Nietzsche e a Educação

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  ETZSCHE Friedrich Sur l'aven r de nos établ sse- me ts d' enseign Texte établi par G org o Co et Maz zino Montin r . Tr duit d l' ll m nd p r J an Louis Back s. Pa i , Gallimard, 1973 (154 p ) NIETZSCHE E A EDUCAÇÃO MYR AM XV R F AG t r la obra i tz ch é cr c t V- z ao u p at cli a a ct di ul ação al u crito obr a ucaçã i o, ua rac a, u cita a prtubação j u ici t t x- ri tada i at d outro trabalho o il o o É rar u o io aca ico r aja i r a t u uito horaria ao prprio i tz ch lit ratura aica cot pora é ba ta ar cada l pra ati o r l d i tz ch So o to dos Nssos Estelecimetos e Ensio itua a dirço cotrria O ri or a co rcia a libr a caract tico opo to ao da po içõ utilitari ta r - l xão i tz ch a a obr a ucação ão xi a u últi a co ücia a bi üidad hi torici ta co tr uari a a , o pr upo to ou pr di to il fic d i tz ch . O j o a o o prof or i tz ch pro ucia 872, Na Ui r i ad Ba iléia, u ri co f r cia o r ta l ci to i o O t a roo t ra part r j to ai a lo. i tz ch r la a ua i t ção d ublicar u li r , utiliza do o l to a co - r cia r t ia ar ua or a u rior, a crito circu t cia ( 3 ) O obj ti x r o ra orçar ua 1 ) S b u Nietzsche Aujod'?, a Uni n Géné i i , P ri 1 97 ) b icou s e dba es d óqu Inr c o d e Cersy r iz ju de 1 7 O j n é r s nt v d u i d s Ni z c . A mns r cus ã Or gem da T usti i v iv ú i d e Ni z c . ) r Ni zs h We , d t d ju 187 TRAS / R / A 1 ·

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artigo Nietzsche.

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  • NIETZ SCHE, Friedrich - Sur l'avenir de nos tablissements d' enseignement . Texte ta bli par Giorgio Colli et Mazzino Montineri . Traduit de l'allemand par Jean Louis Backes . Paris, Gallimard, 1973 ( 1 54 p . ) .

    N IETZSCHE E A EDUCAO

    MYRIAM XAVIER FRAGO SO

    o interesse pela obra de Nietzsche crescente. Volta-se com avidez ao seu pensamento ( 1 ) . Nesse clima, a recente divulgao de alguns escritos sobre a educao e o ensino, em lngua francesa, suscita a pertubao, j suficientemente experimentada, diante de outros trabalhos do filsofo . de se esperar que os meios acadmicos reajam diversamente. O que muito honraria ao prprio Nietzsche .

    A literatura pedaggica contempornea bastante marcada pelo pragmatismo. A reflexo de Nietzsche - Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino - situa-se na direo contrria. O rigor, a coerncia e a liberdade so caractersticos opostos aos das posies utilitaristas. A reflexo nietzscheana sobre a educao no se exime das suas ltimas conseqncias. A ambigidade historicista no encontra guarida na mensagem, nos pressupostos ou no procedimento filosfico de Nietzsche .

    O jovem e famoso professor Nietzsche pronuncia, em 1872, Na Universidade de Basilia, uma srie de conferncias, sobre os estabelecimentos de ensino ( 2 ) . O tema proposto era parte de um projeto mais amplo. Nietzsche revela a sua inteno de publicar um livro, utilizando os elementos dessas conferncias. Pretendia dar uma forma superior, a esses escritos de circunstncia ( 3 ) . O seu objetivo expresso era forar uma

    ( 1 ) Sob o ttulo Nietzsche Aujourd'hui?, a Union Gnrale D'ditions, Paris ( 1 973 ) , publicou os temas e debates do Colquio Internacional de Cersy, realizado em julho de 1 972. O conjunto representativo da atualidade do pensamento do Nietz'Sche . .

    (2) A imensa repercusso da- Origem da Tragdia justif icava as expectativas do pblico de Nietzsche .

    ( 3 ) Carta d e Nietzsche a Wagner, datad a de 25 de j ulho de 1 872 .

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    reflexo crtica, sobre problemas da cultura, da educao e do ensino. Algumas referncias da poca testemunham uma surpreendente repercusso ( 4 ) . O prprio Nietzsche afirma que as conferncias haviam suscitado reaes de entusiasmo, emoo e dio ( 5 ) . Tece consideraes sobre a pertubao do acadmico auditrio, cancelando as duas ltimas conferncias. Um fillogo melindrado j havia investido, recentemente, contra Nietzsche, a propsito de replicar a Origem da Tragdia ( 6 ) .

    No seria abusivo supor a repetio de reaes semelhantes, na hiptese de transposio dos argumentos do filsofo para o presente. As condies econmicas e sociais, do momento refletido, aprofundaram-se. A produo de excedentes j determinava o que chamaramos, hoje, de ideologia cultural . Nietzsche denuncia o carter irracional e suicida da imposio econmica e do capitalismo industrial. O homem moderno estava esmagado e iludido por falsas necessidades, justificadas por uma falsa cultura. A cultura e o homem modernos eram reflexos do que Nietzsche identificava como a barbrie do sculo XIX. A sua crtica aponta o Estado moderno, como mentor e vigia armado da barbrie. A concepo hegeliana do Estado servia, perfeitamente, aos mesmos fins . A falsa cultura jornalstica e o Estado progressista estavam aliados, com vistas aos seus prprios interesses. O jornal e o jornalista eram os smbolos mximos da poca moderna, segundo Nietzsche .

