cons­trução de um modelo de sociabilidade. Mas esse rancor contra o egoísmo também é instinto de conservação dos "fracos", o culto ao altruísmo é uma "forma específica do egoísmo", que sempre se manifesta sob certas "condições fisiológicas"1 2. Sendo assim, ao afirmar que nada deve ser mais levado a sério do que o problema moral, longe de flertar com o "idealismo", Nietzsche está apenas sendo fiel à própria história da moral. Afinal, o "traço comum na história da moral, desde Sócrates, é a tentativa feita para levar os valores morais à hegemonia sobre todos os de­mais valores, de maneira que eles sejam não apenas guias e juizes da vida, mas também guias e juizes: 1) do conhe­cimento; 2) das artes; 3) das aspirações políticas e sociais. 'Chegar a ser melhor', considerado como a única tarefa, não sendo todo o restante mais que um meio para esse fim (ou perturbação, dificuldade, perigo: e deve, por con­seguinte, ser combatido até a destruição...)" 1 3.

O teórico do "socialismo científico" responderia que qualquer contaminação de Marx pelo "ideológico" vale apenas para os textos de "juventude"? Ele diria que um "corte epistemológico" torna o socialismo científico intei-

12. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [29], KSA, vol. 13, p. 231.

13. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[159], KSA, vol. 12, p. 429.

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ramente purificado em relação aos valores? Ora, se é ver­dade que nos textos da maturidade não há mais qualquer menção ao conceito de "ser genérico" do homem, não émenos certo que o "velho" Marx nunca fez qualquer re­cusa expressa do ideal de sociabilidade presente na obra da "juventude". E isso porque, na verdade, se os "cortes epistemológicos" representam alterações de conceitos, eles deixam intactos os ideais. E por isso existe um nível da análise em que se pode verificar que o jovem e o velho Marx comungam no mesmo a priori. Prova? Que se veri-fiquem as suspeitas que as obras da maturidade ainda lançam contra a divisão do trabalho, e se encontrará ali o mesmo acento que comandava as análises do jovem Marx ou de Rousseau. Assim, A ideologia alemã sublinha que a divisão do trabalho implica "a contradição entre o interesse do indivíduo singular ou da família singular e o interes­se coletivo de todos os indivíduos que estão em relaçõesentre s i" 1 4 . E Marx lamentará que na repartição do tra­balho cada um tenha "uma esfera de atividade exclusiva e determinada", uma esfera que lhe é imposta e da qual ele não pode sair, sendo obrigado a ser ou caçador, ou pesca­dor, ou pastor, ou crítico, se não quiser perder seus "meios de existência" 1 5. Da mesma forma, em O capital ele dis­cordará alegremente da economia política que, miope-mente preocupada apenas com a "quantidade" e o valor de troca, "não acerta" ao encarar a divisão do trabalho apenas "como um meio para produzir com a mesma quan-tidade de trabalho mais mercadorias, com o conseqüente barateamento destas" 1 6. Em vez desse viés tacanhamen-

14. Marx, K., Vidéologie allemande, Paris, Éditions Sociales, 1968, p. 61 .

15. Marx, K., Vidéologie allemande, c i t , p. 63. 16. Marx, K., El capital, México, FCE, 1968,1 .1 , p. 297.

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te "produtivista" da economia política, Marx preferirá su­blinhar ali que a especialização no trabalho é o "parcela­mento do homem", que a divisão do trabalho converte o operário "em um monstro, fomentando artificialmente uma de suas habilidades parciais", às custas do aplaina-mento de "todo um mundo de fecundos estímulos e ca­pacidades". E por isso ele não terá dúvidas em apresentar a divisão do trabalho como "inseparavelmente" ligada a "certa degeneração física e espiritual do homem" 1 7 . Um eco simétrico e renovado daquela "sociedade comunis­ta" em que ninguém terá uma "esfera de atividade exclu­siva", mas em que, ao contrário, poderei fazer hoje uma coisa, amanhã outra, "caçar de manhã, pescar depois do meio-dia, pastorear à tarde, fazer crítica depois da refeição, segundo meu arbítrio, sem nunca tornar-me caçador, pes­cador ou crítico" 1 8.

Quem escreve essas linhas contra a divisão do tra­balho? A "ciência" econômica que se costurou através dos "cortes epistemológicos"? Ora, a estrita racionalidade eco­nômica, ao contrário, patrocina a divisão do trabalho en­quanto fator de produtividade. Quem escreve essas li­nhas não é a ciência econômica, é a moral. E sempre ela que está fornecendo a avaliação da individualidade como um mal a ser exorcizado - e é para melhor exorcizá-lo que se pensa em abolir até a divisão do trabalho. "Nin­guém se tornará caçador, pescador ou crítico": essas são as últimas ressonâncias do cristianismo na moral. É sem­pre a recusa moral do indivíduo que está na origem de nosso ideal de sociabilidade, não a razão pura. Por isso, não é nada absurdo reconhecer que os juízos morais cris-

17. Marx, K., £/ capital, cit., pp. 288, 293 e 296.

18. Marx, K., Vidéologie allemande, cit., p. 63.

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tãos voltam a aparecer nos sistemas socialistas e positi­vistas, e que falta uma crítica da moral cristã. Se "nossos socialistas" criticam a origem dos valores morais, eles con­tinuam acreditando nesses valores tanto quanto o cris­tão. Talvez paguemos caro termos sido cristãos por dois mil anos: se afastamos a religião, não afastamos ainda a sua moral, e o livre pensador continua detestando a Igreja, mas não o seu veneno. E se a moral nos domina, a von­tade permanece paralisada: o propalado "esquecimento de si" é idêntico à anulação do princípio da vontade.

Compreende-se assim porque, para Nietzsche, nada deve ser tão levado a sério quanto o problema moral: se os valores morais têm hegemonia sobre os demais valo­res, se eles são guias e juizes não só da vida mas também do conhecimento, das artes e das aspirações políticas e sociais, então eles só poderão estar no centro da investi­gação desta estratégia de formação que é a nossa "civili­zação". O que se torna mais evidente ainda quando se tem no horizonte aquilo que significa, para Nietzsche, a moral enquanto tal. Formulemos a pergunta nietzschiana por excelência: quem fala? O que quer aquele que abo­mina a individualidade? Quem fala é o "instinto de re­banho"; é ele quem diz "tu deves"; é ele que quer que o indivíduo só tenha valor em relação com o todo, para proveito do todo; é ele que odeia a independência indivi­dual. O que ele quer? O domínio, nada mais 1 9 . Mas, en­tão, o que será a "moral" para Nietzsche? A doutrina das relações de dominação sob as quais se desenvolve o fe­nômeno "vida" 2 0.

19. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[6], KSA, vol. 12, p. 273.

20. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 19, KSA, vol. 5, p. 34.

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II

Isso permite compreender por que Nietzsche será levado a recusar a distinção entre teoria e prática, tal como a tradição a entendia. Aristóteles já distinguia rigi­damente entre o domínio da teoria puramente contem­plativa, cujo objeto é o universal e o necessário, daquele da prática e da produção, que dizem respeito à contin­gência 2 1 . E, só por isso, para ele seria impensável qual­quer influência da prática sobre a teoria, da doutrina do contingente sobre o pensamento do necessário, cada um deles exigindo diferentes disposições da alma. Distinção retomada por Kant, que vai estabelecer, ele também, uma rígida separação entre teoria e prática. A prática pode ser a aplicação da teoria, mas o interesse prático nunca pode determinar a direção da teoria. Por isso, Kant protestará contra aqueles que, desconhecendo como o valor da prá­tica repousa inteiramente em sua conformidade à teoria, põem tudo a perder ao autorizar, absurdamente, a práti­ca a "reger a teoria autônoma" 2 2. Mas é essa distinção rí­gida entre teoria e prática, assim como a proibição kan-tiana de qualquer contaminação do teórico pelo prático, que necessariamente desaparece quando se reconhece que os valores morais comandam todos os demais.

Afinal, o que se precisa reconhecer agora é que o pre­tenso "instinto de conhecimento" dos filósofos é regido por suas verdades morais, e por isso mesmo é só "aparen­temente independente" 2 3. Por isso, Nietzsche só poderá

21 . Aristóteles, Éthique à Nicomaque, Paris, Garnier, 1965, Livro VI, caps. 1 a 5.

22. Kant, I., "Sur le lieu commun: il se peut que ce soit juste em théorie, mais, en pratique, cela ne vaut point", in Oeuvres phüosophi-ques, Paris, Gallimard, 1986, vol. III, p. 254.

23. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [143], KSA, vol. 13, p. 327.

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considerar "funesta" a distinção entre teoria e prática: como se houvesse por um lado um "instinto próprio do co­nhecimento", que se precipitaria cegamente em direção à verdade, sem perguntar-se sobre o que é útil e prejudicial, e, por outro lado, inteiramente à parte, "todo o universo dos interesses práticos" 2 4. Se o elemento moral domina, não existem conhecimentos desvinculados dos interes-sespráticosque, de fato, os comandam. Assim, ao ronffaTio da tradição, o que se trata de investigar é quais instintos estavam subjacentes ao trabalho dos pretensos "teóricos puros". Como para Nietzsche o ponto de vista do valor é o ponto de vista da conservação e do crescimento, não po­derá haver separação entre "conhecimento" e "interesse": o pretenso "instinto de conhecimento pode se reconduzir a um instinto de apropriação e de dominação". Por isso, a "probidade intelectual" é abandonada assim que a moral exige suas respostas: "A moral diz: eu preciso de numero­sas respostas - de razões e de argumentos. Escrúpulos poderão sobrevir depois - ou talvez não." 2 5 Donde os pro­testos de Nietzsche contra Kant e contra os antigos, que estabeleciam uma distinção rígida entre teoria e prática e procediam como se fosse a "intelectualidade pura" que lhes apresentava os problemas do conhecimento e da metafísica, fazendo como se, qualquer que fosse a respos­ta dada pela teoria, a prática deveria ser julgada segundo esses critérios, quando é exatamente o contrário que ocor­re: a "intelectualidade" dos filósofos é apenas a impressão pálida de um "fato fisiológico", visto que o decisivo não é a "verdade", mas o fer por verdadeiro, e essa decisão é sempre interessada 2 6. Desde então, não é surpreendente

24. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [142], KSA, vol. 13, p. 325. 25. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [142], KSA, vol. 13, p. 325. 26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [107], KSA, vol. 13, p. 285.

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Nietzsche afirmar que as intenções morais são a verdadei­ra semente da qual brota toda filosofia. É por isso que vale a pena perguntar sempre como se formaram as afirma­ções metafísicas as mais distantes de um filósofo, a qual moral ele quer chegar. São sempre outros instintos que se servem do "instinto de conhecimento", como de um instrumento 2 7. Por isso, não deve surpreender ninguém que para Hegel a história, rebatizada agora com o nome de "filosofia", se ponha a serviço da idéia moral, e seja considerada a realização progressiva dessa idéia: desde Platão a filosofia está sob o domínio da moral. Em todos os tempos nossos filósofos tomaram os "belos sentimen­tos" por argumentos, a mera convicção por critério da verdade. E as nossas doutrinas políticas - democráticas, anarquistas ou socialistas - não serão exceções a esse im­pério da moral.

Se esse império vem de tão longe, é porque a moral está presente na própria constituição da idéia de "filoso­fia", enquanto toda filosofia, até hoje, faz a separação entre "mundo aparente" e "mundo verdadeiro". De fato, em nome do que separar aparência e realidade verdadei­ra? De onde vem a exigência dessa separação, sob qualquer uma de suas figuras históricas, a platônica, a cartesiana ou a marxista? Essa exigência provém de um sistema enca­deado de valorações: hostilidade cega em relação aos sen­tidos; construção de um verdadeiro mundo a fim de dene­grir e sujar o mundo dado. "Os filósofos nunca hesitaram em aprovar um mundo, sob a condição de que ele con­traste com este mundo, que ele forneça um meio cômodo de falar mal deste mundo." E por que a história da filo­sofia foi até hoje uma "escola da calúnia"? Se em todas

27. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 6, KSA, vol. 5, p. 20.

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as épocas os filósofos desempenharam com tanta desen­voltura o papel de detratores, foi porque eles acreditaram nas verdades morais e por isso só lhes restava dizer "não" à existência2 8. Sócrates já dizia que "a vida não vale nada", ele já era um "decadente". Assim como é de origem mo­ral o privilégio arcaico da razão, privilégio contemporâneo ao nascimento da filosofia. Na República, Platão define a justiça, na cidade e nos indivíduos, como sendo o predo­mínio da razão sobre as paixões. Isso é puro moralismo, dirá Nietzsche: essa necessidade de transformar a razão em tirano das paixões vem da certeza prévia - e certeza moral - de que as paixões e os instintos conduzem ao abismo 2 9 . A confiança na razão é puramente moral, e por isso Nietzsche não deixará de sublinhar, no Crepúsculo dos ídolos, a corrupção do gosto grego no momento em que começa a preponderar a dialética, o vício dos "racio­cínios" e das "demonstrações" para convencer as pessoas. Antes de Sócrates virar sucesso de público e de crítica, na boa sociedade grega se desconfiava dessa maneira de apresentar raciocínios, se considerava que as coisas boas e os homens honrados não trazem as suas "razões" as­sim tão à mão, e que as coisas suscetíveis de demonstra­ção têm pouco valor. E que ali onde a autoridade ainda faz parte dos bons costumes não se "demonstra", se manda30. Foram certamente esses textos que inspiraram Foucault, quando ele analisa a mudança de regime do discurso ver­dadeiro, apontando para o momento em que a verdade deixa de reportar-se à autoridade de quem fala para inte-

28. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [134], KSA, vol. 13, p. 317. 29. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos,

§ 10, KSA, vol. 6, p. 72. 30. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos,

§ 5, KSA, vol. 6, p. 69.

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riorizar-se na proposição 3 1. Para Nietzsche, a vitória da dialética e de suas verdades "universais" significará a preponderância da "plebe" em face dos poderosos, e por isso haverá correlação estrita entre dogmatismo filosófi­co, democratismo e vontade de potência do rebanho. A "vontade de verdade" nos remete diretamente para o ter­reno da moral 3 2.

Donde o quadro mais amplo no interior do qual ga­nha sentido afirmar que nada deve ser mais levado a sé­rio que o problema moral. Se as intenções morais estão na origem da constituição da própria idéia histórica de "fi­losofia", compreende-se que a moral seja o objeto pri­vilegiado na análise de nossa "civilização". Isso significa reconhecer que o problema dos valores é mais funda­mental que o da certeza: a questão da certeza só adquire importância supondo-se respondida a pergunta sobre os valores 3 3. O que é apenas dizer, com outras palavras, que tudo é interpretação; que as filosofias são confissões deseu autor; que não há verdade mas apenas o ter por ver-dadeiro; ou, ainda, que Deus morreu. E se a questão do valor tem precedência sobre todas as outras, não é sur­preendente que Nietzsche conceba as morais como o principal meio para se fazer do homem o que se quer. Tese que também pode ser formulada de outra maneira: já está mais do que na hora de dar um basta a este prejuízo que é a doutrina da influência do meio e das causas exteriores sobre o homem, visto aue os ideais comandam mais queo meio ou a sociedade. Mas uma vez estabelecido o pri­vilégio do território moral, é preciso perguntar com que método Nietzsche vai analisá-lo.

31 . Foucault, M., Uordre du discours, Paris, Gallimard, 1971. 32. Nietzsche, A gaia ciência, § 344, Obras incompletas, cit , pp. 212-3. 33. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[49], KSA, vol. 12, p. 311.

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III

O significado do método de Nietzsche é indissociá­vel de sua crítica ao tratamento dispensado pelos filóso­fos ao país da moral; essa crítica não só singulariza a aná­lise de Nietzsche como também determina o seu sentido. Esse novo ato se desdobra a partir da contraposição en­tre duas teses. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que nada merece ser mais levado a sério que a moral. Em segundo lugar, a constatação de que, até hoje, a moral nem sequer foi um problema, já que ela era, ao contrário, "precisamente aquilo em que, depois de toda desconfian­ça, discórdia, contradição, entrava-se em acordo, uns com os outros, o lugar santificado da paz, onde os pensado­res também repousavam de si mesmos, respiravam, revi­viam" 3 4 . Esse contraste entre a relevância da questão mo­ral e a ausência de um problema moral em toda a tradição vai desenhar a originalidade da posição de Nietzsche. Mas o que significa, exatamente, afirmar que até hoje a moral nem sequer foi um problema? A primeira vista essa afirmação é surpreendente, já que a reflexão moral tem uma longa história, desde Sócrates. Em que sentido, en­tão, todos os autores refletiam sobre a moral, mas não faziam dela um problema? Para onde se quer apontar quando se afirma que o terreno da moral é aquele onde cessam todas as oposições, onde todos se põem de acor­do, onde se dá fim ao pólemos, onde por princípio existe "unanimidade", quer dizer, onde o dogmatismo melhor se exprime? E como existem diferentes filosofias morais no curso da história, o que se pretende, aparentemente, é delimitar o terreno de um acordo de fundo entre todos, si-

34. Nietzsche, A gaia ciência, § 345, Obras incompletas, c i t , p. 214.

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tuado aquém das diferenças doutrinais, onde convergi­riam platônicos e estóicos, utilitaristas e kantianos. Mas onde localizar esse solo comum?

Em Para além do bem e do mal, Nietzsche indica que os filósofos, antes de mais nada, exigiam muito de si mes­mos; quando se ocupavam da moral, exigiam de si algo muito alto, muito presunçoso, muito pomposo. O que quiseram os filósofos? Eles quiseram "fundar a moral - e não importa qual filósofo do passado acreditou que tinha fundado a moral" 3 5 . Digamos então que, doravante, de­vemos abandonar essa pretensão arrogante, e que a aná­lise da moral não deverá desaguar mais em nenhuma "fundação". Mas essa simples acusação de megalomania ainda não nos auxilia muito: o que este projeto funda-cionista clássico tem de censurável, para além de sua pre­sunção? Talvez uma das críticas que Nietzsche dirige a Kant e a Hegel nos auxilie a compreendê-lo. Em um de seus fragmentos póstumos, ele diz não querer deixar-se enganar nem à maneira kantiana, nem à maneira hege-liana, visto que "já não cremos, como eles, na moral e, por conseguinte, não temos que fundar nenhuma filoso­fia para fundamentar a moral" 3 6. Isso parece sugerir que a fundamentação da moral deixa de ter sentido quando não se acredita mais nos valores morais. E, agora, os filó­sofos seriam censuráveis menos pela megalomania do empreendimento fundacionista e mais pelo pressuposto deste: só quem crê na moral pode pensar em fundá-la. Mas então seria por isso que até hoje a moral não foi um problema, e seria essa crença na moral o solo comum a todos os filósofos, aquém de suas diferenças doutrinais?

35. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 186, KSA, vol. 5, p. 105.

36. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[195], KSA, vol. 12, p. 162.

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Essa interpretação imediata parece confirmar-se no afo­rismo 186 de Para além do bem e do mal, onde, após lamen­tar o projeto fundacionista dos filósofos, Nietzsche obser­va que para todos eles a moral era sempre um "dado".

Todavia, essa interpretação é tão imediata quanto fal-sificadora, e tem ainda o inconveniente grave de impor a Nietzsche duas máscaras que não têm nada a ver com seu personagem. Em primerio lugar, a interpretação é falsifi-cadora, já que, ao se aceitá-la, a originalidade de Nietzsche se resumiria a descrer daquilo em que a tradição crê, sua filosofia se limitaria a uma negação simples da tradição, seu ato inaugural seria apenas o de dizer que os filósofos levaram a sério a moral, em vez de livrar-se dela. E é des­sa simplificação que decorrem dois contra-sensos: a ima-gem do Nietzsche libertário e aquela do Nietzsche des-mistificador. Em primeiro lugar, a imagem do "libertário": como se a escolha primeira de Nietzsche fosse pura e sim­plesmente afastar os valores morais, sob o argumento deque a moral é uma "tirania". O próprio Nietzsche não deixa de advertir-nos contra essa imagem. Para ele, o li­bertário é apenas um moralista a mais. Pois, se toda moral é uma tirania que se exerce contra a natureza e contra a razão, "isso não é uma objeção contra ela, pois apenas al­guma moral permitiria decretar a interdição de toda espé­cie de tirania ou de desrazão" 3 7. E se o anarquista protesta contra a "tirania das leis arbitrárias", Nietzsche, por seu lado, prefere observar que tudo o que há de grande no pensamento e nas artes se desenvolveu graças à "tirania" dessas leis. Afastemos, portanto, a imagem do Nietzschelibertário. E também aquela do "desmistificador": como se a posição de Nietzsche com relação à moral fosse a de

37. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 188, KSA, vol. 5, p. 108.

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decretar que os valores não são nada. Se o ato inaugural de sua filosofia fosse declarar a nulidade dos valores, nem se compreende como se poderia falar, ainda, em um "pro­blema" moral. Da mesma forma, a crítica ao universo cristão do "dever ser" não significará a censura a todo e qualquer valor, a transvaloração dos valores não será a ne­gação da idéia mesma de valor, ao contrário, criar valores sempre será, para ele, o "verdadeiro direito do senhor".

Mas, então, qual é o solo comum a todos os filósofos, o terreno inquestionado que fez com que, até hoje, a mo­ral não tenha sido um problema? Tomar a moral como um dado não é simplesmente crer na moral. É acreditar em uma moral válida para todos. Como fazem os utilita-ristas ingleses, que dão razão à moralidade inglesa porque ela serviria melhor à "humanidade", ou ao "bem comum", ou à "felicidade da maioria", e por isso despendem todas as suas forças para provar "que a aspiração à felicidade inglesa, quer dizer, ao confort e à fashion (no fim com um lugar no Parlamento) é também o verdadeiro caminho da virtude, melhor: que jamais houve virtude no mundo que não tenha consistido em semelhante aspiração" 3 8. Se a moral surge como um dado, é a partir do prejuízo univer-salista, que leva a falar na moral, em vez de reconhecer a existência de morais. Assim, o pecado capital dos filósofos é prévio à sua megalomania: se eles pretendem fundar a moral, é porque partem do prejuízo de que existe, por princípio, uma moral universal, logo, única. E esse o pon­to em que todos terminam por estar de acordo, o solo de paz para aquém das divergências doutrinais: por mais que os sistemas difiram, todos convergem no prejuízo de uma moral que estabeleça preceitos obrigatórios para não im-

38. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 228, KSA, vol. 5, p. 164.

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porta qual indivíduo. Por isso, a moral nunca entrou na cena filosófica como um problema. E que para Nietzsche os verdadeiros problemas da moral "só se deixam apreen­der comparando diversas morais" 3 9 .

Mas, se é isso, o resultado pode parecer bem magro: se o verdadeiro problema da moral só surge com o reco­nhecimento de que existem diversas morais, nos limi­taríamos a exclamar, com Pascal, que o "justo" aquém dos Pirineus é "injusto" para além deles, que os valores são por isso mesmo relativos etc. Mas será que o essen­cial, para Nietzsche, está na consciência prévia de uma relatividade dos valores? Existem razões para se duvidar: o relativismo é um subproduto do historicismo do sécu­lo XIX, e Nietzsche nunca manifestou simpatia por essa seita. O historicismo leva ao relativismo, e este ao ceticis­mo moral, à idéia de que, se existem várias morais, então nenhuma é a "verdadeira", nenhuma efetivamente obri­ga ninguém. Ora, tanto o "dogmático", que afirma a exis­tência de uma moral única e verdadeira, que por isso mesmo obriga a todos, quanto o historicista cético, que reconhece a existência de uma pluralidade de morais, lo­go, afirma a inexistência de uma moral verdadeira para obrigar alguém, são pseudo-antagonistas que pertencem ao mesmo sistema de pensamento, o sistema que se con­tenta em opor o verdadeiro ao falso. Por isso, Nietzsche recusará os dois partidos: entre aquele que afirma uma moral única que obrigaria a todos e aquele que, ciente da variabilidade das morais, conclui que nenhuma mo­ral obriga, temos apenas "dois pontos de vista igual­mente infantis" 4 0. Apenas saindo desta pré-escola da

39. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 186, KSA, vol. 5, p. 106.

40. Nietzsche, A gaia ciência, § 345, KSA, vol. 3, p. 579.

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filosofia se poderá reconhecer os problemas da moral e, enfim, fazer a sua crítica. Assim, se a crítica da moral exi­ge a comparação entre diversas morais, também exige ou­tra coisa: exige que se saia para uma posição fora da moral, assim como o andarilho que deixa a cidade para saber a altura de suas torres 4 1.

O que é situar-se fora do terreno da moral? Não é apenas recusar-se a proceder como o anarquista ingê­nuo, que critica a moral em nome de outra moral. Não é somente deixar de mimetizar o socialista, que critica a origem transcendente dos valores morais, mas acredita neles tanto quanto o cristão. Sair fora do terreno da mo­ral é tudo isso, mas também muito mais do que isso: é precaver-se contra a ilusão a mais tenaz que nos afasta da verdadeira questão crítica, que é a pergunta pelo valor de nossos valores. A verdadeira questão crítica exige uma "li­berdade" diante de toda "Europa", entendida como "uma soma de juízos de valor imperativos, que nos entraram na carne e no sangue". A ilusão a mais tenaz veiculada pela Europa, aquela que faz dogmáticos e céticos comun­garem nos mesmos pressupostos, é não se situar para além de bem e mal para analisar a moral, é não sair da cidade para conhecê-la. O que é situar-se para além de bem e mal? E situar-se para além da "vontade de verda­de" e reconhecer que a mentira é uma condição vital 4 2. É exatamente isso que os teóricos da moral nunca fazem: para o dogmático, a verdade universal obriga a todos; para

41 . Nietzsche, A gaia ciência, § 380, Obras incompletas, cit., p. 222. 42. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 4, Obras incompletas,

cit., p. 270: "Admitir a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, opor resistência, de uma maneira perigosa, aos sentimen­tos de valor habituais; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, simplesmente com isso, para além de bem e mal."

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o historicista, o conjunto das inverdades não obriga a nin­guém; para nenhum deles a mentira pode ser vista como uma condição vital, como útil sob algum aspecto. E por isso ninguém fez uma verdadeira crítica da moral, nin­guém sequer atinou com o verdadeiro problema que a moral suscita, que é aquele do valor dos valores. Os dog­máticos nem imaginam fazer uma crítica da moral. Os historicistas, quando pensam empreendê-la, o fazem de maneira ingenuamente intelectualista. Pois como eles procedem? Eles criticam a opinião de um povo sobre sua moral, ou de um homem sobre toda moral, e pensam que com isso criticaram a própria moral. Mas o valor de um "tu deves" é independente das opiniões do usuário e de seu possível erro, assim como o valor de um medicamen­to para um doente não depende de suas opiniões médi­cas. O que se precisa reconhecer é que uma moral "pode­ria ter crescido a partir de um erro: mesmo com essa no­ção, o problema de seu valor ainda não teria sido sequer tocado" 4 3 . Por isso, ninguém examinou, até hoje, o valor da moral, esta "mais célebre de todas as medicinas". Dog­máticos e historicistas rezam pela mesma cartilha, perma­necem cativos das armadilhas da oposição entre verdade e falsidade. Que se celebre, portanto, nos dois antago-nistas, mais uma vitória do platonismo: a verdade obri­ga, o erro não obriga, é este sistema, mais uma vez, que impede a crítica da moral, é por ele que o problema da mo­ral nem mesmo vem à tona. Que voz fala através de dog­máticos e historicistas, sem que eles percebam? E a voz de Sócrates. Pois o que é o socratismo moral? Nietzsche o descreve no aforismo 190 de Para além do bem e do mal. Ele é a associação espontânea entre, por um lado, o erro, o mal

43. Nietzsche, A gaia ciência, § 345, Obras incompletas, cit., p. 214.

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e o inútil e, por outro, entre a verdade, o bem e o útil. Uma vez feitas essas associações, não ocorrerá a ninguém per­guntar por que certas mentiras foram adotadas, que con­dição vital elas preenchiam. Por isso, os verdadeiros pro­blemas da moral só surgem para quem afasta de seu ho­rizonte o dogmatismo e o historicismo - essas duas for­mas ainda platônicas da filosofia moral. Apenas depois desse gesto se pode perguntar pelo valor dos valores e, efetivamente, fazer a crítica da moral. Esta, garante Nietz­sche, é justamente nossa obra.

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CAPÍTULO IV

IDEAIS DE CONVIVÊNCIA

I

Qual é o campo semântico da palavra "bom"? Ela designa o não-egoísmo, a piedade, a renúncia, o altruís­mo e a abnegação, valores que formam o a priori de nos­sa civilização, descritos e divinizados por Schopenhauer. No que, aliás, ele não inovava: todos consideram como um dado, como real o valor desses valores; este é um pon­to acima de toda disputa; cegamente se atribui ao "bom" um valor superior ao "mau", superior no sentido do pro­gresso, da utilidade, da influência fecunda no desenvolvi­mento do homem. Estão aqui os nossos lugares comuns. "Dizemos boas as virtudes de um homem não por causa dos resultados que elas podem ter para ele, mas por cau­sa dos resultados que elas podem ter para nós e para a sociedade." 1 O "bom" é sempre associado ao altruísmo, e não há bem senão universal, a serviço de todos. A virtude é sempre o sacrifício do indivíduo à sociedade, e a moral

1. Nietzsche, A gaia ciência, § 21, KSA, vol. 3, p. 391.

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da piedade sempre fará do auxílio ao próximo o leitmotiv da ação justa. É em torno desses valores que se tece a exi­gência de "humanização", tão propalada pelos "europeus", pela qual ingenuamente se acredita saber o que é o huma­no2. E que a moral supõe que se saiba, de uma vez por to­das, o que é o bom e o mau, o que implica saber algo mais, implica pretender saber qual o destino do homem, quais são os seus fins, supõe já saber que o homem tem um fim, um destino. Nenhuma surpresa, então, se filosofia moral e filosofia da história são velhas cúmplices. Um casamen­to que Nietzsche já comentava nas Considerações extem­porâneas, ao analisar os "homens históricos": para estes, a observação do passado sempre os leva a prejulgar o fu­turo, eles têm a esperança de que o Bem terminará por chegar, que a felicidade está atrás da montanha em dire­ção à qual eles caminham 3. Saudemos Kant por ter intro­duzido, na Alemanha, esta "evidência" a mais: se existe uma "história universal", ela só testemunha a tendência da humanidade a caminhar em direção ao Bem. Afinal, para ele, a razão que se exibe na natureza não pode estar ausente da saga humana, e é uma hipótese altamente ra­cional considerar que o gênero humano progride "em direção ao melhor no que concerne ao fim moral de sua existência". Uma hipótese tão racional que Kant nem se preocupa em prová-la: cabe a quem a combate demons­trar o contrário 4. Já nos acostumamos às filosofias do "melhoramento" do homem, a essa idéia de que a histó­ria será a realização da moral.

2. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[173], KSA, vol. 12, p. 437. 3. Nietzsche, Considerações extemporâneas, II, § 1, Obras incomple­

tas, cit, p. 59. 4. Kant, "Sur le lieu commum...", in Oeuvres philosophiques, cit.,

p. 294. «

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É essa mesma convicção de que o bem e a felicidade estão logo ali, atrás da montanha em direção à qual ca­minhamos, que preside também o discurso político. Em nossa época "antiidealista", é a política que vai permitir a realização do "reino dos fins", no interior da história universal. Através dela, o homem "bom" finalmente se tornará real e a humanidade ganhará nova face: passare­mos todos da pré-história à história. Isso é dito e repetido sem se levar em conta que, através da ruptura política, são sempre os velhos valores que permanecem: altruísmo, de­sinteresse, não-egoísmo... E já seria uma investigação à parte perguntar por que, em nossa época, a política tor­nou-se uma atividade tão superestimada. Afinal, admite-se tacitamente que um acontecimento político pode alte­rar profundamente a civilização e a humanidade. Nunca, como agora, o político foi tão visto como o responsável pela solução de todas as mazelas humanas. Ele adquiriu uma extensão terapêutica desconhecida anteriormente, quando resolvia a questão da comunidade, mas não era o responsável por uma nova humanidade. De onde vem esse lugar privilegiado da instância política? Nietzsche já se insurgia contra isso nas Considerações extemporâneas, ao criticar aqueles filósofos crentes de que um acontecimento político poderia resolver a questão da "existência". Certa­mente, diz Nietzsche, uma "estupidez" oriunda do hegelia-nismo, com sua pregação de que "o Estado é o alvo su­premo da humanidade e de que não há para homem ne­nhum dever superior ao de servir o Estado" 5. E é um fato que, no século XIX, a política tornou-se uma instância su­perestimada, até mesmo pelos críticos de Hegel que, como

5. Nietzsche, Considerações extemporâneas, III, § 4, Obras incom­pletas, cit., p. 74.

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sempre, combatem o "idealismo" mas não os "ideais". Afinal, é nada mais nada menos do que a "emancipação humana" que se decide no interior dos acontecimentos políticos, é toda a questão da existência que se resolve graças à política. Onde se origina esse poder excepcional atribuído ao fenômeno político até mesmo por nossos "materialistas", até mesmo pelos críticos de Hegel? O que fez da política, no mundo "ateu" e materialista, esse tipo de panacéia universal?

Feuerbach já indicava, candidamente, a razão. No universo "ateu" oriundo de sua crítica à teologia, no do­mínio enfim reencontrado da antropologia, como o gêne­ro humano é o único objeto real, e não mais o velho Deus das teologias, agora a política deve tomar o lugar da reli­gião. "Pois precisamos voltar a ser religiosos - a política deve tornar-se nossa religião -, mas ela só o poderá quando ti­vermos um ideal que transformará para nós a política em religião."6 Agora temos esse ideal: se o homem, com suas necessidades terrestres, substitui o cristão, a comunida­de do trabalho também deve substituir a comunidade da prece, e a política pode tornar-se nossa religião. Como nota Lõwith, com a mesma lógica que leva Kierkegaard a explicar a politização como uma conseqüência do desa­parecimento da fé cristã, Feuerbach deduz, da fé no ho­mem enquanto tal, a necessidade da politização. Mas se a política deve tornar-se religião, então não é nada sur­preendente que se pense o político como a instância ca­paz de resolver todas as questões da existência. Se isso ocorre é porque a política, ao substituir a religião, herda

6. Feuerbach, L., Briefwechsel und Nachlass, K. Grün (ed.), Hei-delberg, 1874, p. 409, apud Lõwith, K„ De Hegel à Nietzsche, Paris, Gal-limard, 1969, p. 107.

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seus privilégios arcaicos, assim como o "gênero humano" já herdava a infinidade de Deus. O que pensar dessa su-perestimação do político? "A ilusão política, diz Nietzsche, da qual sorrio do mesmo modo como os contemporâneos sorriem da ilusão da religião de outros tempos, é antes de tudo mundanização, a crença no mundo e o tirar da cabeça 'além' e 'ultramundo'. Seu alvo é o bem-estar do indiví­duo fugaz: por isso o socialismo é seu fruto, isto é, os in­divíduos fugazes querem conquistar sua felicidade, por as­sociação." 7 Se a ilusão política é apenas a ilusão religiosa tornada mundana, não é de espantar que ela apenas pro­longue os velhos valores.

Por isso o socialista permanece preso ao "ridículo oti­mismo" do homem "bom", que espera escondido a aboli­ção da ordem atual. Pois a convicção do socialista sempre parte desta antropologia tácita: o homem é "bom", são as instituições que o corrompem - o que era exatamente a certeza da qual Rousseau já partia no Discurso sobre a ori­gem da desigualdade. Alteremos as instituições, e a bonda­de natural encontrará seu escoadouro. E esse ideário que "nossos socialistas" prolongam, sem qualquer reflexão. Essa é a tese de Nietzsche desde as Considerações extem­porâneas: é sempre o homem de Rousseau que se agita sob todas as convulsões socialistas. Esse homem bom é aquele que recebeu seu cetro da Revolução Francesa, que não fez senão promover este "asilo alienado das idéias modernas" 8. Afinal, quem é esse homem "bom" da Revo­lução Francesa e de Rousseau, que é herdado pelo imagi­nário do socialismo? Ninguém mais senão o homem cris-

7. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [163], KSA, vol. 9, p. 504, Obras incompletas, cit., p. 390.

8. Nietzsche, A gaia ciência, § 350, KSA, vol. 3, p. 586.

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tão. Por mais que se pense o contrário, aquele homem natural não passa de uma idealização cristã. O que não é surpreendente, se formos fiéis ao preceito nietzschiano de procurar o cristianismo mesmo ali onde este não se reves­te mais de sua forma dogmática. Afinal, qual era o pro­cedimento de Rousseau? Para melhor enraizar a humani­dade sonhada pela moral cristã, ele pensa em extraí-la da Natureza. E, para isso, ele forja o conceito de uma Natu­reza que seria liberdade, bondade, inocência, justiça, idílio. No fundo, essa Natureza imaginária já é o culto da moral cristã9. O restante da operação já se conhece: após conce­ber a Natureza como a boa Natureza de antes da queda, a "instituição" entra no lugar do pecado original, como origem da corrupção. E por isso a Revolução Francesa, promovendo o homem bom de Rousseau, foi mais uma vitória insidiosa do cristianismo.

É esse homem "bom" que "nossos socialistas" que­rem prolongar e disseminar, agora em escala planetária, sem ao menos se perguntar que tipo de "civilização" eles consolidam com esse gesto. Sem perceber que o "bom" construído pelo cristianismo é expressão apenas de uma moral, que não é única, sem se perguntar assim pelo valor dos valores, nossos ideólogos afetam saber hoje em dia aquilo que até Sócrates reconhecia ignorar: eles sabem o que é o "bom" e o "mau". Cristãos, democratas ou socia­listas, todos se reportam ao mesmo dicionário para tradu­zir a palavra "bom", todos lhe atribuem o mesmo campo semântico. Por isso as querelas serão sempre de família e só dirão respeito à questão de se saber qual o melhor meio para promover esse fim comum. Mas é preciso levantar a questão que importa: qual o valor desses valores? E essa

9. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[170], KSA, vol. 12, p. 558.

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pergunta deve ser formulada levando-se em conta o mé­todo de Nietzsche. A primeira condição é reconhecer que a moral atual não é mais do que um tipo particular de moral humana, e não a "moral mesma", como alguns de­sejariam. A segunda condição é tomar consciência de que os verdadeiros problemas da moral só emergem quando se comparam várias morais. E, se é assim, comecemos por contrapor dois ideais bem distintos de convivência entre os homens, sussurrados por diferentes morais.

II

Qual é, para nossa moral, o ideal de convivência de­sejável? Para vislumbrá-lo, vale a pena seguir, por um momento, a análise que Nietzsche faz das transformações morais em Roma, no aforismo 201 de Para além do bem e do mal. A tópica de Nietzsche ali é uma daquelas que guia­rá Foucault em sua História da sexualidade: trata-se de in­vestigar como, a partir de determinado momento, um cer­to domínio de ações, que não pertencia ao reino das preo­cupações morais, passa a fazer parte do campo de olhar da moral. Particularmente, trata-se de assinalar como é só a partir de determinado momento que a ação "piedosa" passa a ser vista como uma ação moral. Na época flores­cente de Roma, garante Nietzsche, quando o olhar estava voltado exclusivamente para a manutenção da comunida­de, quando se localizava o imoral apenas no que podia ser perigoso para a comunidade, ainda não se podia falar em uma moral de amor ao próximo. Mesmo se já existissem ali práticas de clemência, de eqüidade, de compaixão e de ajuda mútua, essas práticas não pertenciam, ainda, ao do­mínio dos juízos morais, ainda estavam fora da moral. As-

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sim, na melhor época de Roma, "uma ação piedosa não é nem boa nem má, nem moral nem imoral, e se a lou­vam, o elogio acomoda-se muito bem com uma espécie de desdém involuntário, particularmente quando se com­para essa ação com uma outra que presta serviço à co­letividade, à res publica. No final das contas, o 'amor ao próximo' é sempre coisa secundária, em parte convencio­nal, arbitrária e ilusória em comparação ao temor do pró­ximo"10. Ora, foi somente quando a estrutura da socieda­de romana pareceu solidamente estabelecida e plena­mente assegurada contra o perigo externo que o temor do próximo sofre um deslocamento e "abre novas perspecti­vas ao julgamento moral". O que acontece na Roma con­solidada? Agora, os instintos potentes e perigosos, como o gosto pelo risco, a coragem temerária, a paixão de domi­nar, instintos que eram honrados, cultivados e fortificados por serem essenciais contra o inimigo externo, não tendo mais o antigo canal de escoamento, são pouco a pouco ta­xados de imorais e abandonados à calúnia. E doravante passam a ser honrados e tidos por morais os instintos opostos: a eqüidade, a modéstia, o que inclina os homens a se nivelar aos outros, todas as aspirações medíocres são então honradas e saudadas como morais. O que se dese­ja é o espírito tolerante, modesto, submisso e igualitário, o que possui desejos "medidos e medíocres". Simetrica-mente, a partir de então será considerado mau tudo aqui­lo que eleva o indivíduo diante dos outros e causa temor ao próximo.

E a partir desse sistema criado na Roma consolidada que se desenha o nosso ideal de vida comunitária: todos não querem ter mais nada a temer na convivência. Por isso,

10. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 201, KSA, vol. 5, p. 122.

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dirá Nietzsche, aquele "que examina a consciência do eu­ropeu moderno, descobrirá nas mil pregas e recantos da moralidade o mesmo, sempiterno imperativo, aquele do temor gregário: 'Nós queremos, um dia, não ter mais nada a temer.' Um dia... A vontade e o caminho que conduzem a este ponto se chamam hoje em dia, em toda a Europa, o 'progresso'" 1 1. Nada a temer na convivência: é aqui que se instala o imaginário social do europeu, aqui está o territó­rio de sua felicidade, e não é por acaso se, para Nietzsche, a religião da compaixão remete ao culto do bem-estar 1 2 . Mas o que é que se supõe para que não haja mais nada a temer na convivência? Nada mais, nada menos que a vida comunitária possa ser por princípio não conflituosa, que se possa exorcizar dela todo e qualquer polemos. E isso nos leva a um pressuposto mais remoto. Se imaginam uma convivência por princípio não conflituosa, é porque se supôs, desde o início, que os átomos que compõem essa comunidade nunca serão turbulentos, nunca aspirarão a nada e, por isso, nunca entrarão em conflito, por isso a con­vivência nunca será polêmica. Nada a temer na convivên­cia, se os indivíduos dessa comunidade são os sujeitos da "felicidade" espinosana, sempre definida pelo repouso, se todos aspiram apenas à "conservação de si", e nunca a um acréscimo de poder13. A paz certamente reinará no estábulo se as vontades estiverem paralisadas e se o homem for por princípio um "esgotado". E, se a convivência não for mais conflituosa, se enfim as "contradições" forem todas supe­radas, livre curso poderá ser dado às fantasias sobre o futu­ro. Se a moral do rebanho aspira como sua "felicidade" à segurança, à falta de perigos, ao bem-estar, à facilidade

11. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 201, KSA, vol. 5, p. 123. 12. Nietzsche, A gaia ciência, § 338, KSA, vol. 3, p. 567. 13. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[121], vol. 13, p. 300.

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da vida, no final, se tudo der certo, ela "espera subtrair-se também a todo gênero de pastores e de guias" 1 4. Em outras palavras, o "nada a temer na convivência" desenha agora o estado futuro de um rebanho tão bem domesticado que pode dispensar-se até mesmo de qualquer chefia. E todas as doutrinas da paz perpétua, todas as teorias da "morte do Estado", tacitamente supõem esta antropologia para que seu enredo chegue ao happy end desejado: quando se fala em morte do Estado, é porque se imagina uma convivência futura que, por princípio, não será mais conflituosa; e se o conflito pode diluir-se no horizonte é porque se supõe que os cidadãos da nova Polis serão todos sujeitos da felicidade espinosana, indivíduos com a vontade paralisada.

III

Esse ideal de uma convivência por princípio não con­flituosa seria o único presente em nossa história? Não. E é o ideal oposto que Nietzsche pensa encontrar na Gré­cia antiga, onde a boa convivência era inseparável da idéia de uma disputa sem fim, onde a "decadência" dos indiví­duos e das cidades sobrevinha com o fim dos conflitos 1 5. Para Nietzsche, a "porta de entrada" da ética grega são as duas Uris, as duas deusas da discórdia que Hesíodo des­creve em Os trabalhos e os dias. Se uma delas é odiosa, é porque fomenta a guerra e o dissenso entre os homens; se a outra é amada, é porque incita até mesmo o homem inábil ao trabalho. Mas a boa Eris consegue esse resul­tado de uma maneira que só poderá parecer absurda

14. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 37[8], KSA, vol. 11, p. 580. 15. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos póstumos, KSA,

vol. 1, p. 783.

