Nietzsche e a Vontade de Verdade
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NIETZSCHE E A VONTADE DE VERDADE
Allan Davy Santos Sena1
Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar a crítica feita por Nietzsche à vontade de verdade como preconceito valorativo fundador da moral socrático-platônica-cristã, cuja lógica intrínseca conduz inexoravelmente à sua auto-supressão. Com a morte do Deus metafísico-cristão, ponto culminante deste processo, surge o niilismo, a negação total dos valores. A potência criadora da arte desponta, pois, para Nietzsche, como a única forma de superação do niilismo, como possibilidade de criação de novos valores que promovam e elevem a vida. Palavras-chave: Vontade de poder; vontade de verdade; auto-supressão da moral; niilismo.
I
Em 1886, já em pleno desenvolvimento do que se convencionou chamar a terceira
fase de seu pensamento, isto é, a da transvaloração de todos os valores ou a etapa trágico-
dionisíaca de seu projeto filosófico, Nietzsche escreve e publica a obra Além de bem e mal, e
também redige, no mesmo ano, prefácios para novas edições das obras anteriores, nos quais
visa reavaliar seu percurso intelectual justamente à luz, sobretudo, de seu projeto de
transvaloração de todos os valores (Umwertung der Werte) inaugurado em Além de bem e
mal. Uma temática se mostra presente em praticamente todos os prefácios de 1886 e se
sobressai nos aforismos iniciais do capítulo primeiro de Além de bem e mal, intitulado “Dos
preconceitos dos filósofos”, a saber, a vontade de verdade (Wille zur Wahrheit). A expressão
já havia aparecido em Assim falou Zaratustra (1883/1885)2 e recebera em dois textos da
primeira fase do pensamento de Nietzsche outras formulações, qual sejam, no primeiro dos
Cinco prefácios para cinco livros não escritos (1872), a de pathos da verdade, e em Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (1873), a de impulso (Trieb) à verdade3. No
entanto, uma nova problemática é posta por Nietzsche nos textos de 1886, algo já anunciado
no primeiro dos Cinco prefácios, mas que agora recebe sua construção mais forte e acabada:
qual é, afinal, questiona o filósofo, o valor dessa vontade? Dessa forma, se em Sobre verdade
e mentira, Nietzsche se mostrava empenhado em investigar qual a origem do que ele então
chamava impulso à verdade, nos textos de 1886, sua principal preocupação se volta
novamente, como no primeiro dos Cinco prefácios, para a avaliação, a partir do prisma da
1 Mestrando em Filosofia pela UNICAMP, bolsista PIBIC/CNPq ([email protected]).2 “’Vontade de verdade’ é como se chama para vós, ó mais sábios, o que vos impele e vos torna fervorosos?” (Za/ZA II, “Da superação de si”, Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho).3 Cf. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”, § 1.
vida enquanto superação de forças, posto pela filosofia da vontade de poder (Wille zur
Macht), do que ele passa a chamar de vontade de verdade, ou seja, por que se deveria dar
preferência à verdade ao invés da inverdade, da mentira e do erro?
Ora, Nietzsche faz ver que para a vida enquanto superação de forças, a aparência e
a ilusão são tão ou mais necessárias do que a verdade, que todo ser vivente necessita
continuamente, para continuar em vida, do engano e da dissimulação e até mesmo do auto-
engano e da auto-dissimulação. O apreço incondicional dado à verdade é, pois, denunciado
por Nietzsche como um preconceito moral, mais que isso, como o fundamento mesmo da
tradição moral socrático-platônica-cristã, que estabeleceu a verdade como bem absoluto e
elegeu a racionalidade e a consciência como os atributos por excelência do animal homem.
Por ter sido engendrada no seio de um tipo específico de vida, isto é, o tipo de vida dos
indivíduos fracos e decadentes, os quais possuem como única condição de conservação a vida
gregária, essa moral do rebanho ou moral do ressentimento, como diagnostica Nietzsche, tem
como objetivo primordial justamente conservar aquele tipo degenerado de vida em detrimento
de um tipo mais elevado e superior, porquanto almejar alcançar, acima de tudo, a verdade,
significa querer facilitar ao máximo a permanência em vida dos fracos.
Assim sendo, o esclarecimento da vontade de verdade como fundamento da moral
do rebanho, é o derradeiro golpe desferido por Nietzsche no seu ataque contra semelhante
código axiológico, dando azo, assim, a possibilidade de uma transvaloração de todos os
valores, a saber, a criação de novos valores que possam garantir o surgimento de uma vida
ascendente, que supere a si mesma.
Ao desfazer toda essa trama, contudo, Nietzsche se vê assaltado por uma
impressionante constatação: o que move a análise psicológica, sustentada pelas observações
fisiológicas e históricas, empreendida por ele, e que leva a moral à ruína, é, ainda, um
preconceito moral que não suporta uma tal mentira e anseia por vê-la ir a pique em nome de
uma honestidade intelectual herdeira daquela tradição que deseja a verdade a todo custo.
Nietzsche, portanto, sustenta que a própria vontade de verdade, que almeja capturar toda a
efetividade pelo víeis da igualdade, unidade, permanência, indivisibilidade e eternidade, acaba
voltando-se contra si mesma; essa vontade de verdade que estagna, cristaliza, congela e
solidifica tudo que vê, termina por se olhar no espelho e, como uma Medusa, transforma a si
mesma em pedra, ou seja, cancela a si mesma como inoperante. Como sentencia Nietzsche no
prefácio de Aurora (1880/1881): “Em nós se realiza, supondo que desejem uma fórmula – a
auto-supressão da moral [Selbstaufhebung der Moral] – – ” (A, Prefácio §4, p. 14).
