Nilo Batista - Politica criminal com derramamento de sangue

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I L,,/ , 2. DOUTRINA NACIONAL POLITICA CRIMINAL COM DERRAMAMENTO DE SANGUE NILO BATISTA A pena e urn meio extrema; como tal e tambem a guerra. - TOBIAS BARRETO. SUMARIO; 1.1ntrodu\!Ro - 2. 1914-1964: 0 modelo sanitaria - 3.0 modele belieD - 4. As marcas da guerra. 1. Para evitar idealistas, no eresente estud.2 ,3. poUtica cri- minal nao se referipi apenas. como no conceito de Zipf, a "obten,ao e realiza- de criterios diretivos no ambito da crimina1"1, nela se ,0 desempenho concreto das agencias pu- blicas, policiais au judiciarias, que se encarregam da cotidiana nao s6 dos crit6rios diretivos enunciados ao nfvel normativo, mas tambem daque- les, outros criterios, silc;mchldos au nega- dos pelo discurso jurfdica, parem legiti- mados socialmente _pela recorre-ncia e acatamento de sua Assim, por exemplo, quando a pol{cia mensalmente executa (valendo-se de expedientes encobridores as mais diversos, da simu- de confronto ao charnarnento a autoria de gangues rivais) urn mlmero constante de pessoas, verificanda-se ademais que essas pessoas tern a ITlesma social, faixa etaria e etnia, nao se pode deixar de reconhecer que a po1{tica criminal farmulada para e por essa polfcia contempla a exterrnfnio como tatica de e contrale do gru- U) Zipf, Heinz, lntroduccion a la Pof{tica Criminal, tract M.l. Macias-Picavea, Ca,racus: 1979, EDR, p. 4. po social vitimizado - mesrno que a proclame caisa diferente Por autro lado, COmo pioneiramente entre nos observava Helena Fragoso; CIa pol{- tica criminal e parte da pa1{tica social"2, e essa conexao - melhor dirfamos con- tinuidade - pade ser urn importante ex- pediente metodol6gico para 0 esclareci- mento de seus programas e objetivos. Retamando 0 exemplo anterior, a com- placencia, indifereo\=a ou mesmo 0 aplau- so pani com rotinas paliciais de e exterm(nio sinaliza para a. incorpora\=ao desses instrumentos por parteda polftica social desenvolvida - par mais que indigna\=oes oportuoistas ou 0 sacriffcio periodico de bodes expiatorios procurem -sugerir _coisa di- versa. E nosso abjetiva compreender a poll- tica criminal para dragas no J:3rasil e seus reflexos no direito e no processo penal; como -se sabe, encontramos hoje uma (2J de Direito Penal, PG, Rio, 1987, Forense, p. 17. Alessandro Baratta obser- vava recentemente que "a contraposiltao entre politica de seguranlta e politica cial nao e 16gica mas sim ideol6gica" (Defesa dos direitos humanos e politica criminal, in Discursos Sediciosos me, Direito e Sociedade, Rio: 1997, n.o 3, p. 58).

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I L,,/ , 2. DOUTRINA NACIONAL

POLITICA CRIMINAL COM DERRAMAMENTO DE SANGUE

NILO BATISTA

A pena e urn meio extrema; como tal e tambem a guerra. - TOBIAS BARRETO.

SUMARIO; 1.1ntrodu\!Ro - 2. 1914-1964: 0 modelo sanitaria - 3.0 modele belieD - 4. As marcas da guerra.

1. Introdu~ao

Para evitar distor~5es idealistas, no eresente estud.2 ,3. ~xpressaQ poUtica cri­minal nao se referipi apenas. como no conceito de Zipf, a "obten,ao e realiza­~ao de criterios diretivos no ambito da justi~a crimina1"1, nela se Jnc1uinc"~ ,0

desempenho concreto das agencias pu­blicas, policiais au judiciarias, que se encarregam da implementa~ao cotidiana nao s6 dos crit6rios diretivos enunciados ao nfvel normativo, mas tambem daque­les, outros criterios, silc;mchldos au nega­dos pelo discurso jurfdica, parem legiti­mados socialmente _pela recorre-ncia e acatamento de sua aplica~ao. Assim, por exemplo, quando a pol{cia mensalmente executa (valendo-se de expedientes encobridores as mais diversos, da simu­la~ao de confronto ao charnarnento a autoria de gangues rivais) urn mlmero constante de pessoas, verificanda-se ademais que essas pessoas tern a ITlesma extra~aa social, faixa etaria e etnia, nao se pode deixar de reconhecer que a po1{tica criminal farmulada para e por essa polfcia contempla a exterrnfnio como tatica de aterroriz~ao e contrale do gru-