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para a ética de hoje em dia: instilando nos espíritos a in­veja e o ciúme. Era graças a esses sentimentos, hoje tão vilipendiados, que o mundo começava a se mover: o pobre inveja o rico e procura imitá-lo, semeando e plantando; o vizinho rivaliza com o vizinho que aspira ao bem-estar; o carpinteiro rivaliza com o carpinteiro. Para Nietzsche, é toda a Antigüidade grega que difere de nós na apreciação da inveja e do ciúme. Essa Antigüidade partilha o senti­mento de Hesíodo, que "tinha julgado má a primeira Eris, quer dizer, aquela que leva os homens a matar-se raivo­samente, mas logo depois tinha enaltecido como boa uma outra Eris que, pelas qualidades da ambição, do ciúme e da inveja, incita os homens a agir; ela não os leva ao com­bate mortal mas à disputa"16. Um grego separava muito bem as duas discórdias, a disputa e a guerra mortal. Somos nós que só podemos conceber o conflito sob o horizonte da guerra hobbesiana de todos contra todos. Donde o "abismo" que Nietzsche verá entre o juízo moral dos gre­gos e o nosso. O grego é invejoso, e sente isso não como um traço ruim, como nos adestraram a vê-lo, mas sim como a influência de uma divindade benfeitora. Assim, quanto mais um grego é nobre e grande, "mais é luminoso o fogo da ambição que jorra dele, e que devora quem quer que siga o mesmo caminho" 1 7 .

Donde a distância imensa que Nietzsche verá entre a pedagogia grega e a nossa. Enquanto nossos educadores temem a ambição e vituperam incansavelmente contra o "egoísmo", a pedagogia grega pensa que todo talento ne­cessariamente deve desabrochar na luta. E não há aqui

16. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit, KSA vol. 1, p. 787.

17. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit., KSA, vol. 1, pp. 787-8.

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qualquer celebração precoce do "individualismo burguês". Ao contrário, a meta da educação na disputa era o bem-estar de todos, da cidade em geral, e a glória era ao mes­mo tempo do ateniense e de Atenas. E se a disputa forma­va os jovens, os educadores também competiam entre si, os sofistas se afrontavam na liça e o drama só era oferta­do ao povo "sob a forma de uma luta grandiosa de gran­des artistas, músicos e dramaturgos" 1 8, visto que apenas no combate o grego reconhece o artista. Donde o único semi-elogio que Nietzsche dirige a Sócrates, no Cre­púsculo dos ídolos: se esse "repulsivo" ainda podia fascinar é porque, com a dialética, ele tinha inventado uma nova espécie de agon, de disputa 1 9. Aos olhos de Nietzsche, para os gregos a necessidade da disputa era vista como essencial para a saúde do Estado, e isso é algo que se ates­ta prestando atenção no sentido original que tinha, para eles, o ostracismo. Foi esse sentido original do ostracismo "que exprimiram por exemplo os efésios, banindo Fíer-modoro: 'Junto a nós, ninguém deve ser o melhor; mas se alguém se torna o melhor, que ele o seja alhures e junto a outros.' Por que ninguém teria então o direito de ser o melhor? Porque assim a disputa terminaria por desapare­cer e o fundamento eterno que está no princípio da vida do Estado grego estaria posto em perigo" 2 0 . Assim, se posteriormente o ostracismo adquiriu outro sentido, o im­portante é que, originalmente, ele não significava uma me­dida de segurança, mas um meio de emulação: "afasta-se o

18. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit., KSA vol. 1, p. 790.

19. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 8, KSA, vol. 6, p. 71.

20. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit., KSA, vol. 1, p. 788.

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indivíduo que ultrapassa os outros para que o jogo das for­ças rivais reencontre seu vigor" 2 1. Mas por que a idéia grega de disputa execra a supremacia de um só? Porque a supre­macia de um só é não apenas o fim da disputa, como tam­bém a porta de entrada para a desmedida, quer dizer, para a Eris da guerca mortal. Na idéia grega de disputa, os atores provocam-se mutuamente à ação, mantendo-se reciproca­mente nos limites da justa medida. São esses limites que se diluem com o fim da disputa. Por isso, dirá Nietzsche, quan­do subtraímos a disputa da vida grega, o resultado é a cruel­dade selvagem, o prazer destruidor. É o que acontece quan­do o indivíduo que triunfa por uma ação grandiosa não é posto no ostracismo e passa a ser considerado, por si mes­mo e por seus concidadãos, como alguém que está fora da disputa. Agora, assegura Nietzsche, o resultado é quase sem exceção horrível, o resultado é a desmedida, a selvageria. E o que vale para os indivíduos também vale para as cidades. Como Atenas e Esparta que, chegadas ao "templo da Vitó­ria", provocam sua própria queda por atos de desmedida. "Isso prova que, sem a inveja, o ciúme e a ambição da dis­puta, a cidade grega, assim como o homem grego, degene­ram." 2 2 Por isso, ninguém deve dizer que os gregos eram incapazes de suportar a glória e o sucesso. O que eles não suportavam era a glória sem que continue a disputa, nem o sucesso como o ponto final da disputa.

O que se passou da Grécia antiga aos nossos dias? O europeu moderno perdeu o sentido grego da disputa na justa medida e, desde então, só pode enxergar no con­flito a sombra projetada pela má Eris, o prenuncio da

21. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit., KSA, vol. 1, p. 789.

22. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit., KSA vol. 1, p. 792.

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guerra mortal de todos contra todos, a "contradição" a ser sempre superada. Graças a essa singular miopia, o confli­to só pode ser visto como fonte de temor na convivência, nunca um estimulante para a ação, tal como o compreen­diam na Grécia antiga. Donde a oposição integral entre os juízos morais do europeu de hoje e dos gregos a respeito do ciúme, da ambição e da inveja. Mas o que levou os eu­ropeus a essa espécie de cegueira? Por que terminou por triunfar, no imaginário moderno, aquele ideal da ausên­cia de conflitos, que no mundo grego sinalizava a "deca­dência"? Antes de responder a essas perguntas, vale a pena assinalar que esses dois ideais de convivência estão asso­ciados a dois "modos de pensamento" bem distintos.

IV

O ideal da neutralização dos conflitos está presente na reflexão filosófica desde o platonismo até hoje em dia. É sempre a oposição e o conflito que devem ser suprimi­dos, este leitmotiv fornece até mesmo uma espécie de a priori de nosso modo de pensamento. É esse tema que Gérard Lebrun analisa em "A dialética pacificadora", tex­to que seguiremos agora como fio condutor e como guia 2 3. Assim, diz Lebrun, se Hegel afirma que o Estado não é um "extremo isolado", é porque não pode haver oposi­ção e conflito entre ele e os membros da sociedade ci­vil 2 4. Essa exigência de diluição dos conflitos já comanda­va Rousseau, no Contrato social, no qual se procurava fun-

23. Lebrun, G., "A dialética pacificadora", in Almanaque, n? 3, São Paulo, Brasiliense, 1977, pp. 24-42.

24. Hegel, Príncipes de la philosophie du droit, § 302, Paris, Galli-mard, 1966, p. 334.

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dar uma associação em que, obedecendo ao todo, cada um obedeça apenas a si mesmo, e permaneça tão livre quanto antes. É exatamente nessa idéia de que o poder não domina do alto, de que o Estado não é um extremo isolado, que se enraiza a crítica hegeliana à dominação e à submissão. E bem verdade, diz Hegel, que há uma dife­rença entre os que comandam e os que obedecem. Toda­via, é preciso fazer com que a obediência seja apenas mi­nimamente exigida do cidadão: os súditos devem viver na obediência, mas sob o mínimo de coerção possível. E isso porque, mesmo o Estado sendo representado por uma força exterior às esferas particulares, como na monarquia centralizadora moderna, essa força deve exercer-se sobre súditos já concordes e integrados. Está exatamente aqui a diferença que Hegel verá entre a monarquia e o feudalis-mo. Enquanto o "princípio" do feudalismo é o "poder ex­terior" de indivíduos isolados, estamos no reino da opo­sição e do conflito. Ali, os indivíduos são vassalos de um suserano, em relação ao qual eles têm obrigações, mas es­sas obrigações só são cumpridas pela coerção da força. Reciprocamente, os direitos do suserano são obtidos pela violência e sua efetivação só pode ser garantida por uma coerção contínua. Não há nada de semelhante a isso na monarquia centralizadora moderna. Pois se o "princí­pio" monárquico também consiste em uma "potência su­perior", na monarquia a servidão é dissolvida pela pre­valência do direito e da lei. Assim, se a autoridade feudal é uma poliarquia em que só existem senhores e servos, na monarquia, ao contrário, apenas um é senhor, e ninguém é servo 2 5. Assim, a distância entre feudalismo e monarquia

25. Hegel, Leçons sur la philosophie de 1'histoire, Paris, Vrin, 1946, p. 363.

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está na oposição entre dois tipos de poder, um coercitivo e um não coercitivo.

Essa oposição entre dois tipos de poder já era esta­belecida por Platão, a quem Hegel se refere explicitamen­te. Platão já opunha dois extremos do poder: o tirânico, idêntico à pura coerção, e o poder político, aquele que é livremente aceito pelos homens e instaura uma harmonia, não uma dominação 2 6. Idéia que ressurge na análise pla­tônica da temperança. A temperança, enquanto virtude, é o estabelecimento de uma ordem, mas a ordem que ela estabelece, longe de ser uma relação de força, é o acordo natural entre "o menos bom e o melhor, para saber a quem deve pertencer o comando, tanto no Estado quan­to em cada indivíduo"2 7. Assim, a temperança é definida como uma concórdia e, através dela, o pensamento polí­tico platônico condena todas as formas de dominação, seja por um indivíduo, seja por um grupo, que não tenham em vista o interesse comum - todas as formas de dominação que não merecem o nome de dominação política. Nessa idéia de concórdia há uma opção bem clara sobre a natu­reza da potência política: existe aqui a sedução pela idéia de uma autoridade que fizesse a norma ser aceita por to­dos os cidadãos, sem coerção. E exatamente essa a liber­dade que se realiza no Estado hegeliano. No Estado livre, a autoridade está tão bem infundida no corpo social, que no final das contas ela não é mais que o símbolo da unifi­cação de suas diferentes esferas; o corpo político por prin­cípio exclui toda coerção e a palavra "poder" não pode significar mais a supremacia de fato dos mais fortes, na qualidade de mais fortes 2 8.

26. Platão, O político, 276e, Oeuvres completes, cit., vol. II, p. 371. 27. Platão, República, FV, 432ab, Oeuvres completes, cit., vol. I, p. 997. 28. Hegel, Príncipes de la philosophie du droit, § 278, cit., p. 309.

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Que o poder não possa ser mais a supremacia dos mais fortes, na qualidade de mais fortes. Nietzsche co­menta este ponto de unanimidade entre os modernos. Movimento democrático, "cães anarquistas", socialistas "broncos", todos eles são unânimes "na fundamental e instintiva hostilidade contra toda outra forma de socieda­de que não a do rebanho autônomo (chegando até a pró­pria rejeição dos conceitos 'senhor' e 'servo' - ni dieu ni maitre, diz uma fórmula socialista); mas igualmente unâ­nimes na tenaz resistência contra toda pretensão parti­cular, todo direito particular e privilégio..."29. Essa idéia de que o poder não pode ser a supremacia dos mais fortes, na qualidade de mais fortes, já estava presente em Platão, quando ele apresentava o rei como servidor da lei. Ela es­tava presente em Rousseau quando, no Contrato social, ele afirma que somos livres quando obedecemos às leis, mas não quando obedecemos a um homem. E se Hegel admi­te um senhor à frente do Estado, ele não se esquece de opor o senhor - dominador que se impõe - ao príncipe -dominador que se justifica. Os indivíduos não são des­tinados a funções por sua personalidade natural ou pelo nascimento 3 0 . Qual a idéia comum a Platão, a Rousseau e a Hegel? A idéia comum a todos eles é a de que o po­der não pode ser uma mera disposição da natureza. Ele é uma função, um mandato que o chefe sempre pode di­zer a que título exerce. Se o poder não é mais o resulta­do de uma simples preponderância, aquele que coman­da deve estar em condições de apresentar as suas ra­zões, e aquele que obedece, de apreciá-las. Nietzsche não deixará de apontar, aqui, o surgimento de uma con-

29. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 202, Obras incompletas, cit., p. 282.

30. Hegel, Príncipes de la philosophie du droit, §§ 281-291, cit., p. 309.

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cepção bem particular de "potência", contemporânea a Sócrates. É apenas com a dialética que surge a idéia de um poder que dá a razão de si, por oposição àquilo que era classicamente a autoridade, um poder que dispensava qualquer justificação. "Antes de Sócrates, na boa socieda­de, se afastavam os procedimentos dialéticos; eram con­siderados como procedimentos maus, comprometedores. Prevenia-se a juventude contra a dialética. Também se desconfiava dessa maneira de apresentar os raciocínios. As coisas honestas, como os homens honrados, não tra­zem assim suas razões tão à mão. E pouco decente mos­trar assim os cinco dedos. Precisamente as coisas que são suscetíveis de demonstração têm pouco valor. Ali onde a autoridade ainda faz parte dos bons costumes não se 'motiva', se manda." 3 1 O que aconteceu com o advento da dialética? Simplesmente, o nascimento de um novo gêne­ro literário, desde então batizado de "filosofia política", um discurso da razão que marca o esquecimento da idéia pura de comando em benefício de um comando que se justifica, mostra suas razões e não se afirma mais pela mera potência.

Como nota Lebrun, pode-se apontar o momento pre­ciso dessa transformação da idéia de poder no Górgias. Ali, Sócrates e Cálicles concordam em que os melhores detenham a potência. Mas quem são os melhores? Basta essa pergunta para prejulgar o resultado: quais as razões que o poder enuncia e que o justificam? Agora os dados estão lançados e Cálicles se confunde por não recusar a questão de saber quem está no direito de comandar 3 2 .

31. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 5, KSA, vol. 6, p. 69.

32. Platão, Górgias, 491a-c, Oeuvres completes, cit., vol. II, p. 437.

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Aceitando a questão, ele aceita que, por essência, o poder é algo que deve apresentar suas razões. E o resultado pla­tônico se conhece: o chefe deve ser o técnico e, por isso, nenhum chefe comanda em vista de seu interesse. O mé­dico não trabalha sempre tendo em vista apenas o inte­resse do paciente? Ao contrário do tirano, que sempre age em benefício de seu interesse próprio, o domínio exercido pelo técnico está sempre a serviço de todos. Nietzsche também comentará essa potência que pensa exercer-se apenas sob a forma de uma obediência, e que só quer des­dobrar-se em nome do interesse alheio e de uma norma superior. Nascida no platonismo, quer dizer, na decadên­cia grega, essa figura da potência atinge seu ponto mais alto na Europa de hoje. O que aconteceu? Simplesmente, a prevalência crescente do instinto gregário, adestrado para a obediência, em detrimento da arte de comandar. O que subjaz a esse sentido tradicional de uma potência que diz suas razões, neutraliza todas as tensões, todos os con­flitos? Para responder a essa pergunta, voltemos a Hegel e ao comentário de Lebrun.

Segundo a Filosofia do direito, a autoridade do Estado deve se exercer sobre indivíduos semelhantes. Mas o que significa essa semelhança, que ninguém deve confundir com a "igualdade"? O Estado sanciona a igual impotên­cia, em que se encontram os súditos, de infringir a regra da justiça. Assim como na cidade aristotélica, deve haver a impotência dos iguais de reivindicar a igualdade em to­das as partes, e a impotência dos desiguais de pretender a superioridade em tudo. Já era essa a função da seme­lhança em Platão: ninguém deve obter mais do que a par­te de potência que lhe é outorgada. Os "semelhantes" são antes de tudo aqueles que entram em acordo para não ri­valizarem sem regra de jogo, aqueles para quem o exerci-

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cio do poder é por natureza não conflituoso. Por isso, o técnico platônico é o oposto do tirano. Para o tirano, toda relação é de força ou de jogo: quem vencerá? O injusto pretende triunfar tanto sobre o seu semelhante, o injus­to, quanto sobre seu dessemelhante, o justo. O técnico é o inverso: ele triunfa apenas sobre o ignorante, seu des­semelhante. E esse técnico nem pensa em distinguir-se de seu semelhante, sua prática neutraliza as idéias de con­flito ou de preferência e o ensina a espontaneamente si­tuar-se em equivalência com o outro. Hegel vai indicar que essa semelhança não pode ser decretada, mas é sempre o resultado de uma aculturação. E essa "cultura" ministrada pelo Estado hegeliano terá a função da sabedoria assimi-lante de Platão: o homem culto é aquele que nunca põe a sua "particularidade" em destaque. Se a cultura é uma li­beração, no súdito essa liberação é "o trabalho penoso contra a subjetividade da conduta, contra as necessida­des imediatas e também contra a vaidade subjetiva da impressão sensível e contra o arbitrário da preferência" 3 3. Enquanto o estado de natureza apagava a noção de seme­lhança, o cidadão culto nunca pode agir distinguindo-se como indivíduo, e esta volatilização do ego comandará tan­to o comportamento dos dominantes quanto aquele dos dominados. Para Hegel, assim como para os gregos pós-socráticos, as diversas figuras da potência devem tomar a forma apaziguadora de uma permuta ou, pelo menos, de uma comunicação entre os "semelhantes".

O texto de Nietzsche sobre a disputa homérica deve levar-nos a levantar algumas questões sobre a tradição fi­losófica platônico-hegeliana, de que somos herdeiros. Por que, para essa tradição, o comando, se não for aquele da

33. Hegel, Príncipes de la philosophie du droit, § 187, cit., p. 222.

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lei, deve necessariamente ser situado no horizonte da ti­rania? Por que compreender a potência como o apaga-mento da força? O mundo descrito pela disputa homéri-ca mostra que os gregos antigos não viam o dominador como sendo, necessariamente, o opressor possível. Se eles baniam da cidade o homem que se distinguia, o ostracis­mo, em seu sentido original, não era uma medida de se­gurança, mas de revitalização da disputa. Em suma, se a representação helênica da luta execra a supremacia de um só, é porque a disputa pela supremacia é vista como com­portamento político usual. O texto sobre a disputa em Homero é, assim, a descrição de um mundo oposto ao platônico-hegeliano. E, como nota Lebrun, ele já mostra um dos traços característicos do conceito de "vontade de potência": uma vontade mais próxima do paradigma do jogo que do modelo da guerra, onde a luta é sempre pela dominação, não pelo aniquilamento do adversário. No mundo helênico, a disputa era pensada no modo da mera tensão, é apenas para nós que ela é imediatamente sinô­nima de guerra. Não conseguimos nos representar uma civilização que tenha podido viver segundo o livre jogo das tensões, um jogo indefinido, que não permite nem mesmo pensar em uma solução das crises. Por que essa estranheza do mundo homérico para nós? O que, em nos­so modo de pensamento, nos torna espontaneamente mais platônicos ou hegelianos do que homéricos?

Para Nietzsche, há um filósofo que exprimiu muito bem o mundo de Homero: Heráclito, tal como ele o ana­lisa em A filosofia na época trágica dos gregos. O vir-a-ser heraclitiano é a figuração do mundo da disputa, tal como este era vivido pelo grego antigo. Pois o que dizia Herá­clito? Ele nos ensinava que, ao contrário da opinião popu­lar, que pensa conhecer algo de rígido e permanente, "na verdade há a cada instante luz e escuro, amargo e doce

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lado a lado e presos um ao outro, como dois contendores dos quais ora um, ora outro tem a supremacia... Da guer­ra dos opostos nasce todo o vir-a-ser: as qualidades de­terminadas, que nos aparecem como duradouras, expri­mem apenas a preponderância momentânea de um dos combatentes, mas com isso a guerra não chegou ao fim, a contenda perdura pela eternidade" 3 4. Nessa figuração do vir-a-ser, estão presentes duas idéias profundamente opostas ao establishment filosófico que herdamos do pla-tonismo: nenhuma "justiça" preside mais a essa disputa, em que as preponderâncias de um contendor sobre outro simplesmente se sucedem; a luta perdura pela eternida­de sem que exista, portanto, qualquer momento da solu­ção final dos conflitos.

O que essa imagem do vir-a-ser coloca em questão? Simplesmente, aquilo que a filosofia nos adestrou a cha­mar de "razão". No combate heraclitiano, em que os lu­tadores vencem cada um por sua vez e não há mais que uma alternância de dominações, cada episódio marca apenas uma nova repartição da potência, desenha um novo desequilíbrio, e nada nos autoriza a perguntar por que foi este, e não o outro, que venceu agora, por que não triunfou mais cedo... O vir-a-ser heraclitiano exclui um certo número de perguntas. Precisamente aquelas per­guntas oriundas do princípio de razão suficiente: por que isto e não aquilo, por que aqui e não em outro lugar, por que agora e não antes? No mundo homérico ou hera­clitiano, o lugar posteriormente habitado pela razão era ocupado apenas por um jogo. Afinal, um "vir-a-ser e pe­recer, um construir e destruir, sem nenhuma prestação de

34. Nietzsche, A filosofia na época trágica dos gregos, § 5, Obras in­completas, cit., pp. 35-6.

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contas de ordem moral, só tem neste mundo o jogo do artista e da criança. E assim como joga a criança e o artis­ta, joga o fogo eternamente vivo, constrói em inocência -e esse jogo joga o Aion consigo mesmo" 3 5 . Em regime de jogo, a preponderância não é decidida por qualquer justi­ça, e por isso cai por terra toda questão do tipo "por que... e não?". Agora, a dominação é reportada à mera potên­cia, quer dizer, a uma potência que não precisa nem pode declinar suas "razões". Mas o que marca a distância entre o espaço da razão e o espaço do jogo? Antes de tudo, duas maneiras muito distintas de compreender o que é um acontecimento.

Como observa Lebrun, o adepto do princípio de ra­zão suficiente prejulga o modo como o acontecimento deve ser visado. Afinal, por que compreender o aconteci­mento como o vencedor de um concurso arbitrado com justiça? Aqui, projeta-se um horizonte em que as várias ocorrências possíveis estão em um equilíbrio de direito, e concebe-se o acontecimento como a ruptura de fato da­quele equilíbrio, um desvio que desde logo não pode ser originário, mas precisa resultar de um excesso do qual se deve sempre poder "dar a razão". Essa interpretação do "acontecimento" é exatamente aquela veiculada pela me­táfora da balança, freqüentemente evocada por Leibniz como emblema do "grande princípio" de razão suficiente. O "postulado" de Arquimedes, diz Leibniz, aquele segun­do o qual "sendo iguais os braços da balança e os pesos depositados de um lado e de outro, tudo permanecerá em equilíbrio", é "o corolário, ou antes, o exemplo" do axio-ma segundo o qual "nada é sem razão" 3 6. Se há um equi-

35. Nietzsche, A filosofia na época..., § 7, Obras incompletas, cit., p. 36. 36. Leibniz, "Príncipes logico-métaphysiques", in Kechercb.es gé-

nérales sur Yanalyse des notions et des vérités, Paris, PUF, 1998, p. 460.

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líbrio de direito das chances, graças a que houve um acon­tecimento? Mas é exatamente esse modo de visar o acon­tecimento que Heráclito nega. Ele não define o aconteci­mento como ruptura de um equilíbrio, logo, não tem o dever de mostrar o que rompeu uma igualdade de di­reito das chances, o que pôs fim a uma neutralização de direito das forças. Por isso, dirá Nietzsche, "se se quisesse propor a Heráclito a questão: por que o fogo não é sem­pre fogo, por que ora é água, ora é terra? - ele responde­ria apenas: 'É um jogo, não o tomeis tão pateticamente e, antes de tudo, não o tomeis moralmente!'" 3 7. Agora, o originário não é o equilíbrio, mas o desequilíbrio, e este não deve ser compreendido a partir de outra coisa que não ele mesmo. Falar em jogo é eliminar a questão da razão suficiente: desaparece a exigência de justificar o desvio e o excesso, porque eliminou-se o suposto de um equilíbrio originário entre as ocorrências possíveis. Ninguém deve tomar o vir-a-ser moralmente: ele é apenas um jogo. Sob o "por quê?", não se deve entender "em virtude de que justiça", basta conhecer quem domina, sem se preocupar em saber se isso acontece por causa de alguma sentença. E nesta distância entre dois ideais de convivência e dois modos de pensamento que vai se delineando o "lugar es­piritual" da oposição que Nietzsche estabelecerá entre moral de senhores e moral de escravos.

37. Nietzsche, A filosofia na época..., § 7, Obras incompletas, cit., p. 37.

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CAPÍTULO V M O R A L DE SENHORES, M O R A L DE ESCRAVOS

I

No prólogo à Genealogia da moral, ao anunciar a "nova exigência" de uma crítica dos valores morais, Nietzsche afirma que para tal empreendimento é necessário um co­nhecimento das condições e circunstâncias nas quais es­ses valores nasceram, sob as quais eles se desenvolveram e se modificaram1. Esse exíguo "discurso sobre o método" suscita uma dupla questão preliminar. Em primeiro lu­gar, essa análise da origem e do desenvolvimento dos va­lores morais será, grosso modo, uma análise histórica, e por isso Nietzsche censurará os historiadores ingleses da mo­ral justamente por faltar-lhes o "espírito histórico" 2. Toda­via, não faltam textos em que o próprio Nietzsche critica a "cultura histórica", apresentando-a como um mal, uma enfermidade e um vício, levando a supor que, através da expressão "espírito histórico", ele entende algo bem dis-

1. Nietzsche, Genealogia da moral, Prólogo, § 6, cit, p. 14. 2. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 2, p. 21.

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tinto do que os historiadores suspeitariam. E, se é assim, o que será, exatamente, essa investigação histórica cha­mada de "genealogia"? Em segundo lugar, por que a crí­tica dos valores morais supõe o conhecimento das condi­ções e circunstâncias de seu nascimento? A necessidade dessa correlação e subordinação da tarefa crítica a um co­nhecimento da origem e do desenvolvimento dos valores morais não é, à primeira vista, muito clara, a menos que se suponha, dogmaticamente, que a história é uma nova mathesis uniuersalis, fonte de direito de toda e qualquer inteligibilidade.

Foucault nos dá algumas pistas sobre a especificida­de desta análise histórica chamada de "genealogia" 3 . A que Nietzsche se opõe quando censura os historiadores ingleses por serem "essencialmente a-históricos"? Ele cri­tica o modo como eles procedem ao investigar a origem do conceito e do juízo "bom". Segundo esses historiado­res, originalmente as ações não egoístas foram consi­deradas "boas" por aqueles para os quais elas eram "úteis". Uma vez decretada essa tolice, os semi-hábeis dirão que mais tarde essa origem foi "esquecida", e que o costume levou os homens a considerar aquelas ações boas, como se elas o fossem em si mesmas, sem qualquer referência a uma utilidade adventícia. Mas como esse "esquecimento" é psicologicamente inexplicável, ao erro dos semi-hábeis é preferível o erro coerente de Herbert Spencer, "que es­tabelece o conceito 'bom' como essencialmente igual a 'útil', 'conveniente', de modo que nos conceitos 'bom' e 'ruim' a humanidade teria sumariado e sancionado preci­samente as suas experiências inesquecidas e inesquecíveis

3. Foucault, M., "Nietzsche, a genealogia e a história", in Micro-física do poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp. 15-38.

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acerca do útil-conveniente e do nocivo-inconveniente" 4. Mas, se é assim, o que será a história da moral para esses historiadores? Ela será o desdobramento de um único te-los, a "utilidade", que seria, ela mesma, meta-histórica. Por isso o historiador carece de espírito histórico: ele não re­conhece o devir como um fluxo em que todas as significa­ções são datadas e procura, custe o que custar, o mesmo sob a alteridade. Assim, saudemos, nesse historiador, um discípulo a mais de Platão.

A verdadeira genealogia, ao contrário, pretenderá an­tes marcar as diferenças do que forjar identidades, ela será atenta às mutações das significações e desconfiada dian­te dos conceitos supostamente unívocos. Por isso, ela não decretará a existência de nenhuma finalidade meta-his­tórica a orientar o vir-a-ser, ela investigará a história sem a pretensão de reencontrar ali a realização de qualquer ideal eterno. Afinal, a história dos historiadores, ao pro­curar ler nos eventos a realização progressiva de uma fi­nalidade imutável, é apenas uma metafísica travestida. Por isso Nietzsche oporá o "filosofar histórico" a toda pre­tensão metafísica de reencontrar dados eternos, e insistirá na denúncia de que qualquer teleologia é construída so­bre o erro de se imaginar um homem eterno, em torno do qual todas as coisas do mundo estariam alinhadas desde o começo 5 . Assim, a genealogia será a história desemba­raçada da metafísica, uma história que não busca essên­cias mas investiga, ao contrário, os diferentes sentidos que preencheram o vazio de certas palavras, que presta aten­ção nas significações discordantes, não nas identidades preconcebidas. Logo, a genealogia não colocará o nosso

4. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 3, cit, p. 23. 5. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 2, KSA, vol. 2, p. 24.

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presente lá na origem, como se houvesse uma destinação a ser realizada, um sentido prévio a ser desdobrado. Ela mostrará, antes, que a história é uma sucessão de senti­dos díspares, sem qualquer unificação predeterminada, uma sucessão de interpretações, dominações que se alter­nam. A história liberada da metafísica é um jogo de domi­nações, ela é o vir-a-ser de Heráclito, não o desvelamento progressivo de alguma idéia, nunca o curso apaziguador da história hegeliana.

É essa oposição entre a história serva da metafísica e a verdadeira genealogia que explica a presença, na obra de Nietzsche, de duas séries de textos aparentemente con­flitantes entre si, aqueles em que faz a crítica da "cultura histórica" e os outros, em que tece a apologia ao "senti­do histórico". É isso que Foucault sublinha de forma su­cinta, mas precisa6. Segundo Nietzsche, o verdadeiro sen­tido histórico é aquele que reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado eterno; ele não se apoia em perma­nências e perde, com isso, as formas do reencontro e da reconciliação. Por isso Foucault reconhecerá ali o elogio do "descontínuo", confirmado pelo seu próprio modo de fazer "arqueologia". O verdadeiro espírito histórico será sempre o espírito de Heráclito. Ao contrário da história dos historiadores, que dissolve o acontecimento singular

6. Foucault, M, "Nietzsche, a genealogia e a história", in Microfí-sica do poder, cit., p. 26: "De fato, o que Nietzsche não parou de criticar desde a segunda das Considerações extemporâneas é esta forma histórica que reintroduz (e supõe sempre) o ponto de vista supra-histórico: uma história que teria por função recolher em uma totalidade bem fechada sobre si mesma a diversidade, enfim reduzida, do tempo; uma histó­ria que nos permitiria nos reconhecermos em toda parte e dar a todos os deslocamentos passados a forma da reconciliação; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um olhar de fim de mundo."

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em uma continuidade ideal, a genealogia faz ressurgir o acontecimento naquilo que ele tem de único. Esse acon­tecimento será agora uma relação de forças que se inver­te, na qual as forças que estão em jogo na história não obe­decem a qualquer destinação, mas apenas ao acaso da luta. Nessa história não há providência nem causa final, apenas o jogo da necessidade gerindo o acaso 7. Assim, que ninguém exija, do verdadeiro sentido histórico, o que se pede aos historiadores que Nietzsche critica: não se peça que ele nos convença de que nosso presente se apoia em intenções e necessidades estáveis, não se peça metafísica! Um apelo que os filósofos nunca podem acatar de bom grado, visto que todos eles têm como marca registrada o ódio ao devir, o páthos egípcio que os leva a retirar tudo do vir-a-ser, a transformar qualquer coisa em múmia.

Essa especificidade do verdadeiro "espírito históri­co" já fornece os elementos para responder à segunda questão levantada, que era a de saber por que a crítica dos valores morais deve começar com uma investigação sobre a origem desses valores. É que a análise da origem dos va­lores morais, tal como ela é feita pela genealogia, vai se opor frontalmente a um certo privilégio da origem, paten­te na investigação conduzida pela história serva da me­tafísica. Pois o que faz a história teleológica, que vai buscar na origem o momento de nascimento de um ideal eterno, que o tempo não faz senão desdobrar e confirmar? Essa história sempre apresentará a "origem" como algo emi­nente e sublime, como algo extraordinariamente "alto". Um vício presente até mesmo nos pseudo-antimetafísi-cos, como Heidegger: afinal, o que ele faz senão celebrar a alta origem do "pensar", hoje em dia infelizmente es-

7. Nietzsche, Aurora, § 130, Obras incompletas, cit, p. 172.

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quecida? Nossos metafísicos amam acreditar que em seu início as coisas já tinham um pacto com a perfeição, idéia que o cristianismo utilizará ao descrever o seu mundo an­tes da queda. Esse apreço à origem é congênito à his­tória enquanto reconhecimento, enquanto metafísica. E Nietzsche já se insurgia contra ele ao indicar que a "alta origem" é o exagero metafísico que reaparece na concep­ção de que, no começo de todas as coisas, se encontra o que há de "mais precioso e de mais essencial" 8. Em regi­me de genealogia, é essa dignidade da origem que vai de­saparecer. E não sem tempo: se os metafísicos se compra-zem em elogiar essa "alta origem" do homem que é Deus, já está mais do que na hora de avisá-los de que na origem do homem só existe o macaco. Assim, a análise da ori­gem, em regime de genealogia, poderá indicar que certas origens são baixas - e por isso mesmo esse conhecimento da origem já será uma instância de crítica da moral. Agora, analisar a origem dos valores morais será mostrar as cir­cunstâncias sofríveis de seu nascimento, circunstâncias nem um pouco louváveis. Já é criticar os valores morais mostrar que eles não têm qualquer origem sublime, mas nascem apenas de um conjunto de jogos de dominação.

II

"Em uma perambulação através das muitas morais, mais refinadas e mais grosseiras, que até agora domina­ram sobre a terra ou ainda dominam, encontrei certos tra­ços retornando juntos regularmente e ligados um ao ou­tro; até que, por fim, dois tipos fundamentais se denun-

8. Nietzsche, "O andarilho e sua sombra", Humano, demasiado humano, II, § 3, KSA, vol. 2, p. 540.

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ciaram a mim, e ressaltou uma diferença fundamental. Há moral de senhores e moral de escravos."9 Essa determinação das duas morais como "tipos" é fundamental. É ela que permitirá à investigação da origem ser, ao mesmo tempo, um diagnóstico de toda a nossa civilização. E toda a aná­lise abandonará a matéria bruta para dirigir-se ao "tipo", já que Sócrates e "nossos socialistas" poderão muito bem estar na mesma gaveta. E também graças a esse caráter tí­pico que Nietzsche poderá dizer que, em toda civilização apresentando características misturadas, podemos reco­nhecer tentativas de acomodação entre as duas morais, freqüentemente uma confusão entre ambas, e até mesmo uma justaposição entre elas. E será igualmente por isso que poderemos encontrar as duas morais em um mesmo homem. Seus mais remotos exemplares doutrinais foram o estoicismo e o primeiro-cristianismo1 0. E se a Europa de hoje em dia é censurável por chamar de moral aquele que apenas é um dos tipos de moral, como se não pudesse existir outro, essa é uma miopia em certo sentido descul-pável: afinal, para o próprio Nietzsche a moral que predo­mina no presente é a de escravos, enquanto na antigüida­de pré-cristã predominava a moral de senhores. Por isso, a seu juízo o homem antigo, sob a coação pedagógica de sua moral, era mais forte e mais profundo que o homem de hoje, assim como não é de espantar que o niilismo mo­derno, enquanto niilismo "fraco", seja um subproduto ne­cessário de nossa moral de escravos. Mas se existe moral de senhores e moral de escravos, o que, exatamente, as diferencia? A distinção entre ambas se estrutura em diver­sos níveis: existe uma diferença relativa ao significado

9. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 260, Obras incompletas, cit, p. 291.

10. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 15[29], KSA, vol. 13, p. 422.

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dos valores; uma distinção que diz respeito ao princípio diretor das valorações; uma oposição quanto à origem da apreciação moral.

A primeira diferença é a mais óbvia: a noção de "bom" é apenas homônima em uma moral e na outra. Mas essa diferença só se torna relevante quando se leva em conta o "princípio" diretor das valorações. Quando são os dominadores que determinam o conceito de "bom", os estados de alma apreciados são os altivos e sublimes. Quando são os escravos que o determinam, o "bom" é as­sociado ao não-egoísmo, ao altruísmo. Mas essa dupla se­mântica é oriunda de uma diferença de princípio: a mo­ral de escravos "é essencialmente utilitária" 1 1. Vem daqui o elogio escravo à compaixão, à humildade, à amabilida-de, todas elas qualidades úteis para tornar mais leve o peso da existência. A moral de senhores, ao contrário, não se rege pela utilidade, o seu princípio de valoração não se institui tendo em vista o útil. É por desconhecer essa di­ferença fundamental que os ingleses são censurados por Nietzsche: ao afirmar que a moral em geral está fundada na utilidade, eles universalizam, fraudulentamente, um princípio que é particular. A moral inglesa associa espon­taneamente o "bom" àquilo que é "útil" e, neste ponto, os "moralistas" seguem os passos dos ingleses; todos eles são, no fundo, utilitaristas1 2.

Os moralistas são todos "utilitaristas"? Essa tese de Nietzsche não pode deixar de surpreender. Afinal, a moral estabelecida não deixa de fazer o elogio do "desinteresse", e a Crítica da razão prática, ao opor o imperativo categóri­co ao hipotético, indicava suficientemente que o "interes-

11. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 260, Obras incompletas, cit., p. 293.

12. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 228, KSA, vol. 5, p. 164.

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se", o "patológico", para Kant, estava fora do campo mo­ral. Como compreender esse traço utilitarista do "t ipo" moral de escravo, diante do contra-exemplo kantiano? Nietzsche responde no aforismo 21 de A gaia ciência, de­dicado aos "professores de desinteresse". Deve-se alertar os incautos que, sob essa figura do "desinteresse" temos, na verdade, uma moral em que seus motivos estão em contradição com seu princípio. O "professor de desinte­resse" afirma que as virtudes de um homem são boas, não por causa dos resultados que elas possam ter para ele? Na verdade ele quer dizer que as virtudes de um homem são boas pelos resultados que elas podem ter para os ou­tros, para a sociedade. Assim, o elogio da virtude não é, ele mesmo, nem desinteressado nem "altruísta": se as ditas "virtudes", como a obediência, a piedade, a justiça, podem ser prejudiciais àquele que as possui, o vizinho as elogia, já que elas não são prejudiciais a ele. A recusa da utilida­de privada, o "desinteresse", é sempre calcada na utilidade pública, da qual o sujeito "virtuoso" não é mais que o ins­trumento. O professor de desinteresse apenas desloca a utilidade do privado para o público, ele não a elimina en­quanto código de interpretação. Em outros termos, o elo­gio que se faz do "altruísta", do homem virtuoso, daque­le que se esquece de si - do desinteressado - nunca é um elogio que parte do próprio princípio do desinteresse. Por isso, os motivos dessa moral se opõem ao seu princípio, o argumento do qual ela se serve para se legitimar é refu­tado por seu critério do "bom". O princípio do desinte­resse - "tu deves renunciar a ti e sacrificar-te" - só não se oporia à própria moral do desinteresse se ele fosse de­cretado por alguém que renunciasse à sua vantagem pes­soal. Mas a partir do momento em que o próximo ou a sociedade recomendam o altruísmo em função de sua utili­dade, termina-se por aplicar o princípio inverso: busca teu

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benefício pessoal mesmo às expensas de todos os demais. Assim, entre o utilitarismo inglês, que vê o bom como o útil a mim, e a doutrina do desinteresse, pela qual o bom é o útil aos outros, temos morais apenas aparentemente opostas: as duas ensinam a mesma lição, o utilitarismo in­gênuo é a verdade final de seu pseudo-antípoda, em qual­quer caso a utilidade é o princípio da valoração, estamos diante de duas figuras da mesma moral de escravos.

Nietzsche separa a natureza "nobre" da "vulgar" exa­tamente através do conceito de utilidade. "A natureza vul­gar se reconhece por nunca perder de vista sua vantagem, por essa obsessão pela meta, pelo benefício, que nela é mais forte que o instinto o mais violento." 1 3 Por isso, se aos olhos do vulgo os sentimentos nobres parecem des­tituídos de pertinência e de verossimilhança, é porque não se consegue discernir ali nenhuma utilidade. Donde a "sabedoria" vulgar por excelência: ninguém deve deixar-se levar a ações intempestivas por um impulso desrazoá-vel, a cada vez é preciso verificar a utilidade da ação. A "razão" escrava é sempre o cálculo dos meios para al­cançar fins úteis, a natureza vulgar já é aquela do sujeito hobbesiano, que pode chegar até mesmo à mais absolu­ta sujeição se puder vislumbrar ali alguma utilidade para a conservação da vida. Ao contrário, na natureza nobre a paixão predomina frente à razão calculadora, o instinto toma a dianteira em face da utilidade - a natureza supe­rior não é "razoável", se por razoável se entender um cál­culo da utilidade.

Mas essa oposição entre moral de senhores e moral de escravos permanecerá abstrata e vaga enquanto nos limitarmos a sublinhar diferentes significados dos valores

13. Nietzsche, A gaia ciência, § 3, KSA, vol. 3, p. 374.

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ou distintos princípios de valoração. É que essas diferen­ças só ganham a sua chave no terceiro tópico a ser inves­tigado, a origem das valorações morais. Na Genealogia da moral, Nietzsche analisa a criação dos valores tanto no âmbito de senhores quanto naquele de escravos, apon­tando o ressentimento como a origem das valorações mo­rais plebéias. Ali, inicialmente o método da investigação será apenas filológico: trata-se circunscrever os sentidos da palavra "bom". Mas a filologia, ao mesmo tempo que nos apresenta os significados da palavra, também ensina algo sobre o modo de criação dos valores. Assim, a etimo­logia da palavra "bom", em diferentes línguas, indica uma característica constante: são sempre as idéias de nobreza e de aristocracia que formam a matriz a partir da qual se desenvolve o "bom", no sentido de espiritualmente nobre, espiritualmente bem nascido, espiritualmente privilegia­do. São os nobres que designam a si mesmos como os "senhores", os "possuidores", os "verazes", o "homem da disputa, da dissensão". Assim, através da etimologia da palavra "bom" surge a matriz a partir da qual os nobres se sentiam homens de uma categoria superior, "um desen­volvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz 'plebeu', 'comum', 'baixo', transmutar-se finalmente em 'ruim'" 1 4 .

Mas isso já nos instrui sobre a origem do juízo "bom", uma origem muito distinta daquela que lhe atribuem os ingleses que, definitivamente, não são mesmo uma "raça filosófica". Pois o que dizem eles? Que o juízo "bom" tem sua origem naqueles a quem se prodigalizou a bondade, ele emana do beneficiário da ação, e não de seu autor. Para os ingleses, no princípio as ações não egoístas foram

14. Nietzsche, Genealogia da moral, I, % 4, cit, p. 24.

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elogiadas e ditas "boas" por seus beneficiários, aqueles para quem elas seriam úteis. A filologia mostra o contrá­rio: a origem do juízo "bom" não está no suposto benefi­ciário da ação, mas no próprio nobre, ao considerar-se a si mesmo, sem menção a qualquer utilidade. "Foram os 'bons' mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu. Desse páthos da distância é que eles to­maram a si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade!" 1 5. É o prejuízo utilitarista que proíbe aos ingleses o acesso à verdadeira origem. E essa origem do juízo "bom" não é de forma al­guma irrelevante para uma genealogia da moral, visto que é sobretudo através dessa origem que se pode distinguir os tipos de moral, sem mascarar suas diferenças. O im­portante aqui não é apenas que o juízo "bom", quando dito pelo escravo para designar a si mesmo, terá um sig­nificado inteiramente diverso do "bom" proferido pelo senhor. O mais importante é que a "criação dos valores" é muito distinta quando nos situamos no território dos senhores ou naquele dos escravos. O mais importante é que o juízo "bom" origina-se de dois modos bem diversos: enquanto o senhor diz "eu sou bom, então tu és ruim", o escravo afirma "tu és mau, então eu sou bom". Para onde aponta essa diferença na criação do valor?

A moral de senhores nasce de uma consideração de si mesmo, de um sim que o senhor dirige a si mesmo. Seu modo de valoração "age e cresce espontaneamente, bus­ca seu oposto apenas para dizer sim a si mesmo ainda

15. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 2, cit, pp. 21-2.

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com maior júbilo e gratidão - seu conceito negativo, o 'baixo', 'comum', 'ruim', é apenas uma imagem de con­traste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, 'nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes'" 1 6 . É do pro­cedimento contrário que se origina a moral de escravo, que nasce de uma consideração do outro, de um não di­rigido ao outro. "Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesmo, já de início a moral escrava diz Não a um 'fora', a um 'outro', um 'não eu' - e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece va­lores - este necessário dirigir-se para fora, em vez de vol­tar-se para si - é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, falando fisiologicamente, requer estímulos exte­riores para poder agir em absoluto - sua ação é no fundo reação." 1 7 Sendo assim, nesse nível da análise nietzschia-na, a oposição entre senhor e escravo não se resume a uma diferença de valores, mas se traduz também por dois mo­dos distintos de reconhecimento: o senhor reconhece a si mesmo, enquanto o escravo, para reconhecer-se, preci­sa passar antes pela mediação de seu oposto, o senhor. Assim descrita, a relação que Nietzsche estabelece entre senhor e escravo nunca se confundirá com sua homônima hegeliana, ali na Fenomenologia do espírito. O senhor he-geliano traz as marcas do escravo de Nietzsche, enquanto ele é uma consciência que está em relação consigo mes­mo apenas pela mediação de seu outro. A dialética do se­nhor e do escravo consistirá essencialmente em mostrar que o senhor se revela em sua verdade como o escravo do

16. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 10, cit., p. 34. 17. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 10, cit., p. 34.