    O problema da produo de excedentes ligava-se ao da distribuio. O Estado assumia a tarefa de distribuio da cultura. As imposies de ensino, comandadas pelo Estado, eram meramente reflexas. Nietzsche considerava essa distribuio da cultura to ilusria quanto a da riqueza e a do lucro ( 7 ) . Constatava a destruio dos estabelecimentos de ensino da autntica cultura alem. A barbrie da pseudo-cultura ditava a sua pseudo-educao. Os estabelecimentos de ensino reformados perdiam a finalidade original e transformavam-se em estabelecimentos de ensino, para a misria de

    (4) Por exemplo, a de Jacob Burckhardt . (5 ) Correspotulncia V, 224, apud Andler. (6) Which von Willamowitz Mllendorf refutou a nova filosofia proposta

    na Origem da Tragdia. (7 ) As condies i rracionais da produo, da distribuio e do consumo dita

    vam a multiplicao automtica do nmero de ginsios e de universidades.

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    viver (8 ) . O ginsio e a universidade haviam perdido os seus vnculos com o "ser" da Alemanha : o esprito da Reforma, da Msica e da Filosofia. Recuper-los, dependeira da identificao do que havia de especfico, nessa barbrie do sculo XIX. O j ovem filsofo assume o papel de arauto. As conferncias sobre o futuro dos estabelecimentos de ensino sero o ponto de partida para a identificao proposta. As tendncias errneas de ensino so pedras de toque, indispensveis, para o exame das condies da cultura e do prprio homem moderno .

    Dois discursos, distintos e independentes, precedem as cinco conferncias. O primeiro uma introduo ao tema; a tese de Nietzsche introduzida no final, articulando-se diretamente com a primeira conferncia. De permeio, o autor insere uma digresso, sem relao direta com o tema. No discurso introdutrio, os defeitos do ttulo - Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino - so mencionados. A impreciso, a obscuridade e a falta de virtude persuasiva, so bvias. A manuteno dessas falhas retricas passa a ser justificada. Paradoxalmente, os perigos da abreviao so menores, graas obscuridade .

    Os limites do objeto de reflexo excluem quaisquer consideraes sobre os estabelecimentos de ensino da cidade de Basilia. Em primeiro lugar, por tratar-se de um particular . Alm disso, o autor confessa-se ignorante, desligado e impotente, diante do mesmo . Em face da reconhecida ao de ensino da cidade, prefere solicitar a reflexo dos seus cidados. Quanto mais se faz, mais se deve pensar ( 9 ) . O mesmo procedimento de excluso repete-se, em seguida, com respeito s instituies escolares de outras naes . O critrio comparativo rejeitado, por gerar inevitveis juzos de valor . "A priori", os estabelecimentos de ensino da Alemanha jamais seriam ultrapassados por quaisquer modelos estrangeiros . O tom de ironia motivado pelo fato de serem as modernas escolas alems, admiradas e exaltadas. O objeto nico da reflexo so os estabelecimentos de ensino da Alemanha : as escolas primrias, as escolas tcnicas, o ginsio e a universidade. O ponto de partida a definio das instituies com-

    (8) A formao de quadros especializados, para a indstria e para o servio do Estado, requeria a substituio da finalidade da formao para a cultura clssica .

    (9) Nietzsche, Friedrich - Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos d, Ensino. Paris, Ed . GaIlimard, p . 1 6 .

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    preendidas como escolas . Primordialmente, as escolas so traos vivos da cultura; por outro lado, so lugares onde se adquire a cultura . As autnticas escolas so elos entre o patrimnio do povo e o presente. A formulao tem fora de premissa. Nietzsche nega-se a tratar o futuro das escolas, sem a necessria retomada do esprito que as originou ( 10 ) A se encontra a razo de ser dessas instituies. De outro modo, os estabelecimentos de ensino so instituies referidas a uma determinada cultura .

    Com base nos pressupostos afirmados, as modificaes em curso, nas escolas alems, eram errneas. Cortavam-lhes as autnticas razes. Escolas modernas e atuais eram absurdos inadmissveis . As escolas podem ser renovadas e purificadas . Mais precisamente, Nietzsche as deseja, ao mesmo tempo, novas e velhas. Os estabelecimentos de ensino da Alemanha exigiam um renascimento, ao invs de transformaes.

    Falar do futuro autoriza a profecia. Uma presuno suspeita e comprometedora introduzir-se-ia nas intenes rigorosas do exame. No entanto, seria ridiculo que Nietzsche negasse o seu desejo de profetizar. E prope, audaciosamente, a legitimao do tom de orculo, mediante a utilizao de um procedimento aceitvel. Falar do futuro, com base nas definidas tendncias do presente ( 1 1 ) . Os estabelecimentos de ensino sofriam as imposies das tendncias culturais da poca, perfeitamente identificveis. A reflexo que se prope coloca, ainda, uma opo de mtodo : partir dos problemas da cultura alem para uma crtica dos meios e mtodos educativos e de ensino. O futuro dos estabelecimentos de ensino dependia do futuro da cultura alem .