6
Por conseguinte, Nietzsche, em seu ataque efusivo à moral, vê-se como herdeiro
daquela tradição socrático-platônica-cristã, como o seu derradeiro e definitivo rebento, que
opera finalmente o último, mais fatal e inexpugnável golpe que põem fim ao próprio
movimento de que faz parte. Tal fato não condena, evidentemente, a filosofia de Nietzsche ao
puro imobilismo e inatividade, muito pelo contrário, pois é a partir daí que um novo processo
pode vir à luz. Tomando como parâmetro a força criadora da arte, Nietzsche conta instaurar
uma nova possibilidade interpretativa que não estará presa aos grilhões fixados pela moral,
que estará para além da moral, “além de bem e mal”. O filósofo propõe um significado não
mais moral, mas, sim, estético para o existir, no qual o sentido dado à dor, ao sofrimento e à
morte, problema central que ensejou a criação da moral ascética4, não será mais
proporcionado pela visão do Crucificado, isto é, o sofrimento como uma via de ascese a um
mundo transcendente, mas, sim, pelo símbolo expresso na figura do deus grego Dionísio, ou
seja, o sofrimento como condicionante da vida, como propulsor de sua própria auto-
superação5.
II
Para Nietzsche, tomar a verdade como um bem absoluto é um preconceito moral, uma
crença, um valor, e valorar é sempre interpretar. As interpretações são postas, na vida
orgânica e, mais especificamente, no homem, pelas condições de existência das
multiplicidades de forças organizadas em uma unidade6. Há diversas condições de existência,
e, portanto, diversas formas de se interpretar. As unidades (quantum) de forças, que se
encontram em permanente movimento, instauram valores quando, efetivando-se, entram em
contato com outras unidades, classificando-as hierarquicamente de acordo com os tipos de
sensações prazerosas ou desprazerosas que as mesmas lhes representam, visando, com isso,
assimilá-las ou se deixar assimilar por elas no intuito de conseguir mais poder.
No caso do animal homem, todos os códigos axiológicos por ele elaborados têm
como intuito justamente um aumento de poder, como esclarece Nietzsche em um fragmento
póstumo: “Na verdade, toda moral é apenas um refinamento das medidas que todo orgânico
adota para adequar-se, alimentar-se e ganhar poder” (Fragmento póstumo – X 12 [29] do
verão de 1883). Não obstante, múltiplas são as formas com que as forças podem se organizar
4 Cf. GM, III § 28, p. 148-149. 5 Cf. Fragmento póstumo – XIII 14 [89] da primavera de 1888.6 Cf. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Tradução Oswaldo Giacoia Júnior. São Paulo: Annablume, 1997.
7
no complexo orgânico que se chama homem, e cada uma dessas formas de organização
representam condições ímpares de existência. As apreciações, conseqüentemente,
correspondem a necessidades de tipos de vida específicos. Nietzsche considera que, de modo
geral, dois tipos de vida podem ser (metodologicamente) destacados dessa multiplicidade, a
saber, a forma de vida ascendente e a forma de vida decadente.
Uma forma de vida ascendente representa uma unidade organizada pelas forças
saudáveis e superiores de um complexo orgânico. Nesse tipo de existência, a totalidade
interpreta a vida como condicionada pela luta, e seus valores visam tornar a vida cada vez
mais elevada. A moral dos nobres representa um tal tipo de valoração, nela, saúde, robustez,
força, coragem e amor de si representam a suprema felicidade e os instintos são vistos como
os guias essenciais da ação. Por outro lado, num tipo de vida fraco, as forças debilitadas que
se desagregam no interior de um complexo orgânico que se tornou decrépito anseiam pelo
poder, invertendo, para isso, as estimativas de valor adequadas a uma vida forte, a fim de
conservar as condições que mantém em vida as naturezas que se tornaram degeneradas7. A
moral do rebanho nasce desse tipo de vida, nessa moral, o estabelecimento da compaixão
como suprema virtude, a renúncia aos instintos e a valorização da razão como guia supremo
da ação, tem como intuito conservar tal tipo de vida fraco, utilizando-se de artifícios para dar
vazão a sua vontade de poder.
Sendo assim, a forma de vida gregária representa a única condição de
sobrevivência para os indivíduos fracos. Ora, a vida gregária tem como fundamento a
comunicação. Assim sendo, a linguagem é elaborada devido a uma necessidade que brota da
fraqueza, seu objetivo primordial é a conservação. Para garantir sua sobrevivência, a
gregaridade precisa fazer previsões, isto é, estabelecer de antemão o que lhe é nocivo e o que
lhe é benéfico. Para isso, tem como primeiro preconceito moral a igualdade do não igual8, mas
nisso a linguagem procede fazendo falsificações, abstrações, cometendo injustiças constantes,
já que, para Nietzsche, a identidade absoluta da coisas é pura ficção. A linguagem distorce a
natureza das coisas para se tornar “exata”, “verdadeira”, ignorando diferenças, paralisando as
inconstâncias, ordenando o casual, a fim de torná-los comunicáveis, como sustenta Nietzsche
em Crepúsculo dos ídolos (1888): “A linguagem, parece, foi inventada apenas para o que é
médio, mediano, comunicável” (CI, Incursões de um extemporâneo § 26, p. 79). Dessa forma,
7 Cf. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. “Décadence artística enquanto décadence fisiológica: a propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner”. In: Cadernos Nietzsche, n. 6, São Paulo, 1999, pp. 11-30.8 “Mas a tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual – uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual – foi o que criou todo o fundamento para a lógica” (A gaia ciência § 111, p. 139, grifo nosso). Cf. também “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral” § 1. E HHI § 18, pp. 27-28.
8
visto que isso lhe traz vantagens e garante a sua sobrevivência, a gregaridade estabelece a
verdade como bem absoluto e a identidade como seu fundamento lógico9. O mundo, no
entanto, é devir, perenidade, imprevisibilidade, acaso, mudança, a identidade não se encontra
nele em lugar algum. Contudo, sendo a verdade um bem, isto é, uma condição de
sobrevivência para o rebanho, este se viu obrigado a elaborar um outro mundo, a partir da
contraposição direta ao mundo efetivo, a linguagem foi quem primeiramente operou esse
dualismo. Como diz Nietzsche em Humano, demasiado humano (1878/1880): “A importância
da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um
mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir
dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor” (HHI § 11, p. 21). Inserindo no
mundo uma unidade, previsibilidade, fixidez, que lhe são alheios, a gregaridade garantiu,
assim, sua sobrevivência, malgrado negar a natureza da própria vida como efetivação de
forças que almejam se superar às expensas umas das outras.