U) Zipf, Heinz, lntroduccion a la Pof{tica Criminal, tract M.l. Macias-Picavea, Ca,racus: 1979, EDR, p. 4.

po social vitimizado - mesrno que a Canstitui~aa proclame caisa diferente Por autro lado, COmo pioneiramente entre nos observava Helena Fragoso; CIa pol{­tica criminal e parte da pa1{tica social"2, e essa conexao - melhor dirfamos con­tinuidade - pade ser urn importante ex­pediente metodol6gico para 0 esclareci­mento de seus programas e objetivos. Retamando 0 exemplo anterior, a com­placencia, indifereo\=a ou mesmo 0 aplau­so pani com rotinas paliciais de aterroriza~ao e exterm(nio sinaliza para a. incorpora\=ao desses instrumentos por parteda polftica social desenvolvida -par mais que indigna\=oes oportuoistas ou 0 sacriffcio periodico de bodes expiatorios procurem -sugerir _coisa di­versa.

E nosso abjetiva compreender a poll­tica criminal para dragas no J:3rasil e seus reflexos no direito e no processo penal; como -se sabe, encontramos hoje uma

(2J Li~6es de Direito Penal, PG, Rio, 1987, Forense, p. 17. Alessandro Baratta obser­vava recentemente que "a contraposiltao entre politica de seguranlta e politica so~ cial nao e 16gica mas sim ideol6gica" (Defesa dos direitos humanos e politica criminal, in Discursos Sediciosos ~ Cri~ me, Direito e Sociedade, Rio: 1997, n.o 3, p. 58).

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polftica criminal (sem trocadilho) depen­dente de certas articula~5es internacio­oais, que gosta de apresentar-se como uma guerra. De fato, se olharmos 0 atual cemlrio americana, que polftica criminal i'essaque-<conTeffipla opera~oes milita­res em territorios estrangeiros, que dis­tingue grupos aliados e beligerantes, promove acumula<;ao e intercambio de infonna<;oes em plano intemacional e interven<;ao permanente da fede diplo­matiea, administra of<;amentos astrono­micas, celebra crescentemente tratados que versam desde compromissos crirni­nalizadores ate erradicay3.o de culturas e extradi90es, passando por patrulhas maritimas e helicopteros, e oa qual se pretende envolver a cada dia mais inten­samente as foryas armadas?

Clausewitz observou, com finura, que "a guerra e urn instrumento da polftica: ela traz necessariamente a marca desta polftica."J Tomemos a primeira ~ do apio, que come9a em 1839, oito anos ap6s a morte de Clausewitz. Temos ali uma guerra 9ll favor do comerciQ. do opio, em favor ·dos negociantes ingleses (havia-os tamMm narte-americanos) que levavam 0 apia da india para a China, como etapa de urn circuito comercial trfplice. 0 conflito opunha de um lado a decisao do imperador chines de inter­romper e proibir 0 comercio e 0 uso do 6pio, e de outro "os enonnes investimen­tos ingleses na produC;ao e distribuiC;ao da droga e 0 papel crucial representado pelos rendimento. do apia na estratogia da balan9' de pagamentos internacional da Inglaterra". 4 Sem nenhuma duvida, a ~guerra do 6pio traz "a marca da polItica"

(3)

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Clausewitz, Carl von, Da Guerra, trad. T.B.P. Barroso, Brasilia: 1979, ed. UnB, p.743. Spence, Jonathan D., Em Busca da Chi­

na Moderna, trad. T.R. Bueno e P.M. Soares, Sao Paulo: 1995, Cia. das Letras, p. 151.