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escravo, o escravo como o senhor do senhor. Como nota Hyppolyte, através disso a desigualdade presente na for­ma unilateral do reconhecimento é ultrapassada, e a igual­dade é restabelecida 1 8 . Se na dialética, como sempre, a oposição se revela aparente, o senhor e o escravo de Nietz­sche permanecem opostos tanto no modo de reconheci­mento quanto nos valores morais.

Essa diferença de modos na criação dos valores não será indiferente para se compreender as relações especiais que Nietzsche sempre verá entre moral de escravos e "fi­losofia". A inferência feita pelo escravo - "tu és mau, logo eu sou bom" - supõe todas as falácias da linguagem cons­titutivas da "razão" filosofante, todos os elementos que fazem do sacerdote o avô do filósofo. Afinal, o que o es­cravo pressupõe, já na sua premissa, ao afirmar que "tu és mau"? Ele simplesmente supõe que o senhor é o su­jeito de um "livre-arbítrio", que ele é "mau" porque pode­ria ter agido de outro modo, visto ser uma "vontade livre". Prestemos nossa homenagem ao sacerdote, pois não foi por acaso que a noção de "livre-arbítrio" foi forjada no âmago do cristianismo. Como nota Hannah Arendt, o li­vre-arbítrio era uma faculdade virtualmente desconhecida para a Antigüidade clássica e foi somente com o cristianis­mo, com Agostinho, que a liberdade desprendeu-se de seu domínio original, a vida política, para transformar-se em um fenômeno da vontade 1 9 . O que pensar desse pri­meiro pressuposto do escravo? Nietzsche não nutria ne­nhuma simpatia pelo "livre-arbítrio e o apresentava como

18. Hyppolite, ]., Gênese et structure de la phénoménologie de Vesprit de Hegel, Paris, Aubier-Montaigne, 1967, vol. I, p. 166.

19. Arendt, H., "O que é liberdade?", in Entre o passado e o futu­ro, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 204.

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um artifício, inventado pelos teólogos, para tornar a hu­manidade 'responsável' pelos seus atos. O sacerdote bus­ca responsabilidades para poder castigar e julgar, a teoria da vontade livre foi inventada tendo em vista o castigo, por uma vontade de encontrar culpados. Para que os ho­mens pudessem ser culpáveis, era preciso imaginar que toda ação é querida, que a origem de toda ação se encon­tra na consciência, no livre-arbítrio2 0. É esta ficção, imagi­nada pelo teólogo, que está no interior da lógica do res­sentimento: se "tu és mau", é porque poderias ter agido de outro modo; se poderias agir de outro modo, é porque tens um livre-arbítrio. Mas qual é exatamente a intenção de Nietzsche ao apresentar o livre-arbítrio como uma fic­ção - o que é bem mais que denunciá-lo como instrumen­to da vontade de potência do sacerdote? Por um lado, Nietzsche censura o livre-arbítrio em nome da "necessi­dade". O escravo quer dar a impressão de que seu ser, sua atividade são, eles também, o resultado de uma escolha livre; o escravo quer tomar sua debilidade por uma liber­dade, sua realidade "inevitável" por uma decisão, um mé­rito21. Mas isso significaria que Nietzsche, com esse gesto, estaria se situando em um dos partidos daquela guerri-nha, sempre presente nos manuais de filosofia, que opõe o "determinismo" à "liberdade"? Não. E este ponto é im­portante, pois, a partir dele, pode-se vislumbrar que na verdade o "escravo" está sendo censurado, antes de tudo, por ser o usuário de um certo "modo de pensamento", de um cacoete do qual a doutrina do livre-arbítrio é apenas um dos rebentos. Assim, em Para além do bem e do mal, a

20. Nietzsche, "Os quatro grandes erros", Crepúsculo dos ídolos, § 7, KSA, vol. 6, p. 95.

21. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 13, cit., p. 45.

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crítica ao livre-arbítrio é seguida por uma igual censura ao "determinismo", à idéia de que as ações são determi­nadas por causas exteriores. Ao semi-instruído que já se livrou desse "monstro" que é o livre-arbítrio como causa sui, solicita-se que dê um passo a mais na sua "instru­ção" e abandone também o determinismo, enquanto abu­so das noções de causa e efeito. Causa e efeito são "ficções convencionais" que designam os fenômenos mas não os explicam, conceitos forjados por nós, um mero sistema de signos. Enquanto o "ser em si" é alheio a todas as re­lações causais, livre-arbítrio e determinismo são duas fi­guras do mesmo mundo de signos, fraudulentamente in­corporados por nós às coisas "em si". Por isso, não é sur­preendente que eles sejam duas expressões da "fraqueza": os adeptos do livre-arbítrio nunca querem abandonar a sua "responsabilidade", como o cristão clássico; os crentes do determinismo não querem ser causa de nada, não de­sejam responder por nada, como o socialista que trans­forma o "social" em causa de tudo 2 2 .

Mas o que significa apresentar livre-arbítrio e deter­minismo como membros do mesmo sistema de signos, ilusões provenientes da mesma gramática? Na Genealo­gia da moral, se Nietzsche apresenta o livre-arbítrio como uma ficção, ele não deixa de reportá-lo a uma ilusão an­terior e mais tenaz, que lhe atribui a sua cidadania relati­va no universo intelectual do escravo. O pecado original da moral de escravos é discriminar "entre a força e as ex­pressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que/osse livre para expressar ou não a força" 2 3 . O cacoete fundamental do escravo é separar

22. Nietzsche, Para além do bem e do mal, % 21, KSA, vol. 5, p. 35. Cf. também A gaia ciência, § 112, KSA, vol. 3, p. 472.

23. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 13, cit., p. 43.

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a força de suas manifestações, o agente de suas ações: é só depois de estabelecido esse divórcio que se pode ima­ginar algum "substrato livre". Mas de onde essa separa­ção entre o agente e a ação extrai sua aparente legitimi­dade? Nietzsche a atribuirá às falácias da linguagem e aos erros fundamentais da razão que nela se consolida­ram. O que significa dizer que moral de escravos e "filo­sofia" são irmãs gêmeas, têm a mesma certidão de nas­cimento. Qual o papel da linguagem nessa constituição do universo escravo?

III

As falácias da linguagem começam quando, esque­cendo-se que ela é essencialmente retórica, pensa-se que a língua nos apresenta a denominação própria ou a ex­pressão adequada da realidade. Agora, as oposições pre­sentes na língua são dadas como oposições presentes nas coisas, as diferenças inscritas na linguagem são esponta­neamente vistas como diferenças inscritas no mundo. A linguagem nos convida a confundir, fraudulentamente, a gramática com a própria estrutura da realidade, é espon­taneamente que projetamos no real as articulações gra­maticais da língua - e agora a linguagem se torna legis-ladora. Este tema de um condicionamento do pensa­mento pelas estruturas da língua, do filósofo "preso nas teias da linguagem", já estava presente em todo um setor da filologia alemã da época, que já tentara mostrar, por exemplo, como as categorias de Aristóteles eram insepa­ráveis de certos traços da língua grega. E este movimento que Nietzsche prolonga ao sublinhar que, quando há pa­rentesco lingüístico, "é inevitável que uma filosofia comum da gramática - eu quero dizer a preponderância e a ação

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das mesmas funções gramaticais - predispõe o pensa­mento a produzir sistemas filosóficos que se desenvolvem da mesma maneira e se seguirão na mesma ordem, quan­do a via parece barrada a certas outras possibilidades de interpretar o universo." 2 4

O homem do ressentimento que entrava em cena na Genealogia da moral já era espontaneamente filósofo, alguém preso às malhas da linguagem legisladora, este subsolo que garantia livre curso às ficções do escravo, que serão as próprias ficções da razão, esta metafísica da lin­guagem. É a linguagem que vê por toda parte agente e ato; que acredita na vontade como causa em geral; é ela que promove a crença no "eu" , no eu como ser e subs­tância, e projeta a crença na substância-eu sobre todas as coisas. "O ser é por toda parte pensado-junto, introduzi­do sub-repticiamente; somente da concepção 'eu' se se­gue, como derivado, o conceito 'ser'"... No início está a grande fatalidade do erro, de que a vontade é algo que faz efeito - de que a vontade é uma faculdade." 2 5 Essas teses extremamente sumárias ganharão alguma precisão ao serem retomadas em alguns fragmentos póstumos, em que Nietzsche apresenta as categorias filosóficas como me­ros hábitos gramaticais2 6. A distinção entre o fazer e aque­le que faz, a distinção entre o processo e aquilo que não é processo, mas substância duradoura, a tentativa de com­preender o fenômeno como um tipo de deslocamento da­quilo que é e permanece - foi essa velha mitologia, garan­te Nietzsche, que consolidou a crença na causa e no efeito,

24. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 20, KSA, vol. 5, p. 34. 25. Nietzsche, "A razão na filosofia", Crepúsculo dos ídolos, § 5, Obras

incompletas, cit, p. 331. 26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 40[22], KSA, vol. 11, p. 639.

Cf. também 10[19], KSA, vol. 12, p. 465.

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depois que essa crença já tinha encontrado uma forma fixa nas funções gramaticais da linguagem. Donde a críti­ca de Nietzsche a Descartes: concluir que, se pensamos, então há algo que pensa, uma substância pensante, é fazer uma inferência que vem do velho hábito gramatical de atribuir um ator a toda ação. É a partir desse hábito que se chega à idéia de uma substância pensante, de um su­jeito do ato de pensar, e um sujeito distinto desse ato. A noção filosófica de substância é apenas um resultado de­rivado da noção gramatical de sujeito. E agora a idéia de sujeito, vinculada à gramática que separa o ator da ação, passa a exprimir a crença em uma unidade entre diferen­tes momentos. O "sujeito" será a ficção que nos quer fa­zer crer que muitos estados, similares em nós, são o efei­to de um mesmo substrato idêntico e inalterável. Agora, o eu enquanto substância poderá ser visto como a causa de toda ação, como aquele agente cuja vontade será in­terpretada como uma "faculdade". Para Nietzsche, é aqui que começará a derivação daquele sistema de postulados lógico-metafísicos que são as "categorias da razão", tais como substância e atributo, causa e efeito. Essas catego­rias falaciosas têm sua matriz formadora na apreensão do eu como substrato idêntico: a crença na substância, no atributo, no acidente ganha sua força persuasiva do hábi­to de considerar tudo o que fazemos como conseqüên­cia de nossa vontade, de modo que o eu, enquanto subs­trato idêntico, não desaparece na multiplicidade do vir-a-ser, quando o contínuo devir, bem compreendido, não permite sequer que se fale em "indivíduos" 2 7. Por isso, as oposições categoriais da razão serão sempre "estabiliza-doras", sempre exprimirão a obsessão pelo permanen-

27. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 36[23], vol. 11, p. 561.

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te e o medo do vir-a-ser. Isso não tem nada de surpreen­dente. Se para Nietzsche a linguagem é essencialmente retórica, é porque não existe expressão adequada da realidade; e se não existe expressão adequada é porque o mundo é um perpétuo vir-a-ser. Donde o inevitável "protagorismo" do conhecimento: se não há expressão adequada é porque não existe percepção " justa" - uma percepção impossível em um mundo em perpétuo vir-a-ser e que, por isso mesmo, só permite que se tenha sobre ele "perspectivas" mutáveis e sempre situadas. Quan­do a linguagem se esquece enquanto retórica, se pensa como expressão adequada e legisla sobre o mundo, ela paralisa o devir, já que se tornou linguagem para um mun­do perene e seus meios de expressão não são utilizáveis para significar o vir-a-ser 2 8 .

Quando o escravo cria valores segundo a lógica do ressentimento, dirige um não ao senhor e afirma que "tu és mau, logo eu sou bom", ele deseja que o senhor aja de outra maneira. Mas isso é absurdo, dirá Nietzsche. Afinal, exigir da força "que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força" 2 9 . Se o escravo não se dá conta desse "absur­do" é porque, prisioneiro das falácias da linguagem, ele separa o agente da ação, a força de suas manifestações, e é essa separação, essa distância fictícia, que cria o espaço para se alojar ali o livre-arbítrio e compreender toda ação como o resultado de uma escolha. Aqui é a linguagem que opera como interpretação do mundo, ao projetar nele as

28. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [73], KSA, vol. 13, p. 36. 29. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 13, cit., p. 43.

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suas estruturas - e por isso não existem fenômenos mo­rais, mas apenas interpretações morais dos fenômenos. E se há este entrelaçamento íntimo entre moral de escra­vos e razão filosofante, não é surpreendente que o pro­cesso nietzschiano contra nossa civilização atinja a ambas na mesma cena. Qual universo o escravo se constrói, apoia­do em suas ficções? Para apreendê-lo, basta extrair as con­seqüências de seu pressuposto básico, a separação entre o agente e a ação, entre a força e sua manifestação. O es­cravo procede "como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força" 3 0 , e o próprio escravo também seria um substrato indiferente que seria livre para ser forte. Assim, todos os substratos estariam originariamente em uma situação de equilíbrio; nesse universo do escravo há sempre uma igual­dade de direito das chances, uma neutralização de prin­cípio das forças. Logo, se o equilíbrio de direito entre os substratos for rompido, se houver uma preponderância de fato, é preciso aplicar o princípio de razão suficiente e in­dicar por que o equilíbrio foi rompido, por que este e não outro prepondera: porque é sábio, porque é prudente, por­que venceu as eleições, tantos motivos que afastam da cena a potência nua. Se a preponderância do senhor é apenas uma dominação do forte na qualidade de forte, uma dominação que não declina suas razões, então ela é um escândalo a ser vilipendiado: "tu és mau".

E essa questão que o "senhor" nietzschiano não se põe, e nem precisa se formular. Seu universo é homérico, heraditiano, nunca platônico; seu mundo é o palco de um jogo, não o campo de aplicação do princípio de razão. Ele não visa um equilíbrio de princípio entre os agentes, equi-

30. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 13, cit, p. 43.

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líbrio que seria rompido por um excesso que estaria na obrigação de declinar suas razões. Ao contrário, no uni­verso dos senhores o desequilíbrio é o fato originário e não deve ser compreendido a partir de outra coisa que ele mesmo, não representa qualquer desvio diante de um mítico equilíbrio de direito das chances. Aqui a sucessão das dominações se faz como em um jogo, e ninguém pre­cisa justificar o desvio e o excesso; aqui o vir-a-ser é ape­nas uma sucessão de dominações, de diferentes configu­rações de potência, nunca um equilíbrio rompido. Por isso, pode-se até prever o discurso que o "senhor" nietzschia­no dirigiria a esse "escravo" racionalista: não tomeis o devir moralmente, ele é apenas um jogo; sob o "por que" de uma dominação, ninguém deve entender alguma jus­tiça; basta saber quem domina, sem precisar perguntar em virtude de qual sentença se domina.

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CAPÍTULO VI O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO

I

Qual o papel do sacerdote na construção do universo "escravo"? Que exista um papel a ser desempenhado por este personagem não é nada surpreendente, já que, aos olhos de Nietzsche, a análise da constituição da moral de escravos é, desde o início, uma investigação sobre a gêne­se do cristianismo, visto que o juízo moral do escravo já é aquele do cristão. Em Ecce homo, Nietzsche afirma que a verdade da primeira dissertação da Genealogia da moral é a "psicologia" do cristianismo, o seu nascimento no "es­pírito do ódio" e não, como se poderia crer, pura e sim­plesmente no "espírito". O espírito do ódio do qual brota o cristianismo é o "ressentimento", aquele mesmo do qual nascia a valoração moral do escravo. E isso não deve surpreender a ninguém, já que, para Nietzsche, o cristia­nismo enquanto "ideologia" é "platonismo para o povo", é coisa que precede a figura histórica de Cristo. Da mesma forma, se a Genealogia da moral discorre apenas sobre o "sacerdote judeu", na verdade fala-se ali também do pa-

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dre cristão, este sendo o legítimo herdeiro daquele, o seu prolongamento natural. Como, exatamente, compreen­der isso? E esse jogo em que diversos atores representam um mesmo personagem que Nietzsche deixa claro para o leitor de O Anticristo.

E o cristianismo - diz Nietzsche - que declara uma guerra mortal ao homem de "tipo superior", desterra to­dos os instintos fundamentais desse tipo e considera o for­te como reprovável, tomando o partido dos débeis e fra­cassados. E o instinto teológico que faz com que o mais nocivo à vida seja chamado de "verdadeiro" 1. Mas o pro­blema do nascimento do cristianismo só pode ser com­preendido a partir do terreno em que este cresceu - o cristianismo é a conseqüência lógica do instinto judaico. Nasce aqui a fórmula do Redentor: "a salvação virá dos hebreus". Em outras palavras, o cristianismo pode nutrir sentimentos antijudaicos, sem compreender que ele é, na verdade, a última conseqüência do judaísmo. Pois o que fazem os hebreus, enquanto povo? Colocados diante do problema do ser e do não-ser, eles preferiram o ser a todo custo. E este "a todo custo" significou a falsificação de toda a natureza, de todo o mundo interior e exterior. Eles traçaram um limite contra todas as condições nas quais, até então, seu povo vivia, e criaram para si uma noção oposta de "condição natural". Eles disseram não à natu­reza 2. Ora, é este mesmo fenômeno, só que em propor­ções maiores, que reencontramos no cristianismo. E a moral judaico-cristã que diz não a todo movimento as­cendente da vida, ao poder e à afirmação de si. E agora o instinto de ressentimento inventa outro mundo, um

1. Nietzsche, O Anticristo, § 5, KSA, vol. 6, p. 171. 2. Nietzsche, O Anticristo, § 24, KSA, vol. 6, p. 192.

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mundo a partir do qual a afirmação da vida apareceria como um mal, como algo reprovável. Tal é, para Nietz­sche, a imensa sutileza do povo judeu: eles tomam parti­do pelos instintos de decadência, não se deixando do­minar por eles, mas utilizando-os como instrumentos con­tra o mundo.

O que o povo hebreu promove é a desnaturalização dos valores naturais. Seu Deus da justiça é um Deus sob condições: ele é um instrumento nas mãos do sacerdote, que então interpreta toda fortuna como um prêmio, toda desventura como castigo por uma desobediência a Deus. Agora, sua moral já não é mais expressão das condições de vida e de crescimento de um povo, mas se torna con­trária à vida. Toda fortuna como prêmio, toda desventu­ra como castigo... Nessas condições, o que é a moral ju­daica, o que é a moral cristã? E o acaso que perde a sua inocência; é a desventura travestida pelo pecado; é o bem-estar considerado como perigo, tentação; é o mal-estar fi­siológico envenenado pelo remorso. Os sacerdotes judeus foram os artífices dessas invenções: eles transferiram o passado de seu povo para o campo religioso, com incom-parável desprezo pela realidade histórica. O que eles fize­ram? Fizeram do passado de seu povo um estúpido meca­nismo de salvação, um mecanismo de culpa diante do Deus da justiça e seu conseqüente castigo, de devoção a Deus e seu conseqüente prêmio. Foi essa interpreta­ção do passado histórico, tal como foi disseminada pela Igreja, que os filósofos docemente prosseguiram, com sua idéia de uma "ordem moral do mundo". Segundo essa doutrina, existiria uma vontade de Deus em rela­ção à qual o homem deve agir ou não agir, o valor de um povo ou de um indivíduo se mediria pelo grau de obe­diência à vontade divina, nos destinos de um povo ou de

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um indivíduo a vontade de Deus seria dominante, puni­tiva ou recompensadora.

Na origem de toda essa litania está o sacerdote. Mas a realidade é bem mais crua do que essas ficções a que fomos acostumados. É a casta dos sacerdotes que, abu­sando do nome de Deus, chama de reino de Deus um es­tado social no qual o sacerdote fixa o valor das coisas, chama de "vontade de Deus" os meios graças aos quais esse estado é obtido ou conservado. São eles que medem os tempos, os povos e os indivíduos segundo o metro de ajudar ou contrariar o predomínio dos sacerdotes. E ago­ra o sacerdote se apresenta ao seu distinto público como um personagem indispensável. Todo costume natural, toda instituição natural - como o Estado, os tribunais, o casamento, a assistência aos doentes -, toda exigência inspirada pelo instinto de vida, tudo que tem em si mes­mo um valor é privado de seu valor pelo sacerdote ou pela "ordem moral do mundo". Agora é necessária uma san­ção, um poder que cria um valor para tudo, depois de se negar o valor da natureza. O sacerdote desvaloriza, reti­ra o valor da natureza, e é a este preço que ele existe. De agora em diante a desobediência a Deus - ou ao sacerdo­te -, a desobediência à lei recebe o nome de "pecado". Os meios para reconciliar-nos com Deus serão os meios pe­los quais será garantida a sujeição ao sacerdote, o único que pode salvar. A partir desse momento os pecados se tornam indispensáveis, já que eles são os meios de que a casta sacerdotal se serve para manipular o poder: o sacer­dote vive de pecados, ele precisa da existência de peca­dores. Donde a tradução que Nietzsche dará do lema su­premo: "Deus perdoa os penitentes." Leia-se: "Deus per­doa quem se submete aos sacerdotes." 3 Para Nietzsche, o

3. Nietzsche, O Anticristo, § 26, KSA, vol. 6, p. 197.

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cristianismo será o prolongamento dessa maquinaria in­fernal imaginada pelo sacerdote judeu.

II

O "cristianismo" - algo que ninguém deve confun­dir com a figura histórica do Cristo. Porque em sua ori­gem, antes de sua apropriação pelo espírito judaico, o cristianismo era outra coisa. O cristianismo primitivo, diz Nietzsche, nega a Igreja, a insurreição de Cristo foi contra a Igreja judaica, contra a casta sacerdotal. Originalmente, a "boa nova" era precisamente a de que não há contradi­ções: o reino dos céus pertence aos fiéis, a fé não é algo conquistado, mas existe desde o princípio. E essa fé não se encoleriza, não censura, não se defende, não empu­nha a espada. Ela também não se "demonstra" com mi­lagres, com prêmios ou com promessas - e muito menos com as Escrituras. Essa fé nem sequer se formula, ela se vive. O Jesus histórico, tal como Nietzsche o descreve no aforismo 32 de O Anticristo, já era quase um "espírito li­vre": ele recusa todo dogmatismo. Esse "simbolista" está fora de todo prejuízo eclesiástico, fora de toda religião, de toda idéia de culto. Ele nunca pensou em negar o mundo, nem sequer suspeitou o conceito eclesiástico de mundo. O Cristo histórico desconhece as idéias de culpa, castigo e recompensa. Ele abole qualquer relação de distância entre Deus e o homem e é precisamente esta a "boa nova": a fe­licidade não é prometida, não está sujeita a condições. O resultado é uma nova prática. O que distingue primitiva­mente o cristão não é uma fé, mas outro modo de atuar, que prescinde de toda doutrina judaica da penitência e da reconciliação. Uma nova prática: Cristo não se defen-

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de, não se indigna, não atribui responsabilidades, ele roga, sofre e ama naqueles que fazem o mal. Mas depois...

Depois, o Cristo degenera no cristianismo e na Igre­ja, ele degenera no ódio instintivo contra toda a realidade. O Cristo degenera em São Paulo. Pois foi Paulo quem deu ao cristianismo uma "interpretação" bem determinada. A "boa nova" foi sucedida pela "péssima nova", formula­da por esse gênio do ressentimento que foi Paulo: a his­tória de Cristo foi reinterpretada no mesmo espírito com que os judeus reescreveram a história de seu povo. Foi Paulo que inventou uma história do primeiro cristianismo e ainda falsificou, mais uma vez, a história de Israel, para que ela parecesse a pré-história de seu presente. Com Paulo, o tipo do redentor, sua doutrina, sua prática, sua morte e o sentido de sua morte - e até mesmo o que ocor­re depois da morte -, nada permaneceu intacto. O que ele fez? Simplesmente transferiu o centro de gravidade da existência de Cristo para a mentira do Jesus ressuscitado. Paulo precisava da morte de Cristo. Jesus ressuscitado... E afirmar isso em pleno mundo estóico! Paulo nem devia acreditar nessa bobagem. Ele apenas queria o fim, e para isso precisava dos meios - foram os tolos que o levaram a sério. Paulo queria o fim, isto é, ele queria o poder; com ele, mais uma vez é o sacerdote quem quer o poder. Para isso, ele precisava das idéias e dos símbolos com os quais se tiranizam as massas e se formam os rebanhos. A crença na imortalidade foi o meio de que ele se serviu para rea­tar com a tirania do sacerdote. Com a crença na imortali­dade, quer dizer, com a doutrina do juízo, é a velha litania do sacerdote judeu que retorna, porque a crença na imor­talidade desqualifica a natureza, ao colocar o centro de gravidade da vida não na própria vida, mas em um além. Agora, o sentido da vida é viver de modo que a vida não

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tenha sentido. É neste momento que o cristianismo reata com o judaísmo, que o sacerdote cristão torna-se o her­deiro natural do sacerdote judeu. Mas, se é assim, será que já temos os elementos para responder à questão da qual se tinha partido, que era a de saber qual o papel do sacerdote na constituição do universo "escravo"? Ainda não. Para isso, é preciso levar em conta também as idéias de "culpa" e "má consciência", tal como Nietzsche as ana­lisa na segunda dissertação da Genealogia da moral.

III

De onde provém a noção de "culpa"? Ao procurar responder a essa questão, o método de Nietzsche será, mais uma vez, filológico. A etimologia da palavra "culpa" indica que ela vem de dívida. Na origem - diz Nietzsche - o castigo enquanto reparação desenvolveu-se afastado de toda e qualquer consideração sobre a liberdade da von­tade. Durante o mais longo período da história humana, não se punia porque se considerava o malfeitor "respon­sável", não se supunha que apenas o culpável devia ser punido. Punia-se por cólera, por ter sofrido um dano, desa­fogava-se a cólera em quem a havia causado. Foi essa có­lera que se encontrou limitada e modificada pela idéia de que todo dano encontra seu equivalente em uma dor im­posta ao seu autor 4. Mas de onde provém essa idéia, tão enraizada, de que existiria uma equivalência entre o dano e a dor? Ela vem da relação contratual entre credor e deve­dor, dessa relação em que se promete alguma coisa; o cas­tigo é, antes de tudo, a dor imposta ao devedor que não

4. Nietzsche, Genealogia da moral, II, § 4, cit., p. 65.

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cumpre sua promessa. Sendo assim, para procurar a ori­gem dos conceitos morais de culpa, consciência e dever, precisa-se ir buscá-la no domínio do direito das obriga­ções. Foi precisamente ali - garante Nietzsche - que se celebrou, pela primeira vez, esse sinistro casamento das idéias de culpa e de dor - um casamento que já penetrou em nosso sangue. E se na origem o sofrimento podia ser uma compensação para as dívidas, é porque fazer sofrer dava prazer aos homens. Assim, o sentimento de culpa, de obrigação pessoal, tem sua origem na relação entre comprador e vendedor, credor e devedor: é daqui que nasce a idéia de equivalência que, logo depois, se genera­liza na máxima segundo a qual tudo tem seu preço, tudo pode ser pago - este mais antigo cânone moral da justi­ça. Essa generalização é fundamental: primitivamente, a comunidade também está, diante dos seus membros, em relação de credor a devedor. Mas ninguém deve pro­curar, na origem, as "idéias modernas": aquele que não cumpre o contrato sofre uma punição, mas o punido ain­da não era visado como o é por nós. Em outras palavras, a noção de "castigo" é algo de fluido, que no curso da história adquiriu vários sentidos. Hoje em dia, admite-se que o castigo despertaria no castigado o sentimento de culpabilidade, que ele seria o instrumento desse even­to psíquico chamado "má consciência" ou "remorso". Mas é uma grande bobagem universalizar essa idéia moderna, pois durante a maior parte da história não exis­tiam "culpáveis", não havia, na consciência dos que jul­gavam e puniam, nada a indicar que eles tratavam com um culpável. Com o que eles lidavam? Apenas com par­celas irresponsáveis do destino. Assim, não é no castigo que se pode encontrar o nascimento da má consciência, do remorso. Na origem, o punido - parcela do destino -

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não experimentava nenhuma dor interior diferente daque­la provocada por um acontecimento imprevisível, como

uma catástrofe natural contra a qual não se pode lutar, De onde teria surgido, então, a má consciência? So­

bre essa questão, Nietzsche adianta uma "hipótese" - é só isso que pode fazer o "espírito livre", este antidogmá-

tico por excelência, que trabalha apenas com "probabili- dades". A má consciência seria a doença oriunda da pres­

são exercida sobre o homem pela mais profunda das transformações a que ele se submeteu quando se viu sob o constrangimento da sociedade e da paz. O que aconte- ceu? Esses animais habituados à guerra tiveram agora

seus instintos desvalorizados, eles foram reduzidos a pen- sar, concluir, calcular - eles foram reduzidos à "consciên- cia". Mas os antigos instintos reclamam satisfação e, sob

a paz da vida social, eles se voltam para o interior. "Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro - isto é o que chamo de interiorização do ho- mem: é assim que no homem cresce o que depois se de­

nomina sua 'alma' ." 5 É esse "mundo interior" que vai se expandindo, na medida em que se impede o homem de liberar-se para o exterior; agora os instintos do homem

voltam-se contra o próprio homem. "A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudan- ça, na destruição - tudo isso se voltando contra os possui- dores de tais instintos: esta é a origem da má consciên­

cia". 6 Eis a origem da má consciência para uma doutrina da vontade de potência: a ausência de inimigos externos, a ausência de resistência faz com que os instintos se vol­

tem contra o próprio homem. Assim, os organizadores dos

5. Nietzsche, Genealogia da moral, II, § 16, cit., p. 90. 6. Nietzsche, Genealogia da moral, II, § 16, cit., p. 90.

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Estados primitivos desconhecem o que é culpabilidade, responsabilidade. A má consciência, enquanto instinto de liberdade tornado latente e reprimido, não germina neles- mas sem eles não teria nascido. A mesma força que seexterioriza nos fundadores de Estados, uma vez interio­rizada, cria a má consciência; é o mesmo instinto de liber­dade ou vontade de potência que se exterioriza ou volta-secontra seu detentor. Assim, a má consciência não é as-sunto de dominadores, mas de dominados, não é coisa de senhores, mas de escravos. Uma força voltada contra simesma: agora a má consciência será a matriz desses fe-nômenos expressos pelas idéias de "desinteresse", "es -quecimento de si", "sacrifício de si", "não-egoísmo" -apenas a má consciência, essa vontade de maltratar a simesmo, fornece a condição primeira para fixar o valordesses valores. O que acontece quando a má consciência cruza seu caminho com aquele da religião? A religião vai levar a má consciência ao paroxismo, à sua maximização.O que ela faz?

A relação de direito privado entre credor e devedor encontrou uma nova aplicação histórica muito importan­te na relação entre os vivos e os ancestrais. No seio da tri-bo primitiva, garante Nietzsche, cada geração viva se re-conhece com uma obrigação jurídica diante da geração precedente e diante da primeira geração, a fundadora detudo. Agora prevalece a convicção de que a tribo só sub-siste graças aos sacrifícios e aos trabalhos dos ances­trais. Reconhece-se assim uma dívida em relação a estes, que deve ser quitada mediante novos sacrifícios e traba-lhos. São esses ancestrais que terminam por assumir a fei-ção de deuses. E a história mostra que o eclipse da forma primitiva de comunidade, fundada nos elos de sangue, não faz com que desapareça a consciência de uma dívida

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diante da divindade. E foi esse sentimento de dívida em relação à divindade que não cessou de crescer, na pro­porção em que o conceito de Deus e o sentimento de di­vindade aumentaram em importância e foram exaltados. Ora, com o aparecimento do Deus cristão - o mais alto grau de divindade alcançado até hoje - o sentimento de dívida também foi levado ao seu limite máximo. É esse sentimento de dívida em relação a Deus que vai cruzar seu caminho com a má consciência. E a moralização da dívida e do dever que fará com que essas idéias se voltem contra o devedor em quem a má consciência se enraiza até que, finalmente, para esse devedor a idéia da impos­sibilidade de pagar a dívida engendra a idéia da impossi­bilidade de expiação - a idéia do castigo eterno. Agora en­tra em cena o cristianismo: Deus se sacrificando para pagar a dívida do homem, Deus pagando, Deus como o único capaz de resgatar o homem, Deus se sacrificando pelo devedor - e tudo isso por amor!

Essa, evidentemente, é a história superficial, sob a qual se pode adivinhar a história real, que se desenrola sob esse véu. É o homem da má consciência, com sua vontade de se torturar, que lança mão da hipótese reli­giosa para alçar seu suplício ao grau máximo. A idéia de dívida em relação a Deus torna-se, para ele, um instru­mento de tortura. O homem da má consciência projeta, fora de si, um Deus que é a antítese de seus instintos, e compreende esses instintos como culpa em relação a Deus. "Há uma espécie de loucura da vontade nessa cruel­dade psíquica que é simplesmente sem igual: a vontade do homem de sentir-se culpado e desprezível, até ser im­possível a expiação, sua vontade de crer-se castigado, sem que o castigo possa jamais eqüivaler à culpa, sua vontade de infectar e envenenar todo o fundo das coisas com o

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problema do castigo e da culpa, para de uma vez por to­das cortar para si a saída desse labirinto de 'idéias fixas', sua vontade de erigir um ideal - o do 'santo Deus' - e em vista dele ter a certeza tangível de sua total indignida­de . " 7 De onde decorre tudo isso? Da condição primeira da má consciência. Tudo decorre desse homem impedi­do de ser um animal de ação, desse indivíduo em que a vontade de potência não pode se exteriorizar e que por isso mesmo se torna contemplativo, interiorizado - assu­me o tipo "espiritual". O sacerdote judeu será o líder des­se rebanho de "interiorizados". E agora se poderá come­çar a vislumbrar o seu papel na constituição do universo "escravo".

IV

É na passagem da filologia à genealogia, enquanto transição da investigação do "sentido" para a análise da "origem", que o sacerdote judeu entra na cena nietzschia-na. O que os judeus fizeram? Seus profetas "fundiram em uma só noção aquelas de 'rico', 'ímpio', 'mau', 'violento', 'sensual', e pela primeira vez deram um sentido infaman-te à palavra 'mundo'. Esta transmutação dos valores (que também quer que 'pobre' seja sinônimo de 'santo' e de 'amigo') faz toda a importância do povo judeu: com ele começa a revolta dos escravos na ordem moral"8. Assim, o que o sacerdote judeu faz é uma determinada interpreta­ção, ele rearticula o campo semântico das palavras, im-põe-lhes um novo sentido ao associá-las diferentemen-

7. Nietzsche, Genealogia da moral, II, § 22, cit., p. 100. 8. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 195, KSA, vol. 5, p. 117.

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te. Através dessa rearticulação, opera-se uma inversão dos valores aristocráticos. Essa interpretação e essa inversão caminham para um mesmo resultado: colocar no "mun­do" a efígie da vergonha. Mas o que é o "mundo" para Nietzsche? O mundo é a vontade de potência, é contra ela que o sacerdote se dirige9. A Genealogia da moral reto­ma esse tema do ódio sacerdotal contra as castas. O modo de apreciação do sacerdote se distingue daquele da aris­tocracia guerreira, e o sacerdote judeu vai se opor aos seus inimigos e dominadores por um ato de vingança estrita­mente espiritual, uma transmutação dos valores que im-plode a equação aristocrática entre "bom", "nobre", "po­deroso", "belo", "feliz", "amado por Deus". O discurso do sacerdote será mais ou menos assim: os miseráveis são os únicos bons, os que sofrem, os necessitados, os doen­tes, são também os únicos piedosos, os únicos benditos por Deus; ao contrário, os nobres e poderosos serão per-petuamente maus, cruéis, avarentos, insaciáveis, eterna­mente réprobos, malditos, condenados 1 0. Esse discurso do sacerdote, nascendo do ódio e sendo apresentado por Nietzsche como um ato de vingança puramente espiri­tual, remete ao ressentimento. Mas qual é, exatamente, a relação do sacerdote com o escravo e o filósofo?

O descontentamento do escravo diante de sua sorte não foi inventado pelo sacerdote 1 1. Mas, se é assim, qual o papel desse personagem? Para percebê-lo, vale a pena di­rigir-se aos textos em que Nietzsche analisa a religião. As-

9. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 38[12], KSA, vol. 11, p. 610, Obras incompletas, cit, p. 397: "E sabeis sequer o que é para mim 'o mundo'? ... Esse mundo é a vontade de potência - e nada além disso! E tam­bém vós próprios sois essa vontade de potência - e nada além disso!"

10. Nietzsche, Genealogia da moral, I, §§ 6 a 8, cit., pp. 27-32. 11. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 18, cit., p. 153.

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sim, em A gaia ciência Nietzsche aponta quais são as duas verdadeiras invenções dos fundadores de religião. Em pri­meiro lugar, "um modo de vida determinado, um costume quotidiano, que disciplinam a vontade e ao mesmo tempo banem o tédio; em segundo lugar, uma interpretação que aureola essa regra como um objeto do mais alto preço, e que faz dela um bem supremo pelo qual poder-se-á com­bater e, se preciso, dar a vida" 1 2 . Dessas duas invenções, a segunda é de longe a mais importante. Enquanto o gê­nero de vida em geral preexiste à sua regulamentação, mas como um gênero de vida entre outros, sem consciência de seu suposto valor, a originalidade do fundador de re­ligião está em ver e escolher esse gênero de existência e adivinhar o que se pode fazer com ele, em que sentido in­terpretá-lo. Como Jesus, que encontra à sua volta a vida do pequeno povo romano e a interpreta, lhe atribui um sentido e um valor supremos, dando-lhes assim a cora­gem de desprezar todo outro modo de existência. Um gê­nero de vida acrescido de uma interpretação que o valo­rize: está aqui o segredo da fundação das religiões. E, se é assim, isso permite responder à questão de saber o que é preciso para fundar uma religião e qual será o papel do sacerdote no mundo escravo. "Para fundar uma religião é preciso possuir uma infalibilidade psicológica que saiba descobrir com segurança uma certa categoria de almas medianas que ainda não reconheceram seu parentesco. É o fundador de religião que as aglutina; a fundação de uma religião torna-se sempre, a este respeito, uma longa festa de 'reconhecimento'." 1 3 Qual o papel do sacerdote, para que essas almas irmãs reconheçam seu parentesco? As

12. Nietzsche, A gaia ciência, § 353, KSA, vol. 3, p. 589. 13. Nietzsche, A gaia ciência, § 353, KSA, vol. 3, p. 590.

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comunidades eclesiais de base têm longa data: o sacerdo­te é o organizador desse rebanho de enfermos 1 4 . Um or­ganizador, desde que não se esqueça a condição para essa empreitada: a interpretação glorificadora de determinado modo de vida, que ao mesmo tempo lhe dá unidade e significação. Agora, com o entre-reconhecimento, os es­cravos podem se sentir como um rebanho.

Mas o que garante o sucesso do sacerdote no desem­penho de sua função de vanguarda do proletariado? Antes de mais nada, a demanda de seu público por uma religião, as relações especiais que unem a religião à fraqueza em geral. Em Para além do bem e do mal, Nietzsche apresenta as religiões como estratégias de conservação dos fracassa­dos. Elas por princípio tomam partido a favor dos fracas­sados, são religiões dos "sofredores" e dão razão a todos aqueles que sofrem com a vida, como se esta fosse uma doença, e gostariam que todo outro tipo de sentimento em relação à vida fosse considerado falso e se tornasse impossível 1 5. E se a platéia da religião está entre os "fra­cos", isso não é mera casualidade, mas exprime uma re­lação de essência entre religião e fraqueza em geral. A fraqueza se exibe na própria "necessidade de crença", e por isso pode-se muito bem medir a força de um homem, ou antes, a sua fraqueza, pelo grau de fé do qual ele tem necessidade para se desenvolver. Por isso o cristianismo se mantém firme e forte ainda hoje em dia: ele é neces­sário à maior parte das pessoas, ele é uma crença que cor­responde a exigências bem determinadas. Quais são essas exigências? Um desejo de apoio suscitado por um instin­to de fraqueza, uma necessidade de fé. É sempre onde

14. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 18, cit., p. 154. 15. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 62, KSA, vol. 5, p. 82.

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mais falta a vontade que a fé é o mais desejado, o mais ne­cessário, pois a vontade, sendo associada à idéia de co­mando, é signo distintivo de domínio e de força; desde então, quanto menos se sabe comandar, mais se aspira a ser comandado. De tal forma, garante Nietzsche, que as grandes religiões devem ter nascido de uma extraordiná­ria astenia da vontade, que está na origem da busca de imperativos. Quando um homem se convence de que deve ser comandado, ele já é um crente. Donde a correlação que Nietzsche estabelecerá entre a fé cristã e o sacrifício da independência 1 6 . Vem daqui o casamento perfeito en­tre o sacerdote judeu e o escravo: a fraqueza, com sua ne­cessidade de crença, a vontade astênica, consegue enfim o seu comandante-em-chefe. É a relação de essência en­tre religião e anemia da vontade que está na origem do sucesso com que o sacerdote realiza a sua tarefa, pois o "organizador" do rebanho de escravos responde a uma exigência precisa de suas ovelhas. Para Nietzsche, é essa função do sacerdote judeu que o cristianismo não fará se­não prolongar. Mas o que, exatamente, ali se prolonga?

Se o sacerdote atribui uma "interpretação" ao modo de vida do escravo, qual o sentido desse gesto? Isso signi­fica que o sacerdote judeu é o primeiro ator a desempe­nhar o papel de um personagem pelo qual já se passou lá no início - ele é o primeiro "professor da meta da exis­tência" com certidão de nascimento autenticada por nos­sa estúpida história. Pois o que faz o fundador de morais e religiões? Ele promove a vida da espécie renovando a fé na vida. E o discurso que ele dirige ao seu rebanho visa alertar a todos que a vida vale a pena ser vivida, a vi­da é importante, há algo atrás de sua aparência que sem-

16. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 46, KSA, vol. 5, p. 66.

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pre se desvela a quem lhe presta a devida atenção. O que ele faz? "E para que aquilo que acontece sempre ne­cessariamente, aquilo que acontece por si mesmo e sem nenhuma espécie de meta apareça doravante como ten­dendo para um fim e pareça ao homem razão e lei supre­ma, é para isso que o mestre de moral sobe em sua cáte­dra de professor da 'meta da vida'."17 Atribuindo uma fi­nalidade a um jogo que se rege pelo acaso ou pela neces­sidade, em todo caso, nunca pela teleologia, o professor da meta da existência "interpreta" ao máximo, já que a atribuição de fins é o mais alto grau da interpretação. O seu propósito é fazer com que a vida se torne "interessan­te" aos olhos dos alunos, e ele pensa conseguir isso atri­buindo-lhe uma finalidade, instituindo uma razão na vida. E o que faz o sacerdote judeu. Afinal, o animal doen­te não tem como problema o próprio sofrimento, mas sim a falta de resposta à pergunta "para que sofrer?". "O ho­mem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofri­mento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento. A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade." 1 8 A tarefa do sacerdote judeu foi responder a essa pergunta, atribuir um sentido ao sofrimento, uma meta à existência, uma teleologia ao acaso. E o meio do qual ele se serviu para obter esse resultado foi o "ideal as­cético". Para onde aponta esse "ideal" e que uso o sacer­dote faz dele?

17. Nietzsche, A gaia ciência, § 1, KSA, vol. 3, p. 371. 18. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 22, cit., p. 184.

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V

Na Genealogia da moral, a oposição entre a aristocracia guerreira e a casta sacerdotal é comentada por Nietzsche através da distância entre vida e ascetismo. O sacerdote é alguém que parte da oposição entre o "puro" e o "impu­ro", procurando acentuá-la e espiritualizá-la: sua primeira marca registrada é a hostilidade em face da ação, seguida peia hostilidade aos sentidos e pela disciplina que fabri­ca uma "inferioridade" 1 9. É a oposição entre a vida guer­reira e a vida ascética que está na origem das diferenças de apreciação existentes entre os nobres e os sacerdotes. Enquanto os juízos de valor da aristocracia guerreira são fundados na constituição do corpo, na saúde e em tudo o que implica atividade, elementos essenciais ao agon ho-mérico, os juízos de valor do sacerdote se baseiam na censura à atividade, no elogio à pureza, na "espirituali-zação" acarretada pela impotência de agir. Assim, já se pode suspeitar o que será o ideal ascético: antes de mais nada uma estratégia de desnaturalização, o que significa­rá para Nietzsche, como sempre, uma negação da vonta­de. Tentemos elucidar o significado disso através de di­versas figuras do ideal ascético.

A figura que mais interessa é, antes de tudo, o asce­tismo do sacerdote enquanto modo de apreciação da vida. Qual é a valoração de nossa vida por parte dos sacerdo­tes ascéticos? Agora a nossa vida, com tudo aquilo que lhe pertence, como natureza, mundo e vir-a-ser, "é por eles colocada em relação com uma existência inteiramente outra, a qual exclui e à qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso

19. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 6, cit., p. 27.