A vontade de poder dos fracos, tende, pois, a se limitar meramente ao instinto de
conservação10, desdobrando-se, assim, em uma vontade de verdade, ou seja, em uma
manifestação de uma vontade de poder debilitada que se satisfaz mediante expedientes e não
legitimamente. Ora, a gregaridade identifica o homem que diz a verdade como o homem bom
em si, porque confiável e previsível11; julga, da mesma forma, a natureza das coisas: tudo o
que é constante, regular e permanente, é bom, porque não representa perigo12, porque é
controlável. Conhecer a “verdade” sobre as coisas é, portanto, “dominar” as coisas. O que é
estabelecido como verdade, contudo, é, para Nietzsche, apenas uma simplificação,
generalização ou falsificação da realidade. Malgrado isso, é por meio de um tal falseamento
que o indivíduo mais fraco se conserva como animal de rebanho. Mas, se no início a verdade
é almejada apenas por conta de seus benefícios para a gregaridade, ela passa posteriormente,
devido a uma inexorável exarcebação da vontade de verdade, a ser querida por si mesma,
como bem em si, não mais importando o que as suas conseqüências signifiquem para a
gregaridade como um todo ou mesmo para a vida.
9 Cf. GC § 111.10 De acordo com Nietzsche: “Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder –: a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais freqüentes conseqüências disso” (BM § 13). Não obstante, defende o filósofo, é mister atentar para o fato de que: “Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado indigente, de uma limitação do verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende a expansão do poder [...]” (GC § 349).11 Cf. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral § 1. 12 Cf. GC § 355.
9
III
É por se verem ameaçados pela inconstância, desordem e falta de sentido do vir-a-
ser, que os indivíduos fracos e malogrados se congregam e instituem a consciência e a razão
como faculdades supremas do homem, porquanto elas representam o principal meio pelo qual
a vontade de verdade faz valer suas exigências na busca pelo conhecimento verossímil,
garantindo, assim, a conservação de um tipo degenerado de vida.
A consciência se desenvolveu juntamente com a fundação da linguagem, ou seja,
também por conta de uma necessidade de comunicação. Como esclarece Nietzsche em A gaia
ciência (1881/82/86): “Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as
pessoas – apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório não
necessita dela” (GC § 354, pp. 248-249). Para poder se proteger ao abrigo de uma
comunidade, os organismos mais fracos precisam se fazer compreensíveis uns para com os
outros e para si mesmos: “saber” exatamente do que necessitam, a quem recorrer e como se
fazerem entendidos de maneira rápida e precisa. Para isso, é mister operar simplificações,
abreviações, generalizações e vulgarizações, visto que o pensamento que se torna consciente
responde apenas a uma necessidade gregária, uma necessidade de compreensão sempre mais
fácil e inequívoca das impressões que se desejam comunicar. Ora, mas, para Nietzsche, o
homem é constituído por uma multiplicidade de forças organizadas em uma unidade13. Nele, o
combate se dá principalmente entre os seus impulsos, cada impulso quer exercer seu domínio
mediante a predominância da sua perspectiva avaliadora, isto é, sua forma de interpretar e
lidar com o ambiente externo, tendo como parâmetro as sensações de prazer ou desprazer que
este lhe provoca tendo em vista um aumento de poder. Todo esse combate entre impulsos se
dá, porém, de maneira inconsciente, como explana Nietzsche: “Por longo período o
pensamento consciente foi tido como o pensamento em absoluto: apenas agora começa a raiar
para nós a verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de maneira
inconsciente e não sentida por nós” (GC § 333, p. 221). Somente o impulso que predomina
consegue impor sua perspectiva, tornando-a, porém apenas em parte, consciente. Contudo,
essa imposição está em permanente deslocamento, novos impulsos e novas perspectivas estão
constantemente se alternando no controle do complexo orgânico que é o homem. Sendo
assim, no homem, não há um “eu”, único e sempre igual a si mesmo, que decida livremente os
motivos da ação, como assevera Nietzsche: “[...] um pensamento vem quando ‘ele’, e não
13 Cf. MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 77.
10
quando ‘eu’ quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito ‘eu’ é
a condição do predicado ‘penso’” (BM § 17, pp. 21-22).
É a partir da ficção da unidade e da identidade do eu, que a razão humana se
desenvolve, isto é, ampliando o alcance de tal ficção e elaborando o preconceito da unidade e
da identidade das coisas. Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche faz ver que é a partir do
estabelecimento da norma lógica: “o que é não se torna; o que se torna não é...” (CI, A
“razão” na filosofia § 1, p.25), que se tem início a criação de uma realidade metafísica por
meio do trabalho racional. Isso só ocorre, todavia, como já foi dito, devido ao
condicionamento fisiológico de seres degenerados, que precisam criar para si a ilusão de
permanência e constância como instrumento de conservação e artifício de dominação. Tal
realidade metafísica passa, no entanto, devido ao seu grau de utilidade para a vida fracassada,
a ser tida em maior apreço do que a própria efetividade. Negando, por necessidades
fisiológicas, o vir-a-ser das coisas, o pensamento metafísico fundado por Sócrates e Platão, na
sua confiança na razão e no conceito de ser elaborado por ela, passa a procurar os culpados
por esse último não ser intuído na e pela efetividade. Os sentidos, a sensualidade, delata o
pensamento metafísico, são esses culpados, “já tão imorais em outros aspectos, enganam-nos
acerca do verdadeiro mundo” (CI, A “razão” na filosofia § 1, p. 25). Negando os sentidos
como pérfidos e indignos, o homem torna-se, assim, um animal atrofiado, que visa
desenvolver a razão ao máximo em busca da verdade absoluta, que para ele é o bem absoluto,
porém, negar os sentidos significa negar a própria natureza humana, a efetividade como vir-a-
ser e, conseqüentemente, a própria vida como condicionada pela mudança.
O mundo transcendente elaborado pelo pensamento metafísico, fundamentado pela
razão, possui sua formulação mais nefasta para a vida na idéia cristã do “Reino de Deus”.
Para Nietzsche, o cristianismo representa uma negação da vida, algo nascido da fraqueza e do
ressentimento como instrumento de vingança contra a efetividade. A visão de mundo cristã
configura-se a partir da prática do niilismo, que é a lógica da décadence, tendo como meta
caluniar e falsear a realidade como artifício de dominação. Dessa maneira, elabora-se um
novo mundo a partir da completa oposição ao mundo imanente, a saber, o “Reino dos Céus”.