que a viabilizou: oficialmente. a rainha Vit6ria nada sabe da droga, mas se pre~ ocupa sim com as violencias e "injusti~ 9as" (leia-se 0 confisca do apio) cantra seus suditos, e 0 Parlamento autoriza 0 envio da frota para obter "reparac;oes" (leia-se indeniza9ao pela perda das esto­ques de 6pio confiscados, afinal avalia­dos em seis milh5es de d6lares, confor­me 0 art. 4.° do tratado de Nanquirn, cujo art. 3.° entregava a ilha de Hang Kong a saberania inglesa).' A condu9ao das operac;5es militares tambem revel a "a marca da polftica", objetivando uma asfixia em suprimentos e~ternos e urn gradual avan90 de posi90es (favorecido pela fosso tecnalagica) que conduza iI. rendic;ao e ao acordo para as "repara­c;;:5es"; nao.era uma campanha para des­tituir 0 governo nem destruir a nac;ao chines a (0 Parlamento nao declarara guerra a China), e por mais que as documentos oficiais 0 dissimuIem, a estrategia inclufa a sobrevivencia do Estada-devedor e dos cansumidores de opio que haviam criado aquele mercado aparentemente infinito.

Se 0 relativamente f'cil perceber "a marca- da polItica" diante de uma guerra em favor do tnlfico de drogas, as coisas se complicam quando pretendemas per­ceber as caracterfsticas da polftica crimi­nal que elegeu a propria guerra como metodo, .cia polftica criminal que se ve e se pretende guerra contra as drogas .. Teremos que inverter 0 percurso, e ao inves de, como Clausewitz, procurar na guerra· a marca da polftica, tratar de vislumbrar nessa polftica criminal as marcas da guerra·.

2. 1914-1964: 0 modelo sanitario

A legisla9ao anterior a 1914, seja aquela inscrita na tradic;ao, que remonta as Ordena90es Filipinas (V, LXXXIX),

'" Spence, op. cit., pp. 165 e 169.

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das Usubstancias venenosas" (expressao empregada no CP 1890, art. 159), com sabor de delito profissional dos botic'ri­os, preventivo do veneffcio, seja aquela esparsa em posturas municipais, como a proibi9ao do "pita-de-panga" pela Ca­mara do Rio de Janeiro, em 18306 , a legislal'ao anterior a 1914 nao dispoe de massa normativa que permita extrair-Ihe uma coerencia programatica especffica.

Tendo 0 Brasil subscrito, no proprio ano de 1912, 0 protocola suplementar de assinaturas da Conferencia Internaciomd do 6pio, realizada em Haia, 0 I~' ~de 08.07.14, sancionau a Resolu-9ao do Congresso Nacional que aprova­ra a adesao. Atravos do Dec. 11.48 I, de 10.02.15 - que mencionava "a abuso crescente do opia, da morfina e seus derivados, bern como da cocafna" Wenceslau Braz determinava a obser­vancia da Convenc;ao. E nesta ocasiao que a palmca criminal brasileira para drogas comec;a a adquirir uma configu­ra9ao definida, na dire9ao de urn modelo que chamaremos "sanitario", e que pre­valecenl por meio seculo.

Seis anas depois, 0 Dec leg. 4.294, de 06.07 21, sancionado por Epit.cio Pes­soa, revogaria 0 art. 159 do CP 1890 para introduzir a hip6tese na qual ua supstancia venenosa tiver quaJidade en­torpecente, como 0 opio e seus _deriva­dos, a cocafna e seus derivados" (art. 1.°, par. un.); foi enta~ que a expressao "entorpecente" iniciou sua longa e poJissemica carreira no direito penal brasileiro. Tamberri as disposi~5es sabre embriaguez e venda abusiva de bebidas da CP 1890 (arts. 396, 397 e 398) eram expiessamente revogadas, porque 0 Dec. 4.294121 disciplinava inovadoramente a materia, e devemos examinar uma des-

'" Cf. Nilo Batista, A cura, 0 extase e a transcendencia, in 0 D. Gon9alves e F.I. Bastos (orgs.), S6 Socialmente, Rio: 1992, Relume-Duman'i, p. 60.