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de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra existência" 2 0 . Assim descrito, o sacerdote só pode ser o campeão do ressentimento. Através dele se ex­prime um ressentimento sem exemplo, que através da ne­gação quer dominar não algo na vida, mas a própria vida, as suas condições mais fundamentais. Agora, o que se busca com prazer é o dano voluntário, a mutilação, a mor-tificação, e é este ascetismo, preexistente no sacerdote ju­deu, que está na origem daquele cristianismo "hipocon­dríaco", com suas torturas e tormentos de consciência 2 1 . Por isso o cristianismo também será negativo diante da natureza, ele avaliará o natural como indigno e o hostili­zará. É aqui que se enraíza a distância na avaliação das paixões entre a Antigüidade grega e o mundo judaico-cris-tão: enquanto a "aspiração ideal" dos gregos se dirigia às paixões, junto às quais eles se sentiam não apenas mais felizes, mas também mais puros e mais divinos, a "aspi­ração ideal" dos cristãos os leva a destruir as paixões, a vê-las como algo sujo e a decretar a sua total ausência no divino 2 2. E é esta mesma diluição das paixões, como meta a ser sempre perseguida, que se exprime, por exem­plo, nas filosofias da arte. O ascetismo na arte prolonga aquela mesma ideologia, como em Kant, quando este de­fine o Belo como o que agrada sem interesse, estabelecen­do sempre a equivalência entre o passional, o patológico e o interessado.

Se o ascetismo é antes de mais nada uma desnatu-ralização, não é nem um pouco surpreendente que o sa­cerdote mantenha relações privilegiadas com o filósofo,

20. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 11, cit., p. 129. 21. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[96], KSA, vol. 12, p. 510. 22. Nietzsche, A gaia ciência, § 139, KSA, vol. 3, p. 488.

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a ponto de ambos se confundirem no leitmotiv comum da luta contra o natural, contra a sensualidade e a favor da espiritualização a qualquer custo. O rancor contra toda e qualquer atividade também estava presente na filoso­fia, e já era este rancor que Aristóteles alardeava na Ética a Nicômaco, ao apresentar a "vida contemplativa" como a forma mais elevada de existência. O "filósofo", enquan­to desdobramento do "tipo eclesiástico", traz consigo a herança do sacerdote ascético, e este serviu, "até a época mais recente, como triste e repulsiva lagarta, única forma sob a qual a filosofia podia viver e rastejar" 2 3 . Vem daqui sua atitude negadora do mundo, sua hostilidade à vida, a descrença nos sentidos e o horror à sensualidade. Os filó­sofos vêem no ideal ascético um optimum das condições da mais alta espiritualidade, o personagem que todos eles devem representar, aquilo que garante a todos a "objeti­vidade", a "contemplação desinteressada", a recusa das paixões e do perspectivismo.

Como compreender o asceta? Se ele parece um per­sonagem autocontraditório, por desempenhar o papel de uma luta da vida contra a vida, para Nietzsche isso é pura aparência. Porque, bem medidas as coisas, na realidade "o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência" 2 4 . Ele indica uma fadiga de vida que os instintos mais profundos combatem, ele é um dos meios desse combate, uma astúcia de conservação da vida. O sacerdote ascético é o desejo encarnado de viver de outro modo, mas é exatamente a potência de seu de­sejo que o liga ao mundo, faz com que ele se torne o ins-

23. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 10, cit., p. 129. 24. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 13, cit., pp. 134-5.

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trumento que trabalha para criar condições melhores para se viver no mundo. E é com essa potência que ele mantém ligado à vida todo o rebanho dos descontentes, malogra­dos, os sofredores de toda espécie, fazendo-se esponta­neamente seu pastor e seu guia. Assim, esse aparente ini­migo da vida é, na verdade, uma potência conservadora e afirmativa da vida. Mas da vida adoecida... O rebanho dos enfermos precisa de um enfermeiro que seja, ele mesmo, um doente; se o sacerdote é um médico, ele será um mau médico, aquele que combate a dor mas não as causas da dor, nunca o verdadeiro estado de doente. Mas nessa pers­pectiva de combater os efeitos e não as causas, a dor e não a doença, a imaginação do sacerdote será realmente ad­mirável. Ele vai adocicar o sofrimento, oferecer consolos de todo tipo - e o cristianismo será uma mina inesgotável de consolos e estimulantes, de meios para lutar contra o sentimento de mal-estar. Nietzsche não deixa de recen-sear os meios dos quais o sacerdote se serve nessa missão de reconciliar os sofredores com a existência.

Em primeiro lugar existem os meios inocentes. Por exemplo, combater o mal-estar dominante com recursos que reduzam o sentimento de vida ao seu grau mais bai­xo: nenhum querer, nenhum desejo, nenhuma paixão, não amar nem odiar. Como resultado da terapia se tem a im-passibilidade, a renúncia a si, essa hipnose de uma tran­qüilidade enfim conquistada, o sono profundo no qual a alma se desliga do corpo, a união mística, o sentimento do nada, logo, ausência de sofrimento - e agora os doentes só podem ver nisso um bem supremo 2 5 . Eis aí um primei­ro treinamento contra a depressão. Existe outro, como o elogio e a promoção da atividade maquinai. Essa ativida-

25. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 17, cit., pp. 149-52.

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de diminui o sofrimento e é por isso que se fala em "bên­ção do trabalho". O princípio dessa anestesia é afastar a atenção do sofredor de seu próprio sofrimento, ocupar sua consciência com uma atividade constante, de modo tal que sobre pouco espaço para o sofrimento. E a nossa sociedade "disciplinar" que promove o trabalho maqui­nai, com tudo aquilo que lhe é próprio: regularidade, obe­diência pontual e incondicional, um modo de vida intei­ramente fixado, um tempo totalmente ocupado. Como conseqüência, tem-se a impessoalidade, o esquecimento de si imposto pela disciplina. Tudo isso - garante Nietz­sche - o sacerdote soube utilizar muito bem em sua luta contra a dor. Para tanto, ele necessitava de muito pouco além da "pequena arte de mudar os nomes e rebatizar as coisas, para fazer com que vissem benefício e relativa fe­licidade em coisas até então odiadas" 2 6 . Mas a farmácia do sacerdote não se limita a esse repertório, existe ain­da a prescrição da "pequena alegria", como um remédio muito apreciado contra a depressão. Essa "pequena ale­gria" é a alegria de causar alegria ao próximo, fazendo algum benefício, presenteando, aliviando, socorrendo ou consolando. Ao recomendar esse "amor ao próximo", o sacerdote prescreve uma estimulação moderada da von­tade de potência. Essa felicidade de uma "pequena supe­rioridade", sempre embutida em todo ato de ajuda ao pró­ximo, é um bom meio de consolo dos fracos - donde a multiplicação das associações de beneficência mútua na Roma do começo do cristianismo. Com a "vontade de re­ciprocidade", a vontade de potência, minimamente esti­mulada, alcança nova figura na formação do rebanho, este santo remédio contra a depressão, já que ele desvia o

26. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 18, cit., p. 153.

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olhar do doente de seu próprio desalento, de sua aversão a si. Por isso, todos os doentes "buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza: o sacerdote ascé­tico intui esse sentimento e o promove; onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sa­cerdote que o organizou" 2 7 .

O sacerdote ascético não é apenas esperto, ele é es­pertíssimo - e ainda não chegamos perto de seu estrata­gema fundamental. O recalque do sentimento de vida, a promoção da atividade maquinai e da pequena alegria no amor ao próximo são os meios ainda inocentes de sua luta contra o mal-estar. Mas o seu método principal não será nada inocente, visto que ele consistirá em uma cer­ta utilização do ideal ascético como meio de um desregra-mento afetivo. O sacerdote fará com que a alma humana saia de sua prisão, escape como por encanto de seu mal-estar e desgosto, através de uma interpretação religio­sa, uma justificação religiosa, um remédio que deixará o doente ainda mais doente. Se o homem pena pela falta de um sentido em seu sofrimento, pela ausência de res­posta à pergunta "para que sofrer?", com o ideal ascético o sofrimento ganhava um sentido, o sacerdote se fazia professor da meta da existência, o sofrimento era inter­pretado segundo a perspectiva da culpa2*. Com a invenção do "pecado", todo sofrimento passa a ser visto como cas­tigo por uma culpa, e se certamente essa "interpretação" trouxe um novo sofrimento, ainda mais nocivo à vida, pelo menos a porta se fechava ao mais extremo niilismo: o ho­mem tinha um sentido, ele podia querer alguma coisa.

27. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 18, cit., p. 154. 28. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 28, cit., p. 184.

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Para Nietzsche, o pecado é uma invenção judaica, herda­da e exponenciada pelo cristianismo. Esse sentimento não existia na Antigüidade grega, em que a idéia de um Deus que só perdoa quem se arrepende seria recebida como cô­mica, ou como irritante, de qualquer forma como um senti­mento de escravo, que supõe um Deus ávido por honra-rias, dado a vinganças apesar de todo-poderoso, sempre preocupado consigo, nunca com a própria humanidade. E o espírito judaico, para quem tudo o que é natural é em si mesmo indigno, que leva a proclamar que toda ação deve ser considerada apenas "do ponto de vista de suas con­seqüências sobrenaturais, nunca das outras" 2 9 .

Para obter o resultado desejado, qual será a estratégia do sacerdote ascético? O seu método será mudar a dire­ção do ressentimento. Se todo sofredor busca a causa de seu sofrimento, e particularmente uma causa viva e res­ponsável, um culpável contra o qual se possa dirigir o ressentimento, o sacerdote lhe ensina que é ele mesmo o culpado de seu próprio sofrimento, e com isso a direção do ressentimento é mudada 3 0 . Com a introdução do pe­cado como interpretação dos fatos, como novo nome da má consciência, a dor é interpretada como castigo, a nova imagem do enfermo é a de pecador, e o sofrimento adqui­re "sentido" quando reportado a um mundo extranatural. O triunfo do ideal ascético, enquanto método de culpa­bilidade, é transformar a dor em desejo de dor, junto a um sofredor que é sempre culpado. E por isso o sacerdote as­cético, apesar de representar uma contradição diante da vida, é um dos instrumentos de conservação da pró­pria vida, já que ele consegue dar um sentido à existên-

29. Nietzsche, A gaia ciência, § 135, KSA, vol. 3, p. 487. 30. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 15, cit., p. 144.

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cia escrava. Agora, garante Nietzsche, a vida não parece mais um joguete do acaso, ela tem um sentido, uma fi­nalidade, uma "razão".

Para Nietzsche, o "filósofo", o "sacerdote" e o "es ­cravo" são personagens estritamente correlacionados, que colaboram entre si na constituição da idéia de "outro mundo", cada um colorindo uma de suas faces. O filóso­fo inventa um mundo da razão, onde a razão e as funções lógicas são adequadas, e daqui procede o "mundo verda­de"; o homem religioso inventa um "mundo divino", e assim nasce o mundo desnaturalizado, contra a nature­za; o homem moral simula um mundo do "livre-arbítrio", e daqui se origina o mundo bom, perfeito, justo 3 1 . Esses três mundos fictícios confluem em um único "outro mun­do", eles são três maneiras convergentes de negar o mundo do vir-a-ser. O mundo-verdade, o filósofo e a razão; o mundo divino, o sacerdote e a virtude; o mundo moral, o escravo e a felicidade; são esses três mundos que se iden­tificam na equação socrática entre razão, virtude e felici­dade. Para Nietzsche, é essa tríplice aliança que forma a unidade constitutiva de nossa "civilização". O que signifi­ca reconhecer que a civilização ocidental é originalmente determinada pelo cristianismo, esta imensa conspiração contra o "tipo superior" de homem. Qual o valor dessa civilização? A Genealogia da moral, enquanto análise da­quela tríplice aliança, traz os elementos básicos de uma crítica a nossa civilização. Se as morais e religiões são os principais meios para fazer do homem o que se quer, se a civilização é formação, a questão de fundo será sempre a de saber que tipo de homem nossa civilização produz através de seus ideais.

31. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[168], KSA, vol. 13, p. 350.

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CAPÍTULO VII CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO

I

Para compreender por que nossa civilização é um prolongamento natural do cristianismo, deve-se sempre levar em conta o princípio hermenêutico que norteia as análises de Nietzsche, e que ele enuncia em alguns frag­mentos póstumos: é preciso identificar o ideal cristão mes­mo ali onde se eliminou completamente a "forma dogmá­tica" do cristianismo - como na música, no romantismo, na natureza de Rousseau ou no socialismo 1. É antes de tudo essa separação entre os ideais cristãos e a forma dog­mática da religião que permitirá a Nietzsche reconhecer o cristianismo até mesmo entre seus supostos opositores, como naquele livre pensador que repudia a Igreja, mas não o seu veneno. O "cristianismo" que entra em cena a partir de agora é constituído por um conjunto de ideais ci­vilizadores, um repertório de valores que se mantêm vivos, aquém ou além do dogma religioso. E o que mais interes-

1. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[2], KSA, vol. 12, p. 453.

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sa analisar são as "avaliações" cristãs, não os seus dog­mas, os "ideais", não a seita. O objeto privilegiado da aná­lise de Nietzsche serão as "idéias modernas", o repertório intelectual do século XLX, exatamente aquilo através do qual nossa civilização se opõe epidermicamente ao cris­tianismo para, secretamente, prolongá-lo. Aqui se dese­nha a rota de nossa "decadência" - o que nossos filósofos não podem perceber, visto que consideram de uma evi­dência "apodíctica" o valor dessa civilização. E existem vá­rias maneiras de perseverar nessa miopia.

A primeira delas é a ideologia do "progresso", que terá na doutrina nietzschiana da "decadência" o seu evi­dente contratema. O progresso é uma das "idéias moder­nas", quer dizer, uma idéia falsa, mas uma idéia falsa bas­tante especial: através dela, é uma valoração tácita que se apresenta, em que sub-repticiamente já se dá por resol­vido o problema da civilização, como se o que vem de­pois fosse necessariamente melhor do que veio antes, um otimismo temporal destituído de qualquer fundamento. E nada como o pensamento histórico do século XIX, esta metafísica do vir-a-ser ensinada pelos herdeiros do pro­fessor Pangloss, para colocar de escanteio tanto a questão do valor da civilização com aqueles temas que lhe são tão caros, como o da história enquanto superação dos erros, o do futuro como progresso, o homem "bom" prestes a ser realizado. São essas "evidências" que espontaneamente le­vam ao crédito incontestado da civilização, entenda-se, que proíbem que se formule em seus devidos termos o proble­ma suscitado por ela. Donde o mau humor de Nietzsche com as filosofias do "melhoramento do homem", que sem­pre partem da "evidência" de que melhorar o homem é realizar os valores do universo escravo. E sem contar que a questão do melhoramento do homem sempre foi levanta-

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da por todos de maneira ingênua, como se por uma es­pécie de intuição estivéssemos acima da questão de sa­ber por que se deve melhorar o homem, como se fosse de uma clareza meridiana que a "humanização" e a suavi-zação do europeu é de direito seu aperfeiçoamento 2. Essa é uma certeza grande o suficiente para que os sacerdotes - e os semi-sacerdotes, os filósofos -, em todos os tem­pos, chamem de "verdade" a uma doutrina cujo efeito educador parecia ser benéfico, uma doutrina que nos tor­naria "melhores": o que nos faz bem deve ser bom, o que dá bons frutos deve ser verdadeiro, não há outro "crité­rio da verdade".

E ninguém pense que essa valorização espontânea e acrítica da civilização seja monopólio das doutrinas do progresso indeterminado. Ela ressurge, sob outras formas, nas filosofias da história mais confessamente cristãs, aque­las que se pautam pela idéia de um acabamento do devir. Karl Lõwith aponta essa valorização em Hegel, quando este analisa a história3, e nas Considerações extemporâneas Nietzsche já protestava contra o hegelianismo, por con­duzir a uma idolatria dos fatos 4 . Em vez de se contentar com uma memoração de "antiquário", o europeu quer hoje em dia uma consciência histórica que se revela como uma vontade de futuro. Nunca, como agora, os discursos dos chefes de Estado se fizeram acompanhar tanto da cons­ciência de ser "históricos", quer dizer, são discursos diri­gidos ao futuro, nos quais se admite que apenas os tem­pos futuros poderão apreciar corretamente o que se faz hoje. Espera-se sempre que o futuro conferirá aos fatos do

2. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[124], KSA, vol. 12, p. 528. 3. Lõwith, K., De Hegel à Nietzsche, cit., pp. 265 ss. 4. Nietzsche, Considerações extemporâneas, II, § 8, Obras incomple­

tas, cit., p. 68.

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presente um direito histórico, uma justificação histórica, acredita-se mais do que nunca que a história é o tribunal que julga em última instância. De onde vem essa "evidên­cia" a mais que o século XLX nos legou, segundo a qual o significado do presente só pode ser corretamente formula­do pelo futuro? Ela se origina no modo como Hegel ela­borava a noção de acontecimento histórico. Como ele procedia? Hegel media o curso da história pelo progres­so temporal, do último elo ele deduzia os precedentes, pelo fato de levarem necessariamente àquele. Como ob­serva Lõwith, orientar-se assim na sucessão temporal supõe que só vale na história aquilo que é rico em conse­qüências, que a série dos acontecimentos históricos deve ser avaliada em razão do sucesso. Assim, o triunfo do cris­tianismo sobre o mundo antigo, sua expansão planetária e sua duração são uma prova inconteste de sua superiori­dade espiritual. E o sucesso é também uma medida constan­te da vida quotidiana, em que também se admite que o sucesso de algo prova o seu direito superior diante daqui­lo que não teve sucesso. A convicção do século XLX é a de que apenas o que tem sucesso tem o direito, a mesma "evi­dência" que está na origem do darwinismo, com sua se­leção natural: as espécies que sobrevivem são por princí­pio as "melhores". Donde o a priori comum a Hegel e a Darwin: em qualquer um dos casos, caminha-se do su­cesso de fato à sua necessidade presumida e ao direito profundo a esse sucesso. Em qualquer um dos casos, dirá Nietzsche, existe uma idolatria da força que se encontra vitoriosa, e afirmar que todo real é racional é apenas ou­tra vertente dessa mesma legitimação do fato consuma­do. Inversamente, para o hegeliano, aquilo que escapou da memória histórica, estando anulado ou sendo infrutí­fero, torna-se uma "existência injustificada".

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É essa "certeza" que Nietzsche visa ao afirmar que o sucesso sempre foi o maior dos mentirosos. Quando se as­socia o sucesso ao valor e ao direito, simplesmente se san­ciona a civilização dada, sem realmente avaliá-la. Tanto as doutrinas do progresso indeterminado quanto o hege-lianismo nem chegam a formular o problema. Mas haveria algo de surpreendente nisso? Ninguém coloca em ques­tão seu próprio a priori, ninguém corta o galho em que está sentado. O professor do "sentido da história", qualquer que seja o matiz com que ele se apresenta, é um professor da meta da existência a mais, ele apenas prolonga a tradi­ção inaugurada pelo sacerdote ascético, que é a de atribuir uma finalidade à gesta da humanidade. Desde então, não é grande surpresa se, para ele, a civilização for objeto de um culto espontâneo, nunca de uma tematização.

É essa mesma despreocupação com a civilização que Nietzsche denuncia em "nossos socialistas" que, com seu "otimismo econômico", sempre supõem que o cresci­mento da economia pode ser matriz de civilização. Gé-rard Lebrun analisa esse tema das heranças de civiliza­ção entre o socialismo e a sociedade que critica 5. Assim, Engels afirma que, com o advento do socialismo, a anar­quia da produção social será substituída pela organização planificada consciente. Se admitirmos essa convicção, e também que a exploração da maioria será substituída pela igualdade entre os novos atores sociais, o que nos garan­te que a organização planificada da economia não irá ape­nas acentuar os traços da era mercantil? Para "nossos socialistas" parece uma evidência inquestionável que o crescimento econômico ininterrupto dará vazão ao má-

5. Lebrun, G., "Surhomme et homme total", in Manuscrito, vol. II, n? 1, Campinas, 1978, pp. 31-58.

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ximo de cultura e de qualidade humana. É esse otimismo econômico que Marx exprime ao ligar a civilização à ex­pansão constante e ao desenvolvimento contínuo do mer­cado mundial, visto que a base do mercado mundial con­tém a possibilidade do desenvolvimento universal do indivíduo. Donde a série de "evidências" que decorrem daqui: para Marx é "evidente" que o sistema de explora­ção geral da natureza e do homem desembocará na pos­sibilidade de um aperfeiçoamento humano ilimitado; é "evidente" que a liberação de cada indivíduo em parti­cular é comandada pela transformação da história em his­tória mundial, visto que esta colocará esse indivíduo "em relações práticas com a produção do mundo inteiro, com­preendida aí a produção intelectual"; enfim, é "eviden­te" que "a verdadeira riqueza intelectual do indivíduo de­pende inteiramente da riqueza de suas relações reais" 6 . Como observa Lebrun, aquilo que Nietzsche chama de "otimismo econômico", essa avaliação espontânea que consiste em privilegiar no absoluto o crescimento econô­mico e apresentá-lo como única matriz da civilização, é uma opção que aparece claramente nos elogios - de en-rubescer petistas - que Marx dirige à burguesia, esta "classe eminentemente revolucionária". Foi ela a pri­meira a demonstrar o que a atividade dos homens pode realizar; foi ela que calou as literaturas nacionais e locais em benefício de uma literatura universal; foi ela "que criou verdadeiramente a história mundial, na medida em que ela fez cada nação civilizada depender do mundo in­teiro e, para a satisfação de suas necessidades, cada indi­víduo dessa nação" 7 .

6. Marx, Uidéologie allemande, cit., p. 67. 7. Marx, Uidéologie allemande, cit., p. 89.

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Mas, se é assim, nota Lebrun, é cabível perguntar de qual cultura o comércio universal era a condição automá- tica, e quem é esse "homem total" que só pode surgir no eixo do mercado mundial. É cabível perguntar que idéia

o marxismo faz da civilização, para que o reino da liber- dade, por ele prometido, só possa surgir no seio do modo de produção capitalista, de tal forma que por vezes o ad­

vento do socialismo possa parecer uma simples correção de rumo, que será exigida mais cedo ou mais tarde pela

Revolução Industrial. E agora surgem alguns temas inquie- tantes. Como o elogio de Marx ao "zelo pelo trabalho im­

posto pela severa disciplina do capital às gerações suces­sivas", aquisição que ele não tem dúvidas em apresentar

como "o bem comum da nova humanidade". Ou o elogio de Lenine à disciplina da manufatura enquanto modo de

formação, tantas continuidades com nossa "sociedade disciplinar" que indicam o quanto o marxismo deixou de tematizar a relação de civilização entre o socialismo e o modo de produção que o precede. Não se nota qualquer

empenho em indicar pelo menos aquilo que se aceitará e aquilo que se recusará da herança, para que a subversão não seja mais que uma forma de continuidade da mes­

ma civilização. Tanto mais que a revolução é apresentada como o fim dos bloqueios que impediam o desenvolvi- mento total das forças e da humanidade já dadas. Sendo

assim, se a liberação dos entraves do modo de produção à plena expansão das forças deixa intocada a questão do

"modo de vida" e da qualidade humana, é porque na ver- dade apenas se prolonga a mesma civilização.

Para Nietzsche, o que se prolonga é a civilização cris­tã, são os ideais cristãos. Afinal, subsiste sempre a ilusão

de ótica de procurar o valor do homem em sua aproxima- ção a um ser ideal. Mas essa fé, precisamente, é a conse-

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qüência de uma enorme perversão trazida pelo cristia­nismo. Em primeiro lugar, acredita-se saber que é dese­jável a aproximação a um tipo ideal; em segundo lugar, acredita-se saber qual é esse tipo; em terceiro lugar, consi­dera-se que todo desvio em relação a esse tipo é um retro­cesso, uma perda de força e de potência. "Sonha-se com Estados nos quais este tipo de homem perfeito tenha a seu favor uma enorme maioria: não fizeram outra coisa nossos socialistas, nem os senhores utilitaristas. Com isso parece assinalar-se um fim à evolução humana: em todo caso, a fé em um progresso até o ideal é a única forma em que hoje se concebe o fim da história. Tn summa': colo­cou-se o 'reino de Deus' no futuro, na terra, no humano, mas no fundo conservou-se a fé no antigo ideal." 8 Por isso, os ataques de Nietzsche às "idéias modernas", como o socialismo ou a democracia, devem ser vistos como cen­suras a figuras do cristianismo despojadas de sua forma dogmática, últimas ressonâncias da vitória da moral de escravos que, depois de preponderar em Roma, deu um passo a mais com a Revolução Francesa. Pois são exata­mente os cacoetes da moral de escravos que permanecem no ideário sociopolítico moderno: a virtude é sempre o sa­crifício do indivíduo à sociedade, a moral só compreende como valor o que é útil ao rebanho, ela continua ensinan­do o indivíduo a só se atribuir valor em função do rebanho 9.

Assim, sob as oposições de superfície, Nietzsche sem­pre detectará a continuidade profunda entre as diferentes seitas. Democratas, anarquistas e socialistas antagonizam entre si? Apenas epidermicamente, já que, no fundo, to­dos rezam pela mesma cartilha, que é a moral de animal

8. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [226], KSA, vol. 13, p. 87. 9. Nietzsche, A gaia ciência, § 116, KSA, vol. 3, p. 474.

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de rebanho. É que o predomínio dessa moral na Europa, auxiliado por uma religião que adula as massas, fez com que ela passasse a exprimir-se até mesmo nas instituições políticas e sociais. Assim, o movimento democrático é o herdeiro do cristão. Os "cães anarquistas" aparentemen­te se opõem aos "pacífico-laboriosos democratas" e, mais ainda, aos broncos e "fanáticos de irmandade" que se de­nominam "socialistas"? Mas se os anarquistas se aborre­cem, é apenas porque o movimento democrático lhes pa­rece muito lento e sonolento para atingir a meta; e na ver­dade os três antagonistas convergem todos "na funda­mental e instintiva hostilidade contra toda outra forma de sociedade que não a do rebanho autônomo"10. Por isso, não é nada surpreendente que existam tantos pontos de una­nimidade entre os pretensos rivais: são todos unânimes na "tenaz resistência" a todo direito particular e privilégio; unânimes na desconfiança contra a justiça penal, sempre vista como uma violência contra os mais fracos; unânimes na compaixão e na crença no rebanho, em uma comuni­dade redentora. Por isso, o papel das instituições civis é proteger os medíocres contra as exceções; elas prolongam a tarefa do juízo moral como meio de debilitação dos po­derosos. Quando o escravo quer dominar ele diz "tu de­ves", e agora a moral se traduz nas palavras de ordem "li­berdade", "justiça", "igualdade", que para Nietzsche nada mais serão do que três formas de manifestação da vontade de potência do escravo.

Quem se libertou do "ilusionismo moral", garante Nietzsche, sabe que no primeiro grau de metamorfose da vontade de potência - naqueles que dela carecem - se pede "justiça" da parte dos que detêm o poder; no segundo grau

10. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 202, KSA, vol. 5, p. 125.

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se quer "liberdade", quer dizer, se pede independência com respeito aos detentores do poder; no terceiro grau se fala em "igualdade de direitos", isto é, se deseja que, en­quanto não se tenha conseguido o equilíbrio, se impeça os pretendentes de crescer em poder 1 1 . É nessa recusa do ilusionismo moral que se origina a crítica que Nietzsche dirigirá à noção de "direito individual" - como se houves­se direito fora de um contrato, como atributo estável e eterno dos indivíduos. Também nasce aqui a sua recusa do léxico da "injustiça social", esta mais recente manifesta­ção do ressentimento. Foi no século XIX que nasceu esse "pessimismo por indignação", esse clamor contra a injus­tiça social, como se o fato de alguém nascer sob condições favoráveis ou com tais qualidades - bonito e inteligente - e outro sob condições desfavoráveis ou com outras qualidades - feioso e burrinho - fosse automaticamente uma "injustiça". Com essa atitude se procura julgar a his­tória, despojá-la de sua fatalidade e torná-la responsável, culpável. Pois é exatamente disso que se trata: os deca­dentes precisam procurar culpados, os responsáveis pela sua própria existência. Esse responsável pode ser o próprio Deus - e não faltam, no mundo de hoje, esses "ateus por rancor". Ou então, o responsável é a ordem social, a edu­cação, os aristocratas, os judeus, o que se quiser, desde que seja algo sobre o qual se possa exercer a vingança. O so­cialista apenas faz sua escolha no amplo cardápio dos cul-páveis; esse novo sacerdote ascético muda para a "socie­dade" a direção do ressentimento. E se o socialista tem um crescente público de ouvintes, é porque seu ardil é recor­rer ao instinto cristão. Pois foi o cristianismo que nos ha­bituou ao conceito de "alma", que por natureza habita ou-

11. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[66], KSA, vol. 12, p. 495.

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tros mundos e só casualmente vem à terra, sem que sua essência seja condicionada; e se nessas curtas viagens as relações sociais, de parentesco ou de história são "oca­siões" para as almas, em todo caso a alma nunca é obra de si mesma. E o que mais o cristianismo ensinou à mo­dernidade? Nada mais, nada menos que "a 'igualdade das almas ante Deus'. Nela, encontramos o protótipo de todas as teorias da 'igualdade de direitos'; primeiro se ensinou à humanidade o princípio de igualdade de uma manei­ra religiosa, depois se construiu uma moral sobre essa idéia" 1 2 . Desde então, não é surpreendente se, sob a in­fluência do cristianismo, as pessoas tenham terminado por levar a sério essa idéia, querendo torná-la efetiva atra­vés da prática política, democrática ou socialista, todas es­tas vertentes do "pessimismo por indignação". Nietzsche sempre insistirá nesta tese: a idéia de igualdade entre os homens, não tendo nenhum fundamento natural, é ape­nas uma "interpretação" metafísica, que remonta ao cris­tianismo e tem neste a sua única garantia. Por isso, a "De­claração dos Direitos do Homem", ao proclamar a liber­dade e a igualdade, repousa inteiramente na idéia cristã de que todos os homens, sendo criaturas de Deus, nasce­ram iguais e não têm privilégios uns sobre os outros. É por esse caminho que a Revolução Francesa prolonga o cris­tianismo: agora a cidade de Deus sobre a terra torna-se contrato social, o cristianismo torna-se humanismo, a cria­tura de Deus torna-se homem natural, a liberdade devi­da a cada cristão torna-se liberdade cívica no Estado. Esta descendência cristã já se revela no primeiro princípio da Declaração, onde se afirma que os homens nascem livres e permanecem iguais em direitos, uma ruptura deliberada

12. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 15 [30], KSA, vol. 13, p. 422.

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com a concepção política paga, que admite a existência na­tural de livres e escravos. E será exatamente em nome da natureza que Nietzsche criticará a "igualdade" entre os homens, enquanto a mais nefasta das "interpretações" cristãs, defendendo, contra essa "idéia moderna", a "hie­rarquia" e a justiça aristotélica.

Mas qual será o perfil do paraíso prometido pelos "li­vre pensadores" ou o rosto do "homem do futuro", tal como este é preparado no laboratório das idéias moder­nas? Se nossa civilização traduz sua tarefa formadora na "humanização", quer dizer, na promoção do homem bom, altruísta, virtuoso por servir ao todo, bonachão e igualita-rista, seu produto final será um "tipo" bem determinado. O resultado desta Bildung, garante Nietzsche, será "a de-generação geral do homem, até chegar àquilo que hoje apa­rece aos broncos e cabeças rasas do socialismo como seu 'homem do futuro', seu ideal! - essa degeneração e ape-quenamento do homem em completo animal-de-rebanho (ou, como eles dizem, em homem da 'sociedade livre'), essa animalização do homem em animal anão dos direi­tos e pretensões iguais..." 1 3 O diagnóstico é severo. Mas o que o legitima? Por um lado, que nossa civilização pro­mova e intensifique a formação do animal de rebanho, isso é algo que já se podia inferir das tarefas do "profes­sor da meta da existência", cuja pedagogia era destinada a proteger e garantir o "interesse da espécie" - e a própria moralidade era apresentada por Nietzsche como "o instin­to gregário junto ao indivíduo" 1 4. Por isso, não é nenhuma surpresa que as doutrinas da destinação do homem, do

13. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 203, Obras incompletas, cit., p. 283.

14. Nietzsche, A gaia ciência, §§ 1 e 116, KSA, vol. 3, pp. 372-475.

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idealismo alemão a Marx, insistam em que a finalidade do homem só pode realizar-se em uma gregarização, em uma inserção perfeita do indivíduo no gênero. Mas por que, exatamente, essa promoção do animal de rebanho é des­crita por Nietzsche com a linguagem da "degeneração"?

II

É bem verdade que, na expressão "animal de reba­nho", Nietzsche visa atacar o igualitarismo, o elogio à su­pressão das particularidades e à perfeita absorção do in­divíduo naquele "ser genérico" que povoa o imaginário socialista. E sabe-se que o enfraquecimento e a supressão do indivíduo está entre as últimas "ressonâncias" do cris­tianismo na moral 1 5 . Essa "correnteza moral básica" de nossa época é expressamente censurada por Nietzsche. Exigir que o ego se renegue? Desde as Considerações extem­porâneas ele protestava contra o culto democrático da espé­cie. E, pior ainda que o culto da espécie, a ladainha secular contra o egoísmo, em benefício dos instintos gregários do homem, terminou por fazer mal a esse sentimento, princi­palmente por tê-lo despojado de sua boa consciência, orde-nando-lhe que buscasse, em si mesmo, a verdadeira fonte de todos os males 1 6 . Mas para Nietzsche o egoísmo é parte integrante da alma aristocrática, que o aceita sem problemas e acha natural precisar que outros lhe sejam submetidos e se sacrifiquem por ela 1 7 . Mas isso, por si só, permite falar em "degenerescência"? Essa primeira apro­ximação ainda não nos ensina nada sobre as razões da

15. Nietzsche, Aurora, § 132, Obras incompletas, cit., pp. 172-3. 16. Nietzsche, A gaia ciência, § 328, KSA, vol. 3, p. 555. 17. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 265, KSA vol. 5, p. 219.

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crítica ao rebanho e ao igualitarismo que lhe é congênito. Pior ainda, assim apresentada a questão parece reduzir-se a um torneio esportivo entre "senhores" e "escravos", em que o espectador Nietzsche torce pelo primeiro time, infe­lizmente notório perdedor de campeonatos.

Mas em outra série de textos, Nietzsche vai apre­sentar a idéia de que o indivíduo se propõe o benefício da espécie, às custas de seu próprio sacrifício, como sen­do uma pura "aparência" 1 8 . Na verdade, ninguém con­tribui efetivamente para o interesse da espécie, cada um sempre contribui para o mais alto interesse do próprio in­divíduo, sua mais alta expressão de potência. E tudo se passa agora como se Nietzsche subvertesse a doutrina kantiana da "insociável sociabilidade", aquela teoria se­gundo a qual cada um, perseguindo o seu interesse pes­soal, termina por realizar os fins do "todo". Não, dirá Nietzsche. O fim do todo é apenas aparente, só são efe­tivos os interesses individuais - e com este gesto todas as figuras da "astúcia da razão" estarão expressamente in­terditadas. Era esse movimento, como se viu, que já se es­boçava na análise que Nietzsche fazia do altruísmo: o elo­gio do altruísmo nunca é feito em nome do universal, é sempre o interesse individual do beneficiário que discorre sobre a utilidade do "desinteresse" de um vizinho tolo 1 9 . Mas isso significaria que Nietzsche, protestando contra o enfraquecimento e supressão do ego, estaria fazendo a de­fesa do "individualismo", tal como este se constituiu his­toricamente? Não. Sobretudo, não. E este ponto é impor­tante para se circunscrever corretamente o ponto de inci­dência de sua crítica às idéias modernas.

18. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[9], KSA, vol. 12, p. 294. 19. Nietzsche, A gaia ciência, § 21, KSA, vol. 3, p. 391.

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Quando Nietzsche afirma que seu projeto é "distan­ciar-se de sua própria época", isso significa situar-se "fora destes dois movimentos, da moral individual e da coleti-vista, porque tampouco a primeira conhece a hierarquia e quer dar a todos a mesma liberdade" 2 0 . Assim, a crítica ao socialista, siderado pelo "ser-genérico" do homem, her­deiro do movimento cristão e promotor do enfraqueci­mento e da supressão do indivíduo, longe de preparar uma defesa do "individualismo", parece terminar, de maneira à primeira vista surpreendente, por apresentar esses dois antagonistas como extremos de um mesmo contínuo. Como compreender e compatibilizar essas duas séries de textos, em que uma lamenta o enfraquecimento do indi­víduo, enquanto a outra apresenta o individualismo como tão severamente criticável quanto o seu oponente? Há aqui uma aporia. E de sua solução depende o sentido que se vai atribuir à crítica nietzschiana de nossa civilização. Se a depreciação cristã do ego é censurada, não é para fa­zer a apologia de seu oposto temático. Se tanto a moral coletivista quanto a moral individualista são criticáveis, é porque o essencial da expressão "animal de rebanho" está aquém ou além dessas duas opções interpretativas. Em outras palavras, por detrás da censura à civilização, en­quanto enfraquecedora do ego, é preciso procurar um sen­tido que não é imediatamente dado através da simples oposição entre o indivíduo e o ser genérico, o particular e o universal, e que deve ter nessa oposição apenas o seu primeiro estágio. Mas então, reformulemos a questão de que partimos: em que, exatamente, nossa civilização está sendo censurada, quando se recrimina sua promoção do enfraquecimento do indivíduo, sendo que este pito não

20. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[6], KSA, vol. 12, p. 273.

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deve significar, de forma alguma, qualquer entusiástica adesão ao "individualismo"? Para começar a responder a essa pergunta, vale a pena prestar atenção aos textos em que Nietzsche analisa o "individualismo", esta outra ideo­logia do século XIX.

O "individualismo", diz Nietzsche, "é uma forma modesta e ainda inconsciente da 'vontade de potência'; aqui, ao indivíduo já lhe parece suficiente o desembara­çar-se de uma predominância da sociedade (seja do Esta­do, seja da Igreja). Ele se põe em contraste não como pes­soa, mas apenas como particular; ele representa todos os particulares contra a coletividade" 2 1. Este indivíduo que se apresenta como o "particular" é aquele indivíduo pré-político que as doutrinas liberais querem, a todo custo, salvaguardar do Estado, que sempre ameaça invadir a es­fera de sua particularidade e dissolvê-la. A querela ideo­lógica do século XLX pauta-se pela tensão entre estes dois extremos: ou a supressão completa da particularidade do indivíduo, com a sua absorção no "ser genérico", como pregam "nossos socialistas", ou a preservação e a auto­nomia do indivíduo privado diante do "social", como preconizam os liberais. As seitas solucionam, à sua ma­neira, a oposição que Rousseau formulara entre o indiví­duo e o cidadão, o particular e o universal, cada uma esco­lhendo um dos lados da "tragédia" rousseauísta. Para onde Nietzsche aponta, ao distanciar-se dos dois lados da con­tenda? Para responder a essa pergunta, vale a pena obser­var o detalhe desta dupla recusa do "coletivismo" e do "individualismo".

Em que sentido, precisamente, morais e ideais polí­ticos promovem o enfraquecimento e até mesmo a su-

21. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[82], KSA, vol. 12, p. 502.

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pressão do indivíduo? A moral promove esse enfraque­cimento por meio da "desrazão da virtude, graças à qual o indivíduo se deixa tratar em função do conjunto" 2 2 . E já em Aurora era através desse mecanismo de transforma­ção do indivíduo em uma função do todo social que se traduzia, na prática, a última ressonância do cristianis­mo na moral. O que se propala com insistência cada vez maior, diz Nietzsche, é a necessidade de "adaptar o indi­víduo às necessidades gerais e que a felicidade e ao mes­mo tempo o sacrifício do indivíduo consistem em sentir-se como um membro e instrumento útil do todo" 2 3 . E desde Humano, demasiado humano Nietzsche já apresentava o socialismo como um herdeiro do despotismo, que ele até mesmo superaria, por aspirar ao aniquilamento formal do indivíduo, visto pelo socialista como um "injustificado luxo da natureza" que deveria, por isso mesmo, ser "trans­formado e melhorado por ele em um órgão da comunida­de adequado a seus f ins" 2 4 . Essa linguagem organicista, sabe-se, já era aquela de Rousseau ao apresentar a cidade oriunda do seu contrato social. Mas, se o modo fundamen­tal de superação do ego é a transformação do indivíduo em membro de um organismo, em um órgão da comuni­dade adequado aos seus fins, como entender que o "in­dividualismo" possa ser apresentado por Nietzsche como outro membro dessa mesma família ideológica? Afinal, historicamente o "individualismo" foi a recusa sistemá­tica em aceitar essa transformação radical do indivíduo em membro do todo, do indivíduo em cidadão, para vol­tarmos ao jargão de Rousseau. Ou então, reformulemos

22. Nietzsche, A gaia ciência, § 21, KSA, vol. 3, p. 392. 23. Nietzsche, Aurora, § 132, Obras incompletas, cit., p. 172. 24. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 473, Obras incom­

pletas, cit., p. 115.

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a questão e perguntemos em que, aos olhos de Nietzsche, o "individualismo" pode ser superficialmente antagôni­co mas profundamente cúmplice de seu oposto "coletivis­ta", duas vertentes de uma mesma estratégia, extremos de um mesmo contínuo, opositores que perseguem sem­pre o mesmo ideal civilizador. E com isso talvez possamos indicar por que, para Nietzsche, nossa civilização é censu­rável e "decadente" para aquém de suas querelas de super­fície, como esta que opõe liberais a socialistas.

Afinal, o que pensar do "individualismo"? Em alguns fragmentos póstumos da época de A gaia ciência, Nietz­sche dirá que seu progresso sobre a barbárie consiste em ter renunciado à crença na responsabilidade absoluta do indivíduo e em acreditar na "inadmissibilidade do indivi­dual" 2 5 . O que isso significa? Antes de tudo, que o "indi­víduo" do individualismo, decodificado por este como uma instância pré ou extra-social, é na verdade uma ficção produzida pela própria sociedade, ficção à qual se deu au­tonomia graças à idéia, bastante absurda, de que a socie­dade surgiu do contrato, e não da conquista. "A sociedade educa primeiro os indivíduos, os reforma como indivíduo médio ou total, ela não se forma de indivíduos isolados, nem por contratos entre eles. Somente como ponto nu­clear é necessário, no topo, um indivíduo. Por conseguin­te, o Estado originariamente não oprime o indivíduo, por­que este não existe." 2 6 E o libertário individualista que parte da idéia ingênua de pessoa privada, como uma uni­dade pré-constituída e atômica, tal como esta foi sedi­mentada em nosso imaginário pelo contratualismo, e des­de então sente-se à vontade para forjar, através dela, uma

25. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [182], KSA, vol. 9, p. 509. 26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [182], KSA, vol. 9, p. 509.

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oposição de princípio entre o indivíduo e os poderes so­ciais, sem se dar conta de que esse indivíduo foi produzido e construído pela própria sociedade, e por isso mesmo não pode ser, de forma alguma, seu oposto ou rival -outro tema nietzschiano que, como se sabe, Michel Fou-cault retomará e prolongará. É aqui que se enraíza uma tese provocadora de Nietzsche: o homem ainda não é realmente um indivíduo, um ego, o egoísmo ainda é infi­nitamente débil, o "indivíduo" do individualismo, a pes­soa privada, ainda é um ego que se desenvolve apenas gra­ças aos sentimentos que formam o "animal de rebanho". Donde as afirmações de Nietzsche que, aparentemente, diluem sua crítica ao cristianismo, enquanto este seria um aniquilador do indivíduo: descobrir o erro do ego, ver o egoísmo como um engano, não significa de forma algu­ma compreender o "altruísmo" como seu real opositor, já que o altruísmo representa somente o amor a outros su­postos indivíduos. Assim, o que se recusa, na verdade, é tanto o universalismo quanto o individualismo. Pois se com a degradação moral do ego a ciência da natureza pro­move uma superestimação da espécie, é preciso reconhe­cer que "a espécie é coisa tão ilusória quanto o ego: se fez uma falsa distinção" 2 7. Se a crítica ao universal parecia preparar um desenlace nominalista, isso era pura ilusão: o "indivíduo" do nominalismo também será recusado por Nietzsche.

Essa recusa do indivíduo se enraíza nas premissas primeiras da doutrina nietzschiana. Se para ele existe um "dogmatismo equivocado" em relação ao ego é porque este, tomado em sentido atomista, é um falso contrário do "não-eu"; afinal, este ego está tão divorciado do vir-a-ser quanto a coisa, ele é uma coisa entre as coisas, uma subs-

27. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10 [136], KSA, vol. 12, p. 533.

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tância imune ao tempo e ao devir, e por isso não é de es­pantar que ele possa se apresentar com roupagem reli­giosa, como o objeto da crença na imortalidade indivi­dual 2 8. O indivíduo do "individualismo" é, antes de tudo, a seqüela ontológica da separação entre ego e vir-a-ser, ele é apenas um capítulo a mais na história das ficções subs-tancialistas. É essa ficção do ego que, uma vez consolida­da, vai se alojar na base do discurso ideológico, como aquela pessoa privada que se opõe aos poderes sociais. Por isso o resultado da crítica de Nietzsche, enquanto ela se dirige tanto ao universal quanto ao particular, terá como resultado a recusa dos dois termos da oposição rous-seauista entre o indivíduo e o cidadão. Assim apresenta­da, a posição de Nietzsche parece não ter rosto definido, e o seu leitor não apreende imediatamente onde ele pre­tende chegar. Pode-se apenas suspeitar que, se ainda hou­ver ali lugar para um "indivíduo", este será apenas o ho­mônimo da pessoa privada de democratas e liberais, um "indivíduo" que sempre se deve pensar e escrever entre aspas, livre de todo substancialismo e só assim aclimata-vel a uma filosofia do vir-a-ser. Mas ainda não se sabe por que caracterizar a civilização cristã, enquanto ela promo­ve estes dois valores opostos que são o indivíduo e o ci­dadão, como produtora da "decadência". Também não se sabe muito bem qual é a unidade dessa civilização, o que há de comum a esses temas aparentemente opostos, a supressão do indivíduo e a defesa da pessoa privada. Mas talvez se possa começar a atalhar a questão por este último ponto.