    O fundamento cultural dos mtodos de ensino do presente deveriam ser questionados. Nietzsche antecipa uma resposta demonstrao. Os mtodos de ensino do momento, preconizados pela pseudo-cultura, eram anti-naturais. A natureza seria portanto a sua primeira grande aliada, no combate em favor de autnticos estabelecimentos de ensino, para a verdadeira cultura. Os mtodos em questo arrastavam cegamente os desvios e pontos fracos da pseudo-cultura. As transformaes de ensino deixavam-no apavorado ; no se sentia

    ( 1 0) Id . Ibid . , p . 1 7 . ( 1 1 ) Mais precisamente, refere-se s tendncias da cultura alem, na segunda

    metade do sculo XIX .

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    em unssono com o partido dos homens que marchavam com a poca moderna .

    A vivncia do quotidiano de ensino do professor Nietzsche emerge no texto atravs de uma metfora. A batalha passa a figurar a situao de ensino. preciso lembrar que as transformaes econmicas motivavam, no aps-guerra de 1871 , debates e polmicas, em torno da cultura, da educao e do ensino. As escolas foram reformadas. Novas modalidades de ensino so criadas ( 1 2 ) . As finalidades dos estabelecimentos tradicionais sofriam redefinies .

    O ginsio alemo era especialmente visado pelas reformas. Uma nova finalidade - formar para as cincias -substitui a a da formao clssica. Nietzsche a encara como uma imposio errnea. O combate sugerido deve repor a finalidade original, ameaada de substituio.

    De modo abrupto, o pblico de Nietzsche recebe o ncleo da sua mensagem. "Eis a minha tese : duas correntes, aparentemente opostas, igualmente nefastas quanto aos seus efeitos, e finalmente reunidas em seus resultados, dominam hoje os nossos estabelecimentos de ensino, inicialmente fundados sobre outras bases. De um lado a tendncia extenso da cultura e de outro lado, sua reduo e enfraquecimento" ( 1 3 ) A segunda tendncia transformaria a cultura, de soberana, em serva do Estado. Uma terceira alternativa havia surgido, como rplica s duas tendncias indicadas. Segundo Niezsche, tratava-se de uma sada bem alem. A tendncia limitao e concentrao, como poltica de reforo, dominava certos meios eruditos ( 1 4 ) . Por enquanto, o conferencista no entrar no seu mrito. Prefere manter a esperana, noutra alternativa. Ampliao e reduo so contrrias natureza. A concentrao da cultura num pequeno nmero de homens lei necessria e verdade geral ( 1 5 ) .

    ( 1 2 ) Paralelamente ao liceu clssico ( uGimnasiurn" ) fundaram-se colgios modernos ( URealschule" ) e muitos tipos de escolas tcnicas. A universidade e o liceu clssico acompanharam as novas tendncias, acolhendo as lnguas modernas e as cincias .

    ( 1 3 ) Nietzsche, Friedrich - op . cit . , p . 1 9-20 . ( 1 4) Na sua obra De Hegel Nietzsche, Karl Lowith especi fica-baseando-se

    no texto original de Nietzsche - doi s aspectos, na rplica dessa terceira alternativa : o de concentrao e preciso e o de fora e autonomia

    ( 1 5) Nietzsche, Friedrich - op . c it . , p. 20 .

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    o auditrio informado da necessidade de interrupo do discurso sobre as tendncias da pseudo-cultura do sculo XIX. O autor anuncia uma digresso. O novo assunto no se relaciona com o tema das conferncias. Trata-se de um apelo dramtico, do autor Nietzsche, 2.0S seus conjecturais leitores . O seu livro Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino exigir um leitor dotado de trs qualidades. Ser calmo, no exigir um quadro de resultados e no se interpor mensagem. Com respeito ao quadro de resultados, deixa bem claro que no pretende apresentar sugestes de novos horrios ou de novos programas. Admira os professores que elaboram elegantes quadros e tabelas . . , O sarcasmo de Nietzsche volta-se para a cega adeso dos professores aos controles burocrticos . Os famigerados quadros no permanecem no texto somente como smbolos da interveno estatal . Nietzsche vai muito alm, especulando brilhantemente sobre a opo de procedimento da maioria de seus colegas. Muitos mestres eram capazes de ascender das profundezas da experincia, aos cumes dos verdadeiros problemas da cultura. Mas, inversamente, o autor prefere seguir o caminho oposto. Partir dos cumes da verdadeira cultura, para os regulamentos mais secos e para os quadros mais elegantes ( 16 ) . Bem sabe que os apreciadores de quadros rejeitaro o seu livro. Para o estarrecido auditrio de Nietzsche, como para muitos mestres de hoje, e at para um ou outro "filsofo da educao" , o Estado progressista cuidava da cultura e racionalizava os servios escolares . Em seguida, o filsofo o faz voltar esperana da alternativa prometida. O combate em favor das autnticas escolas requer lutadores, homens desprendidos do tempo e do instante. Em um futuro muito longnquo, os guias de educao - homens graves e srios - sero os legisladores da educao quotidiana. A educao e o ensino voltaro a formar para a autntica cultura.