sas inova~5es. Distinguindo - ao eontra-' rio do CP 1890 - entre a embriaguez escandalosa e a habitual, a decreta esta­beleceu que a segunda se responderia com "internac;ao par 3 meses a 1 ano em estabelecimento correcionaI adequado", soluc;ao que viria a influenciar a ainda vigente Lei de Contravenc;;:oes Penais (art. 62 e par. un.). Em correspondencia a tal soluc;ao, as intoxicados upor subs­tancia venenosa que tiver qualidade en­torpecente" se sujeitavam -a _,:.).lma internaC;aa compuisoria "para evHar a pratica de atos criminosos au a completa perdi9ao moral" (art. 6.°, § 2.°, al. a). A regulamenta9ao desse decreta legislativo, efetuada dais meses depois atraves do Dec. 14.969, de 03.09.21, previa a cda­C;ao do "Sanat6rio para taxicomanas" no Distrito Federal, mas enquanto isso -nao ocorresse as internac;oes dos intoxicados - que estavam sujeitos a interdic;ao - se dariam na ColOnia de Alienados (art. 9.°, § 5.°). Este Dec. 14.969/21 dispunha tam bern sobre controle das subsUincias entorpecentes nos despachos alfandegari­os e no varejo das farmadas, nurn esbo-90 que seria rendilhadamente desenval­vido nos aDos trinta - como ja veremos rnais ponnenorizadamente -, regulamen­tando tambem 0 procedimenta judici'rio (art. 15 ss) e prevendo ainda, em seu art. 8.°, responsabiJizac;ao como autores do droguista,_ do farrnaceutieo, do pnitico,

. de "qualquer outro comerciante" e final­mente do "particular" que, conforme 0

caso, vendesse, expusesse a venda au ·ministrasse tais substancias, enquanto 0

"portador e a entregador" seriam puni­dos como autores, em easo de auxilio necessario, ou como cumplices sob qual­quer outra modalidade participativa:· es­tas dispasic;5es sobre autoria e participa­C;ao tiveram porventura a func;;:ao de eli­minar tada duvida sabre 0 carater co­mum, nao especial (profissional) do cri­me.

Mas 0 passo deet~SQ foi dado com a Dec. 20.930, de IIJ2l31-, cujas normas

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criminalizadoras seriam consolidadas por Vicente Piragibe, no espa90 do revogado art. 159 do CP 1890.0 Dec. 20.930, do qual alguns- dispositivos seriam altera­dos pel0 Dec. 24.505, de 29.06.34, teve sua estrutura inteiramente reaproveitada pel0 Dec. lei n.' 891, de 25.11.38, que o revogaria. No que tange as Donnas criminalizadoras, a estrutura proposta pelos tres decretos dos anos trinta, sub­metida a uma cirurgia tecnico-jurfdica, conduzini a s6bri' formula do art. 281 do CP 1940.

E importante ressaItar que esta suces­sao de decretos exprime a influencia das sucessivas convenc;5es internacionais. Ap6s a Conferencia de Haia, de 1912, sucederam-se, sob os auspfcios da Liga das Nac;5es, conferencias "complemen­tares" em Genebra, em 1925, 1931 e 1936, to'das subscritas pelo Brasil e pro­mulgadas· intemamente7 • A influeneia de tais c;onv·fmc;5es sobre a ·legislaC;ao penal brasileira - essa intemacionaliza­c;ao do controle argutamente percebida por Salo de Carvalho' - chegara para

. ficar, e nao s6 caracterizaria todo 0

perfodo do modelo sanitario como sub­sistiria, com referenciais distintos, a pr6-pria refonoa do modelo politico-crimi­nal, ate porque, como veremos oportuna­mente, 0 modelo seria reformado de fora para dentro.

Imperta agora ressaltar a [nfluencia. das convenc;oes intemaclOnals sobre 0

direito internol A convenc;ao decorrente da Conferencii'de 1925 comprometia os paises subscritore8COm uma revisao peri6dica de suas leis e regulamentos (art. II); com a fiscaliza9ao da exporta­c;ao e importac;ao, de sorte a que fossem expedidas autorizac;5es especfficas (art.

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Respectivamente atraves dos decs. 22.950, de 18.07.33,113, de 13.10.34 e 2.994, de 17.08.38. A Politica Criminal de Drogas no Brasil, Rio: 1996, Luam, p. 20.

IV, al. b e arts. XII e XIII); com 0 registro nos livros mercantis e com a reten9ao das receitas que prescrevessem substancias entorpecentes, a serem con­servadas "p'elo medico au pelo farma­c!lutieo"(art. VI;' al. c). A conven9lio decorrente da Conferencia de 1931 tra­taria de regulamentar desde os stocks de Estado" (arf. I, item 4.'; art. IV, item 2.') ate as r6tulas de comercializac;ao das drogas (art. XIX), bern como uma troca de informac;oes entre as pa[ses "sobre todo caso de trafico Bleito descoberto" (art. XXIII). E a conven9ao decorrente da Conferencia de 1936 se ocupava prin­cipalmente dos pr66Ieinas de extraterri­torialidade colocados pela repressao do trafico internacional versando, entre outros topicos, extradic;ao e reincidencia intemacional (arts. VI, VII, VIII e IX).