Como explica Nietzsche n’O Anticristo (1888): “– Esse mundo de pura ficção diferencia-se
do mundo sonhado, com enorme desvantagem sua, pelo fato de esse último refletir a
realidade, enquanto ele falseia, desvaloriza e nega a realidade” (AC § 15, p. 20-21). Com
semelhante mundo fantasioso, o fraco vinga-se, assim, da realidade, que para ele se tornou
insuportável, excluindo de tal mundo qualquer fator que lhe seja nocivo e declarando-o como
11
o verdadeiro mundo, aquele que lhe aguarda como derradeira recompensa, mantendo-se, deste
modo, na expectativa de um futuro domínio.
Nietzsche sustenta, pois, que o cristianismo é tributário do platonismo, que o
dualismo de Platão é levado às últimas conseqüências nessa religião em que o mundo efetivo
é totalmente esvaziado de valor. Daí a famosa sentença em Além de bem e mal: “cristianismo
é platonismo para o ‘povo’” (BM, Prólogo, p. 8). Quando se cria deliberadamente um mundo
imaginário que é o inverso do mundo efetivo, ou seja, fixo, invariável, eterno, desprovido de
males e dificuldades, assim como aquilo que é o belo, bom e verdadeiro na metafísica de
Platão, reprova-se a vida em sua totalidade, visto que as próprias condições para que ela se
efetue são, dessa forma, rejeitadas, pois a vida se constitui mediante oposições, isto é,
conflitos de forças, superações de obstáculos. Entretanto, tal artifício só se torna necessário
para naturezas que já malograram na vida, para àqueles seres fracos que vêem no próprio
curso natural das coisas um ambiente no qual sua sobrevivência torna-se impossível. Por
conta disso, Nietzsche assevera: “Quem tem motivo para furtar-se mendazmente à realidade?
Quem com ela sofre. Mas sofrer com a realidade significa ser uma realidade fracassada...”
(AC § 15, p. 21). A vida é, deste modo, categoricamente destituída de todo valor e sentido
pela perspectiva cristã, que transfere todo valor dado a única vida possível, neste mundo, para
uma outra vida, em um mundo absolutamente fictício, retalhado, anêmico e atrofiado,
portanto, para uma vida irrealizável e ilusória. Como explica Nietzsche: “Quando se coloca o
centro de gravidade da vida não na vida, mas no ‘além’ – no nada –, despoja-se a vida do seu
centro de gravidade” (AC § 43, p. 50). Conseqüentemente, por dividir o mundo em dois, o
cristianismo conduz a humanidade numa via inexorável em direção ao niilismo, uma vez que
tal vontade de nada, em que os supremos valores que fundamentam a vida perdem todo o
sentido, constituí-se a própria lógica da décadence. Isso se deve ao fato de que no cristianismo
a vontade de poder se transmuta em incapacidade para o poder, vacilando e se tornando
débil, cessando de buscar superação, dando preferência unicamente a conservação, sendo
direcionada a um reino de pura abstração, puro conceito, o que representa um mero desvio
para o louvor do nada, visto que “o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer...”
(GM III § 28, p. 149) e no conceito cristão de Deus “o nada [é] divinizado, a vontade de nada
canonizada!” (AC § 18, p. 23).
Todavia, se Deus foi eleito pelo pensamento metafísico, cujo fundamento é a
razão, e pela religião cristã, como a verdade suprema, a mesma racionalidade filosófica, a
mesma vontade de verdade que tornou possível a criação de uma tal ficção, acaba adquirindo
tanta força e independência que se vê obrigada a reconhecer esse Deus como aquele “nada
12
divinizado”, como a mentira suprema: é chegada a hora, portanto, de se entoar um “Requien
aeternam deo”, pois já se ouvem os “barulhos dos coveiros” a trabalhar – uma vez que “Deus
está morto!” (GC § 125, p. 148).
IV
Com a constatação da morte de Deus, a vida declinante que predomina em todo o
mundo ocidental não é ainda superada, pois um perigo ainda mais abominável para o
surgimento de uma vida ascendente aparece no horizonte, a saber, o niilismo. Como verifica
Nietzsche: “O niilismo está à porta: de onde nos chega esse hóspede, que é o mais perturbador
de todos?” (Fragmento póstumo – XII 2 [127] (2) de outono de 1885 – outono de 1886, p.
224). Para Nietzsche, esse hóspede mais que indesejável surge da própria lógica interna da
décadence. Sendo fruto de uma degeneração fisiológica, a décadence anseia legitimar uma
perspectiva que visa conservar a vida dos organismos fracos. Sendo assim, a negação do vir-
a-ser mediante o preconceito da identidade das coisas estabelece a verdade como bem
absoluto. Contudo, essa vontade de verdade acaba suplantando o próprio instinto de
conservação e torna-se uma potência independente. Com isso ela se volta contra si mesma ao
se voltar contra o Deus cristão, tido como a verdade absoluta, e, por conseguinte, contra toda
interpretação moral socrático-platônica-cristã da existência. Dessa maneira, o niilismo, a
vontade de nada, se apresenta. Sem Deus como fundamento da moral, todo valor é
questionado, nada mais faz sentido, tudo passa a ser tido como debalde. A ciência passa a ser
vista, assim, como única forma legítima de interpretação do existir, como solução do niilismo.
Não obstante, se o fundamento último da moral socrático-platônica-cristã, é a crença no valor
incondicional da verdade, isto é, na estimativa moral de que a verdade é o bem em si, a
vontade de verdade também passa a questionar a si mesma e se auto-suprime. E, como a
ciência também é movida pela vontade de verdade, ela também perde qualquer pretensão de
fundamentar novos valores, porquanto ela ainda obedece, inconscientemente, aos valores de
uma forma de vida decadente. Como sustenta Nietzsche em Genealogia da moral (1887):
– A partir do momento em que a fé no Deus do ideal ascético é negada, passa a existir um novo problema: o problema do valor da verdade. – A vontade de verdade requer uma crítica – com isso determinamos nossa tarefa –, o valor da verdade será experimentalmente posto em questão...(GM III § 24, p. 140).