    At esse futuro, o filsofo v, unicamente, a destruio dos estabelecimentos de ensino. As transformaes do momento eram to violentas e arbitrrias que "aos olhos do futuro, os atuais quadros parecero restos de uma civilizao lacustre ( 1 7 ) " . Os quadros do presente sero ainda traos da decadncia da cultura alem e da barbrie do sculo XIX . Numa ordenao rigorosa, Nietzsche situa na decadncia da

    ( 1 6 ) O empmsmo mgenuo dos pedagogos progressistas impiedosamente criticado por Nietzsche.

    ( 1 7 ) Nietzsche, Friedrich - op . cit . , p . 22 .

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    cultura alem, a decadncia da escola, a do ensino e a da educao. Julga necessrio combater para que os estabelecimentos de ensino voltem a atender - renovados e purificados - autntica cultura alem. Nietzsche afirma uma nica autntica cultura. Ao longo das conferncias, empenha-se na sua definio.

    A exigncia de um leitor calmo aparentemente despida de importncia para a demonstrao da tese. Nietzsche a utiliza para uma excepcional e profunda anlise da condio humana, na barbrie do sculo XIX. O homem moderno, ou o homem da poca moderna, um ser esmagado e iludido . Nietzsche deseja um leitor que no seja idlatra da sua poca e que no se deixe esmagar ou iludir, por suas monstruosas engrenagens. O seu leitor deve dispor de tempo para meditar sobre os estabelecimentos de ensino; o tempo poupado ou o tempo perdido no devem ser calculados .

    A ltima exigncia a denncia de um dos defeitos intelectuais dos homens da poca. Como critrio e medida para todas as coisas, interpunham a cultura atual e a suas prprias pessoas. Nietzsche necessita de um leitor despojado de si mesmo e da sua poca ( 1 8 ) .

    O seu livro o arauto do combate pela autntica cultura. A primeira tarefa a cumprir a identificao do que h de especfico nessa barbrie alem ( 1 9 ) . importante distinguir o brbaro do sculo XIX dos brbaros de outras pocas. Finalmente, Nietzsche conclama o pblico a assumir um compromisso de combate, pela recuperao dos estabelecimentos de ensino da Alemanha .

    Cada uma das cinco conferncias de Nietzsche possui um tema central. Determinados objetos da realidade educativa e de ensino so captados como sintomas das tendncias culturais . A vivncia do quotidiano de grande valor para Nietzsche. A particularizao desses temas atende a uma anlise demonstrativa. Permanece, como pressuposto fundamental, a afirmao de relaes necessrias entre os fenmenos educativos e as formas de ensino, de um lado e uma determinada cultura, de outro lado. A reduo desses temas particulares de utilidade didtica :

    ( 1 8) Nietzsche assume um comprmisso diante do leitor receptivo : fa lar pelo no saber e pelo saber do seu no saber .

    ( 1 9) As transformaes de ensino impostas ao l iceu clssico eram verdadeiras pedras de toque para a identificao da barbrie do sculo XIX .

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    l .a conferncia - As relaes entre a cultura e a educao .

    2.a conferncia - O ginsio elamo como centro motor das tendncias de todos os outros estabelecimentos de ensino .

    3 .a conferncia - Causas imediatas dos desvios de tendncia do ginsio alemo .

    4.a conferncia - Os duvidosos fins da educao e da cultura, sob o Estado cultural e o jornalismo .

    5.a conferncia - A universidade alem em ligao com o ginsio .

    Uma narrativa autobiogrfica inicia a primeira conferncia. O recurso narrativo favorece tambm a "mise en scene" de um dilogo cujo protagonista um filsofo. Nietzsche e um amigo so espectadores . A estruturao permite-lhe por discursos na boca de outros. Alm disso, o campo fica livre para comentrios, esclarecimentos e comunicaes do conferencista ao pblico .

    A composio literria do dilogo exige um razovel esforo do leitor. Os vos metafricos de Nietzsche revestem conceitos rigorosos. No estado de sonho da adolescncia, fundara uma associao de estudantes. O modelo da organizao fora slido e coercitivo para estimular o exerccio da literatura e da arte. O grupo deixava o ginsio e partia para a universidade . Os associados obrigavam-se a enviar, mensalmente, um trabalho : poema, partitura, projeto de arquitetura e outros. O regulamento previa uma confraternizao festiva, anual. Por ocasio de um desses encontros, Nietzsche e um camarada afastam-se da barulhenta companhia. A floresta os atrai . Praticam o tiro de pistola, quando dois homens surgem e os agarram, com violncia. O mais velho julgava tratar-se de um duelo. Desfeito o equvoco, separaram-se. Os tiros voltam a incomodar o ancio . Acusa os estudantes de perturbar e de impedir a Filosofia. Os jovens declaram-se amigos da Filosofia e militantes da cultura. Por essa razo, conservam-se numa disponibilidade gratuita . Recusam-se a pensar numa profisso. Bem sabem que as garras do Estado insistem em atrair os jovens para o servio pblico. Os exames coercitivos da universidade eram uma preparao da docilidade, exigida pelo aparelho do Estado .