Nossa legisla~ao intema correspon­dente nao passa de uma ressonancia, certamente decorada com as volutas do bacharelismo tropical. porem uma assu­mida ressonancia dessas convenc;oes. 0 Dec. 20.930, de 11.01.32, mal enunciad. a lista das "substancias t6xicas entorpe­centes em geral", trata de deixar claro sua revisao peri6dica "de acordo com a evolu9ao da qufmica-terapeutica" (art. 1.°, par. un.); .. a licen9a especial para 0

'fabrico ou comercializa9ao (art. 2.') bern como 0 certificado de importac;uq (art. 8.'), registrado em livro proprio (art. 10, § 2.', e art. 21), coI}l validade anual (art. 15, par. un.), estao contemplados e regu­lamentados. A venda ao publico depen­de de receita,: que nao e restituida mas siro registrada, com numero· de ordem, em livre Hdestinado especialmente a esse fim" (art. 3.', § I.'), Iivro este que deve ser aberto, encerrado e rubricado pela autoridade sanitaria au, em sua falta, pelo '1uiz togado de primeira insHincia mais antigo na comarca ou tenno" (art. 3.°, § 2.°); tais livros, alem disso, estari­am "permanentemente sujeitos a inspe­'.rao das autoridades sanitaria, policial e judiciaria. inclusive 0 Ministerio Publi-

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co" (art. 3.°, § 3.°), e e claro que da etiqueta comercial da droga deve constar o numero de ordem da receita (art. 3.°, § 4.'). Todo 0 f1uxo importador era concentrado na alfiindega do Rio de Janeiro (arts. 11 e 14), e qualquer subs­tancia proibida destinada a alguem des­.provido do certificado de importa9ao era considerada contrabando (art. 19). Para poder intercambiar informac;6es, 0 De­partamento Nacional da SaUde Publica coordenaria dados estatlsticos e organi­zaria "a lista dos individuos implicados no tr~fico" (arts. 54 e 55). 0 Dec. 24.505, de 29.06.1934, que alterou algumas diS­posi90es do Dec. 20.930, de 11.06.32, preocupou-se com que as receitas fos­sem grafadas "em caracteres legiveis", com "identificac;ao e resideneia do me­dico e do enfermo" (art. 3.'), e lan9ada num "papel oficial", "fomecido gratuita­mente pela repartic;ao sanitaria local" (art. 3.', §§ 4.' e 5.').0 Dec.-lei 891, de 25.11.1938, recielae revoga 0 Dec. 20.930, de 11.06.32 (modificado pelo Dec. 24.505, de 29.06.34), fiel a mesma orientac;ao das conveng5es (temos agora o "stock" do Estado" - arts. 11 e 12), capilarizando 0 controle alfandegario ("guardados debaixo de chave, sob ime-diata responsabilidade do fiel do arma­zem" - art. 10, § 5.°), acrescentando a exigencia de "guia de transito de entor­pecentes" para vendas intemas (art. 16), e de maior apuro na escritura9ao daque-les livros ("sem rasuras ou emendas" -art. 17, § 2.').

D que se depreende com clareza de tais nonnas e uma.L£.oncepc;ao sanitaria de controle do t.raficgJ de urn trafico que se alimenta do desvio da droga de seu fluxo autorizado. As drogas estavam nas prateleiras das farmacias OU nos "stocks" de uma. ind~stria que apenas suspeitava

armazem e(funcionarios da alfandegalO

sao os personagens que abastecem de opiaceos au cocatna grupos reduzidos e ex6ticosJintelectuais, filhos do baronato agroexpor~or educados na Europa, artistas: u h~bito com horizonte cultu­ral bem efinido, sem significac;ao econ()mic~ que desatava a rep~esenta­gao sociar-de urn "universo misterioso", como disse Rosa del Dimoll, e m6rbido. (A maconha, embora contemplada na listagem dos artigos primeiros-, estava fora desse circuito, porque_era consumida pelos pobres, ou, para usar as palavras aristocraticas de Hungria, por "gente de macumbas au da boemia do troisieme dessous"12 ; era a "erva do norte" que figura num samba de Wilson Baptista dos anos trinta.) Nao e, contudo, apenas pela_considerac;ao do viciado como doen­te (ainda que tal considera9ao reforce 0