Tendo isso em vista, Nietzsche atesta que toda a filosofia ocidental sempre
trabalhou a serviço de uma moral decadente, de uma moral do ressentimento, justamente
13
porque, a despeito das querelas intermináveis próprias de todo sistema filosófico, algo sempre
manteve unidos todos os filósofos ocidentais como que sobre um abrigo, a saber, a crença no
valor da verdade. Como diz Nietzsche: “Até agora não houve filósofo em cujas mãos a
filosofia não se tivesse tornado uma apologia do conhecimento; ao menos nesse ponto cada
um é otimista, ou seja, que deve ser atribuída ao conhecimento a mais alta utilidade” (HHI §
6, p. 19). Sócrates é o grande modelo desse otimismo, pois para ele a ignorância era o mal em
si e só por conta dela o homem era infeliz e defeituoso. Foi o exemplo funesto e irremediável
de Sócrates que marcou o início de uma desagregação dos valores vitais, ou seja, seu
sacrifício, seu martírio em nome da verdade. Assim, Nietzsche já constatara no Nascimento
da tragédia (1871): “[...] Sócrates [é] o protótipo do otimista teórico que, na já assinalada fé
na escrutabilidade da natureza das coisas, atribui ao saber e ao conhecimento a força de uma
medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo” (NT § 15, p. 94). Sócrates é,
portanto, para Nietzsche, o grande responsável pelo declínio da sabedoria grega, que mediante
uma ilusão artística, ou seja, a tragédia, conseguiu superar o pessimismo advindo de uma
visão profunda da “essência” das coisas. Como esclarece Nietzsche: “[No Nascimento da
tragédia] eu percebi Sócrates e Platão como sintomas de declínio, como instrumentos de
dissolução grega, como pseudo gregos, antigregos” (CI, O problema de Sócrates § 2, p. 18).
Dessa forma, com Sócrates e Platão, a vontade de verdade teve a sua primeira grande
manifestação e legitimação.
O aforismo 344 da Gaia Ciência, pertencente ao livro V da obra (escrito, assim
como os prefácios e Além de bem e mal, em 1886), levanta o questionamento sobre o que é
essa vontade de verdade: “Será a vontade de não se deixar enganar? Será a vontade de não
enganar?” (GC § 344, p. 235). Nietzsche responde afirmativamente a essas perguntas, porém
argumenta que não querer enganar, também inclui não querer enganar a si mesmo. Mas por
que o engano é tão indesejável a ponto do auto-engano ser repudiado com a mesma força e
determinação que àquele dirigido a outrem ou provindo de outrem? Ora, percebe-se que
ninguém quer se deixar enganar porque crê que isso lhe seria prejudicial, nocivo, perigoso. No
entanto, como sabê-lo realmente: a mentira, a aparência e o engodo mostram-se
constantemente tão necessários para a vida quanto o seu oposto. Portanto, a convicção de que
a verdade é proveitosa nada mais é do que um mero preconceito. “Por conseguinte”, atesta
Nietzsche, “‘vontade de verdade’ não significa ‘Não quero me deixar enganar’, mas – não há
alternativa – ‘Não quero enganar, nem sequer a mim mesmo’: - e com isso estamos no terreno
da moral” (GC § 344, p. 236). Deste modo, sem ter qualquer fundamento na efetividade, a
14
vontade de verdade, que busca o conhecimento verossímil por atribuir-lhe um valor
inestimável, assenta-se sobre um tipo de valoração fisiologicamente determinado.
No prefácio de Aurora, Nietzsche se confessa ainda um herdeiro dessa vontade de
verdade. A obra representa o grande libelo do filósofo contra os juízos da moral ocidental. A
confiança na moral socrático-platônica-cristão é, em Aurora, derrubada, contudo, isso não se
faz desinteressadamente, mas, sim, como admite Nietzsche: “Por moralidade!” (A, Prefácio §
4, p. 13). Nietzsche percebe que, mesmo para ele, ainda se dirige um “tu deves”, porquanto,
devido a uma probidade intelectual: “[...] não desejamos voltar ao que consideramos superado
e caduco, a algo ‘indigno de fé’, chame-se ele Deus, virtude, verdade, justiça, amor ao
próximo [...]” (Idem)14. Apenas como “criatura da consciência”, diz Nietzsche se considerar
parente da tradição filosófica própria do espírito alemão, que tem na honestidade intelectual
sua norma mais inconscientemente enraizada. Nietzsche se declara, pois, juntamente com os
“alemães atuais e tardios”:
[Como sucessores] da retidão e piedade alemãs de milênios, embora como seus rebentos mais discutíveis e derradeiros, nós, imoralistas, nós ateus de hoje, e até mesmo, em determinado sentido, como seus herdeiros, como executores de sua mais íntima vontade, de uma vontade pessimista, que não teme negar a si mesma, porque nega com prazer! Em nós se realiza, supondo que desejem uma fórmula – a auto-supressão da moral. – – (Idem, pp. 13-14).
É com o monge alemão Martinho Lutero, que esse desdobramento da vontade de
verdade, isto é, a honestidade intelectual, enraíza-se no espírito alemão. A sentença que
Lutero pronunciou na assembléia de Worms, em 1521, quando se negou a abdicar de suas
idéias acerca da doutrina cristã, é o verdadeiro lema da consciência intelectual alemã, a saber:
“Aqui estou eu! Não sei agir de outra forma!” (apud GC § 146, p. 158)15. A análise das fontes
bíblicas, empreendida por Lutero, deu início a uma forma de se pensar até então inédita, tendo
como sua principal diretriz a liberdade de pensamento e a probidade intelectual em nome da
veracidade, a despeito de tal postura ser, contudo, em Lutero, contrária à razão, sustentando-
se numa fé cega, absurda e pietista, na crença em Deus como a suprema verdade: “Credo quia
absurdum est”16 [creio porque é absurdo], costumava dizer Lutero. É claro que Nietzsche
14 Em Humano, demasiado humano, Nietzsche, no mesmo sentido, também alega: “Mas certamente a frivolidade ou a melancolia, em qualquer grau, é melhor do que uma meia-volta ou deserção romântica, do que uma aproximação ao cristianismo sob qualquer forma: pois no presente estado do conhecimento já não é possível nos relacionarmos com ele sem manchar irremediavelmente nossa consciência intelectual e abandoná-la diante de nós mesmo e dos outros” (HHI § 109).15 O próprio Nietzsche não hesita em utilizar essa expressão, de forma ligeiramente modificada e mesmo literalmente, em várias passagens de sua obra como uma espécie de palavra de ordem. Cf., por exemplo, GC, Prefácio § 3 e EH, Por que escrevo tão bons livros § 2. 16 Cf. A, Prefácio § 3, p. 12.