    O discurso do ancio ao seu companheiro ecoa, em seguida, na floresta, despertando a ateno dos jovens . A na-

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    tureza, O crepsculo, os sons da floresta, as luzes e as sombras e a viso do Reno do uma dimenso fantasmagrica ao cenrio do dilogo. O filsofo e o discpulo falam sobre os problemas da cultura e da educao. O companheiro do filsofo havia abandonado o seu posto de professor do ginsio. Os novos princpios e mtodos de ensino eram incompatveis com a sua concepo da cultura e da educao. O filsofo condena a evaso e acusa-o de pretenso e rigidez. Julgava-se capaz de seguir o caminho solitrio da Filosofia. Por outro lado, no se modificara. "O mesmo carter inteligvel", no sentido de Kant, continuava a dominar a sua concepo de cultura ( 20 ) . Certamente aderira "pseudo-cultura atual" e acreditava na democratizao dos dti'eitos do gnio. Havia esquecido o princpio capital de toda cultura .

    O discpulo defende-se. Abandonara o ginsio por desnimo. No pretendia o caminho solitrio do mestre . Faz questo de enunciar o princpio invocado : ningum aspiraria cultura, se soubesse, como pequeno, finalmente, o nmero de homens verdadeiramente cultos ( 2 1 ) . O privilgio desse pequeno nmero funda-se no movimento da grande massa, em direo cultura. O movimento da massa ilusrio. Na verdade, ela luta em favor do pequeno nmero ( 22 ) . O professor refora o argumento, acrescentando um dado. Os desvios de tendncias da educao e do ensino buscavam justificativa num dogma da Economia Poltica . "O mximo de cultura e de conhecimentos possveis para o mximo de produo e de necessidades possveis, de onde, o mximo de felicidade possvel" ( 2 3 ) . A utilidade afirmada como o fim e o objetivo da cultura. Em outras palavras : "o lucro e o maior ganho possvel de dinheiro" ( 24 ) . A educao deve formar homens atuais e correntes. Os homens devem ser correntes como a moeda corrente. As escolas devem ter uma exata medida econmica dos conhecimentos dados a cada aluno. Essa medida uma taxao individual, referida a outra mais geral : a do lucro e a da felicidade. A cultura atual reunira a inteligncia e a propriedade. O lucro assumira a categoria de valor moral .

    (20)

    ( 2 1 ) (22 ) (23 ) (24)

    Para Nietzsche, a crtica de Kant era insuf iciente e falha. Em contraposio ao "princpio transcendental" de Kant, prope uma crtica, a partir elemento genealgico da fora (diferencial e gentico) , ou seja, da "vontade de poder" . Nietzsche, Friedrich - op . cit . , p . 4 1 . A iluso era imposta massa, por outras esferas, alheias aos seus interesses. Nietzsche, Friedrich - op . cit . , p . 44 . Id . ibid .

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    A cultura rpida antecipa o lucro. A cultura profunda - do sbio, especialista da cincia - permite um ganho maior .

    O filsofo intervm, com a sua anteviso poltica, em tom proftico : "a grande massa saltar um dia o grau intermedirio e lanar-se-, sem desvio, sobre a felicidade terrestre" ( 2 5 ) . O que se denominava a questo social j fazia parte do futuro salto. A massa ser, mais uma vez, ludibriada. A cultura no ser universalmente distribuda. Na hiptese contrria - a da cultura de massa - a barbrie seria completa .

    O discpulo julga que o Estado bastante forte para subjugar um salto das massas, na direo sugerida pelo mestre . por isso que as esferas da cultura, da educao e do ensino atraem o interesse do Estado. No mesmo jogo de poder do Estado est a rivalidade com outras naes. Os exrcitos e o quadro dos funcionrios pblicos, essenciais ao poder do Estado, devem ser formados nos novos estabelecimentos de ensino. Um exemplo flagrante podia ser observado nos crculos eruditos. O sbio especializado da universidade passara a uma condio anloga do operrio de fbrica. A imposio da cultura de Estado o confinara numa nica disciplina . A repetio das mesmas tarefas o mantm afastado dos problemas gerais da cultura. O fenmeno-sbio especialista -tambm assumiu carter de valor moral. Aponta-se como uma nobre modstia, algo que decorrente do processo de diviso do trabalho, nas cincias. Em conseqncia, o jornalista assume o papel do sbio. o mestre do momento. Ao contrrio do sbio, que livraria do momento e do instante. O profesor de ginsio perdia o seu trabalho pedaggico por causa do jornal, do romance folhetim e do livro do especialista. Os profesores de helenismo j eram apontados como epicuristas imorais .

    A segunda cnferncia retoma o impasse individual do professor. A experincia de ensino levara-o descrena quanto aos resultados positivos da luta. O filsofo julga, ao contrrio, que a anti-cultura tem os seus dias contados . O baixo nvel da literatura pedaggica e a ao grosseira dos pedagogos "sobre a mais delicada das tcnicas que possa existir numa arte, a tcnica da formao" redundaria em cats-

    (25) Id . ibid . p. 45 .

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    trofe ( 26 ) . Fazia-se necessrio assaltar e salvar o ginsio, segundo o filsofo .

    Para Nietzsche, o ginsio o centro motor de todos os outros estabelecimentos de ensino, inclusive da universidade . Os desvios e erros de tendncia do ginsio repercutiriam, amplamente, sobre as demais instituies escolares .