O que eu "terminei por compreender" - garante Nietzsche - foi que os dois traços característicos dos "eu­ropeus modernos", o individualista e aquele que consiste

28. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[57], KSA, vol. 12, p. 485.

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em reclamar a igualdade dos direitos, são apenas "apa­rentemente" opostos. Ambos confluem em um comum "igualitarismo", todas as morais "ignoram o que é uma 'hierarquia' entre os homens" 2 9 . E, se é assim, este ponto comum pode nos ensinar algo sobre esses supostos anta-gonistas, por exemplo, que eles são, na verdade, dois ra­mos de uma mesma árvore chamada "cristianismo". São os motivos cristãos que se prolongam nos motivos sociais e políticos. Assim, é o tema cristão do aniquilamento do ego, da equalização depois da queda, que se prolonga no motivo político da supressão da individualidade na von­tade geral, da perfeita integração ao todo como membro de um organismo, socialização absoluta que infelizmen­te fracassará para um homem pensado sob o signo da queda. Como também é o tema cristão da igualdade on-tológica de todas as almas diante de Deus que se prolon­ga no ideário dos indivíduos naturais e iguais do primei­ro Discurso, aqueles que eram naturalmente bons mas fo­ram corrompidos pelas instituições, que introduziram a desigualdade, o que a integração no todo social autêntico virá ao menos corrigir, reencontrando um Ersatz daquele estado originário de equilíbrio, hoje infelizmente perdido.

Assim, aqueles dois personagens que Rousseau opu­nha - o indivíduo e o cidadão - na verdade são falsos an-tagonistas, são cúmplices profundos. Eles são as duas fa­ces de uma mesma moeda, o homem cristão antes e de­pois da queda, interpretado ora como indivíduo natural e pré-político, ora como o cidadão da Polis moderna. Estas são as duas faces de uma mesma antropologia, e por isso a crítica nietzschiana atira para os dois lados. Desde então, a questão de saber o que, no final das contas, nossos ideais civilizadores promovem é idêntica àquela de reco-

29. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 40[26], KSA, vol. 11, p. 642.

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nhecer quem é esse "homem" do cristianismo, o pro­duto daquela antropologia idealizada pelo sacerdote. E se esse homem é apresentado como imagem de Deus, é antes de tudo naquilo que é o Deus segundo os cristãos que encontraremos o texto princeps de sua antropologia, o original de onde se copiam os traços daquele homem do "humanismo". Nossa civilização será a promotora do humanismo que, para Nietzsche, é a antropologia cristã por excelência. Por isso, a "morte de Deus" só estará completa com a "morte do homem" - e quando Nietzsche afirma que "o homem deve ser superado" 3 0, esta proposi­ção só ganha sentido no horizonte desta convicção de que o "humanismo" é uma antropologia essencialmente cristã.

Mas então quem é este personagem, o "Deus cris­tão"? "O conceito cristão de Deus - diz Nietzsche - o Deus entendido como um Deus dos enfermos, como aranha, como espírito - c um dos conceitos mais corrompidos da divindade que se inventou sobre a terra; talvez represente o nível mais baixo na evolução descendente do tipo dos deuses. Deus, degenerado até ser a contradição da vida, em vez de ser sua glorificação e sua eterna afirmação. A hostilidade declarada à vida, à Natureza, à vontade de vi­ver, no conceito de Deus." 3 1 E, se é assim, o cristianismo, ao forjar o seu conceito de Deus como sendo o opositor da natureza, fará com que o "natural" torne-se sinônimo de reprovável - precisamente o que não ocorria com os deu­ses gregos, que eram inteiramente passionais, ao contrá­rio deste "puro espírito" imaginado pelos cristãos. O Deus cristão será, antes de tudo, o resultado de uma seleção ar­bitrária de instintos, e é este princípio de seleção que preo­cupa Nietzsche; as morais, coerentes com o Deus que as

30. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 24[16], KSA, vol. 10, p. 653. 31. Nietzsche, O Anticristo, § 18, KSA, vol. 6, p. 185.

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sustenta, também serão condenações dos instintos de vida; e o homem, imagem de seu Criador, será concebido segundo os mesmos princípios seletivos. O homem "bom" também será o produto de uma abstração, e a condenação de Nietzsche dirige-se, antes de tudo, a essa abstração que estabelece distinções, privilegia uma parte e infiexiona o homem cristão na direção de um animal parcial: a desna-turalização de Deus só poderá se traduzir na desnatura-lização do homem. Enquanto para todos os homens que "permaneceram próximos da Natureza", o amor e o ódio, a gratidão e a vingança, a bondade e a cólera, a ação afir­mativa e a ação negativa são "inseparáveis", visto que só se'é bom "sob a condição de que também se saiba ser mau", só se é mau "porque de outra maneira não se po­deria ser bom", a desnaturalização, a invenção do homem "bom", se traduz nesse estado mórbido que recusa a du­pla tendência e ensina, como virtude suprema, possuir apenas um meio valor. E a isso que se chama de "huma-nização": a amputação dos instintos que permitem ao ho­mem impor dano, ter cólera, exigir vingança 3 2. O ideal de homem "bom", tal como ele é desenhado pelo cristianis­mo, é aquele em que os instintos valorizados dominam de maneira absoluta. Essa idéia é fundamental: o homem cristão exige uma vitória definitiva dos instintos valoriza­dos sobre os demais, o que supõe o fim de toda resistência feita pelos instintos opostos. A "doença" é exatamente o fim dessa resistência. E como a "resistência" é algo consti­tutivo da "vontade de potência", é a esta difícil noção da doutrina nietzschiana que se precisa dirigir a atenção para perceber qual é, afinal, o trabalho de toupeira de nossa "ci­vilização".

32. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 15[133], KSA, vol. 13, p. 471.

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CAPÍTULO VIII VONTADE DE POTÊNCIA

I

O conceito de "vontade de potência" é bastante com­plexo e, por isso mesmo, induz facilmente o leitor de

Nietzsche a descaminhos. Antes de tudo, guardemo-nos do erro capital - no mesmo sentido de que existem "pe­

cados" capitais - de interpretar essa noção segundo os hábitos intelectuais que herdamos do mainstream da filo- sofia. Pois a primeira dificuldade desse conceito está exa­

tamente no seu contraste diante da compreensão tradi­cional daquilo que é a "vontade", uma compreensão tão

enraizada que temos dificuldade até mesmo em imagi- nar qualquer noção de vontade que seja exclusiva desse

ideário tradicional. Porque de fato o que é, tradicional­mente, a "vontade"? O leitor de Descartes, por exemplo,

vai vê-la entrar em cena, ali nas Meditações, como algo bem determinado. Trata-se de um conceito cuja extensão é an­

tropológica e teológica, pois ele denota um dos poderes presentes nos homens e em Deus, sendo até mesmo o ponto de semelhança máxima entre o Criador e as criatu-

\

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ras. Sendo um dos modos da substância pensante, a von­tade é uma "faculdade", um atributo exclusivo da inteli­gência humana ou divina, nunca um atributo da natureza. O lugar da vontade enquanto faculdade é imediatamen­te dado pela oposição entre res cogitam e res extensa: en­quanto modo da substância pensante, ela é uma facul­dade da inteligência, finita ou infinita. Essa maneira de compreender a vontade é tradicional o suficiente para se­duzir-nos espontaneamente: a vontade é um poder, uma faculdade, e uma faculdade dos seres pensantes.

Primeiro dépaysement que Nietzsche impõe ao seu leitor: a vontade como uma faculdade? Não. Antes de tudo ela não é uma faculdade. Nietzsche caracteriza essa doutrina tradicional como uma falsificação funesta da von­tade, feita por toda psicologia até hoje. Nessa concepção, diz Nietzsche, a vontade é vista como algo que atua e que movimenta, ela é vista como causa e é pensada como um poder entre outros poderes. Esse conceito de vontade orienta-se segundo o modelo da razão filosofante, que sempre explicita uma atividade como sendo a ação de um ator, e de um ator que persegue uma meta, em vez de apreender ofazer-algo como o próprio fazer. Nietzsche vai se esforçar para libertar o conceito de vontade dessa coisi-ficação falsificadora, procurando determiná-lo para aquém dos esquemas da razão instituída. Primeira dificuldade para o leitor de Nietzsche: o que designa essa vontade que não é mais uma faculdade? Essa dificuldade entre­laça-se a outra que lhe é correlata. Se para Descartes a vontade é uma faculdade, ela designa um poder presen­te na esfera dos seres pensantes, não na natureza em geral. Ao recusar que a vontade seja uma faculdade, Nietzsche vai negar também que ela seja um conceito exclusivamen­te antropológico ou teológico. Não: o domínio de aplica-

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VONTADE DE POTÊNCIA 185

ção do conceito de vontade vai se libertar dessas regiona­lizações abruptas. A partir de agora, a vontade de potên­cia passará a determinar a realidade em geral; ela designa­rá, pura e simplesmente, o "mundo". Como Nietzsche o atesta em alguns fragmentos póstumos: "E sabeis sequer o que é para mim 'o mundo'? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de for­ça, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda... quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus enig­mas? Uma luz também para vós, vós, os mais escondidos, os mais fortes, os mais intrépidos, os mais da meia-noi­te? - Esse mundo é a vontade de potência, e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência - e nada além disso!" 1 Sendo assim, doravante a "vontade" passa a ser uma determinação que deve recobrir a totali­dade da realidade, para aquém das oposições tradicionais entre alma e corpo, res cogitans e res extensa, homem e mundo. Segundo embaraço para quem lê Nietzsche a par­tir do ideário tradicional: como determinar a totalidade do real através do conceito de "vontade"?

Digamos, em uma primeira aproximação, que essa recusa em ilhar a "vontade" no âmbito dos sujeitos pen­santes é, pelo menos, coerente com o projeto geral de ela­borar uma filosofia que promova a naturalização integral da existência. De fato, como regionalizar conceitos, tal qual Descartes o fazia, sem com isso estabelecer uma distinção ontológica entre o mundo natural e o mundo humano? A separação entre natureza em geral e natureza humana, entre predicados naturais e predicados humanos, já é tes-

1. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 38[12], KSA, vol. 11, p. 610.

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temunho de "humanismo", já é seqüela do cristianismo. E eu rio - dirá Nietzsche - quando vejo a expressão "ho­mem e mundo", separados pela ridícula pretensão da pa­lavrinha " e " . A oposição cartesiana entre res cogitans e res extensa era apenas uma instância a mais dessa ridícula pretensão da palavrinha " e " . Construir o conceito de von­tade sobre essa separação, apresentando-a como um atri­buto exclusivo das substâncias pensantes, já é desnatu­ralizar o suficiente a existência. Sendo assim, quando se recusa o cristianismo - esta matriz primeira da desnatu-ralização - não é surpreendente que a vontade passe a designar algo presente na totalidade da realidade, e não apenas nos seres pensantes.

Louvemos a coerência da doutrina. Mas concedamos também, ao leitor de Nietzsche, o seu direito de relem­brar-nos que existem loucuras coerentes... A totalidade da realidade determinada através do conceito de vontade? O "mundo" descrito como sendo essencialmente um que­rer? O leitor de boa vontade pode até aceitar que nós mes­mos somos "vontade de potência, e nada além disso". Mas admitir que o "mundo" é vontade de potência, e nada além disso, é algo que parece exigir boa vontade além do tolerável. Agora, não há como evitar que venha à memória a observação que Descartes dirigia contra os físicos que admitiam a "atração" entre os corpos: para que um corpo possa atrair outro é preciso que ele saiba, pelo menos, onde encontrá-lo. A tese de que "o mundo" é vontade de potência parece testemunhar apenas um ani-mismo tacanho, um ridículo antropomorfismo: afirmando que tudo é querer, atribui-se às coisas predicados exclusi­vamente humanos.

Mas, pensando melhor, essa impressão do "bom sen­so" pode muito bem exprimir a sua inserção nos marcos

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2. Descartes, Les príncipes de la philosophie, I, art. 53, Oeuvres et Lettres, Paris, NKF, 1953, p. 595.

tradicionais da filosofia. A sua estranheza nasce exata- mente da "evidência" segundo a qual a vontade é uma "faculdade", e uma faculdade humana ou divina. Essa estranheza poderá começar a desaparecer, quando se le­

var realmente a sério que essa "vontade" não é mais uma faculdade. Fazendo isso, pode-se começar a perceber que esta "vontade" é apenas homônima daquela noção psi­

cológica de vontade como "faculdade", e por isso não im- plica mais nenhum animismo, nenhum antropomorfismo. Afinal, a "vontade" que está fazendo sua aparição aqui não tem mais muito a ver com a velha vontade-faculdade

dos psicólogos e dos filósofos. Pois o que levava o leitor de "bom senso" a recordar a objeção de Descartes à doutri- na da atração entre os corpos, senão a sua prisão à noção

clássica da vontade como faculdade? O que podia sedu­zir o objetor de Nietzsche na censura cartesiana era essa

idéia de que um corpo precisaria representar o outro como meta consciente de sua ação, e meta distinta dessa própria

ação. É exatamente esta separação entre a ação e o seu fim conscientemente representado que está na origem do conceito de vontade enquanto "faculdade". É essa distin­

ção que se exprime na diferença que Descartes instituía entre a essência e os modos da substância. Se o pensa-

mento é a essência da alma, enquanto a vontade é apenas um de seus modos, é porque o ato de querer pressupõe

o ato de representar. Assim, o pensamento não precisa da vontade, enquanto a vontade precisa do pensamento 2 . Mas é só com este pressuposto da vontade como faculda- de que a tese de Nietzsche parecerá antropomórfica, só

assim afirmar que o mundo é vontade de potência soará

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como um escândalo. Se levarmos a sério a tese de que a vontade de potência, tal como Nietzsche a concebe, não é uma faculdade - tese estritamente solidária à afirma­ção de que o mundo é vontade de potência -, agora o es­cândalo se desfaz.

Pois afirmar que a vontade de potência não é uma faculdade significa recusar-se, antes de tudo, a decodifi­car a vontade a partir da "razão" forjada pelos filósofos. É deixar de apreender a vontade como a ação de um ator que persegue uma meta representada, é apreender o fa-zer-algo como o próprio fazer, sem separar a ação dos fins da ação. Agora, a vontade não designa mais nenhuma fa­culdade, e o "querer" será o nome com o qual se designa­rá algo que não atua mais, não move o que lhe seria exte­rior. A meta não é mais exterior à ação, não existe um sujeito que quer algo, mas a vontade é sempre um querer algo, em que não se deve separar a meta do próprio ato de querer. Assim, se a vontade não é mais uma faculda­de, é todo e qualquer contexto antropomórfico que se esvai, dando lugar à idéia de uma ação que não pode mais ser comentada segundo o léxico da finalidade cons­ciente. Por isso, na expressão "vontade de potência", não se dá um novo conteúdo à velha vontade, como se Nietz­sche se limitasse a trocar os personagens de uma antiga trama, atribuindo outro fim à vontade. Como se os clás­sicos dissessem que a meta da vontade fosse a felicidade, ou os bens, ou a verdade e Nietzsche apenas enrique­cesse o cardápio dos fins da vontade com outro prato - a "potência" -, novo fim atribuído à vontade que viria dis­putar, com os outros fins possíveis, o paladar do distinto público. Na expressão "vontade de potência" não é no­meado um novo conteúdo da vontade, um novo fim cons­ciente que ela perseguiria, mas, ao contrário, começa-se

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a determinar, de um modo novo, o que é a vontade em sua essência. Não se trata mais de atribuir diferentes fins à vontade, diferentes conteúdos representados, mas sim de se perguntar por que, em geral, se quer, por que fins de­terminados da vontade precisam ser postos, e por que a totalidade da vida só pode ser explicitada quando o seu processo é compreendido como um percurso de perma­nentes posições de vontade, que são diferentes configu­rações de um único querer fundamental - a vontade de potência. Apenas em suas configurações secundárias essa vontade apresenta fins, surge como um querer algo como a verdade, os bens, a felicidade. Potência não designará, assim, um conteúdo determinado chamado de "potência", mas a configuração formal de qualquer posição do que­rer. A vontade de potência descreve a estrutura "formal" de toda e qualquer posição do querer, na qual a vida se desenvolve. Assim, com o conceito de "vontade de potên-

• cia", não se quer dizer que a vontade se dirija à potência como ao seu "fim", segundo o velho esquema da vonta-de-faculdade. No Zaratustra, Nietzsche deixa claro que a expressão "desejar a potência" é tão absurda quanto a expressão "querer a existência" 3. Uma "vontade de exis­tência", diz Nietzsche, simplesmente não existe, pois o que não é não pode querer - e como aquilo que está na existência poderia desejar a existência? Como nota De-leuze, é por esta distância entre a vontade de potência e a noção tradicional de vontade que, malgrado as aparências, Nietzsche estima forjar um conceito inteiramente novo diante do passado da filosofia4.

3. Nietzsche, "Da superação de si", Assim falou Zaratustra, II, Obras incompletas, cit, p. 238.

4. Deleuze, G., Nietzsche et Ia philosophie, Paris, PUF, 1970, p. 90.

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II

Mas é certo que o resultado a que se chegou é bem magro, já que puramente negativo: sabemos o que a von­tade de potência não é, mas ainda não se conhece nada do que ela positivamente é. Pior ainda, a bem considerar as coisas, se este sobrevôo pelas primeiras dificuldades pa­rece começar a dissolvê-las, é preciso confessar que é ao preço de se criar uma nova dificuldade, mais embaraçosa que as outras. Afinal, se a vontade de potência, não sendo mais uma faculdade antropológica, pode agora estender-se à totalidade do mundo, isto redunda em reconhecer que, a partir deste momento, Nietzsche começa a elabo­rar uma metafísica, uma doutrina da essência do "ser em geral". Mas justo ele, o crítico da filosofia? Em outras pa­lavras, Nietzsche parece voltar agora ao leito da filosofia tradicional, já que, se ainda não sabemos o que designa a vontade de potência, pelo menos sabemos que através desse conceito se pensa em decodificar a totalidade do ser em geral. Desde então, não haveria nenhuma diferença entre a doutrina de Nietzsche e a filosofia tradicional. Al­guns afirmam que tudo é matéria, outros que tudo é espí­rito. Nietzsche diz que tudo é vontade de potência, o que nos reconduz à tradição filosófica, naquilo que ela tem de mais arraigado: o discurso metafísico.

Sendo assim, não é nada surpreendente se, em seu Nietzsche, Karl Jaspers conclua que a doutrina da vontade de potência faz Nietzsche reatar com o "dogmatismo", por ele mesmo anteriormente criticado. E não seria mes­mo uma reedição do dogmatismo afirmar, como em Para além do bem e do mal, que o mundo "visto de dentro, o mun­do determinado e designado por seu 'caráter inteligível' - seria justamente 'vontade de potência', e nada além

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disso" 5? Poderíamos dizer que o "espírito livre" se con­serva inteiro, por tratar-se apenas de uma "hipótese" so­bre o mundo? Mas é certo também que se trata de uma hipótese metafísica, e por isso o espírito livre, que se apre­sentava como "bailarino", alguém que nunca se fixa em convicções, agora parece dançar ao som da velha música. Schopenhauer já identificava o ser ao querer e pretendia, através da vontade, apreender o ser "do interior". Em O mundo como vontade e representação, ele adiantava a idéia de que temos um conhecimento bastante significativo da essência e da atividade de nosso corpo, que nos fornece a chave para penetrarmos em todos os fenômenos e ob­jetos da natureza. Julgaremos por analogia com nosso corpo, diz Schopenhauer, e diremos que a essência das coisas deve ser a mesma que, em nós, é chamada de von­tade 6. Apesar do cuidado com que Nietzsche recusa a ca­racterização da vontade como uma "faculdade", quer com ele, quer com Schpenhauer, é inevitável a impressão de que, no fundo, o que se faz é selecionar uma qualidade de um ser, descoberta no interior da experiência huma­na, e conferir a essa qualidade o valor de uma determina­ção que se aplica depois à totalidade dos seres. Mas este, justamente, é um procedimento usual do "dogmatismo": aqui o ser não é senão a totalidades dos seres, ou a redu­ção de todas as realidades a uma realidade única que é confundida com a totalidade do ser. Assim, qual a dife­rença entre Schopenhauer e Nietzsche? Um fala em "von­tade", outro em "vontade de potência", mas esta nuança

5. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 36, Obras incompletas, cit, p. 275.

6. Schopenhauer, Le monde comme volonté et comme représenta-tion, II, § 18, Paris, F. Alcan, 1912, vol. I, pp. 103 ss.

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na coloração dos conceitos não alteraria em nada o ânimo filosófico comum aos dois. Sendo assim, parece que deve­mos tratar a vontade de potência como uma simples pro­priedade do ser e concluir, com Jaspers, que a doutrina da vontade de potência é um novo avatar do dogmatismo.

Heidegger também interpretará a doutrina da von­tade de potência como a expressão mesma da permanên­cia de Nietzsche no leito da filosofia tradicional7. A dou­trina da vontade de potência - assegura Heidegger - é essencialmente metafísica, pois com ela se investiga a arché dos entes em sua totalidade. Se a pergunta por ex­celência da metafísica é "que é o ente?", Nietzsche pros­segue por sua própria conta esta tópica tradicional, inte­gra-se à estrutura dessa questão. A filosofia de Nietzsche constituiria o fim da metafísica ao reatar com a questão metafísica, tal como esta foi originalmente formulada pe­los gregos. Se Nietzsche define sua filosofia como um pla-tonismo invertido, esta inversão não suprime a posição fundamental platônica, mas, ao contrário, a consolida. Por isso, aos olhos de Heidegger, Nietzsche será o último me­tafísico do ocidente, já que a vontade de potência é um princípio que determina a essência e o fundamento dos entes em sua totalidade.

O que pensar dessa nova dificuldade? Que existe aqui um problema é evidente para quem contrapõe as afirma­ções de Nietzsche sobre o "mundo" como vontade de po­tência aos textos em que ele critica a metafísica. E assim quando Nietzsche aponta a falta de sentido histórico como o "defeito hereditário dos filósofos", relembrando-lhes que, se tudo veio a ser, então não há fatos eternos, assim como

7. Heidegger, M., Nietzsche, Paris, Gallimard, 1971, vol. I, pp. 340-80.

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não há verdades absolutas 8. O "espírito livre" era sobre­tudo alguém que levava a sério esta máxima e se tornava, por isso mesmo, um experimentador. Mas nos textos em que a vontade de potência é apresentada como essência do "mundo", a experimentação parece terminar, já que o fi­lósofo confere a uma qualidade o valor de uma determi­nação que se aplica à totalidade dos seres, e parece deco­dificá-la para aquém de todo vir-a-ser. Agora, é inevitável supor que o "filosofar histórico" cessou e, com ele, a "vir­tude da modéstia", Nietzsche retomando, por sua própria conta, o defeito hereditário dos filósofos: dogmatismo, metafísica... O espírito livre, doravante, tornou-se espí­rito cativo.

Mas será mesmo que Nietzsche reataria com a tra­dição filosófica que ele criticara? Se certamente existe aqui uma dificuldade, talvez não seja tão fácil, todavia, apanhá-lo em flagrante delito de inconseqüência. Segundo a in­terpretação de Jaspers e de Heidegger, Nietzsche retor­naria ao leito tradicional da filosofia porque a vontade se­ria uma qualidade que se decretaria constituir a essência dos seres em geral, uma determinação metafísica no sen­tido clássico da palavra... O que significa dizer que Nietz­sche seria tão "metafísico" quanto Schopenhauer, já que ambos reduziriam as realidades a uma realidade única, que se confundiria com a totalidade do ser. Mas será que Nietzsche se conformaria em ser tão rapidamente assim catalogado na mesma estante que Schopenhauer? Des­confiemos sempre destas grandes doutrinas da "metafí­sica" que, embrulhando todos os autores em um mesmo pacote filosófico, transformam a história da filosofia em mais uma noite em que todos os gatos são pardos. Assim,

8. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 2, Obras incomple­tas, cit., p. 92.

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antes de incluir Nietzsche, rápido demais, em alguma grande história da "metafísica", pelo menos convém ve­rificar, previamente, se ele dava alguma caução ao estilo shopenhaueriano de "filosofar".

III

Por um lado, não faltam textos em que Nietzsche elo­gia Schopenhauer. É assim, por exemplo, quando ele afir­ma que a interpretação shopenhaueriana do "em si das coisas" como "vontade" significa um "progresso essen­cial" diante da afirmação de um " e m si" que fosse " n e ­cessariamente bom, feliz, verdadeiro, único" 9. Mas deve-se notar que esses elogios são sempre precedidos ou segui­dos por restrições que atenuam muito a apologia inicial. É verdade que Schopenhauer representa um "progresso" em relação à tradição. Mas é verdade também, assegura Nietzsche, que o seu "instinto" e o de Schopenhauer ca­minham em direções contrárias. Será que a "vontade" reencontrada por ambos no interior do ser seria a mesma vontade? Nietzsche não deixa de se colocar a questão. "A 'vontade de potência' é uma espécie de vontade ou é idêntica ao conceito de vontade? Ela significa o mesmo que aspirar a mandar? Ela é a 'vontade' de que Schopen­hauer faz o 'em si' das coisas?" 1 0 Este fragmento póstu­mo formula a pergunta, mas não adianta qualquer res­posta. Por isso, vale a pena perguntar, em primeiro lugar, se é a mesma intenção teórica que anima ambos ao afir­marem que a realidade, vista do interior, é vontade. Essa questão é fundamental, já que da intenção teórica que

9. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[42], KSA, vol. 12, p. 354. 10. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[121], KSA, vol. 13, p. 300.

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preside a afirmação depende o projeto de elaborar ou não uma nova metafísica. Formulemos então a pergunta: quando Nietzsche afirma que o mundo é vontade de po­tência, é no mesmo sentido em que Schopenhauer afir­mava que o 'em si' das coisas é vontade? Sobre esta ques­tão, Nietzsche não nos deixa sem resposta. Em um aforis­mo intitulado "O pecado hereditário dos filósofos", que evoca diretamente aquele outro sobre o "Defeito heredi­tário dos filósofos", em que se reclamava contra a falta de sentido histórico dos filósofos e se relembrava que não há fatos eternos nem verdades absolutas, ele dirá que a "vontade" de Schopenhauer "tornou-se, entre as mãos de seu autor, pelo furor de universalização que é próprio do filósofo, perdição para a ciência: pois dessa vontade se faz uma metáfora poética quando se afirma que todas as coisas da natureza teriam vontade; finalmente, para fins de uma aplicação em toda sorte de excessos místicos, ela foi usada abusivamente para uma falsa coisificação - e to­dos os filósofos da moda repetem e parecem saber com toda precisão que todas as coisas teriam uma vontade, e até mesmo seriam essa vontade única"11. O Nietzsche que aqui censura Schopenhauer por seu "universalismo", quer dizer, pelo seu dogmatismo de metafísico impenitente, é o mesmo que, algum tempo depois, declarará que o "mundo" é vontade de potência, e nada além disso. Mais uma vez, que ninguém veja aqui uma "contradição" ou, pior ainda, uma apressada "evolução" no pensamento do autor. Na verdade, as afirmações de Nietzsche e de Schopenhauer sobre o mundo como "vontade" são pre­sididas por intenções teóricas absolutamente distintas.

11. Nietzsche, Humano, demasiado humano, II, § 5, Obras incom­pletas, cit., p. 129.

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A tese de Schopenhauer é essencialmente metafí­sica. Ao contrário, quando Nietzsche descreve o mundo como vontade de potência sua intenção não é, de forma alguma, reduzir as realidades a uma realidade única, não é conferir a uma qualidade o valor de uma determinação que se aplica à totalidade dos "seres", não é insinuar uma nova metafísica. E, se é assim, a "vontade" que Schope­nhauer e Nietzsche pensam reencontrar no interior do ser não pode ser a mesma. É porque os dois conceitos de vontade são apenas homônimos entre si que, em um caso, afirmar que o mundo é vontade não passa de " m e ­táfora poética"; no outro, não. Mas, então, o que designa esta vontade de potência? Agora os resultados meramen­te negativos não deixam de trazer uma informação que deve ser levada em consideração, porque eles terminam por indicar, pelo menos, o âmbito do conceito de vontade de potência. Assim, se Schopenhauer é criticado por afir­mar que tudo é vontade, enquanto Nietzsche, aparente­mente, faz a mesma afirmação, é porque essa "vontade de potência" não é qualquer conceito ontológico. Ela não designa um ser, um conteúdo ôntico ou uma qualidade qualquer. Será fundamental, para reconstituir o perfil da noção de vontade de potência, esse esvaziamento de toda e qualquer conotação ontológica, a atenção ao fato de que o conceito não designa qualquer qualidade deter­minada, assim como, para Descartes, a "extensão" era a qualidade que constituía a essência dos corpos e era, por isso mesmo, um conceito ontológico. Com a noção de vontade de potência não se dá início a qualquer ontologia, e afirmar que "o mundo é vontade de potência" não será equivalente, de forma alguma, a afirmar que "o mundo é matéria", ou que "o mundo é espírito". É exatamente isso que Nietzsche deixa claro em um fragmento póstu­mo, ao sublinhar que a vontade de potência "deveria ser

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algo, não um sujeito, não um objeto, não uma força, não uma matéria, não um espírito, não uma alma; mas, dir-me-ão, poder-se-ia confundir algo desse gênero com uma quimera. Eu mesmo o creio. E seria ruim se não fosse as­sim: é preciso mesmo que ela possa confundir-se com tudo o que existe e pudesse existir, e não somente com a quimera. Ela deve ser o grande traço de família com o qual todas as coisas se reconhecem como aparentadas com e la" 1 2 . Mas o que significa essa vontade de potência, en­quanto operadora de um entre-reconhecimento das coi­sas entre si? Ao comentar os conceitos físicos com os quais se descreve a natureza, tais como "coisa", "causa" ou "átomo", Nietzsche adianta que, uma vez eliminadas essas ficções substancialistas, restam na natureza apenas quantidades dinâmicas em uma relação de tensão com outras quantidades dinâmicas, e cuja essência consiste em sua relação com as demais quantidades, em seu atuar so­bre elas. Mas, se é assim, qual o perfil da vontade de po­tência? "A vontade de potência não é um ser, não é um vir-a-ser, mas um 'pathos'; ela é o fato elementar do qual resulta precisamente um vir-a-ser, um atuar." 1 3 Assim, a vontade de potência designa, antes de tudo, o conceito de uma relação, decodificada no horizonte da tensão. Atra­vés da noção de vontade de potência, a natureza é de­terminada como uma unidade que, ao mesmo tempo, é o princípio de sua multiplicidade, ela é a forma na qual o processo natural realiza-se como um processo de diferen­ciação, como um vir-a-ser. Por isso Nietzsche dirá que a vontade de potência só pode manifestar-se quando en­contra resistência e, assim, ela procura o que resiste 1 4.

12. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 40[31], KSA, vol. 12, p. 644. 13. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[80], KSA, vol. 13, p. 260. 14. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[151], KSA, vol. 12, p. 124.

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Portanto, ao afirmar que o "mundo" é vontade de potência, Nietzsche procura compreender um conceito de natureza - na qual nos incluímos - como processo do vir-a-ser na forma dessa vontade, vir-a-ser que é supe­ração de si e necessária autodestruição. A tarefa de com­preender a vontade de potência como o princípio de todo vir-a-ser e de todo agir pressupõe que se possa re­conduzir a totalidade dos fenômenos naturais a essa von­tade, e por isso o mundo, "visto de dentro", determina­do e designado por seu "caráter inteligível", será vontade de potência, e nada além disso 1 5 . Para Nietzsche, essa "forma fundamental do querer" é aquela em que a natu­reza se produz em seus fenômenos orgânicos, assim como é nela que encontra sua expressão a moralidade do indi­víduo autônomo, o indivíduo supramoral. Assim, quando Nietzsche se pergunta que valor têm as nossas valorações morais e o que se ganha em sustentá-las, é para indicar que essa pergunta supõe uma questão prévia, que é a de saber quem ganha com esses valores. Ora, se alguém tives­se que ganhar algo seria a "vida". E, se é assim, diz Nietzs­che, impõe-se a necessidade de um novo e mais exato conceito de vida. "Minha fórmula é esta: a vida é vonta­de de potência." 1 6 A vida é a própria fenomenalidade da vontade de potência e, conseqüentemente, a sua verda­deira realidade. Nietzsche reconhece na vida a vontade de potência em sua facticidade, enquanto a vida natural­mente se relaciona e, em seu relacionar-se, exprime a von­tade de potência: viver é essencialmente apropriação, vio­lação, dominação do outro e do mais fraco, ela é opressão, severidade. Em todo corpo vivo realiza-se este caráter fun-

15. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 36, Obras incompletas, cit, p. 275.

16. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[190], KSA, vol. 12, p. 161.

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damental: ele precisará crescer, alcançar a preponderân­cia - e isso não por alguma moralidade ou imoralidade, mas porque ele vive e a vida é vontade de potência. Mas, se a vida é relação de tensão, a preponderância nunca será total, o opositor nunca será eliminado, caso em que a ten­são e a relação desapareceriam. Se a vontade de potên­cia requer a resistência, existe aqui um jogo, nunca uma guerra total. Por isso, Nietzsche dirá que "viver" deveria ser definido "como uma forma duradoura dos processos das fixações de força em que os diversos combatentes crescem desigualmente. Investigar em que medida na obediência também existe uma oposição; a própria força não é completamente eliminada. Assim, também no co­mando existe uma confissão de que a força absoluta do adversário não é vencida, não é incorporada, dissolvida. 'Obedecer' e 'comandar' são formas do jogo da luta" 1 7 .

Assim, a estrutura fundamental visada pelo conceito de vontade de potência é a limitação de uma ambição ili­mitada. Digamos que o conceito comporta dois momen­tos, a própria ambição, que é ambição de potência, e a li­mitação dessa ambição pela posição de uma potência determinada, que busca ampliar-se e também ambiciona uma potência maior. Por isso, a determinação formal da noção de potência é um "superar-se". Com isso, a "po­tência" não nomeia propriamente nenhum estado ao qual se possa aspirar, nenhuma finalidade determinada, mas apenas um momento do próprio aspirar - a saber, o mo­mento da superação de um estado por outro mais eleva­do - e, com isso, o momento da abolição de um limite da aspiração através de uma nova limitação. Essa limitação é compreendida como a posição de uma nova resistência que deve ser ultrapassada, e apenas uma potência pode

17. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 36[22], KSA, vol. 11, p. 560.

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opor resistência a outra potência. E, se é assim, como a vontade de potência, para poder exteriorizar-se, tem co­mo condição uma resistência, e como uma resistência só pode ser feita por outra potência, então toda a vida será compreendida por Nietzsche como uma luta de potên­cias, em que diferentes centros de força se determinam por sua relação a potências antagônicas. Assim caracteri­zado, o conteúdo essencial da vontade de potência está na idéia de "superação de si". Nietzsche caracteriza essa compreensão da vida como vontade de potência pela lei da necessária superação de si, inscrita na essência da própria vida. Isso já indica para onde apontará o além-ho-mem de Nietzsche, e por que ele será muito diferente de um novo "ideal" de humanidade, de uma nova "imagem" do homem, que viria pura e simplesmente substituir-se à sua imagem atual. Com o conceito de além-homem se es­tará designando uma perpétua superação de si, e por isso esse além-homem nunca terá rosto definido, nem pode­ria tê-lo. Com esse conceito não se traça nenhuma ima­gem de um novo homem divino, a idéia de superação de si proíbe toda e qualquer cristalização de uma figura de­terminada, algo do qual se possa repertoriar os traços, e por isso o espírito livre - viajante sem porto de chegada -era a sua melhor prefiguração.

Isso é o suficiente para se indicar como aquilo que se pensou ser a marca mesma do reingresso de Nietzsche no dogmatismo e na metafísica é, na verdade, o princípio de subversão de todo dogmatismo, de toda metafísica. Se­gundo a interpretação de Heidegger e de Jaspers, ao iden­tificar a totalidade do ser à vontade de potência Nietzsche retornaria ao leito tradicional da "filosofia", por ressusci­tar a idéia de uma única interpretação válida do ser, um sentido único que seria privilegiado. O que seria contra­ditório com sua tese de que o mundo comportaria uma in-

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finidade de interpretações, contraditório com a imagem anteriormente dada do "espírito livre", este persona­gem que não se fixa em convicções e experimenta as mais variadas perspectivas. Ora, uma vez o conceito de von­tade de potência reinstalado em sua neutralidade ontoló-gica, pode-se verificar que, ao contrário de suprimir a di­versidade das perspectivas, ele é exatamente aquilo que está na raiz da infinidade das interpretações. Pois, quando se leva a sério que vontade de potência não é qualquer conceito ontológico, não designa um ser ou uma qualida­de dos seres, mas apenas o movimento da superação de si, então pode-se verificar que é exatamente por haver este superar-se que as perspectivas, os sentidos, as inter­pretações são por princípio infinitos, e o dogmatismo ne­cessariamente precisa ser rejeitado: as diversas interpre­tações superam-se em direção a outras interpretações. Da mesma forma, porque o espírito livre exprime a vontade de potência, ele jamais se fixará em alguma certeza, supe-rando-se perpetuamente em direção a novas opiniões, novas perspectivas. É porque a vontade de potência é su­peração de si que as convicções são prisões, e o espírito livre estará condenado a ser um experimentador.

Assim, a vontade de potência, em vez de represen­tar o fim do perspectivismo do conhecimento, será para Nietzsche exatamente o princípio que fará com que todo conhecimento seja sempre perspectivo, isto é, parcial e provisório, destinado a superar-se em direção a outra in­terpretação, outra perspectiva. É isso que Nietzsche indi­ca em um fragmento póstumo, de forma concisa mas pre­cisa, ao afirmar que o próprio "interpretar" é uma forma da vontade de potência, que tem existência não como ser, mas como processo, como vir-a-ser. "Meus escri­tos afirmam constantemente que o valor do mundo se

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encontra em nossa interpretação (que talvez, em qual­quer outro lugar, são possíveis outras interpretações, dis­tintas das simplesmente humanas); que as interpretações até agora admitidas são avaliações perspectivas, em vir­tude das quais nos conservamos na vida, ou seja, na von­tade de potência, no aumento da potência; que toda ele­vação do homem traz consigo a superação de interpreta­ções mais restritas; que cada consecução de nova força e de extensão da potência abre novas perspectivas e signi­fica crer em novos horizontes. O mundo que nos inte­ressa é falso, isto é, não é um fato mas uma fantasia e um ajuntamento de uma escassa soma de observações; ele é fluido, como coisa que devêm, como uma falsidade que continuamente se desvia, que não se aproxima nunca da verdade, porque não há 'verdade' alguma." 1 8 A vontade de potência, em vez de significar a reedição de um novo "verdadeiro mundo", na velha linhagem platônica, como pensavam todos aqueles que queriam, a todo custo, reins-crever Nietzsche na história da metafísica, é antes de tudo a reafirmação de que não há verdade alguma. Aquilo que os filósofos chamam, com muita pompa, de "verdades so­bre o ser", são apenas episódios, muito transitórios, no movimento geral da perpétua superação de si.

IV

Poderíamos dizer que a "vontade de potência" é um conceito especialmente psicológico, e que os fenômenos psíquicos seriam sua origem primeira? Por um lado, é in­contestável que a vontade de potência tenha um âmbito

18. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[108], KSA, vol. 12, p. 114.

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psicológico para sua atuação. Nos textos que vão de Hu­mano, demasiado humano a Assim falou Zaratustra, pode-se estabelecer certa filiação de temas, centrados na busca de uma impulsão psicológica fundamental, e que teriam se cristalizado no conceito de vontade de potência. Assim, em Humano, demasiado humano Nietzsche estabelecia, em termos psicológicos, que a luta pelo prazer é a luta pela própria vida, e que esse prazer consiste em experi­mentar "o sentimento da própria potência" 1 9 . E dora­vante começará uma série de investigações sobre esse "sentimento de potência", particularmente em Aurora. O sentimento de potência, diz Nietzsche, desenvolveu-se de forma tão sutil que se tornou a inclinação mais vio­lenta do homem, a tal ponto, assegura ele, que os meios descobertos para buscá-lo desenham quase toda a histó­ria da cultura 2 0 . A partir de agora, dir-se-á que todas as condutas humanas, morais ou imorais, são presididas por esse "sentimento de potência". "Se, ao fazer bem ou mal, fazemos sacrifícios, isso não altera o valor último de nos­sas ações, mesmo se pomos nisso nossa vida, como o már­tir por sua Igreja - é um sacrifício feito ao nosso desejo de potência ou para fins de conservação de nosso sentimen­to de potência." 2 1 Agora este sentimento surgirá como a base sobre a qual tudo repousa, e Nietzsche dirá que ele é fundamental para o estabelecimento dos elos morais, para a submissão a um chefe, a uma família, a uma co­munidade: nós nos submetemos para ganhar sentimen­to de potência. É ainda essa idéia que Nietzsche subli-

19. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 104, KSA, vol. 2, p. 101.

20. Nietzsche, Aurora, § 23, KSA, vol. 3, p. 35. 21. Nietzsche, A gaia ciência, § 13, Obras incompletas, cit, p. 193.

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nhará em Assim falou Zaratustra, ao afirmar que o fraco serve ao forte porque é inclinado a isso por sua vonta­de que, por sua vez, quer dominar as vontades mais fra­cas do que ela. Este, garante Nietzsche, "é o único prazer ao qual ela não pode renunciar" 2 2 .

Assim, se é verdade que a expressão "vontade de potência" entra em cena pela primeira vez no Zaratustra, não parece ser menos certo que o conceito de vontade tem sua introdução facilmente justificável no plano da análise psicológica, visto que as fórmulas que Nietzsche utilizara antes já a continham implicitamente. Assim, Au­rora falava em "impulsão" e outros textos abusarão da fórmula "aspirar a", termos que já exprimem as idéias de esforço e de tensão, exatamente o que a noção de "von­tade" sublinhará. E são esses mesmos termos que volta­rão à cena na Genealogia da moral, quer dizer, depois de forjada a expressão "vontade de potência". Todo animal, diz Nietzsche ali, "aspira instintivamente a um optimum de condições favoráveis em que possa expandir sua força e alcançar seu máximo de sentimento de potência" 2 3. Sen­do assim, se nos situamos no terreno da experiência psi­cológica, parece que podemos considerar a fórmula "von­tade de potência" como a expressão abreviada de "vonta­de de sentimento de potência".

Todavia, é pura ilusão pensar que a noção psicológi­ca de "sentimento de potência" possa oferecer algum fio condutor sólido para se interpretar a noção de vontade de potência. Para os apressados que querem, rápido demais, reconduzir a vontade de potência ao terreno mais co-

22. Nietzsche, "Da superação de si", Assim falou Zaratustra, KSA, vol. 4, p. 148.

23. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 7, cit., p. 118 (modificada).

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nhecido e confortável da psicologia, e se comprazem em identificar vontade de potência a sentimento de potência - para estes Nietzsche não deixava de observar que o "sentimento de potência" não é qualquer absoluto que se prestaria a experiências intercambiáveis entre uma pes­soa e outra, não é um dado psicológico neutro que se es­gotaria em si mesmo. É o que se pode ler no aforismo 348 de Aurora: "Sentimento de potência. - Que se distinga bem: aquele que quer adquirir o sentimento de potência lança mão de todos os meios e não despreza nada do que possa alimentar esse sentimento. Mas aquele que possui esse sentimento tornou-se muito difícil e nobre em seu gosto; é raro que alguma coisa o satisfaça ainda." Assim, para Nietzsche o sentimento de potência não é algo em si mesmo inteiramente desenhado, ele não é nada de ab­soluto, mas está, antes, subordinado à qualidade da alma que o experimenta. Um certo apetite por sentimento de potência é até mesmo signo de vulgaridade - e o asceta, segundo Nietzsche, chega a um sentimento de potência inaudito. Portanto, a vontade não poderia tender para o sentimento de potência como para algo que lhe conferis­se sua verdade intrínseca. O sentimento de potência re­presenta apenas um fenômeno concomitante e deriva­do, que extrai seu valor da qualidade intrínseca do querer, mas não oferece a matriz do próprio querer. Renuncie­mos, então, a procurar a origem do conceito de vontade de potência no domínio da psicologia.