dade, sem interesse pecuniario, procurou atenuar 0 sofrimento de urn cIiente, pres­crevendo-Ihe em largo perfodo entorpe­centes", esclarecendo que se 0 medico "deixou de usar papel oficial, nlio foi intencionalmente. mas porque geralmente nlio era empregado no lugar e mesmo nlio existia a disposj(;lio dos medicos, na epo­ea dos fatos" (RT 168/114-117).

(10) Num processojudicial de 1921, indicado pela Revista Forense como primeira apli-ca9lio da nova lei sobre toxicomania, 0

interdito e urn oficial aduaneiro (RF XXXVIII/88). Urn dos medicos que subs-creveu 0 laudo, segundo 0 qual a intema9lio do paciente se recomendava urge~t:mente para evit~r a ".c~mpI~t~ .. __ \ perdl\=ao moral" era Heltor Carru--senten9a do juiz Abe~(>----/ .\.:;.. --~ ~arvalho cita contudg.y \ ' rior, de 30 de- s~~f'T ' \ \ Alfredo RJ§~~ '~

de seu futuro. sucesso comercial, e boti- , carios, praticos, facultativos9

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argumento, como veremos) que este modelo, no qual autoridades sanitarias, policiais e judiciarias exercem -,as ve­zes, fungivelmente - fun~oes contfnuas, merece a designa~ao de sanitaria: e que

~e pade perceber claramente 0 aprovei­

tamenta de saberes e tecnicas higienis­tas, para as quais as barreiras alfandega­rias sao instrumento estrategico no con­role de epidemias, Da montagem de tal olftica criminal; nao por aeaso, o~

20.930, de 11.06.32, LCanverteu a drogadi,aa em daen,a de natifica,aa compulsoriilJ: art. 44), naa por acasa a reten,aa de partidas irregulares sabe a quarentena, e a manipula~ao dos extraditandos evoca as precau~6es com as contaminados. Constituiria urn objeto auWnomo de estudo aprofundar as COf­

responrlencias entre medidas dessa polf­tiea criminal e, no movimento coetaneo de medicaliza~ao das institui~6es, medi­das higienistas sobre contagio e infec~ao no Rio da febre amarela e da variola, bern como a elabora~ao teorica racista da Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923, cujas membras, cama adverte Freire Costa, sonhavam com "urn sistema medico-policial" para trabalhar urn de seu topicos favoritos, 0 alcooIis­moD.

o usu~rio de drogas, dependente ou experirnentador, nao era crirninaIizado, e Hungria, que transplantoll 0 princfpio para a CP 1940, explicava porque: "a viciado atual Ga toxicomano ou simples intoxicado habitual) e urn daente que precisa de tratamento, e nao de puni~ao ( ... ) 0 ainda nao viciado nao deixa de ser uma vftima da periga de ser empolgada

(13) lurandir Freire Costa, Hist6ria da.Psiqui­atria no Brasil, Rio,1989, ed. Xenon, p. 93. Sobre medicaliza9ao das institui90es, Roberto Machado et aiH, Dana9ao da 'T.;. ... rna, Rio, 1978, Graal, pp. 278 ss;

-~~<:oes higienistas no Rio de .l., Cidade Febril,

pelo vIcio, e nao urn criminosolt14 {Como eram tratados esse doente e essa vTti'iUa:f, Estabelecido que a toxicQ.,I!!@ia era qp:-' en\=a de notifica~ao ~.Q.m.I!1.!ls"~ria, esta­yam 'os' usuarios 'de. __ d.r()gas_~_llj!!.i.~Q~_a in~~~a\=ao~' que poderia ser obrigatoria au facuft-ativa, par tempo detenninado au naa (Dec. 20.930/32, art. 45): 0 Dec.­lei 891, de 17.08.38, praibiria "a trata­mento de toxicamanos em domicflio" (art. 28). A improv'vel intema,ao facul­tativa "a requerimento do interessado" abria espa\=o para que parentes "ate 0