    O ginsio seria e pedra de toque da recuperao de ensino. No prprio mbito desse estabelecimento, o ponto nevrlgico era o ensino do alemo . O ncleo de toda autntica cultura a lngua materna. A pseudo-cultura havia afastado esse princpio pedaggico fundamental. O alemo jornalstico imperava. A recuperao do ensino de alemo exigia a volta incondicional ao "dressage" lingstico. Do contrrio, "o que ser da educao formal"? ( 2 7 ) .

    Atravs do discurso do filsofo, Nietzsche aprofunda a sua anlise do ensino do alemo, at chegar aos aspectos didticos. A etapa de desenvolvimento do aluno de ginsio exigia mtodos contrrios aos recentemente impostos. Alguns "slogans" da pseudo-cultura j ornalstica pretendiam fundamentar tais mtodos . A liberdade, a autonomia e a expresso livre da livre personalidade do adolescente haviam gerado um monstro : a composio alem ( 28 ) . O professor combatente deve proibir a expresso autnoma precoce . Admiti-la, necessariamente, redundaria na aceitao da m expresso. Ao contrrio disso, o aluno deve refazer a composio at alcanar a melhor forma. Toda educao formal depende desse critrio. Na mesma sequncia de argumentos, o filsofo aponta outro lamentvel equvoco, no ensino do alemo. Os novos mtodos da filosofia tratavam o alemo como lngua morta( 29 ) . Da advinha o desprezo pela prtica viva, constante e rigorosa, da fala e da escrita. A crtica, a expresso original e a criao devem ser adiadas, para a etapa posterior adolescncia . Mas um equvoco dos ginsios reformados era a pretenso cultura clssica . O que se pretendia com as transformaes em curso era uma educao formal, para as cincias. A du-

    (26) Para Nietzsche, a formao para urna determinada cultura impe ao prvia reflexo crtica sobre o sentido e o valor dos mtodos de ensino .

    (27) A educao diz respeito f inalidade da cultura clssica . (28) A composio alem admitiu ;r expresso autnoma do adolescente, dei

    xando de acentuar as exigncias da forma . (29) A di storo comprometia a articulao entre o estudo da lngua materna

    e o do grego e do latim. Os ginsios humanistas , fundados pela Reforma, haviam instituido esse modelo que Nietzsche julgava ameaado .

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    plicidade de fins estabelecia-se. Decorrentemente, confundia-se o homem culto e o homem de cincia. Nietzsche prope a reposio da finalidade de formao para a antiguidade clssica. As bases dessa formao seriam a lngua materna e o "ser" da Alemanha. O ginsio fracassara por causa da incapacidade de estabelecer o elo entre o ensino do alemo e o das lnguas clssicas. A derrota do humanismo e a vitria da erudio eram devidas, especialmente, a ao nefasta do ensino da filologia ( 30 )

    Na concluso, o filsofo afirma que o ginsio alemo de 1872 era um falso estabelecimento de ensino. Pretendia formar para a cultura, mas formava para a erudio. No final das contas, o ginsio no formava sequer para a erudio .

    A terceira conferncia articula-se com a segunda, atravs da retomada das relaes entre a finalidade de formao para a Cultura Clssica e o ensino do alemo, no ginsio. Uma das causas da decadncia de ensino decorria "das condies de produo" da massa de professores medocres ( 3 1 ) . A tendncia extenso da cultura ditara um nmero excessivo de universidades. O sistema produtor de excedentes respondia pela baixa qualidade do excedente de mestres, que crescia continuamente. O filsofo constata que o nmero excessivo de estabelecimentos, de alunos mal triados e de mestres, passara a ser visto como uma riqueza. E coloca a interrogao : "por quais leis, o nmero se transforma em riqueza"? O princpio capital de toda cultura afirmava o contrrio. A verdadeira cultura exige poucas universidades. A expanso universitria provocava, tambm, um agravamento da miservel condio econmica dos professores. A fabricao de professores excedentes rebaixava, dia a dia, a condio profissional docente . Por outro lado, esses professores da misria - recrutados na misria e para a misria - no podiam deixar de ter "a mesma altura de voo" dos seus alunos. A massa heterclita de alunos no permitia um trabalho pedaggico aceitvel . O filsofo no v, nessa expanso, uma autntica necessidade das massas .

    (30) A tendncia clssica da formao humanista alem recusava a nova orientao para a erudio, mentora da introduo dos mtodos h istricos, genticos e comparativos, no estudo das lnguas clssicas. Pouco a pouco, esses mtodos foram indevidamente aplicados ao ensino e ao estudo da lngua materna .

    (3 1 ) bem claro o reconhecimento de um paralelismo entre o s istema de produo da sociedade e a produo em massa de professores . Em ambos os casos, o f i lsofo v a criao de falsas necessidades .

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    o Estado cultural atuava tambm como mentor do que a pseudo-cultura exaltava como cultura popular. A cultura popular dirigida mais uma imposio do Estado e da mentalidade jornalstica. A verdadeira cultura de um povo - a verdadeira cultura popular - medida pela posteridade, atravs de obras nicas de indivduos que marcharam sozinhos . A preocupao do Estado, em dirigir e promover a cultura popular, havia sido correlata s medidas de escolarizao primria compulsria. A escolarizao compulsria, por sua vez, fora correlata ao recrutamento militar universal e obrigatrio. O filsofo desconfia das intenes culturais do Estado militarista .