O conceito não poderia ser oriundo de uma reflexão sobre as estruturas políticas e sociais? Mais uma vez, não faltam textos que pareçam dar caução a esta suspeita. É assim quando Nietzsche diz que qualquer que seja a par­te que o utilitarismo e a vaidade de povos e indivíduos to­mem na "grande política", a força viva "que os impulsio­na adiante é a 'necessidade de potência', que, não so-

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mente na alma dos príncipes e dos poderosos, mas tam­bém, e não em pequena parte, nas camadas inferiores do povo, brota, de tempos em tempos" 2 4 . Da mesma forma, quando Nietzsche for tratar do "grande homem", será para caracterizá-lo como aquele que se arroga o direito de sacrificar homens como um general o faz, quer dizer, não a serviço de uma idéia, mas porque quer dominar. Diría­mos então que a vontade de potência seria essencialmen­te vontade de dominação, e que os "potentes" seriam aqueles que detêm o poder, as "classes dirigentes"? São muitos os textos que parecem dirigir-nos para essa assi­milação entre potência e classes poderosas. A revolta con­tra a ordem estabelecida, diz Nietzsche, apenas traduz o ressentimento dos deserdados que, em nome de ideais igualitários, se insurgem contra uma hierarquia natural e legítima. É assim quando Nietzsche discute a insurreição cristã contra Roma, ou mesmo a Revolução Francesa. Em ambos os casos, ele verá a mesma vingança plebéia con­tra os poderosos do momento, a mesma hostilidade cris­tã às castas, aos aristocratas, aos privilégios. Da mesma forma, parece evidente que, na Genealogia da moral, o se­nhor e o escravo têm um status sociológico bem defini­do. Enquanto os nobres são aqueles que extraem o seu nome simplesmente da superioridade de seu poder - os "comandantes" - ou dos signos exteriores dessa supe­rioridade - "os ricos", "os possuidores" -, o "ruim" desig­na o homem comum que é escravo de seu trabalho 2 5 . E, sendo assim, os jogos parecem feitos: o conceito de von­tade de potência se origina na reflexão sobre a política, que lhe ofereceria seu conteúdo essencial.

24. Nietzsche, Aurora, § 189, KSA, vol. 3, p. 161. 25. Nietzsche, Genealogia da moral, I, §§ 5 e 10, cit., pp. 26-35.

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Nova ilusão, e um engano contra o qual Nietzsche não se cansou de nos prevenir. Quando pensou em es­crever um livro intitulado A vontade de potência, ele lhe daria um prefácio em que se pode ler a seguinte advertên­cia: "Um livro para pensar, nada mais: ele pertence àque­les para quem pensar é uma alegria, e nada mais. Que ele seja escrito em alemão, isso é pelo menos inatual: eu desejaria tê-lo escrito em francês, para que ele não apa­reça como reforço a não sei quais aspirações do Reich ale­mão." 2 6 E ele não deixará de observar que o poder político embrutece, que as classes dirigentes são eminentemen­te criticáveis. Seus textos são suficientemente claros para diluir a interpretação ingênua segundo a qual ele identi­ficaria os "potentes" aos "ricos" e aos "dirigentes", colo­cando em questão a leitura de todos aqueles que estipu­lam o sociopolítico como única matriz das significações. A estes é recomendável uma consulta a Zaratustra: "Ve­jam estes supérfluos! Eles adquirem riquezas e só se tor­nam mais pobres. Eles querem o poder e, antes de tudo, a alavanca do poder, muito dinheiro - estes incapacita­d o s ! " 2 7 Se Nietzsche defende a hierarquia, isto não sig­nifica a apologia do modelo de ordenação derivado do privilégio econômico, e ele encontrará mais exemplares do "tipo superior" de homem nas classes trabalhadoras do que na burguesia. Mas este homem de tipo superior não terá nenhum perfil socioeconômico definido, seu ros­to não se delineia por ocupar qualquer lugar determinado no sistema de produção. " O s operários viverão um dia como agora vivem os burgueses; mas sobre eles, e distin-

26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[188], KSA, vol. 12, p. 450. 27. Nietzsche, "Do novo ídolo", Assim falou Zaratustra, KSA, vol.

4, p. 63.

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guindo-se por sua falta de necessidades, as castas supe­riores: portanto viverão mais pobres e mais simplesmen­te, mas na posse da potência." 2 8 E que ninguém confunda esta potência com poder ou chefia política. "Rara além dos dominadores, desligados de todo vínculo, vivem os gran­des homens: e nos dominados têm seus instrumentos." 2 9

Por isso o Estado, longe de ser o lugar natural do "tipo su­perior" de homem, será o seu perfeito antagonista. E des­de as Extemporâneas, passando por Humano, demasiado hu­mano, o Estado será considerado por Nietzsche como um inimigo do tipo superior de homem, uma barreira ao sur­gimento do além-homem que, aliás, só terá lugar ali onde o Estado termina30 e, por isso mesmo, não pode ser qual­quer personagem essencialmente político. Assim, nenhu­ma impostura maior do que assimilar a vontade de potên­cia a uma vontade de Império. Ao contrário, este suposto ideólogo do Reich preconizava o enfraquecimento siste­mático do Estado. Assim, renunciemos à idéia de que o conceito de vontade de potência tenha uma origem e um significado primariamente político. O que já era evidente para quem levava em conta que "potência" não pode se confundir com "poder", esta finalidade consciente de al­guma ação.

Enfim, poderíamos concluir que o conceito de von­tade de potência se enraíza no domínio biológico? "Onde eu encontrei vida", diz Nietzsche, "ali encontrei vontade de potência" 3 1 . E é à linguagem organicista que ele recorrerá

28. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[47], KSA, vol. 10, p. 361. 29. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 25 [270], KSA, vol. 11, p. 82. 30. Nietzsche, "Do novo ídolo", Assim falou Zaratustra, KSA, vol.

4, p. 64. 31. Nietzsche, "Da superação de si", Assim falou Zaratustra, Obras

incompletas, cit, p. 238.

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ao identificar a "vontade da vida" à própria vontade de potência. É preciso - dirá Nietzsche - ir até o fundo das coisas e proibir-se toda fraqueza sentimental: viver é es­sencialmente despojar, ferir, dominar ou pelo menos ex­plorar. Pois a exploração é inerente à própria natureza da vida, é uma "função orgânica" essencial, uma conseqüên­cia da vontade de potência, que é a própria vontade da vida 3 2 . Tais teses não nos permitem reconduzir Nietzsche ao "biologismo"? Agora a "luta pela proeminência" de Nietzsche viria tomar o lugar da "luta pela vida" de Dar-win. Todavia, se ninguém deve negar que a vontade de potência se refira também à esfera biológica, não se segue daí que o "biológico" seja o seu campo de origem e nos ofereça o sentido último do conceito. Mais ainda, esta sig­nificação preferencialmente biológica do conceito, quan­do levada às últimas conseqüências, nos induziria a con­clusões expressamente recusadas por Nietzsche. Pois uma vez admitida essa hipótese, seríamos levados a teses pró­ximas às de Darwin: se a vontade de potência é essencial­mente biológica, então a vida deveria selecionar, automa­ticamente, o elenco dos escolhidos, e os de fato potentes coincidiriam com os potentes de direito. Mas exatamen­te essa conclusão, de espírito darwinista, é afastada por Nietzsche: "O que mais me surpreende quando contem­plo os grandes destinos dos homens é perceber sempre o contrário daquilo que Darwin e sua escola vêem ou querem ver hoje: a seleção em benefício dos mais fortes, dos mais bem dotados, o progresso da espécie. Pode-se apreender o contrário em todas as partes: a supressão dos casos felizes, a inutilização dos melhores tipos, o inevitá­vel dominar dos tipos médios, e até dos tipos inferiores à

32. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 259, KSA, vol. 5, p. 208.

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média." 3 3 Ora, se o resultado que Nietzsche percebe é o inverso do que faria supor uma apreciação exclusivamen­te biológica da vontade de potência, é porque este con­ceito não tem sua origem nem se define no interior do terreno da biologia.

Mas por que insistir tanto em desenraizar a vontade de potência das representações habituais da "potência", e fazer questão de frisar a irredutibilidade do conceito às suas fenomenalizações mais imediatas, ali na esfera da psicologia, da política ou da biologia? Simplesmente, para dar ao conceito um perfil mais definido. Todavia, nova­mente, só se procedeu negativamente, afastando algu­mas representações habituais, muito enraizadas a partir de certos comentários sobre a obra de Nietzsche. Mas em que, mais uma vez, conclusões meramente negativas po­dem auxiliar a compreender positivamente um conceito? Essas conclusões negativas oferecem um resultado histo-riográfico do qual se pode derivar um significado do con­ceito de vontade de potência. Se a origem desse conceito, no interior da obra de Nietzsche, não está nem na psico­logia, nem na política, nem na biologia, é porque quem elabora a noção é, antes de tudo, o Nietzsche filólogo, o analista da vida helênica. É ali nas investigações sobre a disputa em Homero, no elogio à competição perpétua na Polis, na oratória ou nos concursos trágicos, que vai se for­jando a idéia de vontade de potência como superação de si. O que significa reconhecer os elos especiais da noção de vontade de potência com aquilo que Nietzsche en­tenderá ser a "cultura". E isso não nos deixa distantes da questão de que se tinha partido, que era a de saber por que a nossa "civilização" promove a "decadência".

33. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [123], KSA, vol. 13, p. 303.

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CAPÍTULO IX CIVILIZAÇÃO E CULTURA

I

"Os cumes da cultura e da civilização separam-se: não devemos nos deixar induzir a erro sobre o abissal antago­nismo entre cultura e civilização. Os grandes momentos da cultura foram sempre, moralmente falando, tempos de corrupção; e, ao contrário, as épocas de maior disciplina e domesticação do animal homem ('civilização'), tem­pos de intolerância para as naturezas mais espirituais e audaciosas. A civilização quer algo de outro do que quer a cultura: talvez algo contrário..." 1 E a esta oposição en­tre cultura e civilização que vale a pena dirigir a atenção, para verificar em que sentido o "animal de rebanho", este produto final do laboratório civilizador, exprime a deca­dência. Afinal, para onde aponta essa idéia de "decadên­cia"? "O resultado ao qual cheguei" diz Nietzsche, "foi tão surpreendente quanto possível, mesmo para mim, que já me sentia familiarizado com mundos bastante estranhos;

1. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 16[10], KSA, vol. 13, p. 485.

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compreendia que todos os juízos superiores, todos esses juízos que se apossaram da humanidade, pelo menos da humanidade domesticada, podiam ser reduzidos a juízos de esgotados... Atrás dos nomes mais sagrados encontrei as tendências mais destruidoras; se chamou de Deus a tudo o que debilita... compreendi que o 'homem bom' era uma forma de autoafirmação da 'decadência'." 2 Essa as­sociação entre "decadência" e "debilidade" já indica que decadência é um contratema da vontade de potência, o que é expressamente assumido pelo autor. Minha afir­mação - diz Nietzsche - "é que todos os valores nos quais a humanidade enfeixa agora sua mais alta deseja-bilidade são valores de décadence... Uma história dos 'sen­timentos superiores', dos 'ideais da humanidade'... seria quase que também a explicação de por que o homem é tão corrompido. Ávida mesma vale para mim como instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, de potência: onde falta a vontade de potência há declínio" 3 . Mas em que sentido nossos valores apontam para a de­cadência e, antes de tudo, o que significa opor-se à von­tade de potência?

Guardemo-nos da tentação de simplificar a questão, afirmando que a decadência é a negação pura e simples da vontade de potência, como se os dois conceitos fossem mutuamente exclusivos. Se fosse assim, Nietzsche teria se limitado a elaborar a noção de vontade de potência para, logo depois, tachar de "decadente" o que não a corrobora, e tudo seria bem simples, mas também bastante vácuo. E ainda terminaríamos presos a aporias insolúveis. Pois o mesmo Nietzsche que, em O Anticristo e em vários outros

2. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 15 [13], KSA, vol. 13, p. 412. 3. Nietzsche, O Anticristo, § 6, Obras incompletas, cit, p. 347.

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textos, afirma que onde falta vontade de potência há de­cadência, ao indicar que o ideal ascético tem sua origem em uma vida que degenera, não deixa de sublinhar que na vida ascética há uma vontade de potência que deseja as­senhorar-se da própria vida. Para o sacerdote, o ideal ascé­tico é "seu melhor instrumento de potência" e também sua suprema autorização à potência 4. O ideal ascético, originado na degenerescência, tem sua parte na vontade de potência. Assim, a decadência, oposta por Nietzsche à vontade de potência, não pode ser a sua exclusão pura e simples. Afinal, quem diz que a totalidade da vida é von­tade de potência não poderia afirmar que a decadência é sua negação absoluta. E vale a pena recordar que quando Nietzsche for distinguir entre a saúde e a doença, ele su­blinhará que entre ambas há apenas uma diferença de graus 5. Isso permite formular a questão em seus termos mais gerais: o que significa a "decadência", se ela nega a vontade de potência sem ser a sua pura e simples exclu­são? Tentemos atalhá-la por caminhos menos inóspitos, voltando ao "homem bom" forjado pelo cristianismo e pelos nossos ideais democráticos.

O movimento democrático - diz Nietzsche - é não apenas um estágio decadente da organização política, mas também uma forma de degradação em que o homem se apequena, cai na mediocridade e se deprecia6. Quem é este homem forjado pelas idéias modernas, este "deca­dente"? Ele é aquele homem "bom", mas corrompido pe­las instituições; o homem que elege a razão como a au­toridade; ou então o romântico, que santifica a paixão

4. Nietzsche, Genealogia da moral, III, §§ 1 e 11, cit, pp. 107 e 130. 5. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[119], KSA, vol. 13, p. 296. 6. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 203, KSA, vol. 5, p. 126.

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como sendo a "verdadeira natureza"; ele é o que canta loas ao "altruísmo", e sempre toma o partido dos "opri­midos"; o que acredita no "desinteresse" na arte e no co­nhecimento. E ele a auto-afirmação da decadência: o ani­mal de rebanho que, ao contrário de um estóico, a todo momento declara seus padecimentos ("a vida é dura!"), que quer distinguir-se pela moralidade das virtudes de re­banho (compaixão, moderação), pelo "sentimento de co­letividade" (o animal de rebanho sempre quer fazer tra­balho em grupo), o patriotismo - enfim, tudo aquilo em que o indivíduo não é levado em conta. Essa "decadên­cia" cristalizada no ideário do homem moderno já era a decadência cristã. Pois o cristianismo já valorizava e pro­movia - com sua beleza doentia, dirá Nietzsche - todas estas virtudes das almas cansadas: a confiança, a inge­nuidade, a modéstia, a paciência, o amor ao próximo, a abnegação e a submissão à vontade de Deus, uma espécie de abdicação de todo o nosso ego - quer dizer, o desinte­resse -, como se tudo isso fosse, em si mesmo, algo útil e desejável. Como se esta alma humilde e abortada - este animal virtuoso e medíocre -, um carneiro de rebanho que se atreve a chamar-se "homem", fosse o ideal abso­luto, o fim, a medida, o objeto do mais alto desejo. Mas por que, afinal, tanto as idéias modernas quanto o cris­tianismo, no qual estas se originaram, promovem a "de­cadência"? Qual o conteúdo dessa noção?

"Modesto, aplicado, benévolo, moderado, cheio de paz e cordialidade: assim quereis o homem? E assim que pensais vosso 'homem bom'? Mas o que se alcança com isso é apenas o chinês do futuro, o 'carneiro de Cristo', o socialista consumado." 7 O que é o "decadente"? Antes de

7. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 16 [13], KSA, vol. 13, p. 486.

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tudo, alguém formado para a obediência, o indivíduo pre­parado apenas para obedecer. A obediência é o traço fun­damental do instinto gregário, o instinto do rebanho e, para Nietzsche, a formação para a obediência é a caracte­rística essencial das "idéias modernas", de todos os nossos ideais civilizadores. Estes ideais reafirmam e promovem nossa vocação para a obediência, a ponto de colocarem o "comando" na gaveta da má consciência. Afinal, desde que existem homens, garante Nietzsche, sempre exis­tiram rebanhos humanos - associações raciais, comu­nidades, tribos, nações, Estados, Igrejas. E como sempre houve uma grande maioria de súditos para uma pequena minoria de senhores, a obediência foi a coisa mais incul-cada nos homens, a mais praticada por eles. De forma que até se poderia concluir legitimamente que, hoje em dia, cada um de nós experimenta uma necessidade inata de obedecer, algo, diz Nietzsche, como uma consciência for­mal que ordena: "Tu deves absolutamente fazer tal coisa, tu deves absolutamente te abster de tal outra", logo: "Tu deves". Essa necessidade de obedecer sempre busca sa­ciar-se e, para isso, ela procura preencher sua forma por algum conteúdo, aceitando tudo que as instâncias de co­mando lhe sussurram aos ouvidos - os pais, os professo­res, os prejuízos de classe, a opinião pública. Na evolução humana, o instinto gregário de obediência é aquele que se fortifica, em detrimento da arte de comandar. Este movi­mento - garante Nietzsche -, levado às últimas conse­qüências, só terá dois desenlaces possíveis: ou aqueles que mandam, os independentes, terminam por faltar, ou aqueles que de fato detêm o comando sofrem interior­mente de má consciência e, para comandar, precisam da auto-ilusão de que também eles apenas obedecem. "Esse estado existe hoje de fato na Europa: denomino-o a hipo­crisia moral dos que mandam. Não sabem proteger-se de

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sua má consciência, a não ser portando-se como executo­res de mais antigos e mais altos mandos (dos antepassa­dos, da Constituição, do direito, da lei ou até de Deus),ou mesmo emprestando da maneira de pensar do reba-nho máximas de rebanho, sendo, por exemplo, 'primeiros servidores de seu povo' ou 'instrumentos do bem geral'..."8

O comando tornou-se de tal forma vergonhoso, tão con-taminado pela má consciência, que hoje em dia ninguémmais manda, todos obedecem. Apenas a obediência tem ao seu lado a boa consciência. Ninguém pode meramentepreponderar - e se alguém prepondera, isso é pura apa-rência, na verdade se obedece também, só que a uma ins­tância superior. Nós nos tornamos cada vez mais platô­nicos: o rei platônico também só obedecia - ele obedeciaà "verdade". Quem promoveu esta valorização da obe-diência, esta desvalorização do comando? É este o traba­lho fundamental de nossos ideais civilizadores: fazer com que a boa consciência esteja apenas ao lado da obediên-cia. O "homem bom" é o escravo ideal, alguém preparadoapenas para obedecer. Mas, se o comando é a marca dis­tintiva da vontade de potência, nossos ideais de civiliza-ção caminham na contracorrente dessa vontade.

E, mais uma vez, louvemos o cristianismo, enquanto a grande matriz formadora deste indivíduo dócil, previsí-vel, regular e obediente. Pois foi o cristianismo que lançouo anátema sobre o nobre, o que comanda - foram os cris-tãos que associaram, pela primeira vez, a nobreza à má consciência. "O que não me agrada em Jesus de Nazaré,ou em seu apóstolo Paulo - diz Nietzsche -, é que elesencheram com tantas coisas a cabeça das pobres pessoas,

8. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 199, Obras incompletas, cit, p. 281.

)

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que poderia acreditar-se que suas humildes virtudes têm alguma importância. Tiveram que pagá-lo caro, pois pu­seram em descrédito as qualidades mais preciosas da vir­tude e do homem; excitaram, um contra o outro, a má consciência e o sentimento de dignidade da alma nobre; extraviaram as inclinações de bravura, de generosidade, de intrepidez, as inclinações excessivas das almas nobres, até a destruição do indivíduo..." 9 Eis aí o que produz o ideário cristão, enquanto promotor do tipo débil, do ho­mem "bom", quer dizer, do homem que só quer obedecer. O que é o cristianismo? Apenas uma "domesticação" do homem. O que é nossa "civilização", enquanto ela é fun­damentalmente cristã? Apenas a continuação da domes­ticação iniciada pelo cristianismo, uma construção do in­divíduo obediente, uma debilitação da vontade. O cristia­nismo - diz Nietzsche - quer dominar as aves de rapina: seu procedimento é convertê-las em doentes. O debilitar é a receita cristã para a domesticação, para a civilização1 0. É para essa domesticação que o cristianismo vai promo­ver a sua desnaturalização, associando o "natural" ao "re­provável". E para essa domesticação que ele vai empreen­der uma guerra mortal ao tipo superior de homem, fa­zendo dos instintos fundamentais desse tipo o seu "mau" dos homens maus, considerando o forte como réprobo, os valores dos fortes como pecaminosos. E a sua teoria da igualdade das almas perante Deus será o fundamento me­tafísico para fazer de toda preponderância um escândalo, de todo comando um não-senso.

É exatamente esta debilitação que nossos ideais civi­lizadores vão retomar, sob diversas formas, ao promo-

9. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[86], KSA, vol. 12, p. 506. 10. Nietzsche, O Anticristo, § 22, KSA, vol. 6, p. 190.

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verem o homem bom, o igualitarismo, o desinteresse. É sobre este solo que trabalham todos os teóricos do " m e ­lhoramento" do homem. Em todos os tempos, diz Nietz­sche, se quis "melhorar" o homem, e foi particularmente a isso que se chamou de "moral". Mas esse melhoramento não é senão uma domesticação: "Tanto o amansamento da besta homem, quanto o aprimoramento de um determina­do gênero de homens é denominado 'melhoria': somente estes termos zoológicos exprimem realidades, realidades, sem dúvida, das quais o típico 'melhorador', o padre, não sabe nada - nem quer saber... Denominar o amansamen­to de um animal sua 'melhoria' é, a nossos ouvidos, qua­se uma piada. Quem sabe o que acontece nas ménageries duvida de que ali a besta seja 'melhorada'. Ela é enfraque­cida, tornada menos danosa, torna-se, pelo sentimento depressivo do medo, pelas feridas, pela fome, uma besta doentia. - Não é diferente com o homem amansado, que o padre 'melhorou'." 1 1 Para Nietzsche, este trabalho já se iniciava com a constituição da moral de escravos. O "mau" da moral de escravos era justamente o "bom" da outra moral, o homem aristocrático, o potente, o senhor, o que comanda, agora apresentado com outras cores, reinter-pretado e deformado pelo olhar rancoroso do ressenti­mento 1 2 . Ao contrário do que ocorria no mundo homérico, assegura Nietzsche, hoje em dia se tem por verdade que o sentido de toda civilização é fazer do homem um animal doméstico. De forma que se poderia considerar como os verdadeiros instrumentos da civilização todos aqueles instintos de reação e de ressentimento com os quais as ra-

11. Nietzsche, "Os melhoradores da humanidade", Crepúsculo dos ídolos, § 2, Obras incompletas, cit, p. 335.

12. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 11, cit., p. 38.

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ças aristocráticas e seus ideais foram liquidados e venci­dos. Agora, efetivamente, não se tem mais nada a temer na convivência, com este animal domesticado, este animal irremediavelmente medíocre, que se considera como a meta e o sentido da história.

Para Nietzsche, também era esta domesticação que comandava o sentido da terapia que o sacerdote ascético oferecia aos seus fiéis. De fato, o que fazia o sacerdote, na sua mais fecunda terapia, aquela que Nietzsche não clas­sificava entre as "inocentes"? Vimos que ele inventava o "pecado" e, em um só gesto, transformava o sofrimento em "castigo", fazia do sofredor a causa do sofrimento. E desde então, dizia Nietzsche, há dois mil anos não esca­pamos mais do espetáculo deste novo doente, o "peca­dor": para onde quer que nos dirijamos encontramos sem­pre o olhar hipnótico do pecador, fixado na mesma dire­ção, na culpa como única causa do sofrimento; em todas as partes a má consciência, o olhar ruim sobre toda ação, sempre o pavor, o castigo, a disciplina, a contrição. E agora o pecador já não reclama da dor, ele deseja a dor mereci­da. O homem submetido a tal terapia tornou-se " m e ­lhor"? Não discordo, dirá Nietzsche, "apenas acrescento que, para mim, 'melhorado' significa o mesmo que 'do­mesticado', 'enfraquecido', 'desencorajado', 'refinado', 'embrandecido', 'emasculado' (ou seja, quase o mesmo que lesado...)"13. A terapia torna o doente mais doente, e o ideal ascético só promove uma debilitação. Rimos se um domador fala que seus animais foram "melhorados", porque sabemos que a domesticação tem um preço ele­vado para eles. Mas não rimos quando se fala em " m e ­lhoramento" dos homens. Achamos até mesmo "eviden-

13. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 21, cit., p. 162.

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te " que a domesticação do homem seja um melhora­mento, que a produção de um animal pronto para obede­cer seja um progresso. Não estranhamos que aquele in­divíduo das sociedades disciplinares, tal como Foucault os descreve, nos seja apresentado como "melhor". Marx, pelo menos, não estranhava, ao elogiar a "severa discipli­na das manufaturas". Mas qual a surpresa, se nossa "civi­lização" sempre promoveu a domesticação, a debilitação da vontade? Não estranhamos... Mas, pelo menos, po­demos conceber o direito a uma outra idéia de "aperfei­çoamento". Podemos, na contracorrente, perguntar, com Nietzsche, se não se pode conceber o "aperfeiçoamento" da humanidade como uma maior potência, como a pro­dução de indivíduos mais poderosos. Podemos pelo me­nos conceber a idéia de uma "cultura", que seria muito di­ferente de nossa "civilização".

II

"A mim mesmo, essa irreverência de pensar que os grandes sábios são tipos de declínio ocorreu pela primeira vez precisamente em um caso em que mais fortemente o preconceito erudito e não erudito se contrapõe a ela: re­conheci Sócrates e Platão como sintomas de caducidade, como instrumentos da dissolução grega, como pseudogre-gos, como antigregos." 1 4 Esta primeira vez que Nietzsche considerou Sócrates e Platão como "decadentes" foi no seu primeiro trabalho publicado, Nascimento da tragédia. E a observação sobre a irreverência do diagnóstico é um lem-

14. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 2, Obras incompletas, cit., p. 329.

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brete de sua inatualidade: considerar Sócrates e Platão decadentes e antigregos, em pleno século XTX alemão... é preciso coragem! Mas, pensando bem, a inatualidade do diagnóstico é significativa: se os "doutos" consideram ex­travagante o anátema lançado contra Sócrates e Platão, é porque sua admiração pela dupla não é senão o testemu­nho de que eles se consideram seus continuadores, o reco­nhecimento implícito de que a cultura alemã também é an-tigrega e decadente. O consenso dos doutos a favor de Só­crates e Platão indica que a Alemanha ainda carece de uma verdadeira "cultura" - algo que não se confunde, de forma alguma, com a tagarelice de universitários a que eles confe­rem este nome. Mas, então, qual é exatamente o "proble­ma" de Sócrates, que sempre poderá ser visto como o pro­blema dessa falsa cultura européia em geral?

O que eu procuro discernir, diz Nietzsche, é de qual idiossincrasia provém aquela equação socrática - razão = virtude = felicidade -, uma equação "a mais extravagan­te que existiu, que particularmente tem contra si todos os instintos dos antigos helenos" 1 5 . O que se censura em Sócrates? Antes de tudo, Sócrates é recriminado por re­comendar a racionalidade a todo custo e, assim, querer fa­zer da razão um tirano dos apetites, um tirano dos outros instintos. Tal é a lição básica de Sócrates enquanto profes­sor, enquanto civilizador: a razão deve dominar absoluta­mente os demais instintos, ela promove a vida prudente e sem instintos, em oposição aos instintos. Lição que Pla­tão aprendeu muito bem, ao apresentar a "justiça", na Po­lis ou no indivíduo, como a preponderância do melhor sobre o menos bom, a precedência e o domínio da razão

15. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 4, KSA, vol. 6, p. 69.

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sobre as demais partes da alma. Sócrates quer estabelecer a luz do dia da razão contra os apetites obscuros, contra os instintos. Mas isso, garante Nietzsche, foi uma doença, de forma alguma um retorno à virtude e à felicidade. "Ter de combater os instintos - eis a fórmula para a décadence: en­quanto a vida se intensifica, felicidade é igual a instinto." 1 6

Como interpretar este diagnóstico sobre a decadência, e o que pensar desta caracterização da "doença"?

Guardemo-nos, antes de tudo, dos lugares-comuns jornalísticos. Sócrates é censurado por promover a razão como tirano em face dos demais instintos. Mas será que Nietzsche estaria insinuando, como cura para a doença socrática, que nos filiemos ao partido oposto, e faça­mos a apologia das paixões e dos instintos contra a ra­zão, o elogio do corpo contra o espírito? Agora, a palavra de ordem de Nietzsche seria mais ou menos assim: faça­mos das paixões o tirano da razão - e com tal terapia da­remos adeus à "decadência". Mas isso seria desconhe­cer inteiramente o pensamento de Nietzsche, significaria transformá-lo em ideólogo parisiense e opor, ao plato-nismo, uma caricatura de Cálicles. Não. Não se subverte o platonismo apenas trocando os sinais, torcendo pela "pai­xão" contra a "razão", como se estivéssemos diante de uma pelada entre rivais. Razão e paixão não são adversá­rias - e já é conceder em demasia ao platonismo encará-las sob o prisma da mútua exclusão. Paremos com a ma­nia de transformar Nietzsche em precursor de Wilhelm Reich - este platônico a mais da história do pensamento. Deixemos o Nietzsche pré-reichiano para a conversa de namoradinhos no bar, e voltemos aos textos - a única "realidade" na história da filosofia.

16. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 11, Obras incompletas, cit., p. 330.

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No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche critica Sócrates por promover a racionalidade a todo custo, por fazer da razão um tirano dos demais instintos. Mas essa censu­ra é a expressão secundária e derivada de outra, que no fundo é a principal. O verdadeiro problema é que "quan­do há necessidade de se fazer da razão um tirano, como Sócrates fez, há grande perigo de que qualquer outra coi­sa se faça também de tirano" 1 7 . O desvio de conduta visa­do por Nietzsche, antes de ser a promoção da razão a ti­rano dos outros instintos, é a admissão da própria idéia de tirania de uma parte da alma sobre as demais. O impor­tante não é qual personagem exerce a tirania, não é saber qual o rosto do rei, mas sim o fato de haver tirania de um instinto sobre outros. Por isso, aos olhos de Nietzsche, o jovem parisiense apenas prolongaria a doença socrática, ao fazer da paixão um tirano diante da razão, invertendo a tradição sem abandonar a sua linguagem. O jovem pa­risiense permanece tão infiel à "cultura" quanto Sócrates ou o cristão: ele também separa, opõe, valoriza, escolhe e reprime instintos. Mais importante que a questão mate­rial - quem tiraniza quem? - é a própria idéia de tirania, e o "homem bom" do cristianismo será sempre o resultado da tirania de certos instintos sobre os demais.

É isso que Nietzsche confirma nos textos em que tra­ta da oposição entre saúde e doença. Entre ambas não há qualquer diferença qualitativa, como pensava a medicina antiga, e a razão está, antes, do lado de Claude Bernard: entre saúde e doença só existe diferença de graus, e o que constitui a morbidez é o exagero, a desproporção, a falta de harmonia. De tal forma, dirá Nietzsche, que se pode

17. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 10, KSA, vol. 6, p. 72.

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considerar o "mal" como sendo o exagero, a discordância, a desproporção, assim como o "bem" pode ser um regime protetor contra os perigos do exagero, da discordância, da desproporção 1 8. Aqui já se apresenta um dos significados da "decadência", da "degenerescência", e vai se dese­nhando, em negativo, o que será para Nietzsche a vida "ascendente". Mas qual é a relação entre essas conside­rações sobre Sócrates e a tirania de um instinto sobre os demais, e aquilo que Nietzsche chama de "cultura"? Para perceber qual é essa relação, vale a pena levar em conta as observações de Nietzsche sobre estes sucessores de Só­crates que são os "doutos", os "eruditos", aqueles mesmos que estranhavam a apresentação de Sócrates e de Platão como "decadentes", "antigregos". Para isso, voltemos, por um momento, aos panfletos de Nietzsche contra a "falsa cultura alemã", onde já vai se delineando a idéia do filó­sofo como "médico da civilização".

III

Nas "Extemporâneas", ao caracterizar a cultura alemã como uma "falsa" cultura, Nietzsche delineia o projeto de uma nova concepção de educação, que certamente jamais poderia ser implementada pelas universidades - este lugar natural do "filisteu". Uma concepção de educação que tam­bém teria contra si o Estado - que só se interessa por uma cultura que produza indivíduos dóceis e úteis ao próprio Estado, e por isso mesmo só promove a falsa cultura. Em Ecce homo, ao comentar as suas "Extemporâneas", Nietz­sche dirá que seu objetivo ali era formular "um problema

18. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[65], KSA, vol. 13, p. 250.

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de educação sem equivalente, um novo conceito de cultivo de si, defesa de si até a dureza, um caminho para a grande­za e para as tarefas histórico-universais exigia a sua pri­meira expressão" 1 9 . Se este propósito não é insensato é porque Nietzsche parte da convicção de que "o homem é o animal cujo caráter próprio ainda não está fixado"10 e que portanto há lugar para uma tarefa educadora, para uma formação. Não existe "natureza humana" preexistente a uma cultura, que pode modelá-la para o bem ou para o mal. Estabelecida esta tarefa, em que a cultura alemã é censurável e inadequada para o trabalho de formação que se exige de toda cultura autêntica?

Em Ecce homo, Nietzsche também sublinha a biparti-ção que ele vê em suas "Extemporâneas", enquanto elas tratam da baixa e da alta cultura. As duas primeiras "Extem­porâneas" descrevem a nossa "decadência". O panfleto con­tra David Strauss, garante Nietzsche, era dirigido, na ver­dade, contra a "cultura alemã" em geral, considerada por ele sem sentido nem substância, uma mera "opinião pú­blica". As observações sobre a história, por outro lado, põem em destaque o que há de perigoso, o que envene­na e corrói a vida no modo "alemão" de fazer ciência: a vida enferma da "impessoalidade" do laboratório, a falsa economia da divisão do trabalho. Agora, a ciência torna-se um meio que nos faz bárbaros, e um meio incapaz de atin­gir o seu fim, que deveria ser a produção da cultura. Nesta Consideração, diz Nietzsche, o "sentido histórico", este or­gulho do século, "foi pela primeira vez reconhecido como doença, como típico sinal de declínio"2 1. Nas duas últimas

19. Nietsche, "As extemporâneas", Ecce homo, § 3, cit., p. 70. 20. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 62, KSA, vol. 5, p. 81. 21. Nietzsche, "As extemporâneas", Ecce homo, § 1, cit., p. 67.

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Extemporâneas, ao contrário, Schopenhauer e Wagner são contrapostos enquanto indícios de uma "alta idéia de cultura", de uma reconstrução do conceito de cultura. E Nietzsche vai apresentar Schopenhauer e Wagner como "duas figuras do mais duro egoísmo, da autodisciplina, ti­pos inatuais por excelência, plenos de soberano desprezo por tudo o que à sua volta se chama 'império', 'cultura', 'cristianismo', 'Bismarck', 'sucesso'." 2 2 E quem são Scho­penhauer e Wagner? Schopenhauer e Wagner, diz Nietz­sche, são..."Nietzsche"! Respeitemos a bipartição que o autor dá às suas "Extemporâneas", e também a convicção de que quem fala, através de Schopenhauer e Wagner, é o próprio Nietzsche. E tratemos de recuperar, nestes es­critos, os elementos fundamentais da oposição entre ver­dadeira e falsa cultura.

Nietzsche censura ali a cultura alemã por seu artifi-cialismo, sua exterioridade e independência em face da natureza. A falsa cultura visada é essencialmente a "cul­tura histórica", que se reduz ao conhecimento livresco e jornalístico, aquele que sucumbe à erudição. Sendo mero acúmulo de informações, essa cultura é apenas uma jus­taposição de conhecimentos, carente de qualquer unidade. Essa cultura histórica é desprovida de "estilo", ou antes, ela só pode ser o resultado da mistura de diferentes esti­los. E este ponto, justamente, será fundamental para se compreender a oposição que Nietzsche estabelece entre a verdadeira e a falsa cultura. A verdadeira cultura será o contrário de uma mistura de estilos. "Cultura é, antes de tudo, a unidade do estilo artístico em todas as manifes­tações da vida de um povo. Mas ter muitos sábios e ter aprendido muito não é nem um meio de cultura, nem um

22. Nietzsche, "As extemporâneas", Ecce homo, § 1, cit, p. 67.

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signo de cultura, e muitas vezes está bem próximo do contrário da cultura, a barbárie, isto é: a falta de estilo ou a confusão caótica de todos os estilos." 2 3 A cultura do fi-listeu, sendo essencialmente histórica, acúmulo de infor­mações díspares, sem a unidade do estilo, só poderá sur­gir como o nome new wave da velha barbárie. A primeira tarefa do filósofo, enquanto médico da civilização, é restau­rar o sentido autêntico da cultura. E isso porque a cultura, longe de ser um acréscimo exterior e independente da na­tureza, deve vir em auxílio a ela, e tem um papel a cum­prir na produção da humanidade. A cultura deve perse­guir os mesmos fins que a natureza, valendo-se de meios mais eficazes. Qual é o fim da natureza? Antes de tudo, dirá Nietzsche, produzir os exemplares mais bem suce­didos, os mais raros e preciosos da espécie 2 4 . Mas como esta produção natural é regida pelo acaso, a finalidade da cultura é auxiliar a natureza na consecução dos seus fins, transformando este acaso em necessidade. A verda­deira cultura não visa a "felicidade", o "bem-estar" da maioria ou o lucro do negociante: seu fim é transformar a natureza em uma obra de arte acabada. Porque a natu­reza, por si mesma, não é uma "boa" natureza, como ima­ginava Rousseau, e também não é "má" , mas simples­mente indiferente, sem desígnios, fecunda e estéril, sem piedade nem justiça, incerta 2 5 .

Mas o que significa apresentar a "verdadeira cultura" como sendo a unidade do estilo artístico em todas as ma­nifestações da vida de um povo? Guardemo-nos de com-

23. Nietzsche, Considerações extemporâneas, I, § 1, KSA, vol. 1, p. 163.

24. Nietzsche, Considerações extemporâneas, III, § 6, KSA, vol. 1, p. 384.

25. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 9, KSA, vol. 5, p. 21.

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preender a noção de estilo artístico em um sentido tri­vialmente estetizante. Na expressão estilo artístico, o "artístico" não designa a "beleza" no sentido da estética. Nietzsche dirá que um estilo é artístico quando ele dá uma determinada unidade a um todo, fazendo com que ele deixe de ser um mero somatório ou um agregado de partes. Esta unidade é aquela de uma justa proporção no interior do desenvolvimento de uma multiplicidade na­tural. Se a cultura é antes de tudo a unidade do estilo ar­tístico, é porque ela vai dar unidade, justa proporção a uma multiplicidade natural que, por si mesma, é caótica. Como esta unidade do estilo artístico torna-se possível? Ela só se torna possível com um domínio tal dos instintos que se coíba a pretensão, presente em cada um deles, de desenvolver-se ao infinito, em detrimento dos demais. Para Nietzsche, era exatamente este sentido de "cultu­ra" que moldava a vida dos gregos na boa época, quando ainda existia um "querer" helênico: "O problema da cultu­ra raramente foi bem apreendido. Ela não tem por meta assegurar o máximo de felicidade possível para um povo, nem o livre desenvolvimento de seus dons, mas uma jus­ta proporção no interior desse desenvolvimento. Ela tem por fim a produção de grandes obras. Em todos os instin­tos gregos descobre-se uma unidade que os disciplina: chamemo-la o querer helênico. Cada um de seus instintos tende a existir solitário até o infinito. A cultura de um povo se manifesta na unidade disciplinada dos instintos desse povo." 2 6 Eis aí o momento histórico em que existia uma verdadeira cultura, uma verdadeira civilização - e não o simulacro que hoje em dia atende por este nome. A cultu­ra dos gregos do bom período tinha a unidade do estilo

26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 19[41], KSA, vol. 7, p. 432.

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artístico: se ali havia uma justa proporção no desenvolvi­mento dos dons, é porque o "querer helênico" disciplinava a tendência de crescimento ao infinito de cada instinto em detrimento dos demais.

Mas isso mostra imediatamente qual a relação entre o "problema" de Sócrates, este decadente típico, e a ques­tão da cultura. Por que Sócrates foi levado a fazer da razão um tirano dos instintos? Antes de tudo, deve-se notar que Sócrates se dirigia e falava a uma platéia bem determina­da, aquela dos nobres da velha Atenas, que caminhava para o seu fim. Sócrates era um degenerado, mas com um bom senso de marketing. Ele percebeu que na Atenas ter­minal, em silêncio já se preparava, em todas as partes, a mesma degenerescência. Sócrates soube ler muito bem a alma dos nobres atenienses, e reconheceu nelas almas irmãs: ele compreendeu então que todos tinham necessi­dade dele, de seus remédios, de seus artifícios para a au-toconservação. O que ocorria na Atenas terminal? Por toda parte, diz Nietzsche, os instintos em anarquia; "por to­da parte se estava a cinco passos do excesso: o monstrum in animo era o perigo geral. 'Os impulsos querem fazer-se tiranos; temos de inventar uma contratirania que seja mais forte... '" 2 7 . O que tinha sucedido a Atenas? Ela tinha per­dido a unidade do estilo artístico, tinha perdido a sua "cul­tura". Uma vez desaparecido o "querer helênico", não havia mais a disciplina que limitava a tendência de cres­cimento ao infinito de cada instinto - e, desde então, não havia mais justa proporção no desenvolvimento dos dons, mas tiranias cegas. E, se é assim, o que foi o socratismo? O Ersatz de uma cultura que não existia mais, um substi-

27. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 9, Obras incompletas, cit, p. 330.

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tuto da cultura que, doravante, chamou-se de "civiliza­ção". Pois qual foi o remédio prescrito por Sócrates? Dian­te do espetáculo da anarquia e indisciplina dos impulsos, ele fez da razão um tirano dos instintos, e agora viu-se na racionalidade uma tábua de salvação tanto para Sócrates quanto para os seus doentes. No lugar da disciplina dos instintos, que os continha na justa proporção, entra em cena a tirania da razão sobre os instintos, quer dizer, a domesticação, a civilização.

O que pensar desta terapia socrática? Nietzsche dirá que é um erro dos filósofos e moralistas acreditar que se sai da decadência fazendo-lhe a guerra. Afinal, o que se es­colhe como remédio e salvação contra a decadência é ape­nas outra expressão dessa mesma decadência. Com essa terapia, não se elimina a decadência, apenas se altera a sua expressão. Por isso, Sócrates "foi um mal-entendido; a inteira moral-da-melhoria, também a cristã, foi um mal-en­tendido... A luz do dia mais crua, a racionalidade a todo preço, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem ins­tinto, oferecendo resistência aos instintos era, ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença - e de modo ne­nhum um caminho de retorno à 'virtude', à 'saúde', à 'felicidade'... Ter de combater os instintos - eis a fórmula para a décadence: enquanto a vida se intensifica, a felicida­de é igual a instinto" 2 8 . Sim, Sócrates foi um equívoco. E como não seria? Para combater a anarquia dos instintos e o risco de tirania por parte de algum deles, Sócrates faz da razão um tirano. Mas quando há necessidade de se fa­zer da razão um tirano, há grande perigo de que qualquer outra coisa também se faça de tirano. Enquanto médico, Sócrates foi um grande charlatão: ele nunca combateu a

28. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 11, Obras incompletas, cit., p. 330.

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necessidade de se fazer de algo um tirano, sua cura não é a restauração da unidade perdida do estilo artístico, a disci­plina e a justa proporção. Sua terapia é apenas outra forma de tirania, uma nova expressão da decadência, a domes-ticação, a civilização.

Desta análise nietzschiana do "problema de Sócra­tes" parecem decorrer duas imagens distintas daquilo que seria a "decadência". Por um lado, a decadência é a anarquia dos instintos, tal como ela é encontrada nos no­bres da Atenas terminal. Por outro lado, a decadência é a solução socrática, é exorcizar a anarquia dos instintos graças à tirania de uma parte da alma sobre as demais. Mas, de fato, essas duas imagens da decadência reduzem-se a uma só: a anarquia dos instintos, ao dar livre curso à tendência de cada um deles a desenvolver-se ao infinito, em detrimento dos demais, favorece a tirania de uma parte sobre as demais. E isso é a decadência. Assim, a distância que Nietzsche estabelece entre "civilização" e "cultura" se exprime, neste nível da análise, através de dois distin­tos tratamentos que se pode conferir às multiplicidades naturais. Dada a multiplicidade natural dos instintos, que é anárquica e permite a cada um desenvolver-se ao infini­to, emudecendo os demais, a história nos apresenta duas terapias para neutralizar esta anarquia original. Pode-se fazer de uma parte o tirano absoluto das demais - é a so­lução socrática, a saída civilizadora, que domestica os ins­tintos. Mas pode-se também disciplinar esses instintos, para que nenhum deles se desenvolva ao infinito, subju­gando os demais. Agora haverá justa proporção entre os instintos, e nenhum dominará absolutamente e para sempre, e não haverá domesticação: esta é a solução he-lênica, pré-socrática, a "cultura". Mas, se é assim, a civili­zação, sendo apenas a legalização da tendência à supre­macia absoluta de uma parte sobre as demais, não é se-

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não um modo a mais de consumar aquilo que já esta­va inscrito na anarquia original, a "decadência". Por isso, Nietzsche falará de "nossa barbárie civilizada". A verda­deira superação da barbárie só poderá ser obra da cultu­ra: disciplina dos instintos que inibe a tendência de cada um deles a infinitizar-se e tiranizar os demais, disciplina que preserva a oposição entre os instintos, em vez de neu­tralizá-la através da supremacia de um só. Aqui sempre haverá hierarquias, sempre haverá preponderâncias, mas nunca perpétuas, nunca desproporcionais.