15
condena severamente Lutero por ter restaurado o cristianismo, quando este sucumbia e
possibilitava, a partir de sua própria desagregação, o triunfo dos valores afirmadores da vida
durante a Renascença17. Todavia, a Reforma Protestante se constituiu na grande formadora da
cultura alemã, daí porque toda a filosofia alemã agiu sempre como mantenedora daquela
probidade intelectual, sob o jugo, portanto, desse último e mais fatal desenvolvimento da
vontade de verdade.
A despeito de a honestidade intelectual ser um elemento característico da cultura
alemã, não se deve, segundo Nietzsche, somente aos alemães a vitória sobre a crença em
Deus. Como assegura o filósofo: “[...] o declínio da crença no Deus cristão, a vitória do
ateísmo científico, é um evento de toda a Europa, no qual as raças todas devem ter seu
quinhão de mérito e honra” (GC § 357, p. 255). É como bom europeu, afirma Nietzsche, que
Schopenhauer com seu pessimismo acerca do valor da existência, manteve-se, honestamente,
ateu. A descrença em Deus era, para Schopenhauer, pressuposto de sua filosofia. Mas essa
retidão intelectual “que finalmente se proíbe a mentira de crer em Deus...” (Idem, p. 256), não
é um fenômeno acidental, sua origem remonta a uma “educação para a verdade que dura dois
mil anos” (Loc. Cit.), ou seja, ao próprio cristianismo, a sua lógica intrínseca. Como verifica
Nietzsche:
Vê-se o que triunfou realmente sobre o Deus cristão: a própria moralidade cristã, o conceito de veracidade entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço (Idem).
A própria vontade de verdade, entretanto, após recusar o seu grande paradigma,
isto é, Deus, como uma farsa, dando vazão ao seu procedimento natural, tem como último e
mais fatal movimento a volta sobre si mesma, e, dessa forma, se auto-anula, ao constatar que
também repousa sobre um preconceito moral, ou seja, sobre uma mentira: o preconceito de
que a verdade é um bem. Como Nietzsche problematiza no importante aforismo primeiro de
Além de bem e mal:
A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos reverenciaram: que questões essa vontade de verdade não nos colocou! [...] Quem, realmente, nos coloca questões? O que, em nós aspira realmente “à verdade”? – De fato, por longo tempo nos detivemos ante a questão da origem dessa vontade – até afinal parar completamente ante uma questão ainda mais fundamental. Nós questionamos o valor dessa vontade. Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Ou a insciência? (BM § 1, p. 9).
17 Cf. EH, “Por que escrevo tão bons livros: o Caso Wagner” § 2.
16
Nietzsche percebe, pois, que, quando ele se pergunta sobre o valor da verdade, é
ainda a própria vontade de verdade que, almejando ir ao fundo de todas as coisas, força-o a
fazê-lo. Por que se desejaria saber se a verdade tem ou não um valor legítimo caso já não
estivesse pressuposto, de antemão, que a verdade das coisas deve vir à tona a todo custo? E,
ao se perguntar por que deseja tanto saber a verdade, a própria vontade de verdade, manifesta
em Nietzsche, descobre ser fundada no juízo moral de que a veracidade seria o bem supremo
e, não suportando o fato de ter sido erigida por um tal erro, suprime a si mesma – por dever
moral. Assim sendo, efetiva-se finalmente a auto-supressão da moral.
Mas será que a verdade pode ser realmente prejudicial para a vida? Nietzsche
responde que sim, sobre vários aspectos. Isso porque a vida é continuamente condicionada
pelo erro, pela ilusão. “Algo pode ser verdadeiro”, adverte o filósofo, “apesar de nocivo e
perigoso no mais alto grau” (BM § 34, p. 41). E em Humano, demasiado humano, ele
aconselha: “Você [espírito livre] deve apreender a injustiça necessária de todo pró e contra, a
injustiça como indissociável da vida, a própria vida como condicionada pela perspectiva e sua
injustiça” (HHI, Prefácio § 6, p. 13).
Em “Da utilidade e desvantagem da história pra a vida” (1874), a segunda das
Considerações Extemporâneas, Nietzsche já defendia a necessidade do engano para a
preservação e promoção da vida. A história não deveria, de acordo com Nietzsche, tornar-se
uma ciência pura, isto é, ser buscada apenas para a obtenção da verdade em si. Ora, para
Nietzsche, muita coisa sobre o passado deve permanecer oculta para o próprio bem estar da
vida humana. O filósofo evoca, para isso, a faculdade ativa do esquecimento da qual os
indivíduos mais fortes e robustos são dotados. A tão invejada felicidade dos animais deve-se
justamente a sua capacidade de viverem no esquecimento. Da mesma maneira, um indivíduo
só consegue ser feliz se ele for capaz de esquecer constantemente vários episódios de sua
história pessoal. A felicidade depende, assim, do quanto alguém é capaz de agir e pensar de
forma a-histórica. Esquecer é, de acordo com Nietzsche, algo tão vital quanto dormir. Como
ele esclarece: “Esquecimento pertence a toda ação, assim como luz e trevas pertencem
igualmente a vida de todas as coisas orgânicas”18 (Co. Ext. II, Prefácio). Assim sendo, seria
possível para um indivíduo levar uma vida sem memória, e até mesmo uma vida feliz, porém
sem o esquecimento a vida não poderia se efetivar, visto que para se agir é necessário situar-
se, ainda que momentaneamente, numa perspectiva a-histórica, porque sem um certo véu de
ilusão com que tal perspectiva encobre a vida, uma ação não poderá ser efetivada, o novo não
18 [Forgetting belongs to all action, just as both light and darkness belong in the life of all organic things].