    Nietzsche coloca em outros termos, a definio da cultura popular. H uma relao entre a massa e a autntica cultura. A massa depositria das regies profundas e inconscientes da religiosidade, do sistema potico das imagens mticas, dos costumes, do direito e da lngua. Essas regies no podem ser alcanadas, diretamente. As intervenes do Estado podem destruir a autntica cultura popular. O Estado e os progressistas invertem as razes da cultura popular, quando gritam ao povo : "s vigilante ! S consciente ! S esperto ! " ( 3 2 ) . A gerao do gnio ser perturbada pela barbrie da cultura popular dirigida. O gnio emerge, nutre-se e amadurece no seio maternal e inconsciente da cultura de um povo. A funo do povo abrigar o gnio .

    O discpulo duvida da justia da metafsica do gnio, proposta pelo filsofo, porm, concorda plenamente com o mestre, sobre o problema do excesso de estabelecimentos de ensino superior e de ginsios . Os mestres eram pobres diabos que faziam o comrcio com a antiguidade, por uma questo de sobrevivncia. Os professores de filosofia so casos exemplares. Haviam esfacelado a Antiguidade e cado, alegremente, na lingstica . O filsofo observa que o domnio novo e indefinido da lingstica recebia a todos os medocres, de braos abertos . Justamente, era o professor de lingstica que se incumbia da Antiguidade . O curso de grego e latim fora criminosamente transformando num instrumento de introduo lingstica. Exerccios comparativos substituram a tendncia clssica ; a perspectiva historicista, gentica e relativista confundia os gregos e romanos com os brbaros .

    (32) Nietzsche, Friedrich - op . c i t . , p . 8 1 .

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    o filsofo considera que a ameaa militarista do modelo prussiano atingia a Alemanha, a partir da educao. O mais poderoso estado militar moderno dirigia a cultura e a educao. Certos privilgios militares recentemente concedidos aos alunos da universidade e dos ginsios eram provas dessa ameaa. Era sabido que o grande afluxo de estudantes, aos referidos estabelecimentos de ensino, fora provocado por esses privilgios militares, aps a instituio do servio militar obrigatrio. O estado prussiano era o mistagogo da cultura, com vistas aos seus prprios fins. A filosofia hegeliana do Estado havia sido absorvida e posta em prtica pela Prssia .

    O modelo prussiano era anti-alemo. O autntico ensino alemo no aceitaria ser guiado pelo Estado. Para o "ser" da Alemanha - o da Reforma, da Msica, da Filosofia e do soldado alemo - a voz do Estado hegeliano era a voz do brbaro ( 33 ) .

    O professor finalmente decide voltar ao ginsio. O filsofo lembra que o combate pela verdadeira cultura no tem nada a ver com o combate pela reduo da misria de existir. O combate pela existncia tem lugar no mundo da necessidade. A verdadeira cultura no boa conselheira desse mundo. Na educao e no ensino a mesma frmula permaneceria vlida. Toda educao que indica no final um posto de funcionrio, ou um ganha-po qualquer, contraria a educao para a cultura ( 3 4 ) . Seria antes uma orientao do sujeito da educao, para o combate pela sobrevivncia . Para a maioria dos homens, essa orientao importante. O que se deveria propor para a soluo de tal problema, jamais poderia servir finalidade de preparao para a cultura. Em quais estabelecimentos de ensino deve-se formar para a cultura? O ginsio alemo deixara de atender referida finalidade. O filsofo observa e acompanha, com o maior respeito, as experincias das escolas tcnicas e das de ensino geral . O clculo aplicado s coisas tcnicas, nessas escolas, com seriedade. As lnguas de comunicao so bem aprendidas. Infelizmente, o Estado impusera a essas escolas certas semelhanas com o

    ( 33 ) Sobre a oposio ao hegelianismo no pensamento de Nietzsche, vide Deuleuze, Gi lles - Ni'f?lzsche et la Philosophie. Paris. ( 1 973 ) , Presses Universitaires de France, Cap o V, p . 1 67-222 .

    (34) A argumentao de Nietzsche faz-se sabre a necessidade da existncia de estabelecimentos de ensino para a finalidade da cultura. No a fasta a necessidade de re flexo sobre outros t ipos possveis de estabelecimentos de ensino, para atender formao de profi ssionais e de tcnicos .

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    gmaslO. O ginsio no tinha a honestidade das escolas tcnicas, em virtude da duplicidade de sua finalidade : a cultura clssica e a erudio. Os professores do ginsio no apreciavam devidamente as escolas tcnicas, criticando o realismo que as inspirava. A ignorncia dos termos filosficos - reallismo e real - era a nica explicao para semelhantes juzos.

    A contradio essencial estava no ginsio : estabelecimento de ensino para a misria da existncia ou estabelecimento para a verdadeira cultura?

    Nietzsche interrompe o discurso do filsofo para informar o pblico, sobre o estado de esprito dos dois jovens universitrios, escondidos nas proximidades da cena do dilogo .