quarto grau colateral inclusive" (Dec. 20.930/32, art. 45, § 3.") dispusessem de urn precioso instrumento de controle intrafamiliar, atraves de uma dela\=ao com repercussao patrimonial, uma vez que a simples intema,aa, decretada pela juiz, levava-o a nomear "pessoa idonea para acautelar os interesses do intema­do", com "poderes de adrninistra\=ao", padenda a magistrada, fundada em lau­do medico, autorizar a outorga de "po­deres expressos nos casos e na fomia do art. 1.295 do Codiga Civil", ista e, 'ali­enar e hipotecar bens, entre outros (Dec.­lei 891138, art. 30). A intema,ao abriga­t6ria, contudo, era muito mais dnistica: vejamos como a tratou 0 Dec.- Jei 891, de 25.11.38.

Prevista tambem para a hip6tese de aIcoolismo, a int~J"Dll.£!~_~.b~!gat6~~~ de­pendia de representa~ao .dfLatiioridade palicial au da Ministeria Publico, e ca­bia "quanda provada a necessidade de tratamento adequado ao enfermo on quanda for canveniente a ardem publi­ca" (art. 29, §§ 1." e 2."), senda aplicavel igualmente as situa\=oes de inirnputabili­dade vinculadas ao abuso de drogas, na ocasiaa submetidas ,,' f6rrnula da "com­pleta perturba,aa de sentidas e de inte­ligencia" da Consalida,iia das Leis Pe­nais l5 • Dia1).te de "casos urgentes"(?) a

(l4) Op. cit, p. 139. (I~) Embora a nonna especial (art. 45, § 2.D,

a1. b Dec. 20.930/32 e, depois, art 29, §

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pallcia padia tamar a iniciativa de efe­lOar "a previa e imediata interna\=ao fun­dada no laude de exame, embora suma,:". rio, efetuado por dois medicos id6neo~" (art. 29, § 4."), devenda instaurar-se a procedimento judicial em cinco dias ap6s a intema9ao, levada a efeito "em hospi­tal aficial para psicapatas" au particular fiscalizado (art. 29, § 6."). A simples necessidade de "abserva,ao medica-le­gal" autorizava ·0 juiz a ordenar a interna,aa (§ 5.") . Toda diretor de hos­pital 'que recebesse toxicamanos para tratamento estava obrigado a comunicar o fato a autoridade sanitaria, que por seu tumo 0 transmitiria a polfcia e ao l\4inis­terio Publico; 0 diretor, na linha do contrale burocratico e suspei\=ao genera­lizada, deveria cornunicar "a quanti dade de droga inicialmente ministrada" e quin­zenalmente "a diminui\=ao feita na toxi­priva,aa progressiva"(§§ 7." e 8."). Se a ingresso em tais nosocomios parecia bastante facilitada, a safda era camplica­da, dependenda sempre (ainda que naa apenas) de uma atesta,aa medica de cura; a pretensao de retirar-se voluntari­amente 0 paciente deveria ser comunica­da ao juiz pelo diretor do estabelecimen­to particular, seguindo-se sua transferen­cia far,ada (§ 9."); a disciplina da Dec.' 20.930, de 11.01.32, autargava aa dire­tar da haspital particular na qual a taxi­Camano se houvera· internado facultati­vamente 0 poder de, discordando da alta, oficiar ao Ministerio Publico "mantida a intema,aa pela prazo de cinca dias" (art. 46, § 7.")! Quanda a alta era concedida, a autoridade sanitaria notificava a poll­cia "para efeito de vigilancia" (Dec.- lei 891/38, art. 29, § 10). Cabia, e claro, ao

2.D, a1. b Dec.- lei 891/38) prescrevesse interna~ao obrigat6ria para casos de "impronuocia ou absolvi9ao" decorrentes de tais situa90es, eotendia-se ,ja no regi­medo CP 1940, que "0300 exclui a respon­sabilidade a embriaguez provocada pelo uso de entorpecentes" (RF LXXXV/478),