17
poderá ser criado. De tal modo agem os indivíduos mais saudáveis e aptos para as grandes
ações: todo o passado é por eles digerido e transformado em “sangue”, em substância
plasmática, energética, que os impulsiona para a ação, aquilo que no passado não pode ser
subjugado, eles sabem como esquecer. Por conseguinte, Nietzsche defende que: “[...] para a
saúde de um indivíduo em particular, de um povo, e de uma cultura o a-histórico e o histórico
são igualmente essenciais”19 (Co. Ext. II § 1). É necessário, portanto, voltar-se para o passado
para se adquirir força criadora, porém, o ponto de vista histórico precisa ser contido por um
ponto de vista a-histórico, que permita, sempre que necessário, o esquecimento daquilo que já
ocorreu. Dessa forma, também o desejo de conhecer, a todo custo, a verdade sobre a história,
representa um perigo incomensurável para a vida.
Não obstante, Nietzsche não nega o valor da procura da “verdade” caso essa seja
empreendida em prol da vida, o problema é quando a verdade é tomada como um bem em si,
retirando todo valor que se possa dar, igualmente, a ilusão e ao erro para a promoção da vida,
visto serem os mesmos ainda mais essenciais para a esta última do que a própria verdade.
Como esclarece o filósofo: “Com todo valor que possa merecer o que é verdadeiro, veraz,
dessinteressado: é possível que se deva atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo
e à cobiça um valor mais alto e mais fundamental para a vida” (BM § 2, p. 10).
Sendo assim, Nietzsche contrapõe à vontade de verdade a vontade de engano
(Wille zur Täuschung)20, isto é, uma vontade de traçar limites para o saber em nome da
preservação e da elevação da vida, que continuamente deve ser resguardada de uma indecente
vontade que almeja desnudar todas as coisas, mesmo que para isso a vida tenha que sofrer
danos terríveis e irreparáveis. Deve-se atentar, evidentemente, para o fato de que também há
ilusões nocivas para a existência, assim como o é a própria estimativa de que a verdade seja
um bem. “A falsidade de um juízo”, alega Nietzsche, “não chega a constituir, para nós, uma
objeção contra ele [...] A questão é em que medida ele promove e conserva a vida” (BM § 4,
p. 11). O que Nietzsche sustenta é que, para o surgimento de uma vida elevada, forte e
saudável é imprescindível que o engano seja, em grande medida, desejado. Como patenteia o
filósofo:
– Perdoem-me a brincadeira dessa caricatura e expressão sombria: pois eu mesmo aprendi há muito a pensar de outro modo, a avaliar de outra maneira o enganar e o ser enganado, e guardo ao menos alguns socos para a fúria cega com que os filósofos resistem a ser enganados. Por que não? Não passa de um preconceito moral que a verdade tenha mais valor que a aparência; é inclusive a suposição mais
19 [(…) for the health of a single individual, a people, and a culture the unhistorical and the historical are equally essential].20 Cf. BM § 2, p. 9.
18
mal demonstrada que já houve. Admita-se ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com base em avaliações e aparências perspectivas (BM § 34, p. 39).
Eis porque a ciência moderna não representa um tipo de conhecimento no qual a
vida se vê resguardada dos malefícios de uma moral decadente. Na terceira dissertação de
Genealogia da moral, ao se questionar “de onde procede o tremendo poder do ideal ascético,
do ideal sacerdotal, embora ele seja o ideal nocivo por excelência, uma vontade de fim, um
ideal de decadénce” (EH, Por que escrevo tão bons livros: Genealogia da moral, p. 97),
Nietzsche verifica que o problema do sentido do sofrimento é o que garante o sucesso da
moral do ressentimento, que tem no ideal ascético o modelo do tipo homem, ou seja, a própria
prática ativa da negação da vida como objetivo maior. O sentido do sofrimento fornecido pelo
ideal ascético, ou seja, o sofrimento como um veículo de ascensão a uma outra vida, livre de
todas as mazelas e reveses, faz com que a penúria seja suportada, e até mesmo que a dor seja
deliberadamente buscada como passagem para aquela realidade transcendente, de pura
abstração, de puro nada. Mas todo o sucesso da moral ascética deve-se apenas a “faute de
mieux” [falta de coisa melhor] (EH, Loc. Cit.), isto é, porque nenhuma outra interpretação
para o sofrimento havia logrado ainda se impor. Todavia, de acordo com Nietzsche, a ciência
moderna não representa uma alternativa sustentável para o ideal ascético. Como sentencia o
filósofo:
Não! Não me venham com a ciência, quando busco o antagonismo do ideal ascético, quando pergunto: “onde está a vontade oposta, na qual se expressa o seu ideal oposto?”. Para isso a ciência está longe de assentar firmemente sobre si mesma, ela antes requer, em todo sentido, um ideal de valor, um poder criador de valores, a cujo serviço ela possa acreditar em si mesma – ela jamais cria valores [...] Ambos, ciência e ideal ascético, acham-se no mesmo terreno – já o dei a entender – : na mesma superestimação da verdade (mais exatamente: na mesma crença na inestimabilidade, incriticabilidade da verdade), e com isso são necessariamente aliados – de modo que, a serem combatidos, só podemos combatê-los e questioná-los em conjunto (GM III § 25, pp. 140-141).
Deste modo, como a ciência moderna representa apenas o desdobramento de um
arcabouço axiológico proveniente de um modo de vida malogrado, ela não pode se tornar, por
si própria, criadora de novos valores que exaltem e que enalteçam a vida. É necessário antes
que a ciência se submeta a uma nova forma de valoração, visto que ela mesma é incapaz de
criar valores. A “Gaia Ciência” proposta por Nietzsche diferencia-se, assim, diametralmente
daquele modelo de ciência tradicional, ela antes representa uma jovial segunda inocência, ou
seja, uma volta livre e espontânea à ingenuidade, um modo de ser e agir que alegremente traça
19
limites para o questionamento do mundo, para a preservação e afirmação da existência. Como
mostra o filósofo: “Algumas coisas sabemos agora bem demais, nós sabedores: oh, como hoje
aprendemos a bem esquecer, a bem não saber, como artistas” (GC, Prefácio § 4, p. 14). A
ciência deve, dessa forma, ser utilizada como instrumento, como recurso a favor da vida, mas,
para isso, ela deve antes obedecer a uma potência artística. Somente a arte pode, assim,
representar um contraponto legítimo para a moral ascética. Como esclarece Nietzsche:
[...] a arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa consciência a seu favor, opõem-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético: assim percebeu o instinto de Platão, esse grande inimigo da arte, o maior que a Europa jamais produziu. Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o inteiro antagonismo (GM III § 25, p. 141).