    Sentem-se perdidos e necessitam conversar com o filsofo, sobre os problemas da cultura alem. As suas dvidas so anlogas s do jovem professor. Seus argumentos so tpicos de tudo o que o filsofo, pejorativamente, intitula como "atual" . Os universitrios crivam-no de perguntas. Entre a massa e os poucos homens cultos, no haveria infinitos graus intermedirios? Onde comearia o que o filsofo considerava a verdadeira cultura? Como estariam separados as esferas da massa e a do pequeno nmero? Seria possvel a criao de estabelecimentos de ensino somente para o pequeno nmero de eleitos? Os gnios no dispensariam as muletas da cultura e da educao? Lessing e Winckelmann haviam retirado algo da cultura alem? E no caso de Beethoven, de Schiller e de Goethe? O reconhecimento do gnio seria um privilgio exclusivo das geraes posteriores?

    Um acesso de clera a resposta do filsofo. Sente-se mal com os estudantes da universidade. Nada mais so do que reflexos da pseudo-cultura jornalstica. Voltando pouco a pouco ao tom natural, mostra aos jovens duas nicas vias : da aceitao das tendncias da poca, ou a do combate s mesmas. A escolha da primeira via lhes proporcionar : a aceitao, os ttulos e os aplausos de uma multido, comandada por "solgans" . A outra opo os situar fora do tempo e do momento. A Alemanha da Reforma preparara longamente a poca da criao. O ginsio era ento um estabelecimento de preparao para a cultura e para a universidade.

    Os jovens esto de pleno acordo, quanto necessidade de estabelecimentos de ensino para a cultura.

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    A con versa in terrompida por uma melodia. Era o sinal combinado entre o filsofo e outro personagem, que se reunira ao grupo de jovens, na travessia do Reno. No intervalo, o filsofo atende a um pedido dos estudantes e do professor: falar sobre a universidade, visto que havia sido professor nessa instituio. O professor tem a certeza de que o mestre - como verdadeiro filsofo - transformaria esses problemas do quotidiano em verdadeiras pedras preciosas. Bem sabe que a universidade no podia pretender o lugar de centro motor do ensino. Um dos estudantes fala do que havia esperado do ginsio : a preparao para a universidade. O ginsio moderno formava para a autonomia, exigida depois, pela universidade. O exerccio da liberdade e da autonomia eram essenciais. O seu companheiro relembra, timidamente, as opinies do filsofo sobre a autonomia. As consequncias para o curso de alemo eram negativas. No entanto, era preciso reconhecer as vantagens dos novos mtodos. O aluno comea a andar sem muletas. chamado a criticar e a escolher, desde cedo. A nova maneira de ler e de compor favorecia o caminho das cincias.

    O filsofo ri diante do "belo exemplo de autonomia" do estudante . Para refletir sobre a universidade necessita fazer uma nica pergunta. Como o estudante se liga universidade? Unicamente pelo ouvido. Paradoxalmente, este ser autnomo, est umbelicalmente preso. Escuta e escreve, enquanto o professor fala . Em resumo, o mtodo da universidade uma boca que fala e ouvidos que escutam. E o mtodo acroamtico. A esta o aparelho acadmico da universidade. Um diz o que quer e os outros ouvem o que querem. Eis a liberdade acadmica. Por trs dela, est o Estado vigilante, com cara de guarda. A finalidade do procedimento palavra audio o Estado. A autonomia do estudante e a liberdade acadmica no passam de enfatuaes, na opinio do filsofo. E oferece trs instrumentos de medida para a avaliao dos heris da autonomia (mestres e alunos) :

    a necessidade da Filosofia o impulso para a Arte a Antiggidade

    Nietzsche demonstra, em seguida, como o pseudo-liberdade e a pseudo-autonomia da livre personalidade, paralisam o movimento natural para a Filosofia, para a Arte, e para o esprito grego .

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    o tratamento gentico, histrico e filolgico invadira e destrura os campos da Filosofia, da Arte e da Antigidade . No havia escrpulos na universidade. Os fillogos fabricavam novas geraes de fillogos, para o ensino do ginsio. A Filosofia havia sido banida da universidade ( 3 5 ) .

    A universidade alem tornara-se um ambiente opressor, para aqueles j ovens soldados que haviam trazido a vitria de 187 1 ; reencontraram a a barbrie contra a qual haviam combatido .

    Tomando-se em considerao a evoluo da critica de Nietzsche, o trabalho Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino pode ser relacionado ao conjunto de escritos sobre a Filologia e a Filosofia da historicidade. Essas preocupaes situam-se a partir de 1870. So, portanto, contemporneas ecloso do novo Estado nacional. Num trabalho anterior, A Cultura de Outrora, Nietzsche refletira sobre a era de Bismarck, apontando a extirpao do esprito alemo, em proveito do imprio alemo, caracterizado como um monstruoso edifcio de autoridade e poder. Entre a cultura do passado e a cultura do presente, o filsofo busca uma via de superao. Ao saber da pseudo-cultura j ornalstica e da cincia especializada, a educao e o ensino igualmente exigiam uma reflexo. A critica realizada nesse mbito, como toda a crtica nietzscheana da cultura "antes de tudo, e no final de contas, uma crtica da forma contempornea do humano" (36)

    (35) Nietzsche nega universidade e aos seus professores o direito de tratar Filosofia, da Antiguidade e da Arte .

    (36) Lwit Karl - De Hegel Nietzsche. Paris, Editions Gallimard, ( 1 969) . p . 367 .

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