É este modelo helênico que Nietzsche opõe aos fi-listeus cultivados. A cultura alemã, enquanto produto do sacrossanto "sentido histórico", é desprovida de estilo, é apenas outro nome da barbárie. A nova educação deve­rá restaurar a idéia de cultura com estilo artístico, uma cultura que prolonga a natureza sem domesticá-la, disci-plinando-a para torná-la uma obra de arte acabada. Esta pedagogia será o oposto de nossa modernidade. Afinal, o moderno pode muito bem ser definido como a "autocon-tradição fisiológica". "A razão da educação quereria que, sob uma férrea pressão, pelo menos um desses sistemas de instintos fosse paralisado, para permitir a outro criar forças, tornar-se forte, tornar-se senhor. Hoje seria pre­ciso, primeiro, tornar possível o indivíduo, amputando-o; possível, isto é, inteiro... O inverso acontece: a pretensão à independência, ao livre desenvolvimento, ao laisser-aller é mais ardente precisamente da parte daqueles para quem nenhum freio seria rigoroso demais - isso vale in politicis, isso vale na arte. Mas é um sintoma da décadence: nosso moderno conceito 'liberdade' é uma prova a mais de dege-neração dos instintos" 2 9 . Eis o que falta na Alemanha:

29. Nietzsche, "Incursões de um extemporâneo", Crepúsculo dos ídolos, § 41, Obras incompletas, cit., pp. 341-2.

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uma educação que não consagre nem a supremacia de um só instinto, nem o laisser-aller, a anarquia que só redunda­rá em dominações selvagens. O que falta é uma educação que garanta a livre manifestação de todos os instintos, pela qual as dominações sempre existirão, mas nunca serão absolutas, nunca serão perenes.

Essas indicações são suficientes para sugerir qual é o leümotiv subjacente à insistência, da parte de Nietz­sche, em caracterizar a cultura através da noção de "es­tilo". Esta noção é retomada no aforismo 290 de A gaia ciência, onde Nietzsche afirma que "dar estilo" ao caráter é uma arte muito considerável, mas raramente encontrada. É através desta arte de dar estilo ao caráter que Nietzsche distinguira os "fortes" dos "fracos". "Serão as naturezas fortes e dominadoras que saborearão as alegrias as mais sutis neste constrangimento, nesta escravidão, nesta per­feição ditadas por sua lei pessoal; o aspecto de toda natu­reza estilizada, de toda natureza enfim vencida e subjuga­da, alivia a paixão de sua forte vontade; se elas precisam construir palácios, se elas precisam plantar jardins, repug-na-lhes também deixar a natureza livre. Ao contrário, os caracteres fracos, aqueles que não se dominam, detestam a servidão do estilo: eles sentem que se tornariam inevi­tavelmente vulgares se esse amargo constrangimento lhes fosse imposto; eles não poderiam servir sem tornar-se es­cravos, por isso detestam fazê-lo. Tais espíritos - e eles podem ser de primeira ordem - aplicam-se sempre a dar a si mesmos e atribuir à sua vizinhança o aspecto de na­turezas livres."30 O que é esta cultura enquanto estilização da natureza, o contrário mesmo do laisser-aller? O "esti­lo" é antes de tudo a expressão da vontade de potência,

30. Nietzsche, A gaia ciência, § 290, KSA, vol. 3, p. 530.

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como Nietzsche indica em alguns fragmentos póstu­mos. "Partir dos estados 'estéticos' em que o mundo é visto mais pleno, mais arredondado, mais perfeito - o ideal pagão: nele predomina a afirmação de si... O tipo superior: o ideal clássico - como expressão de uma pros­peridade de todos os instintos principais. Aqui, de novo o estilo superior: o grande estilo. Expressão da própria von­tade de potência." 3 1

Esta correlação entre o "estilo", enquanto disciplina dos instintos, e a vontade de potência não é nem um pou­co surpreendente quando se levam em conta as análises de Nietzsche sobre a disputa no mundo homérico. A estiliza-ção dos instintos vai reproduzir, no interior de cada indiví­duo, aquilo que ocorria na vida da polis helênica: sempre o conflito, sempre a hierarquia, mas nunca a dominação absoluta, que põe fim à disputa. A decadência de Alexan­dre prefigura a decadência de Sócrates: seja com a supre­macia absoluta de um só homem na cidade, seja com a tirania da razão sobre os instintos, há o fim da resistência, o fim da disputa, o término da superação de si, a "deca­dência" . Mas a consideração do indivíduo e a da cidade não são simplesmente paralelas, elas são interiormente relacionadas. Se o grego do mundo homérico sempre vi­via sob o horizonte da disputa, se ele não conhecia felici­dade sem luta posterior, e nunca poderia viver em regime de felicidade espinosana, era porque cada heleno, em seu interior, era uma natureza culta: a multiplicidade de seus instintos, sempre disciplinada, tornava sua vida uma per­pétua disputa entre os instintos, uma perpétua superação de si. A disputa na cidade correspondia ao agón originário interior à vida de cada um. Fazer da razão o tirano dos ins-

31. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[138], KSA, vol. 13, p. 63.

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tintos, como preconizava o domesticador Sócrates, signi­ficava neutralizar a resistência interior, eliminar a possibi­lidade mesma da disputa, pôr fim à vontade de potência, à superação de si. "Civilizar", enquanto estratégia exclu­sivamente apolínea, é impedir uma verdadeira criação. Ao contrário, a cultura, enquanto disciplina dos instintos, que os mantém na perpétua disputa e superação de si, é a fór­mula da criação. Era isso o "querer helênico": a multipli­cidade anárquica dos instintos era sempre disciplinada, Dioníso era inseparável de Apoio.

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CAPÍTULO X VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE

I

E a noção de vida como vontade de potência, como perpétua superação de si, que dá a chave para se com­preender o regime dos "valores" no interior da filosofia de Nietzsche. Em uma filosofia da vontade, todos os valores serão reportados à vontade de potência. Zaratustra afirma que acima de cada povo está inscrita uma tábua de valo­res; esta, diz ele, é a tábua de suas superações, a voz de sua vontade de potência 1 . Assim, a "superação de si" é uma estrutura refletida em todas as morais. E como seria diferente, se a essência de toda moralidade está na obri­gação, imposta ao homem, de vencer sua natureza, disci-plinando-a ou dominando-a? Ao contrário do laisser-aller, diz Nietzsche, toda moral é uma tirania contra a natureza e o caráter essencial de toda moral é ser uma longa coação 2.

1. Nietzsche, "Dos mil e um fins", Assim falou Zaratustra, KSA, vol. 4, p. 74.

2. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 188, Obras incompletas, cit., p. 280.

O único critério é a vida, isto é, VP.
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Por isso, os múltiplos valores, que correspondem a dife­rentes manifestações da vontade de potência, não são nada de dado, que simplesmente se ofereceria à nossa contemplação, mas são antes aquilo que mede a aptidão de alguém a ultrapassar-se, sua aptidão à superação de si. O único fundamento dos valores está na vontade de po­tência, enquanto superação de si. Na verdade, diz Zaratus­tra, foram os homens que deram a si mesmos a regra do bem e do mal. Eles não a tomaram de empréstimo, nem a encontraram em algum céu inteligível, ela não lhes foi sus­surrada por qualquer voz celeste 3. O que significa "valor"? O valor designa apenas a distância que separa alguém das suas próprias possibilidades, ele é a projeção daquilo que atribuímos a nós mesmos como sendo nossos fins, e por isso mesmo ele aponta, antes de tudo, para a tarefa ilimi­tada de sua realização. Se a tábua de valores de um povo é aquela de suas superações de si, se a voz que ali fala é a da vontade de potência, então no modo pelo qual um povo fábula seus deuses, ou formula um código moral, temos um signo para apreciar a potência de sua vontade. Por isso, um valor é tanto mais expressivo quanto maior for o esforço de superação de si que ele exige. Assim, diz Za­ratustra, chamamos de louvável tudo o que parece difícil; o que é ao mesmo tempo indispensável e difícil, chama­mos de bem; e aquilo que nos livra da mais alta necessi­dade, o mais raro e mais difícil, chamamos de sagrado 4. O valor é algo proporcional ao grau de potência que al­guém manifesta ao superar-se, e se há um critério de es­colha entre os valores, ele não estará neles mesmos, mas

3. Nietzsche, "Dos mil e um fins", Assim falou Zaratustra, Obras incompletas, cit., p. 232.

4. Nietzsche, "Dos mil e um fins", Assim falou Zaratustra, Obras incompletas, cit., p. 232.

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no grau de esforço exigido para efetivá-los, na superação de si que eles nos impõem.

Isso é suficiente para indicar a falsidade de um lugar comum, que é o de se associar a crítica nietzschiana à mo­ral com algum tipo de laxismo. Como se Nietzsche, pelo simples fato de autoproclamar-se "imoralista", estivesse situando-se fora do campo da moralidade em geral, e não apenas fora da jurisdição de determinada moral. Pelo contrário, no lugar de qualquer laxismo o que vai se dese­nhando ali é a linha dura da moralidade. E, para todos aqueles que associam, rápido demais, imoralismo a laxis­mo, Nietzsche não deixava de indicar que eles caminha­vam na contracorrente de sua filosofia. Justo ele, que sem­pre se manifestou contra qualquer versão do laisser-aller, ele que, ao criticar os valores morais vigentes, nunca criti­cou a noção mesma de valor e, aliás, atribuía como tarefa, ao filósofo do futuro, precisamente a criação de valores5; ele, enfim, que já indicara expressamente aos seus leitores que seu trabalho de toupeira, para minar a confiança na moral, era realizado em nome da... moralidade!6

II

Se a essência de toda e qualquer moral implica a "su­peração de si", isso pode começar a indicar em que senti­do a "decadência", sendo negação da vontade de potên­cia, não é sua pura e simples exclusão. Se a diferença entre a saúde e a doença é apenas quantitativa, então a deca-

5. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 211, Obras incompletas, cit, p. 284.

6. Nietzsche, Aurora, Prefácio, § 4, Obras incompletas, p. 157.

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dência deve representar o grau o mais baixo da vontade de potência. Mas como esta vontade se exprime, em regime de doença? Apenas com a resposta a esta pergunta se po­derá enxergar com clareza o que se pretende apontar ao falar em "vida decadente". Em diversos textos, Nietzsche associa a decadência a uma condenação da vida. Assim, no Crepúsculo dos ídolos, ao afirmar que a moral, tal como foi entendida até hoje, é "negação da vontade de vida", Nietzsche conclui que esta moral "é o próprio instinto de décadence"7. E esta vertente da noção de decadência que agora deve chamar nossa atenção. E fala-se aqui em "ver­tente", porque não se trata de outro significado de "de­cadência", simplesmente situado ao lado daquele já men­cionado. Ao contrário, trata-se de outro ângulo do mesmo fenômeno, uma explicitação daquilo que estava subja­cente ao socratismo enquanto domesticação, promoção da tirania de uma parte da alma sobre as demais. E este mes­mo fenômeno que, melhor considerado, vai se revelar como negação da vontade de viver - que não é, por sua vez, senão outro nome da negação da vontade de potên­cia, encarada agora sob uma luz peculiar.

Sob essa ótica, a decadência, enquanto é um não di­rigido à vida, vai se revelando como aquilo que estava na origem do platonismo, enquanto este foi uma grande es­tratégia de negação do vir-a-ser. E o momento em que a decadência, enquanto negação dos instintos, negação da vida, reata com a sua ideologia justificadora: negação do mundo dado em benefício de um "verdadeiro mundo", fic­ção de um além que virá legitimar a negação do mundo "aparente". Mas não é inútil relembrar que, para Nietz-

7. Nietzsche, "Moral como contranatureza", Crepúsculo dos ído­los, § 5, Obras incompletas, cit., p. 334.

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sche, o platonismo - filosofia da decadência - tinha sua origem em uma negação dirigida ao mundo do vir-a-ser. Afinal, o platonismo não estava só, enquanto produto de um ato de negação. A moral de escravos também era inau­gurada por um juízo negativo, ela se assentava em um não dirigido ao outro, ao contrário da moral de senhores, que se fundava em uma afirmação de si. Assim, tanto o plato­nismo quanto a moral de escravos convergiam no mes­mo princípio gerador, ambos originavam-se em um ato de negação. E exatamente isso permite que se comece a vislumbrar qual é a modulação da vontade de potência, tal como esta se manifesta na decadência, e qual é o sig­nificado essencial dessa doença. O que se precisa enten­der é por que o escravo estava condenado a ter, como sua única forma de ação, uma reação 8.

Como se traduz, na economia dos instintos, a oposi­ção nietzschiana entre senhores e escravos, fortes e fracos? O senhor, o forte, é o indivíduo cujos instintos são disci­plinados, em quem impera a unidade do estilo artístico, a justa proporção que lhes garante o curso indefinido do agon, em quem a preponderância sempre passageira de algum instinto nunca se torna tirania selvagem sobre os demais. Ao contrário, o escravo, o fraco, é aquele em quem a anarquia caótica dos instintos sempre termina por levar à dominação absoluta de uma parte da alma sobre as de­mais. Doravante, é sempre em função desta economia dos instintos que se deve procurar compreender as diferenças entre o "mundo" dos senhores e o "mundo" dos escravos. Quais são essas diferenças? Em primeiro lugar, o senhor é detentor de um amplo campo de experiências, enquanto o escravo vive em um mundo limitado. E o fato de nenhum

8. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 10, cit., p. 34.

Economia dos instintos na moral dos senhores e escravos.
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instinto dominar tiranicamente os demais que garante a amplidão do campo de experiência dos senhores. Afinal, sob este ângulo, o que é ter diversas "perspectivas" sobre o mundo, senão admitir que os instintos se alternam na dominação dos demais, possibilitando assim a diversidade das "interpretações"? Ao contrário, um decadente - como Sócrates e seus doentes, uma vez consumada a tirania da razão sobre os demais instintos - estará submetido a um estreitamento de seu campo de experiências, a um afunilamento das perspectivas, até que a "interpretação" oriunda desta supremacia da razão seja vista como a úni­ca admissível. É aqui que nasce o "dogmatismo", a ri­dícula pretensão de se tomar uma só perspectiva como sendo a única válida para todos, por oposição à "verda­deira liberdade do espírito", que é patrimônio dos "fortes" e reflete a flutuação indeterminada, o livre " jogo" entre os diferentes candidatos à dominação. Em segundo lugar, o senhor, enquanto livre jogo dos instintos, nunca será um eu substancial, o sujeito idêntico de propriedades per­manentes, mas sim o que Nietzsche chamará de "indivi­dualidade forte", aquela que reflete um perene descon­tentamento consigo, que se traduz na superação de si, alguém que por princípio não exclui a chance de sua in­definida diferenciação de si, o contrário mesmo de um "fraco", no qual um instinto, tiranizando os demais, fixa, de uma vez por todas, um ego unívoco - o indivíduo stan­dard, o "animal de rebanho".

A terceira diferença entre o senhor e o escravo será essencial. No escravo, a ausência de disciplina dos ins­tintos acarreta uma perturbação daquilo que assegura o controle das reações. Enquanto a verdadeira reação é a ação, o decadente não responde às solicitações externas, não reage mais. O decadente é dominado por sua memó­ria - esta faculdade produzida pelo processo civiliza-

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dor. Em vez de ajustar suas reações aos estímulos reais, sua consciência rumina as recordações, não mais barradas pela proteção do esquecimento. Agora entra em cena o ressentimento: sente-se, mas não se age. Para o fraco, a realidade não é aquilo que provoca a sua vontade, ela é apenas o que tortura sua sensibilidade. Decadência e res­sentimento convergem: o decadente é aquele para quem as impressões do exterior são recebidas como choques que provocam o sofrimento. Tal é a ótica da decadência: a rea­lidade é fonte de sofrimentos. "Não se sabe nada recha­çar, de nada se desvencilhar, de nada dar conta - tudo fere. A proximidade de homem e coisa molesta, as vivências calam fundo demais, a lembrança é uma ferida supuran-te . " 9 Agora o decadente precisará de ópios - como o ro­mantismo ou a música wagneriana -, já que para ele a existência só se coloca como problema em termos de dor e de prazer. Se a vida é ressentida como causa de males, o decadente vai aspirar então a um estado em que não se sofreria mais. Seu discurso será mais ou menos assim: "O mundo é algo que racionalmente não deveria existir, visto que ele causa, ao sujeito que sente, mais dor do que prazer." Agora, imbuído deste seu "sentimento do mun­do", o decadente vai precisar de proteção, cuidado e con­solo. Será preciso eliminar tudo o que obrigaria o ego a afir­mar-se em sua singularidade irredutível, o que traria o ris­co de atrair sobre ele a hostilidade do grupo. É então que nasce o altruísmo; o eu renuncia ao seu egoísmo natural, o que ele faz facilmente, já que perdeu até mesmo o sen­tido daquilo que é o próprio ego. E doravante ele buscará na "comunidade social" quais deverão ser seus valores e seus fins. Por isso, é a própria decadência que se expri-

9. Nietzsche, "Por que sou tão sábio?", Ecce homo, § 6, cit., p. 30.

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me na apologia daquelas virtudes mentirosas, tais como Nietzsche as descreve na Genealogia da moral: a impotên­cia mascarada em "bondade", a baixeza em "humildade", a submissão em "obediência", o desejo de vingança masca­rado em reivindicação de "justiça", o temor em "altruís­mo" 1 0 . Sob as diversas grandes palavras, o que se exprime, na verdade, é a mesma astenia da vontade, a mesma apreciação da realidade como algo do qual se ressente, a mesma recusa.

III

Detenhamo-nos um pouco nesta idéia de que o de­cadente é essencialmente um reativo, alguém para quem a verdadeira reação, a ação, está excluída, e que apenas ressente-se do mundo, sofre com a realidade; é alguém para quem a existência está ligada a um desprazer. Na Genealogia da moral, é antes de tudo este decadente que, fazendo sua aparição sob a figura do "escravo", vai com­portar-se de um modo bem determinado ao defrontar-se com o "nobre" , com o homem de linhagem homérica, quer dizer, alguém para quem o comércio com a realida­de significa sempre a superação de si, através de uma vi­tória sempre renovada sobre as forças hostis do mundo. Ele traduzirá sua vontade em vontade de vingança, em vontade que busca culpados. E que em todas as partes onde há insucesso, garante Nietzsche, "busca-se a culpa, pois o insucesso traz consigo um descontentamento, con­tra o qual se emprega involuntariamente o único remédio: uma nova excitação do sentimento de potência - e essa

10. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 6, cit., p. 45.

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excitação se encontra na condenação do culpável" 1 1. Ao medir-se com os fortes, a desigualdade das condições e dos talentos parecerá ao fraco um escândalo, e ele se porá em busca dos culpáveis por semelhante injustiça. Esta será a astúcia do ego doentio: ele escolherá dominar indi­retamente seus instintos caóticos, colocando-os sob o jugo da vontade de vingança. Uma meta artificial é atribuída aos instintos, que agora vão poder descarregar-se no ex­terior, em vez de lutarem entre si. Mas o que significa essa vontade de vingança? Ela vai representar uma tentativa de inverter a situação, já que ela vai oferecer, ao ego decaden­te, a chance de flertar com o universo dos senhores, a chance de dominar, subjugar e triunfar. Aqui, a paixão não se traveste em ação, a vingança é essencialmente reativa, mas ela tomará da ação a sua maquiagem. O decadente quer os signos exteriores da potência, não a verdade do domínio. Para o decadente, afirmar seu ego será, antes de tudo, descobrir o meio de fazer com que os outros sofram. "O homem vê em tudo mal-estar, em toda calamidade do acaso, algo pelo qual é preciso fazer sofrer algum outro, não importa quem - é assim que ele se presta contas da potência que lhe resta ainda, e isso o consola." 1 2 E, se é assim, o que é, para Nietzsche, a vontade de vingança? Ela é o grau mais baixo da vontade de potência, ela é esta von­tade no estágio da doença. E já em suas análises sobre a disputa no mundo homérico Nietzsche apresentava a crueldade, através do exemplo de Alexandre, como sendo o exercício da potência sob a figura da decadência.

E o que falta para o fraco exercer a sua vontade de vin­gança? "Do que acreditais que ele precisa, que ele tenha absoluta necessidade para conservar frente a si mesmo

11. Nietzsche, Aurora, § 140, KSA, vol. 3, p. 132. 12. Nietzsche, Aurora, § 15, KSA, vol. 3, p. 28.

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uma aparência de superioridade sobre espíritos mais for­tes que o seu, para se dar, pelo menos na imaginação, a voluptuosidade da vingança saciada? Da moralidade, sem­pre dela, pode-se colocar a mão no fogo, ele precisa das grandes palavras da moral, da grande caixa da justiça, da sabedoria, da santidade, da virtude." 1 3 Sendo assim, o que é, propriamente falando, a moral? "O instinto de deca­dência; são os homens esgotados e deserdados que des­sa maneira se vingam e se comportam como senhores. É o instinto da decadência sob a forma da vontade de po­tência. Visão de conjunto: os valores estimados até o pre­sente como superiores são um caso particular da vontade de potência." 1 4 A moral será a ideologia legitimadora da vontade de vingança. Oferecendo-lhe a noção de "justi­ça" - aquela noção, dirá Nietzsche, que agrupa em torno de si todas as "tarântulas do igualitarismo" - sob o pretex­to de reivindicar a igualdade, agora os fracos se vingarão dos senhores, lançando o descrédito sobre todas as virtu­des aristocráticas. Sob o discurso manifesto que reivindica a justiça, há o discurso latente que quer a vingança contra todos os que não são iguais. E, desde então, a "virtude" consistirá em querer a igualdade para todos, ou seja, será perseguir e vingar-se de todos os que detêm a potência. "Eu sou justo", diz o decadente. Traduza-se, dirá Zaratus­tra: "eu estou vingado" 1 5 . E para que sua reprovação e condenação ganhem então seu máximo direito de cida­dania e sua legitimidade última, o decadente vai inventar a hipóstase de um mundo diferente do mundo dado, em função do qual a afirmação da vida seja vista como algo

13. Nietzsche, A gaia ciência, § 359, KSA, vol. 3, p. 606. 14. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[137], KSA, vol. 13, p. 321. 15. Nietzsche, "Dos virtuosos", Assim falou Zaratustra, Obras in­

completas, cit, p. 236.

Exemplo de valores mascarados pelo discurso manifesto.
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em si reprovável. Nascerá o platonismo como imensa es­tratégia justificadora. Para poder dizer não a tudo que re­presenta o movimento ascendente da vida, diz Nietzsche, "o instinto de ressentimento, tornado gênio, inventou-se um outro mundo, um outro mundo a partir do qual essa afirmação da vida pudesse nos aparecer como o mal, como algo em si reprovável" 1 6.

Na Genealogia da moral, o ideal ascético era apresen­tado por Nietzsche como negação do mundo e hostilida­de aos sentidos - e por isso mesmo ele era o a priori co­mum ao sacerdote e ao filósofo. Com o ideal ascético, se colocava a vida em relação a uma existência inteiramen­te diversa, à qual ela se opunha, a menos que essa vida se voltasse contra si mesma, se negasse enquanto vida e as­sumisse a forma de uma vida ascética, vista então como ponte para outra existência. E Nietzsche insistia em que essa contradição de uma vida contra a vida era apenas apa­rente, já que havia ali um interesse da própria vida. Na verdade, o ideal ascético tem sua fonte no instinto de de­fesa de uma vida que degenera e luta por sua própria exis­tência. E a vida dos ressentidos, dos que sofrem com a existência, que é salva pelo ideal ascético. Se o problema do homem não é o sofrimento, mas a falta de "sentido" do sofrer, o ideal ascético lhe oferecia esse sentido, lhe dava uma "interpretação". E se essa interpretação trouxe um novo sofrimento, ainda mais danoso à vida, apesar de tudo o homem estava salvo, ele não era mais personagem de teatro do absurdo, tinha "sentido". Este - garante Nietzsche - foi o único sentido que o homem teve até hoje, mas qualquer sentido é melhor do que nenhum. E por quê? Porque agora o homem podia querer algo, a sua vontade estava salva. O ódio à vida veiculado pelo ideal

16. Nietzsche, O Anticristo, § 24, KSA, vol. 6, p. 192.

O ideal ascético dava UM sentido ao sofrimento.
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ascético, "esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio - tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontadel... E... o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer..."17. O que sig­nifica isso? Que o ideal ascético, oferecendo o único "sen­tido" que o homem teve até hoje, era aquilo que fechava as portas ao "niilismo". Mas, se é assim, qual a relação que Nietzsche estabelece entre decadência e niilismo? "O nii­lismo não é uma causa, mas somente a lógica da déca-dence."18 Isso nos reconduz ao nosso ponto de partida, o "niilismo europeu". Este produto final da Europa já estava inscrito em surdina no seu começo, e apenas neutraliza­do pela "interpretação" que atribuía um sentido ao sofri­mento - mas jamais desenraizava a idéia de que o mun­do é causa de sofrimentos, de que a existência é ruim. Com a morte de Deus e a desvalorização dos valores, a vida que se experimenta como sofrimento perde o "sen­tido" que lhe edulcorava a feição: a decadência reaparece nua e crua, sem a glosa interpretadora que tornava a vida tolerável.

IV

Em Nietzsche et la philosophie, Deleuze resenha os dois sentidos fundamentais da noção nietzschiana de "niilis-

17. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 28, cit., pp. 184-5. 18. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[86], KSA, vol. 13, p. 264.

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m o " 1 9 . Em primeiro lugar, o niilismo significa a negação e a depreciação da vida, que adquire valor de nada, de mera aparência, por oposição a um "verdadeiro mundo" de va­lores superiores, em função dos quais esta vida é desvalo­rizada. Em segundo lugar, o niilismo designa a desvalori­zação dos próprios valores supremos, a negação de sua existência e validade. Neste segundo sentido de niilismo, não se trata mais de desvalorizar a vida em nome dos va­lores supremos, mas de negar esses próprios valores: ne­gação de Deus, da moral e da verdade. Esses dois sentidos de "niilismo" são contraditórios apenas na aparência e estão intimamente relacionados entre si. Na "História de um erro", que Nietzsche narra no Crepúsculo dos ídolos, os dois sentidos do niilismo são dois momentos de um mes­mo processo, dois extremos de um mesmo contínuo. O niilismo enquanto desvalorização da vida inaugura esta história com o nascimento do platonismo e a conseqüen­te negação do mundo aparente em função do "verdadeiro mundo". E o niilismo enquanto desvalorização dos valo­res é o quinto capítulo desta mesma história, quando o "verdadeiro" mundo finalmente se revela "uma Idéia que não é útil para mais nada, que não é mais nem sequer obrigatória - uma Idéia que se tornou inútil, supérflua, conseqüentemente uma Idéia refutada: expulsemo-la! (Dia claro; café da manhã; retorno do bon sens e da serenidade; rubor de vergonha em Platão; alarido dos demônios em todos os espíritos livres)"20. Aqui, a menção à serenidade não é gra­tuita: ela já figurava no título do aforismo de A gaia ciên­cia, em que Nietzsche relacionava a morte de Deus ao eclip-

19. Deleuze, G., Nietzsche et Ia philosophie, cit., pp. 169 ss. 20. Nietzsche, "Como o 'verdadeiro mundo' acabou por se tor­

nar em fábula", Crepúsculo dos ídolos, Obras incompletas, cit., p. 332.

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se iminente da moral européia 2 1 . Assim, no processo descrito na "História de um erro", é a primeira figura do niilismo, a desvalorização da vida em nome de valores su­periores, que deságua na segunda figura do niilismo, que é sua negação aparente: a desvalorização desses próprios valores. Portanto, é um mesmo processo unitário que nas­ce com o "verdadeiro mundo" e termina com sua morte, é um só curso histórico que leva do niilismo, enquanto des­valorização da vida pelos valores supremos, ao niilismo como desvalorização desses próprios valores. Como en­tender essa passagem do pró ao contra?

O que explica o advento do niilismo enquanto desva­lorização dos valores, e por que a sua irrupção é necessária? É um erro - garante Nietzsche - considerar como causas do niilismo a miséria social, a degeneração fisiológica ou a corrupção. Nada disso tem poder suficiente para pro­duzir o niilismo, para promover a desvalorização dos va­lores. Afinal, miséria social, degeneração fisiológica ou cor­rupção são coisas que permitem múltiplas interpretações22. Na verdade, o niilismo é a "conseqüência lógica" de nos­sos próprios valores e ideais, é o próprio cristianismo que leva à supressão do cristianismo2 3. Com essa tese, Nietz­sche reata com um dos cacoetes intelectuais mais caros ao século XTX e, sem dúvida, paga o seu tributo a ele: as coi­sas vão ao fundo por si mesmas, não por qualquer causa exterior. Para Marx, o capitalismo também caminhava para a dissolução graças às suas contradições internas, não por alguma influência exógena. É essa idéia que Nietzsche

21. Nietzsche, A gaia ciência, % 343, Obras incompletas, cit., p. 211. 22. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[27], KSA, vol. 12, p. 125,

Obras incompletas, cit., p. 379. 23. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[412], KSA, vol. 13, p. 190.

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reabsorve em sua filosofia da vontade de potência. "Todas as grandes coisas perecem por obra de si mesmas, por um ato de auto-supressão: assim quer a lei da vida, a lei da ne­cessária 'auto-superação' que há na essência da própria vida." 2 4 Esta autofagia do cristianismo se dá por etapas e corresponde a um declínio do princípio do dever em be­nefício do princípio do querer. O que resta após o fim da fé cristã, que comandava ao homem o que ele devia fazer, é apenas um "eu quero"; mas este resto é o seu momen­to nuclear, já que o cristianismo nasceu graças a uma as-tenia da vontade, uma necessidade de apoio por parte dos que não podem comandar, mas só obedecer. Por isso, nes­ta autodestruição do cristianismo caminha-se do niilismo imperfeito ao niilismo perfeito.

Em primeiro lugar, o cristianismo como dogma pere­ce por obra e graça da própria moral cristã 2 5. E a vontade de verdade, a veracidade cristã que proíbe a mentira da crença em Deus. Afinal, o que é, para Nietzsche, a "von­tade de verdade"? Um fenômeno essencialmente moral, já que ela se reduz, no fundo, à vontade de não enganar nem sequer a si mesmo 2 6 . Assim, o que triunfou sobre o Deus cristão foi a própria moralidade cristã, "o conceito de veracidade, tomado cada vez mais rigorosamente, o re­finamento de confessores da consciência cristã, traduzido e sublimado em consciência científica, em asseio intelec­tual a qualquer preço" 2 7 . É a veracidade cristã, exponen-ciada em consciência científica, que agora proíbe ver a na­tureza como prova da bondade de Deus, ou interpretar a

24. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 27, cit., p. 183. 25. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 27, cit., p. 183. 26. Nietzsche, A gaia ciência, % 344, Obras incompletas, cit., p. 213. 27. Nietzsche, A gaia ciência, % 357, Obras incompletas, cit., p. 219.

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história como o desdobramento de uma teleologia éti­ca. Este momento é aquele do positivismo ou do ateísmo científico do século XIX. Mas esta consciência científica ainda não está inteiramente desvinculada do cristianismo, ela é apenas um niilismo imperfeito. Afinal, a ciência não é antagonista do ideal ascético, pelo contrário. Se ela o com­bate, é apenas em seus adereços exteriores, como o dog­matismo. A consciência científica permanece cativa da vontade de verdade, mas este resto do ideal é justamente o seu âmago, é fé em um valor metafísico da verdade, e por isso o "verídico", tal como o pressupõe a crença na ciên­cia, afirma outro mundo que não o da vida, da nature­za e da história, e com isso nega o mundo dado. Este antimetafísico, anticristão e ateu apenas prolonga a cren­ça cristã e platônica de que a verdade é divina 2 8. Por isso, o último ato da comédia cristã só acontecerá quando a veracidade tirar a "sua mais forte conclusão, aquela contra si mesma; mas isso ocorre quando coloca a questão: 'que significa toda vontade de verdade?'... Nesta gradual cons­ciência de si da verdade - disso não há dúvida - perecerá doravante a moral" 2 9 . Agora se concluirá que nada é verda­deiro, tudo é permitido, a fé na própria verdade é abando­nada e surge a autêntica liberdade de espírito, quando o dever que ainda restava em relação à verdade dá lugar ao puro querer. E o nascimento do niilismo perfeito.

O que ressurge do niilismo enquanto desvalorização dos valores é o niilismo como desvalorização da vida. O último niilista, o niilista perfeito, sabe que o cristianismo morreu, mas ainda vive sob o signo de uma exigência cris­tã. Na negação dos valores, na consciência de que a exis-

28. Nietzsche, A gaia ciência, § 344, Obras incompletas, cit., p. 213. 29. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 27, cit., p. 183.

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tência não tem sentido, ele mantém sobre si a sombra de Deus como a experiência de uma ausência - prova de que a morte de Deus ainda não foi efetivamente completada, visto que ainda se necessita dele. O último niilista superou o cristianismo, mas não a exigência que lhe dera origem: o sentimento de que a vida não vale a pena, de que o mun­do, tal como deveria ser, não existe, e de que o mundo existente não deveria ser. Como os valores que davam sentido ao sofrimento se desvalorizaram, a vida retorna nua e crua como ausência de sentido da dor, niilismo como desvalorização da vida. Sócrates e Schopenhauer são os símbolos do início e do fim deste movimento, que vai da decadência edulcorada à decadência que perdeu a ideo­logia que lhe atribuía um "sentido", e se revela como nii­lismo completo. Sócrates, dirá Nietzsche, o mais sábio de todos os charlatães, apresenta apenas uma questão de fundo: para ele a vida era uma enfermidade de que pade­ceu 3 0 . Era essa apreciação da vida como uma doença, como fonte de males, que estava na origem de todas as suas elucubrações. No pessimismo filosófico do século XIX, é esta mesma experiência da vida como enfermidade que se apresenta, agora, como experiência que não poderá mais ser interpretada e justificada.

Donde a correlação estrita que Nietzsche estabelece­rá entre os dois sentidos do "niilismo", a desvalorização dos valores e a desvalorização da vida, ao analisar as três figuras em que surge o niilismo como "estado psicológi­c o " 3 1 . É a desvalorização dos valores que acarreta a des­valorização da vida. Assim, quando surge a consciência de

30. Nietzsche, A gaia ciência, § 340, Obras incompletas, cit., p. 208. 31. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [99], KSA, vol. 13, p. 46,

Obras incompletas, cit., p. 381.

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que no vir-a-ser nenhuma meta se realiza, se a categoria "fim" revela-se inaplicável e se desvaloriza, o niilismo en­quanto estado psicológico é o tormento do "em vão". Com o reconhecimento de que não há qualquer todo unitário sob o acontecer, com a desvalorização da categoria "uni­dade", o niilismo como estado psicológico é a perda da crença do homem no seu valor, já que ele concebera esse todo unitário para poder acreditar em seu próprio valor. Enfim, quando a descrença em um mundo metafísico proí­be a crença em um "verdadeiro mundo", quando a cate­goria "ser" se desvaloriza e se tem de admitir o vir-a-ser como única realidade, o niilismo enquanto estado psico­lógico é não suportar este mundo do vir-a-ser, que toda­via não se pode mais negar. A desvalorização dos valores, no caso, o fim da crença nas "categorias da razão", é a causa do niilismo, visto que "as categorias 'fim', 'unidade', 'ser', com as quais tínhamos imposto ao mundo um va­lor, foram outra vez retiradas por nós - e agora o mundo parece sem valor..."32.

O essencial está menos na desvalorização dos valo­res e mais naquilo que ela acarreta, o niilismo enquanto desvalorização da vida. E isso porque, profundamente, Nietzsche se pensa como quem nos propõe uma "filosofia da existência", não uma filosofia do conhecimento ou uma filosofia da ação. Donde o sumo ridículo desta espécie de escroquerie intelectual que procura extorquir, de seus tex­tos, uma "teoria do conhecimento" ou uma doutrina da "praxis", coisas com as quais ele se preocupou tanto quan­to Espinosa com o marketing do MacDonald's. A tarefa da filosofia é recuperar um certo modo de situar-se diante

32. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [99], KSA, vol. 13, p. 46, Obras incompletas, cit., p. 381.

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da existência: enquanto a décadence se resume em um não dirigido à vida, para Nietzsche a sua filosofia "quer, em vez disso, atravessar até ao inverso - até a um dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção" 3 3 . É para exprimir essa nova atitude diante da existência que Nietzsche recorrerá à fórmula amorfati. A filosofia assim concebida implica compreender os lados da existência até agora negados não só como necessários, mas também como desejáveis: estes são os lados da exis­tência mais poderosos, mais verdadeiros, mais fecundos, aqueles em que a vontade da existência se exprime mais claramente. Esta filosofia também deverá investigar de onde provém a valoração dos lados da existência até hoje afirmados e como essa valoração não é exigida para uma medição de valor dionisíaca: é nessa valoração que se ex­prime o instinto dos que sofrem, o instinto de rebanho da maioria contra as exceções. Donde o significado que se deve atribuir aos conceitos de "nobre", "clássico", "pa-gão": eles designam seres superiores que se situam para além de bem e mal, quer dizer, para além dos valores que se originam no sofrer, no rebanho, na maioria 3 4 . Por isso Nietzsche oporá Dioniso ao Crucificado como dois tipos de homem religioso, dois modos muito distintos de con­vivência com o sofrimento, de sentido do sofrer. Em um caso, o culto pagão como afirmação religiosa da vida, da vida inteira, não negada e pela metade, o espírito bem su­cedido que acolhe e redime em si as contradições e pro­blemas da existência, o homem trágico que é forte e pleno o bastante para afirmar o mais acerbo sofrer. No outro

33. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 16[32], KSA, vol. 13, p. 492, Obras incompletas, cit., p. 393.

34. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 16[32], KSA, vol. 13, p. 492, Obras incompletas, cit., p. 393.

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caso, ao contrário, o sofrer, "o 'crucificado como inocente', vale como objeção contra esta vida, como fórmula de sua condenação" 3 5 .

Recuperar o estilo dionisíaco diante da existência será equivalente a desenraizar a apreensão da vida como algo condenável, aquilo mesmo que fazia do decadente alguém inclinado ao cristianismo. Era esta mesma apreensão que estava na origem de toda ética, enquanto ela é uma dou­trina do desejável que insiste em pregar que "deveria ser de outra maneira", deveria "chegar a ser de outra manei­ra", o que só exprime o descontentamento com a realida­de. Assim como era esta apreensão da vida que estava na origem daquele construto intelectual ao qual se deu o nome de "filosofia". Por isso Nietzsche dirá que "a histó­ria da filosofia é uma raiva secreta contra as condições da vida, contra os sentimentos de valor da vida, contra a de­cisão a favor da vida" 3 6 . As fabulações do "verdadeiro mundo" só exprimem esta birra com o mundo efetivo e, enquanto "escola da calúnia", a filosofia impôs de tal for­ma a sua pedagogia, que até mesmo a nova ciência, que se fazia passar por intérprete da vida, aceitou sem mais a calúnia originária, e manipula o mundo como se ele não fosse mais que aparência. O homem busca um "verdadei­ro mundo" onde não se padeça da contradição, da ilusão e da mudança - causas do sofrimento. Mas por que é pre­cisamente o sofrimento que ele deriva da mudança, da ilusão, da contradição? Por que ele não deriva dali a sua felicidade? Se pudesse fazê-lo, o niilismo estaria supera­do. Mas foi o contrário que aconteceu, a vontade do ver­dadeiro foi traduzida em vontade do permanente, ela foi

35. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[89], KSA, vol. 13, p. 265, Obras incompletas, cit., p. 394.

36. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[134], KSA, vol. 13, p. 317.

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o desejo de um mundo onde tudo fosse duradouro, um mundo cujo caminho fosse traçado pela razão, não pelos sentidos, sempre enganadores. Compreendeu-se que a felicidade só podia estar garantida pelo que é: a mudança e a felicidade se excluiriam reciprocamente, e desde logo a ambição a mais alta foi conseguir a identificação com o "ser". Por isso, a crença dos filósofos no "ser" foi uma conseqüência, algo de derivado em face de uma convic­ção prévia: a desconfiança diante do vir-a-ser, oriunda da apreciação de que dali só se deriva o sofrimento, a apreciação mesma da "decadência". Mas agora que Deus morreu, que a veracidade cristã tirou a sua mais forte con­clusão, aquela contra si mesma, agora que os "verdadeiros mundos" se inscreveram na história de um erro, não se terminou ainda com a apreciação da vida que tornava o cristianismo um ópio necessário aos sofredores. O niilista é na verdade um cristão infeliz, alguém para quem o mun­do, tal como deveria ser, não existe, e o mundo, tal como existe, não deveria ser. Se o niilismo vem à tona neste momento, não é porque o desgosto com a existência seja maior hoje em dia do que outrora, mas porque surgiu uma suspeita em relação ao "sentido" do mal e da existência. "Uma interpretação sucumbiu: mas, porque ela valia como a interpretação, parece como se não houvesse nenhum sentido na existência, como se tudo fosse em vão."3,7

V

Quem vos fala - diz Nietzsche - é "o primeiro nii­lista perfeito da Europa, mas que já superou o niilis-

37. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5[71], KSA, vol. 12, p. 211, Obras incompletas, cit., p. 383.

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m o " 3 8 . Superar o niilismo não será, de forma alguma, ree­ditar um novo platonismo, voltar a vestir a velha casaca de professor da meta da existência e redescobrir outro sentido para a vida. A superação do niilismo será um as­sunto interior ao próprio niilismo. O que se trata de fa­zer é pôr fim à associação entre o vir-a-ser e o sofrimen­to, aquilo mesmo que levava à condenação do mundo e dava origem ao cristianismo, à moral e à filosofia. Era isso que facultava a culpabilização, o ressentimento e a von­tade de vingança. Superar o niilismo será substituir a ne­gação e condenação do mundo pela sua afirmação. Como empreender essa superação? Essencialmente, exercitan-do-se em uma nova "perspectiva". O importante é ad­quirir "uma elevação e uma perspectiva de observação tal que se compreenda que tudo caminha como deve cami­nhar; que toda espécie de 'imperfeição' e os sofrimentos que esta produz fazem parte das coisas que mais se deve desejar" 3 9 . Aqui Nietzsche estabelece uma relação de pre­missa a conseqüência: se tudo caminha como deve ca­minhar, quer dizer, se existe coincidência estrita entre ser e dever-ser, então desejar será sempre desejar o que é, mesmo a imperfeição e o sofrimento. Esta nova perspec­tiva em que termina toda e qualquer distância entre ser e dever-ser será uma certa interpretação do vir-a-ser, ago­ra deliberadamente despojado de todo e qualquer finalis-mo. Afinal, se o vir-a-ser fosse interpretado, na linguagem finalista, como a realização progressiva de alguma meta, o presente seria medido por um ideal futuro que deveria ser mas ainda não é, e voltaria a cisão entre ser e dever-ser. Essa nova perspectiva sobre o vir-a-ser é oriunda do nii-

38. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[411], KSA, vol. 13, p. 189. 39. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[30], KSA, vol. 13, p. 17.

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lismo como desvalorização dos valores, consciência da inaplicabilidade da categoria "fim". E ela não deverá mais admitir qualquer nostalgia de niilista fraco por uma nova finalidade, que viesse substituir aquela que decepcionou. "A pergunta do niilismo, 'para quê?', vem do hábito que houve até agora, em virtude do qual o alvo parecia posto, dado, exigido de fora - ou seja, por alguma autoridade so­bre-humana. Depois que se desaprendeu de acreditar nes­ta, procurou-se no entanto, segundo o velho hábito, por uma outra autoridade, que soubesse falar incondicionalmen­te e pudesse comandar alvos e tarefas. A autoridade da cons­ciência entra agora em primeira linha (quanto mais eman­cipada da teologia, mais imperativa se torna a moral), como indenização por uma autoridade pessoal. Ou a autoridade da razão. Ou o instinto social (o rebanho). Ou a história do­tada de um instinto imanente tendo seu alvo em si, e à qual é possível abandonar-se."40 Se o niilista consumado abandona não só o finalismo teológico, como também to­das as suas metamorfoses no finalismo moral, social ou histórico, é porque ele não formulará mais a própria per­gunta que ainda atormentava a consciência do niilista fra­co e indicava o quanto ele ainda não se libertara das úl­timas sombras do Deus morto. O niilista consumado não perguntará mais "para quê?" - precisamente a tópica que, uma vez formulada, nos reinscrevia na órbita da tradição, da decadência, da fraqueza.

Essa recusa radical do finalismo terá uma conseqüên­cia relativa ao valor do mundo. Agora não haverá mais qualquer meta ideal em função da qual se possa medir o valor do presente, segundo sua proximidade ou distância

40. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[43], KSA, vol. 12, p. 355, Obras incompletas, cit., p. 382.