No prefácio de Humano, demasiado, humano, livro no qual Nietzsche rompe com
os seus antigos mestres e abandona as suas antigas esperanças, procurando trilhar um caminho
próprio, o filósofo confessa que foi obrigado, devido à solidão de sua empresa na luta contra
os valores constituídos, a criar artisticamente companheiros de luta: Schopenhauer, Wagner,
os gregos, e os alemães e o seu futuro. Pois, como ele afirma: “[...] a vida não é excogitação
da moral: ela quer ilusão, vive da ilusão” (HHI, Prefácio § 1, p. 8).
Não é, todavia, a qualquer arte que Nietzsche se refere, pois a arte também pode
servir para glorificar os valores decadentes. Nietzsche procura uma arte dionisíaca na qual a
vida é afirmada em sua totalidade. Assim sendo, o símbolo do deus Dionísio, celebrado na
tragédia grega, representa, para o filósofo, a suprema afirmação da vida e da efetividade com
todos os seus aspectos e com todas as suas contradições, que não são vistas como elementos
negativos, mas necessários para que a vida possa se superar. Como evidencia Nietzsche: “O
dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos [...] a isso chamei
dionisíaco” (CI, O que devo aos antigos § 5, p. 106). Essa visão é francamente oposta ao
símbolo do Crucificado, em que a grande inimizade contra a vida se traduz e se exibe com
toda o seu rancor e pendor para o ódio vingativo contra o vir-a-ser: “[...] a cruz como
distintivo da mais subterrânea conspiração que já houve – contra saúde, beleza, boa
constituição, bravura, espírito, bondade de alma, contra a vida mesma...” (AC § 62, p. 79).
Não é à toa, portanto que Nietzsche encerra a sua autobiografia, Ecce Homo (1888), com a
sentença: “– Fui compreendido? – Dionísio contra o Crucificado...” (EH, Por que sou um
destino § 8, p. 117).
Dessa forma, desfaz-se toda tentativa de conferir à filosofia de Nietzsche um
caráter meramente destrutivo e negador. Sua crítica à vontade de verdade, constitui-se na sua
20
última tarefa enquanto herdeiro de uma tal vontade, de um tal preconceito moral, operando,
assim, a auto-supressão da moral. Tal fenômeno possibilita, contudo, a instauração de um
novo modelo interpretativo para a existência, no qual um olhar sadio sobre a vida, uma
potência artística que brota diretamente da saúde e da plenitude, uma afirmação dionisíaca da
vida, deve reger todas as formas de olhares, cuja tarefa primordial será a criação de novos
valores, valores que possibilitem a elevação da vida. Destarte, a religião, a filosofia, a ciência,
a própria arte, e mesmo a moral, não terão mais um valor em si mesmas, mas sim enquanto
instrumentos para a preservação e para a promoção da vida, porque todas essas formas do
saber humano têm potencial tanto para ser voz da saúde quanto da debilidade. A vontade de
verdade, representava, pois, o grande obstáculo para a afirmação da vida enquanto superação
de forças, somente após sua superação, têm-se início a criação de novas tábuas de valores,
uma transvaloração de todos os valores. Daí porque Nietzsche assevera:
Não, esse mau gosto, essa vontade de verdade, de “verdade a todo custo”, esse desvario adolescente no amor à verdade – nos aborrece: para isso somos demasiadamente experimentados, sérios, alegres, escaldados, profundos... Já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu... Hoje é, para nós, uma questão de decoro não querer ver tudo nu, estar presente a tudo, compreender e “saber” tudo. “É verdade que Deus está em toda parte?”, perguntou uma garotinha à sua mãe; “não acho isso decente” – um sinal para filósofos!... Deveríamos respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por trás de enigmas e de coloridas incertezas. Talvez a verdade seja uma mulher que tem razões para não deixar ver suas razões? [...] Oh, esses gregos! Eles entendiam do viver! Para isto é necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, adorar a aparência, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais – por profundidade! E não é precisamente a isso que retornamos, nós, temerários do espírito, que escalamos o mais elevado e perigoso pico do pensamento atual e de lá olhamos em torno, nós, que de lá olhamos para baixo? Não somos precisamente nisso – gregos? Adoradores das formas, dos tons, das palavras? E precisamente por isso – artistas? (GC, Prefácio § 4, pp. 14-15).
Por conseguinte, a crítica de Nietzsche à vontade de verdade revela que todo tipo de
valoração tem uma origem extra-moral, ou seja, toda valoração é uma interpretação
condicionada fisiologicamente. Querer conhecer a verdade a todo custo, é um preconceito
moral que surge de um tipo de vida degenerado. Os organismos fracos se sentem
constantemente ameaçados pelo vir-a-ser, e elaboram por ressentimento, vingança e artifício
de dominação, a ficção da identidade das coisas, do ser. Com isso, todavia a vida é despojada
de todo o seu valor, pois é justamente pela mudança, pelo combate perene de forças, que a
vida pode se efetivar. O mundo transcendental elaborado pela metafísica como o único e
verdadeiro mundo, onde o ser se realizaria, acaba servindo como parâmetro de negação do
mundo efetivo. Ora, vida e aparência se correlacionam, negar a ilusão, a mentira, é negar a
21
própria vida, porquanto está última é condicionada pelo véu da aparência. Um tipo de vida
saudável, robusto e ascendente, vê na arte a única maneira legítima de se interpretar a
existência. Encarar a arte como potência criadora de valores que exaltam e louvam a vida é,
para Nietzsche, a única forma de promover e elevar ao máximo a vida, mediante uma
transvaloração de todos os valores.
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