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em relação a um fim a ser realizado. Se o vir-a-ser deve ser compreendido sem se recorrer a intenções finais, então ele "deve aparecer justificado em todo momento (ou en­tão deve aparecer não valorável: o que nos leva à mesma conclusão); não podemos de modo algum justificar o pre­sente por um futuro ou o passado com o presente" 4 1 . Se cada momento do vir-a-ser está justificado, visto que ali não se explicita nenhuma meta, então todos os momen­tos do vir-a-ser têm igual valor, e a soma de seu valor per­manece sempre igual. Isso significa reconhecer que o vir-a-ser não tem nenhum valor, porque falta algo com o qual se possa medir e em relação ao qual a palavra "valor" te­nha sentido. Em outros termos, o valor completo do mun­do não é nada de valorável, e por isso mesmo o "pessi­mismo filosófico" não passa de comédia. Mas daqui de­corre outra conseqüência. Será preciso renunciar à ma­nia de julgar a história, de despojá-la de sua fatalidade, de torná-la responsável. "Nós, que queremos devolver ao vir-a-ser a sua inocência, queremos ser os apóstolos de uma idéia mais pura: a de que ninguém deu suas qualida­des ao homem, nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais, nem seus antepassados, nem ele mesmo; que nin­guém tem culpa disso... Não existe um ser ao qual tornar responsável de que outro ser exista, de que um indivíduo esteja conformado de determinado modo, de que tenha nascido em tal ou qual situação ou ambiente. E é um gran­de consolo que falte semelhante ser.. ." 4 2 Como é a von­tade de vingança que procura os culpáveis, os responsá­veis, é a ela que se precisa renunciar na nova perspectiva sobre o vir-a-ser, que representará o fim dos culpáveis, do ressentimento e da própria vontade de vingança. Reuna-

41. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [72], KSA, vol. 13, p. 34. 42. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 15[30], KSA, vol. 13, p. 422.

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mos as características exigidas por esta nova compreen­são do vir-a-ser: recusa do finalismo; impossibilidade de valorar o todo; fim da vontade de vingança. Para Nietz­sche, apenas um modo de se pensar o vir-a-ser reúne em si estas três condições: é compreender o vir-a-ser sob a forma do eterno retorno do mesmo.

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CAPÍTULO XI SUPERAR O NIILISMO

I

Como observava Karl Lõwith, a doutrina nietzschiana do eterno retorno tem duas faces, uma cosmológica e ou­tra antropológica1. Ou, antes, ela é uma doutrina cosmoló­gica que terá conseqüências antropológicas, na medida em que sua admissão trará reflexos para a existência humana. E essa duplicidade que está na origem das distintas apre­sentações, por Nietzsche, do estatuto da doutrina, aparen­temente conflitantes entre si. Assim, em alguns fragmen­tos póstumos ela é apresentada como "a mais científica de todas as hipóteses possíveis" 2. O que aponta para uma doutrina que pelo menos flerta com a ciência, ou partilha daquilo que, para Nietzsche, é o espírito científico; e ela vai ser elaborada a partir de conceitos tomados de em­préstimo à física - como o conceito de "força" - e será de-liberadamente apresentada como uma alternativa à com-

1. Lõwith, K., Nietzsche's Philosophie..., cit., III, cap. 2, § 3. 2. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5[71], KSA, vol. 12, p. 211,

Obras incompletas, cit., p. 383.

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preensão mecânica do universo. Mas em flagrante con­traste com esse recorte "cientificista", em outros textos Nietzsche afirma que só terá direito à idéia do retorno quem já tiver atravessado todos os graus do ceticismo. E ele apresentará a sua doutrina como a religião das almas livres, serenas e sublimes. E guardemo-nos - diz Nietz­sche - "de ensinar um tal ensinamento como uma súbita religião! Ele tem de embeber lentamente, gerações intei­ras têm de edificar nele e nele tornar-se fecundas..." 3 A mais científica das hipóteses e a religião das almas livres? Antes de verificar se esta dupla apresentação do estatuto da doutrina envolve ou não uma aporia, vale a pena cons­tatar que ela decorre de sua duplicidade original. Da mes­ma forma, é esta dupla face cosmológica e antropológica que Nietzsche sublinha quando apresenta o pensamento do eterno retorno como sendo a união dos dois mais im­portantes pontos de vista filosóficos descobertos pelos ale­mães, o do vir-a-ser e o do valor da existência4.

Mas para compreender a doutrina do retorno com suas duas faces e verificar ainda a sua própria condição de possibilidade, é preciso levar em conta que ela é, para Nietzsche, um pensamento que só pode ser formulado após o advento do niilismo e, por assim dizer, em seu bojo. A doutrina só se sustenta sob o horizonte da morte de Deus, ela só recebe seu direito de cidadania em um uni­verso inteiramente desdivinizado, sendo uma conseqüên­cia da consideração de um mundo para o qual Deus mor­reu. A superação do niilismo não será a descoberta de qualquer horizonte extraniilista, mas a transição daquilo que Nietzsche chama de "niilismo fraco" para o "niilismo

3. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [158], KSA, vol. 9, p. 503, Obras incompletas, cit., p. 390.

4. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 24 [7], KSA, vol. 10, p. 646.

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forte". Por isso ele apresentará a doutrina do eterno re­torno como "a mais extrema forma do niilismo: o nada (o 'sem sentido') eterno!" 5 . Essa dependência do eterno re­torno ao ateísmo é expressamente assumida por Nietzsche em textos nos quais ele apresenta, como alternativas mu­tuamente exclusivas, ou Deus ou o eterno retorno. "Quem não acredita em um processo circular do todo tem de acre­ditar no Deus voluntário - assim minha consideração se condiciona na oposição a todas as considerações teístas que houve até agora." 6 Será essencial nunca perder de vista que, para Nietzsche, a doutrina do retorno se consti­tui por oposição às hipóteses teístas. Porque é exatamente essa oposição que vai definir o estilo argumentativo que Nietzsche utilizará para estabelecer sua doutrina. Os ar­gumentos que "demonstram" o eterno retorno serão es­sencialmente negativos: o filósofo considerará uma tese legitimada porque a tese contrária implicaria alguma hi­pótese teológica. Desde então, é exclusivamente a idéia de que o eterno retorno se condiciona na oposição a todas as considerações teístas que estará, no limite, legitimando a doutrina. E isso fica claro no modo como Nietzsche cons­trói a doutrina do retorno em sua faceta cosmológica, co­mo a "mais científica das hipóteses".

II

A afirmação de que "tudo retorna" é a resultante do entrelaçamento entre duas teses principais, dois princí-

5. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5 [71], KSA, vol. 12, p. 211, Obras incompletas, cit., p. 383.

6. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [312], KSA, vol. 9, p. 561, Obras incompletas, cit., p. 388.

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pios: 1) o tempo é infinito; 2) as forças são finitas. Uma vez admitidas essas teses, delas decorrerá que "tudo re­torna". Mas para a admissão desses dois princípios, jus­tamente, não se apresentará nenhuma prova positiva: se eles são legitimados por Nietzsche, é apenas porque as teses contrárias implicariam hipóteses teístas. E é isso que se pode verificar nos textos que Nietzsche dedica ao tempo, ao anunciar a sua nova concepção do mundo. "O mundo subsiste; não é nada que vem a ser, nada que pe­rece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou de perecer - conserva-se em am­bos. . . " 7 O que se recusa nessa nova concepção de um mundo que nunca começou a vir a ser é a noção clássica de "criação". A hipótese de um mundo criado, diz Nietzsche, não deve afligir-nos nem por um instante. "O conceito 'criar' é hoje perfeitamente indefinível, inexeqüível; me­ramente uma palavra ainda, rudimentar, dos tempos da superstição." 8 A palavra "criação" nos reporta apenas ao período cristão da humanidade, mas hoje em dia, em regime de niilismo, ela não pode servir para mais nada. Se Deus morreu, a idéia de um universo criado deve ser guardada na galeria dos preconceitos. Mas a recusa da noção de criação é, imediatamente, a admissão de que o tempo é infinito, pois somente sob o horizonte criacionis-ta tem cabimento falar em um começo do tempo. Se em regime de niilismo Deus está morto, junto com ele foram enterradas as idéias de criação e de tempo finito; se o uni­verso não foi criado, então há uma infinidade temporal do

7. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[188], KSA, vol. 13, p. 374, Obras incompletas, cit., p. 396.

8. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[188], KSA, vol. 13, p. 374, Obras incompletas, cit., p. 396.

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mundo para trás, e deve-se conceber como legítima a idéia de um regressus in infinitum. É bem verdade, diz Nietz­sche, que recentemente ainda se fez uma última tentativa de conceber um mundo que começa, através de um pro­cedimento lógico - e sempre com uma segunda intenção teológica. Simplesmente, tentou-se encontrar uma con­tradição no conceito de regresso ao infinito. Mas a supos­ta contradição é puramente ilusória: afinal, nada nos im­pede de calcular, de um instante dado para trás, e dizer que nunca se chegará ao fim; assim como nada impede de calcular, do mesmo instante para a frente, ao infinito. Se Dühring enxerga uma contradição no regresso ao in­finito, é ao preço de equipará-lo, fraudulentamente, a um progressus finito, e de considerar a direção do tempo, para a frente ou para trás, como logicamente indiferente. To­mando o regresso ao infinito por um progresso finito, Dühring já teologiza, já concebe o tempo como finito e o mundo como tendo um começo. Mas, se Deus morreu, e com ele a idéia de um começo do mundo, é forçoso com­preender o tempo como infinito. Donde a aclimatação do primeiro princípio da doutrina do retorno, pela recusa da tese contrária, contaminada pelo teísmo.

A justificação do segundo princípio, a tese da finitude das forças que se desdobram no vir-a-ser, seguirá a mes­ma estratégia. Outrora, diz Nietzsche, "se pensava que a atividade infinita no tempo requer uma força infinita, que nenhum consumo esgotaria. Agora pensa-se a força cons­tantemente igual, e ela não precisa mais tornar-se infinita­mente grande"9. Por que houve esta mudança de perspec­tiva? Essencialmente, porque agora prevalece o espírito

9. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[269], KSA, vol. 9, p. 544, Obras incompletas, cit., p. 387.

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científico sobre o espírito religioso, fabulador de deuses. É o espírito científico que leva a conceber o mundo como uma força que não pode ser ilimitada. Era o deus cristão que os homens concebiam como uma força infinita. Hoje, em regime de morte de deus, o espírito religioso quer ain­da que o mundo, mesmo sem deus, herde seus atributos arcaicos e seja apto à divina força criadora, à infinita força de transmutação. "E sempre ainda a velha maneira reli­giosa de pensar e desejar, uma espécie de aspiração a acreditar que, em alguma coisa, o mundo é igual ao velho, querido, infinito deus ilimitadamente criador - que em al­guma coisa 'o velho deus vive ainda' -, aquela aspiração de Espinosa, que se exprime na palavra 'deus sive natura' (ele chegava mesmo a sentir: 'natura sive deus')."10 Mas com a exclusão do espírito religioso, será forçoso reconhe­cer que o mundo, como força, não pode ser concebido como ilimitado, e será preciso concluir que a noção de for­ça infinita é agora até mesmo incompatível com o concei­to de força. O mundo como força é uma quantidade finita. Finita e fixa. Pois, se as forças tendessem a aumentar, tería­mos de supor uma fonte das forças e voltaríamos à hipó­tese teológica; se elas tendessem a diminuir, como já trans­correu um tempo infinito, o mundo teria sucumbido 1 1 .

Da conjunção entre os dois princípios decorrerá que tudo já retornou infinitas vezes, o vir-a-ser comporta re­petições, já que agora o mundo perdeu a faculdade da eter­na novidade. Afinal, se as forças são finitas e se desdobram em um tempo infinito, a força é eternamente ativa "mas não pode mais criar infinitos casos, tem de se repetir: essa

10. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 36[15], KSA, vol. 11, p. 556, Obras incompletas, cit., p. 395.

11. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[148], KSA, vol. 9, p. 498, Obras incompletas, cit., p. 389.

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é a minha conclusão" 1 2 . Assim, já existiram muitos siste­mas de forças, mas não infinitos sistemas, pois isso supo­ria uma força indeterminada. Mas a medida da força total é determinada, ela não é infinita. Conseqüentemente, o número de combinações e situações dessa força também é determinado, não infinito. "Se todas as possibilidades na ordem e relação das forças já não estivessem esgota­das, não teria passado ainda nenhuma infinidade. Justa­mente porque isto tem de ser, não há mais nenhuma pos­sibilidade nova e é necessário que tudo já tenha estado aí, inúmeras vezes." 1 3 Sob esta "perspectiva", um vir-a-ser sempre novo ao infinito é uma contradição: ele suporia uma força que crescesse ao infinito. Mas de onde poderia sair essa força, senão do velho deus? Assim, quem aceita a legitimidade dos princípios antiteológicos da infinidade do tempo e da finidade das forças, terá de admitir um vir-a-ser que forçosamente perdeu a faculdade da eterna no­vidade, terá de admitir que tudo já se repetiu e já se repe­tiu infinitas vezes. Quem vive em regime de morte de deus precisa extrair esta última conseqüência: o vir-a-ser não é a produção do novo, mas o retorno do mesmo.

Com isso, já disporíamos de uma doutrina do eterno retorno? É evidente que não. Por enquanto, temos apenas uma teoria que faculta um vir-a-ser em que tudo já se re­petiu infinitas vezes, não uma doutrina do retorno eterno. Para isso, é preciso dar um passo a mais, visto que nada ainda proíbe que exista um fim do vir-a-ser. Para que o re­torno possa ser eterno, é esta possibilidade que é preciso

12. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [269], KSA, vol. 9, p. 544, Obras incompletas, cit., p. 387.

13. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[152], KSA, vol. 9, p. 500, Obras incompletas, cit., p. 387.

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anular, é preciso ter a certeza de que o vir-a-ser não ca­minha em direção a uma meta. Mas este novo passo não exigirá a introdução de qualquer novo princípio, ele será uma simples decorrência dos dois princípios da doutrina. Como se traduz, na linguagem das forças, a tese de que o vir-a-ser é regido por uma finalidade e caminha em dire­ção a uma meta? Ela se traduz na hipótese mecânica de Thompson, aquela segundo a qual o mundo das forças caminha em direção a um estado terminal, em que as forças entrariam em um estado de equilíbrio em que nada mais adviria, o vir-a-ser se condensando e se paralisando, ou então tendo seu desenlace final na pura e simples extin­ção das forças. O vir-a-ser teria uma meta, que seria o ser ou o nada. Que pensar dessa hipótese mecânica? Sim­plesmente, ela não resiste à tese da infinidade do tempo. Afinal, se o vir-a-ser tivesse uma meta, como já transcor­reu um tempo infinito, ela já devia ter sido alcançada. "Se o mundo pudesse enrijecer, secar, morrer, tornar-se nada, ou se pudesse alcançar um estado de equilíbrio, ou se ti­vesse em geral algum alvo que encerrasse em si a duração, a inalterabilidade, o de-uma-vez-por-todas (em suma, dito metafisicamente: se o vir-a-ser pudesse desembocar no ser ou no nada), esse estado teria de estar alcançado. Mas não está alcançado: de onde se segue..." 1 4 Se o mun­do não deságua no ser ou no nada, se as forças não cami­nham para sua extinção nem para um estado de equilíbrio no qual se solidificariam, então o desequilíbrio das for­ças é originário e eterno, tal como no vir-a-ser descrito por Heráclito: o mundo não tem nenhum alvo, não caminha para nenhum estado final.

14. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [188], KSA, vol. 13, p. 374, Obras incompletas, cit., p. 396.

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Sim, o mundo não tem qualquer alvo. Mas que nin­guém interprete isso segundo as velhas mitologias. Um risco que sempre se corre, garante Nietzsche, já que é tão forte e arraigado o antigo hábito de pensar alvos sob todo acontecimento, assim como supor um deus criador e diri­gente do mundo, que "o próprio pensador tem dificuldade para não pensar a ausência de alvo do mundo, mais uma vez, como intenção" 1 5 . Como se fosse voluntariamente que o mundo se afasta de um fim, e até mesmo sabe evitar o entrar em um curso circular. Quem pensa um mundo que se afasta intencionalmente tanto de um estado final quanto do retorno do mesmo? Certamente, todos aqueles que querem impor ao mundo, por decreto, a faculdade da eterna novidade. Para eles, o mundo deve voluntariamen­te proteger-se tanto da repetição quanto de um alvo final. Aos seus ouvidos, o pensamento do retorno soará como uma extravagância. Mas deve-se reconhecer que é uma maneira "imperdoavelmente maluca de pensar e desejar" querer "impor a uma força finita, determinada, de gran­deza inalteravelmente igual, tal como é o mundo, a mira­culosa aptidão à infinita nova configuração de suas formas e situações" 1 6 . Se o tempo é infinito e as forças são finitas, se além disso o mundo não caminha para qualquer alvo final, mas mantém um permanente desequilíbrio das for­ças, então tudo retorna e retorna eternamente. "Se o mun­do pode ser pensado como grandeza determinada de for­ça e como número determinado de centro de força - e toda outra representação permanece indeterminada e conse-

15. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 36[15], KSA, vol. 11, p. 556, Obras incompletas, cit, p. 395.

16. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 36[15], KSA, vol. 11, p. 556, Obras incompletas, cit., p. 395.

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qüentemente inutilizável -, disso segue que ele tem de passar por um número calculável de combinações, no grande jogo de dados de sua existência. Em um tempo in­finito, cada combinação possível estaria alguma vez al­cançada; mais ainda: estaria alcançada infinitas vezes. E como entre cada combinação e o seu próximo retorno to­das as combinações teriam de estar transcorridas e cada uma dessas combinações condiciona a seqüência inteira das combinações da mesma série, com isso estaria prova­do um curso circular de séries absolutamente idênticas: o mundo como curso circular que infinitas vezes já se repe­tiu e que joga seu jogo in infinitum."17 Não há saída: quem não acredita no deus voluntário, tem de acreditar no eter­no retorno do mesmo.

III

Da doutrina do retorno se espera, antes de tudo, um determinado efeito sobre a existência. Do ponto de vista "antropológico" o pensamento do eterno retorno, defini­do agora como a religião das almas libérrimas, deve exer­cer uma ação ético-pedagógica sobre a humanidade. E este aspecto é até mesmo o essencial, já que para Nietz­sche o efeito "existencial" da doutrina estaria garantido, mesmo se ela se mostrasse cientificamente indemonstrá-vel e se impusesse apenas como uma mera probabilidade. Enquanto religião das almas libérrimas, seu efeito sobre a humanidade não é algo estritamente dependente de qual­quer certeza especulativa. "Mesmo admitindo que a re-

17. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[188], KSA, vol. 13, p. 374, Obras incompletas, cit., pp. 396-7.

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petição cíclica seja apenas uma verossimilhança ou uma possibilidade, basta o pensamento de uma possibilidade para nos emocionar e nos transformar, da mesma forma como sentimentos e esperanças." 1 8 Afinal, é apenas um prejuízo intelectualista - ingenuamente platônico - acre­ditar que é o grau de certeza de um pensamento que está na origem do efeito que ele possa produzir sobre alguém. Isso é crer que apenas o constrangimento do verdadeiro é eficaz, o que é uma grande tolice: o cristianismo exerceu imensa influência enquanto idéia - o que não tem abso­lutamente nada a ver com a "verdade", nem com o índice de certeza de sua doutrina. Que se pense, dirá Nietzsche, na ação que exerceu a simples possibilidade da danação eterna. Neste momento, a doutrina do retorno reata pro­fundamente com o "perspectivismo" de Nietzsche. Como ele anunciara, com essa doutrina trata-se apenas de recu­perar uma certa perspectiva sobre o vir-a-ser. Se a dou­trina é compatível com a morte de deus, ela não é menos compatível com o perspectivismo que o fim do "verda­deiro mundo" impunha ao conhecimento. Por isso, não se deve de forma alguma reinscrevê-la em uma nova ordem dogmática: trata-se apenas de uma interpretação possível, uma experimentação possível. E assim como outras inter­pretações nos reportavam a determinado modo de vida, independentemente de seu valor de verdade, é lícito es­perar que a idéia do retorno exerça influência sobre a exis­tência, mesmo como simples possibilidade.

E porque a doutrina do retorno deve exercer uma ação sobre a existência que Nietzsche a apresentará como um tipo de postulado prático. "Meu ensinamento diz: viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez é a tarefa

18. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [203], KSA, vol. 9, p. 523.

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- pois assim será em todo caso!"19 Este é o momento em que a doutrina do eterno retorno, cosmologicamente con­cebida, passará a ter um significado para a vida. Para que tal postulado seja efetivo, ele exige uma transformação na atitude diante da existência, o oposto de uma condenação da vida: ele implica, da parte do homem, uma tal aprova­ção da existência que ele viverá de modo a desejar viver, outra vez, aquilo mesmo que sucedeu. De fato, o que é preciso para viver de modo a desejar viver tudo outra vez? É preciso, dirá Nietzsche, que todo traço característico que está no fundamento de cada acontecer seja sentido por um indivíduo como seu traço característico fundamental; isso impeliria esse indivíduo a achar bom, triunfalmente, cada instante da existência universal; isso dependeria, jus­tamente, de sentir em si esse traço característico funda­mental como bom, valioso, com prazer 2 0. Assim, a outra face do eterno retorno será o amor fati, aprender a sem­pre ver o belo na necessidade das coisas, com tudo o que isso implicará: renúncia ao ressentimento, à culpa, à von­tade de vingança. Afirmação da vida e não sua negação, fim das acusações contra a existência - tal seria o resultado do pensamento do eterno retorno. O amor fati retoma aquela atitude dionisíaca diante da existência, o dionisía­co dizer-sim ao mundo, e ao mundo tal como ele é, sem desconto, exceção e seleção.

O pensamento do eterno retorno é seletivo, ele é di­rigido aos happyfews, o que não é de estranhar em uma fi­losofia da hierarquia como a de Nietzsche, na qual o que

19. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [163], KSA, vol. 9, p. 504, Obras incompletas, cit., p. 390.

20. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5[71], KSA, vol. 12, p. 211, Obras incompletas, cit., pp. 383-4.

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importa é não deixar que a parcela sã da humanidade seja contaminada pela degenerada. Por isso, a "mais insalubre espécie de homens na Europa", aquela em que se assen­ta o niilismo, "sentirá a crença no eterno retorno como uma maldição"21. Para estes, o pensamento do retorno será o mais pesado dos pesos; mas para outros ele será leve: aqueles que amam a vida o bastante "para não desejar ou­tra coisa que não esta suprema e eterna confirmação" 2 2 . Estes são os fortes, os "mais ricos de saúde, os que estão à altura do maior dos malheurs e por isso não têm medo dos malheurs - seres humanos que estão seguros de sua po­tência e que representam, com consciente orgulho, a força alcançada do homem" 2 3 . É por isso que a crise do niilismo será apresentada por Nietzsche como purificadora: ela condensará os elementos aparentados e os fará corrom­perem-se uns aos outros, ela fará uma ordenação hierár­quica das forças, do ponto de vista da saúde, reconhecen­do e separando os que mandam e os que obedecem - e isso, é claro, "à margem de todas as ordenações sociais vi­gentes". É aos que acham a doutrina do retorno leve que Nietzsche se dirige: são estes que devem ser preservados do contágio pelo niilismo, da condenação da vida, da de-generescência. Mas se a doutrina do retorno é um meio para se obter a afirmação da vida, por oposição àquela condenação da existência que estava na origem do cristia­nismo, é preciso distingui-la daquele outro modo de afir­mação da vida que Nietzsche apresentará como oriundo do "pessimismo da força".

21. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5 [71], KSA, vol. 12, p. 211, Obras incompletas, cit., pp. 383-4.

22. Nietzsche, A gaia ciência, § 341, KSA, vol. 3, p. 570. 23. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5 [71], KSA, vol. 12, p. 211,

Obras incompletas, cit., p. 385.

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A afirmação e a negação do mundo dependem de di­ferentes regimes com os quais se estabelece uma relação com o mal. Mas o que é o mal? Três coisas, dirá Nietzsche: o acaso, o incerto, o súbito 2 4. E existem diferentes manei­ras de combatê-lo. Assim, para combater o mal o homem primitivo vai concebê-lo como razão, como potência, como pessoa. Com isso, ele ganha a possibilidade de estabelecer uma espécie de pacto com o mal e, assim, atuar previa­mente sobre ele. Mas existem as maneiras "civilizadas" de combater o mal. Pode-se afirmar que o mal é pura apa­rência e interpretar as conseqüências do acaso, do incerto e do súbito como bem intencionadas, plenas de sentido; ou então pode-se interpretar o mal como merecido, jus­tificá-lo como castigo. Atribuir um bom sentido ao mal é renunciar a combatê-lo, e por isso a interpretação moral e religiosa é apenas uma forma de submissão ao mal. Mas o importante é que a história da civilização, enquanto pro­gressivo aumento da calculabilidade e conseqüente apren­dizado da crença na necessidade, representa uma dimi­nuição daquele medo do acaso, do incerto, do súbito. A partir deste momento, aquela submissão ao mal e justifi­cação do mal, chamadas de religião e moral, tornam-se supérfluas, visto que agora pura e simplesmente se abole o mal. O "pessimismo da força" será um sintoma desse es­tágio de "altíssima civilização" e representará uma passa­gem do pró ao contra: ele designa "um estado de seguran­ça, de crença em lei e calculabilidade, que chega à cons­ciência como fastio - em que o gosto pelo acaso, pelo incerto e pelo súbito sobressai como excitante" 2 5 . Nesse estágio,

24. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10 [21], KSA, vol. 12, pp. 466-7, Obras incompletas, cit., p. 391.

25. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[21], KSA, vol. 12, pp. 466-7, Obras incompletas, cit., p. 391.

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diz Nietzsche, o homem não precisa mais de uma justifi­cação do mal, como aquela que lhe oferecia a moral e a re­ligião - ele não precisa mais encontrar um "bom sentido" no mal. Pelo contrário! Agora se abominará qualquer "jus­tificação", se fruirá o mal, se achará o mal sem sentido o mais interessante. "Se antes teve necessidade de um deus, delicia-o agora uma desordem do mundo, sem deus, um mundo do acaso, em que o terrível, o equívoco, o sedutor, faz parte da essência." 2 6 Um exemplo desse "pessimismo da força"? Basta ler Mallarmé ou seguir a história do mo­vimento surrealista.

O que pensar desse "pessimismo da força"? Ele ter­mina em um absoluto dizer-sim ao mundo, em uma afir­mação da existência, ao contrário do homem moral ou religioso. Mas na verdade ambos são extremos de um mes­mo contínuo, eles se opõem conservando o fundamental, traduzem o mundo pelo mesmo dicionário. Nesse estágio de altíssima civilização, diz Nietzsche, o homem é forte o suficiente para envergonhar-se de uma crença em deus. Mas se agora ele pode desempenhar o papel de advogado do diabo e chegar a um absoluto dizer-sim ao mundo, isso se dá "pelas mesmas razões em função das quais outrora lhe foi dito não" 2 7 . Se antes queriam combater o acaso, agora se faz sua apologia - e precisamente esta tenaz re­presentação do acaso é o a priori comum ao religioso e ao novo ateu. Todos falam segundo as regras da mesma gramática - e este absoluto dizer-sim ao mundo, tal como proferido pelo pessimismo da força, antes de ser uma sub­versão da antiga interpretação, assenta-se justamente so­bre ela. Trata-se apenas de uma troca de sinais, de um

26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[21], KSA, vol. 12, pp. 466-7, Obras incompletas, cit., p. 391.

27. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[21], KSA, vol. 12, pp. 466-7, Obras incompletas, cit., p. 391.

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"sim" enunciado na mesma linguagem do antigo "não" . Enquanto não desenraizarmos essa linguagem, o niilismo não terá sido efetivamente superado: a afirmação da exis­tência se fará sob a sombra da antiga negação.

O que Nietzsche chama de atitude dionisíaca diante da existência não terá nada a ver com esta elegia adoles­cente ao mundo do acaso. E já se podia desconfiar disso, observando que a doutrina do eterno retorno exige a idéia de uma necessidade absoluta, regendo todos os aconteci­mentos. Na verdade, o pensamento do retorno será a dis­solução da representação do "acaso". Afinal, se Nietzsche pensa estar "provando" o mundo como curso circular que infinitas vezes já se repetiu, um curso circular de séries ab­solutamente idênticas, é porque "entre cada combinação e seu próximo retorno todas as combinações ainda possí­veis teriam de estar transcorridas e cada uma dessas com­binações condiciona a seqüência inteira das combinações da mesma série" 2 8 . E é evidente que esta rigidez do círcu­lo é essencial à doutrina: sem ela a sucessão dos aconte­cimentos seria aleatória e alguns poderiam não retornar. Mas o que se pretende demonstrar é o eterno retorno do mesmo, "um curso circular de séries absolutamente idên­ticas". Para tanto, é preciso que uma necessidade absolu­ta costure todos os eventos que se desdobram nesse vir-a-ser. Por isso, a interpretação do eterno retorno feita por Deleuze é infiel ao espírito e à letra de Nietzsche. Segun­do Deleuze, o eterno retorno seria "seletivo" e, por isso, nem tudo retornará: as forças reativas não retornarão, o "Homem pequeno, mesquinho, reativo não retornará" 2 9 . Um eterno retorno seletivo? Isso seria equivalente a re-

28. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[188], KSA, vol. 13, p. 374, Obras incompletas, cit., p. 397.

29. Deleuze, G., Nietzsche et la philosophie, cit., p. 80.

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introduzir uma finalidade intencional no vir-a-ser, aquela mesma que Nietzsche banira desde o início. Para Nietz­sche, o eterno retorno é do mesmo, as séries que retornam são absolutamente idênticas, algo de igual não retornar é coisa que não poderia ser explicada pelo acaso, "mas so­mente por uma intencionalidade posta na essência da força: pois, pressuposta uma descomunal massa de casos, o alcançamento casual do mesmo lance de dados é mais ve­rossímil que a absoluta nunca-igualdade" 3 0 .

É essa volatilização do acaso, em benefício de uma necessidade absoluta presidindo os eventos do mundo, que Nietzsche exprime ao indicar que, em regime de eter­no retorno do mesmo, "acontecer" e "acontecer necessa­riamente" é pura tautologia31. Esta necessidade absoluta de que as coisas aconteçam de modo igual no curso do mundo não é de forma alguma um "determinismo" do que acontece, mas a simples expressão do fato de que "o im­possível não é possível": uma força determinada não po­de ser outra coisa senão esta força determinada, ela não se conduz, em relação a uma quantidade de resistência, de um modo diverso daquele que exige a sua própria di­mensão. Por isso, acontecer e acontecer necessariamente só pode ser uma tautologia. Nesse sistema de forças há uma estrita dependência dos eventos entre si, uma estri­ta inter-relação das partes que compõem esse todo. Em outras palavras, Nietzsche terá a sua versão de um "prin­cípio de plenitude" regendo o universo. "Se supomos que o mundo dispõe de uma certa quantidade de força, é evi­dente que todo dispêndio de força, em qualquer lugar, condiciona todo o sistema; por conseguinte, além da cau-

30. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[245], KSA, vol. 9, p. 534, Obras incompletas, cit., p. 388.

31. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[138], KSA, vol. 12, p. 135.

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salidade das coisas que se sucedem umas às outras, have­ria uma dependência das coisas umas com as outras." 3 2 É deste princípio de plenitude que decorre a censura que Nietzsche dirige a toda "filosofia do desejável", este des­contentamento com uma "parte" do mundo que se desco­nhece como inevitável condenação do todo, visto que tudo é ligado no mundo. "São poucos os que compreen­dem que o ponto de vista do desejável, quer dizer, todo 'devia ser assim, mas não é', implica uma condenação da marcha geral das coisas. Pois nesta não há nada isolado, o menor serve de base ao maior; em teu pequeno canto está edificado todo o futuro; por conseguinte, a crítica que condena o pequeno condena também o grande. Supondo agora que a norma moral, como imaginava Kant, nunca chegue a realizar-se completamente e deva permanecer sempre como um além da realidade, a moral encerrará en­tão um juízo sobre o todo em si . " 3 3

Assim, ao contrário da afirmação da existência profe­rida pelo "pessimismo da força", aquele dizer-sim ao aca­so, o que Nietzsche chama de afirmação dionisíaca da vida se assenta em uma transformação do acaso em des­tino. E por isso este dizer-sim ao mundo será incompara­velmente mais radical. Em regime de pessimismo da força, dizer-sim ao mundo do acaso é afirmar apenas um mo­mento pontual da existência, sem qualquer conexão com os outros momentos; é afirmar apenas uma parte destaca­da do todo. E também por isso que o pessimismo da força é um dizer-sim ao mundo pelas mesmas razões que outro-ra levavam a dizer não. A afirmação dionisíaca da vida será a afirmação do todo da existência, não de um segmento destacado e isolado. Era exatamente isso que Zaratustra

32. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[143], KSA, vol. 12, p. 137. 33. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[62], KSA, vol. 12, p. 316.

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deixava claro. "Dissestes alguma vez sim a um prazer? Oh, meus amigos, então dissestes sim também a toda dor. Todas as coisas estão encadeadas, enoveladas, enamora­das - quisestes alguma vez uma vez duas vezes, falastes alguma vez 'tu me agradas, felicidade! Vem! instante!', então quisestes tudo de volta! - Tudo de novo, tudo eter­namente, tudo encadeado, enovelado, enamorado, oh, en­tão amastes o mundo - vós, eternos, o amais eternamente e todo o tempo: e também à dor vós falais: passa, mas re­torna! Pois todo prazer quer - eternidadel"34 Se o acaso se transforma em destino, se no vir-a-ser suceder é suceder necessariamente, se cada momento é interiormente rela­cionado aos demais, então a afirmação do presente é ipso facto a afirmação da eternidade. "Se nós dizemos sim a um único instante, nós dizemos sim, através disso, não ape­nas a nós mesmos, mas a toda a existência. Pois nada existe por si só, nem em nós nem nas coisas; e se nossa alma, uma única vez, vibrou e ressoou de alegria como uma corda, todas as eternidades colaboraram em determinar este único fato - e nesse único instante de afirmação, toda a eternidade se encontra aprovada, resgatada, justifica­da, afirmada." 3 5

Se do ponto de visto cosmológico o eterno retorno implica uma neutralização do acaso, na perspectiva an­tropológica esta metamorfose do acaso em destino deve­rá conduzir ao fim da vontade de vingança. Sob o ângulo da influência da doutrina do retorno sobre a vida, o que é vencer o acaso? Será triunfar sobre a necessidade que faz com que a contingência, transformada pelo tempo em passado inerte, adquira a figura do irremediável. Se pode-

34. Nietzsche, "A canção bêbada", Assim falou Zaratustra, IV, § 10, Obras incompletas, cit., p. 264.

35. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[38], KSA, vol. 12, p. 307.

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mos prevenir o acaso futuro, aquele que se cristalizou em passado está fora da esfera de nossa ação. O querer liber­ta? Sim, responde Zaratustra, para acrescentar: "mas como se chama aquilo que acorrenta ainda o próprio libertador? 'Foi': assim se chama o ranger de dentes e a mais solitária aflição da vontade. Impotente contra aquilo que está feito - ele é, para tudo o que passou, um mau espectador. Para trás não pode querer a vontade; não poder quebrar o tem­po e a avidez do tempo - eis a mais solitária aflição da vontade" 3 6 . Que momento é este? O homem do ressen­timento, tal como Nietzsche o descrevera na Genealogia da moral, era essencialmente alguém ligado à memória, um prisioneiro do tempo passado. Por isso esta consciência de não se poder fazer nada com o que já passou no tempo, esta mais solitária aflição da vontade, é o momento em que a vontade de potência se traduz em vontade de vin­gança. E assim que Zaratustra prossegue. "Que o tempo não corre para trás, tal é seu rancor; 'Aquilo que foi' - as­sim se chama a pedra que ela não pode rolar. E assim ela rola pedras por rancor e despeito e exerce vingança sobre aquele que não sente como ela rancor e despeito. Assim a vontade, o libertador, se torna um malfeitor: contra tudo que pode sofrer toma vingança por não poder voltar para trás. Isto, sim, isto somente é a própria vingança: a má von­tade da vontade contra o tempo e seu 'Foi'. Em verdade, uma grande parvoíce reside em nossa vontade; e em mal­dição se tornou para todo humano que essa parvoíce te­nha aprendido a ter espírito. O espírito da vingança: meus amigos, tal foi até agora a melhor meditação dos homens; e onde havia sofrimento, devia haver sempre castigo." 3 7

36. Nietzsche, "Da redenção", Assim falou Zaratustra, II, Obras incompletas, cit., p. 240.

37. Nietzsche, "Da redenção", Assim falou Zaratustra, II, Obras incompletas, cit., pp. 240-1.

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O que é a vingança? Ela traduz a atitude reativa diante desta inevitável transformação do acaso na neces­sidade do "foi". E como o vir-a-ser sempre será esta pere­ne cristalização do acaso em um passado irremediável, ele será visto como a encarnação do mal. A vontade de vin­gança buscará culpáveis, responsáveis por um mundo que é ressentido como ruim, a existência no vir-a-ser será in­terpretada como o resultado de um pecado original, o ser verdadeiro será confundido com o intemporal. Onde havia sofrimento, exigiu-se que ele fosse castigo, a vida inteira era um castigo. E, se é assim, pode-se vislumbrar o modo pelo qual o pensamento do eterno retorno exercerá sua função de postulado prático. Todo "foi", diz Zaratustra, "é um fragmento, um enigma, um horrível acaso - até que a vontade criadora lhe diz: 'Mas assim eu o quis!' - Até que a vontade criadora lhe diz: 'Mas assim eu o quero! Assim eu o quererei!'" 3 8 . Viver de modo a querer que tudo retor­ne: doravante o passado será um perpétuo futuro. Será preciso amar a idéia do retorno e amar a própria vida para desejar esta "suprema e eterna confirmação" 3 9 . Agora a vontade de vingança cederá lugar à plena vontade de po­tência. Sob a égide do eterno retorno, querer será sempre querer o necessário: amorfati. É aqui que está o segredo da superação do niilismo, assim como a dificuldade final da fi­losofia de Nietzsche: fazer com que coincidam o querer e o destino, a liberdade e a necessidade. É apenas ao preço desta dificultosa reconciliação que o "cume da meditação" nos levará, enfim, a sentir como leve o peso da existência.

38. Nietzsche, "Da redenção", Assim falou Zaratustra, II, Obras incompletas, cit., p. 241.

39. Nietzsche, A gaia ciência, § 341, KSA, vol. 3, p. 570.

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CONCLUSÃO

Que sentido pode ter o amor fati, esta vontade que quer aquilo que é preciso querer? Haveria alguma consis­tência nesta vontade de destino? A libertação do princípio do querer, com o advento do niilismo e o conseqüente eclipse do dever, apontava para uma vontade de vontade livre, uma vontade que se dá seus próprios fins, em vez de recebê-los prontos de alguma autoridade externa como Deus, a moral ou a verdade. O que se torna esta vontade quando, na última metamorfose do espírito, este se torna "criança", afirma o "eu sou" e faz de seu querer uma von­tade de destino? Neste derradeiro desenlace da história do espírito, na superação final do niilismo, Nietzsche tem perfeita consciência de que seu difícil projeto é unir, em uma só trama, a tradição filosófica antiga, que apostava na existência de um destino que tudo rege, à tradição filosó­fica moderna, pós-agostiniana, aquela que nasce com a descoberta da vontade e da liberdade do querer. É neste setor da "querela" entre os antigos e os modernos que Nietzsche pretende se infiltrar, unindo os dois partidos opostos nesta estranha tese de um querer a necessidade. E

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claro que não se deixou de ver nesta idéia uma típica mis­são impossível. Como conciliar - pergunta Lõwith - um mundo sem meta, sem finalidade, sem sentido, um pro­cesso perfeitamente circular, com aquela vontade que vem ao centro da cena em regime de niilismo, uma vontade que se dá seus próprios fins? 1. Para Lõwith, esta incoerên­cia seria apenas um reflexo da falta de coesão entre o as­pecto cosmológico e o lado antropológico da doutrina do eterno retorno. Afinal, não se pode falar em "vontade", deixando de lado a intencionalidade e a finalidade do que­rer humano, que sempre visa a um fim futuro. Toda "meta­física do querer inspira-se no modelo da teologia cristã e de sua escatologia, colocando na origem do mundo uma vontade criadora, que por amor ao homem produziu o mundo como meta final" 2. No interior deste marco inte­lectual, o homem é feito para realizar a vontade de Deus e o pecado é afirmar o próprio querer. Na origem da "meta­física da vontade", tal como esta se desdobra em Schel-ling, Schopenhauer e Nietzsche, está a teologia agostinia-na, que define o homem pela trindade vontade-desejo-amor. E, se Nietzsche experimenta esta teologia em um mundo ateu, ele não renuncia a definir o homem e o mun­do pela vontade, mesmo negando à vontade cósmica a in­tencionalidade e a finalidade, para afirmar o ciclo autárqui­co do universo. Daí a duplicidade irredutível da doutrina, em que a vontade finalizada do homem não se coaduna muito bem com a vontade sem fim do mundo circular.

Uma oposição irreconciliável entre o aspecto cosmo­lógico e o antropológico da doutrina do retomo? Mas o

1. Lõwith, K., "Nietzsche et sa tentative de récupération du mon­de", in Nietzsche, Cahiers de Royaumont, Paris, Minuit, 1967, p. 61.

2. Lõwith, K., "Nietzsche et sa tentative...", in Nietzsche, cit., p. 61.

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CONCLUSÃO 287

que é esta vontade de vontade livre que emerge com a morte de deus e o eclipse do "dever"? Ela é livre por não ser mais uma vontade tutelada, cujos fins seriam ditados do exterior. Mas ela nunca se confundirá com o "livre-ar-bítrio" cristão. Este, para Nietzsche, é uma invenção fu­nesta de sacerdote à caça de "culpáveis", que forja o con­ceito com o auxílio das distinções arbitrárias cultivadas pela razão filosofante. O livre-arbítrio supõe a cisão, intei­ramente fictícia, entre a força e suas expressões, ele se as­senta na idéia de um substrato indiferente que seria li­vre para exprimir ou não a sua força3. A "vontade livre" de Nietzsche não é este livre-arbítrio que se representa e es­colhe seus fins. Ela é antes o desdobramento não impedido de uma natureza, de uma determinada força. A vontade de potência não é uma "faculdade" que se definiria por algu­ma finalidade consciente; se ela se fenomenaliza em fins particulares e sempre transitórios, estes não caracterizam a sua essência. Afirmar que a vontade de potência é a per­pétua "superação de si" é concebê-la como a subversão permanente de todo e qualquer fim determinado: sua es­sência está no aspirar em geral, que não se cristaliza em nenhuma meta alcançada. Falta a esta vontade o essencial da vontade cristã: sua subordinação a uma meta final. Por isso o modelo da vida ascendente nunca se confundirá com a felicidade espinosana, e será mais próximo da sua homônima hobbesiana: antes de ser desejo de algo, ela é desejo do desejo, que não repousará em nenhuma conquis­ta. Por isso esta vontade não apenas é compatível com o processo circular do todo, como até mesmo o exige: não poderá haver nenhuma meta final orientando a vontade cósmica ou a vontade humana.

3. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 13, cit., p. 43.

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Mas, afinal, por que tanto esforço para superar o nii­lismo? Onde está a exigência pela qual não se pode con­viver com o "mais incômodo de todos os hóspedes"? O que se procura fazer é voltar a dar um sentido à existência humana, assumindo a ausência de sentido do processo circular do todo. Mas o importante é que o não-senso da existência humana ainda é visado como algo a ser ultrapas­sado. E, se esta superação do niilismo não é mais nenhuma reedição atualizada do cristianismo, ela ainda nos trará algo. Qual é a tranqüilidade que a superação do niilismo nos dará, para fazer com que seu advento seja não apenas desejável, mas até mesmo inadiável? Que tudo retorna - diz Nietzsche - "é a mais extrema aproximação de um mundo do vir-a-ser ao mundo do ser: cume da meditação"4. Dora­vante, a "vontade de nada" que dominava o período niilis­ta da humanidade cederá seu lugar a uma vontade de eternidade. Uma das formas pelas quais irrompia o niilis­mo, enquanto "estado psicológico", era quando o indiví­duo, que se acreditava parte de um todo infinitamente su­perior, perdia a crença em seu próprio valor ao descobrir que, através dele, não atuava nenhum todo infinitamente valioso5. Mas, se é assim, deve-se confessar que de agora em diante esse desespero acabou: é a cada instante de sua existência que esse indivíduo vai testemunhar sua integra­ção ao todo, a este vir-a-ser que eternamente retorna, su­prema aproximação ao ser. Deus morreu? Sim, sem dúvida. Mas que ninguém se aborreça muito com isso. Encon­tramos um substituto à altura para garantir a união de nossa existência ao todo do ser: um vir-a-ser como tota-

4. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[54], KSA, vol. 12, p. 312. 5. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [99], KSA, vol. 13, p. 46,

Obras incompletas, cit., p. 380.

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CONCLUSÃO 289

lidade que recupera em si todos os seus momentos, o vir-a-ser sob a forma do eterno retorno do mesmo. Que ninguém se preocupe, portanto: o universo permanece uma imensa comunidade eclesial de base. E, se Deus mor­reu, é preciso reconhecer que no fundo, no fundo, ele ga­nhou a guerra.

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