intern ado que se entendesse curado uma rec1ama~ao para pastular do juiz 0 exa­me pericial que Ihe abriria as portas da estabelecimento (§ 13). Incantestavel­mente, a alta do paciente nao era uma decisao medica e sim uma decisao judi­cial, assimilavel a urn alvara de sohura, infonnada por urn parecer medico (art. 3.", § 4."). Alem da deficit impasta a sua capacidade jurldica, variando da nome­a,aa da curadar para casas de simples intema,aa; ate a interdi,ao plena,com equipara\=ao aos absolutamente incapa­zes (art. 30, § 5."), estava a interdita sujeito a licenciamento temponirio do carga publica que ocupasse (art. 31). Esta sfntese das regras que disciplina­yam as respostas jurfdicas a drogadi\=ao dispensam qualquer outro argumenta quanta a adequa,aa da designa,aa "ma­delo sanitario", Em sua monografia so­bre 0 alcoolismo, 0 primeiro i!varj&,to .df? Moraes designava tal sistema por "assis­tencia coactiva", semelhante - dizia ele - "a que se aplica hoje aos pestosos, e que se aplicara, no futuro, aos sifilfticos em perfodo de contagio"16.

Exarninemos, por firn, as normas pe­nais. 0 Dec. 4,22!!L~, abstrafdas as casos de embriaguez previst~~. se res­tringia a .:BJ,J.IW:...as condutas deC:vender, expor a venda ou rninistrar.Jas "subs tan­cias venenosas que tivessern qualidade entorpecente": a posse illcita nao era punida17• Ja a Dec. 20.9].0, de 11.01.32, promoveu uma interven\=ao penal muito mais arnpla e drastica, 0 tipo basico do

(HI)

(17)

Ensaios de Pathologia Social, Rio: 1924, L. Ribeiro. p. 134. "Nao incide nas peoalidades cominadas pelo Dec.·4.291, de 06:07,21, 0 indivfduo em cuja .casa IS encontrado frasco de cocafoa, escondido sob urn colchao. 0 que a· lei define como contraven9ao e vender, expor a venda ou ministrar ( ... ) entorpecente. sem legftima autoriza~ao e sem as formalidades prescritas nos regu­lamentos sanitarios'~ (RF XLV/568).

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trafico com~a a acumular mlcleos ("ven- regras pr6prias era punida com nma def. ministrar, dar, trocar, ceder all, de pena fixa de quatro aDOS de prisao celu­qualquer modo, proporcionar" - art. 25), lar (art. 30). Toda viola9iio aos regula, antecipando 0 fenomeno que Zaffaroni mentos de contrale era punfvel com designani por '~multipliccw-ao dos ver-, multa, e na reincidencia prisao de seis ~'18, alemde contemplar todo e qual- meses a dois anos (art. 32) . 0 tn\fico e quer induzimento Oll instiga~ao ao uso. a .importa~ao irregular eram inafianc;a­Os infratores medicos, cirurgioes-dentis- veis (art. 33), 0 condenado, por qual­tas, farmaceuticos au que militassem em quer delita, que fasse funciomirio ptibli­qualquer profissao ou arte que favore- co perderia 0 cargo;· se fosse aluno de cesse a pratica do crime sujeitavam-se estabelecimento de ensino "de qualquer ainda a suspensao temporaria do exerci- grau, publico ou particular", seria exclu­cio profissional (no caso dos medicos, ido e teria a matricula trancada pelo por 4 a 11 anos). A posse ilfcita foi tempo da pena(arts. 34 e 37). A tenta­criminalizada (art. 26), bern como a pres- tiva se equiparava ao crime consumado ta9ilo de local (art. 27) e a receita fictfcia (art. 38), e nilo cabia sursis nem livra-

. (art. 28): af esta 0 figurino do art. 281 CP mento condicional (art. 35). A reinciden-1940. A receita fictfcia consistia num cia agravava ao dobro a pena (art. 39), crime de perigo presurnido, construido e 0 estrangeiro reincidente seria expulso numa modalidade como norma penal em do territ6rio nacional (art. 40). 0 sistema branco ("prescrever 0 uso de qualquer de tratamento institucionalizado e inter­substancia entorpecente com preteris;ao diyao de intoxicados faz surgir a moda­de fonnaHdade necessaria", que poderia lidade de carcere privado consistente na ser por exemplo 0 "receituario oficial") internas;ao extrajudicial "sob 0 falso pre­e em outras como infrayao indeterminada texto de tratarnento" (art. 43), que sera a norma tecnica ("em dose evidentemen- recolhido pelo CP 1940 como forma te mais elevada que a necessaria ou fora qualificada (art. 148, § I.', inc. II). 0 dos casos indicados pela terapeutica"): contexto moralista dessa legislayao nao nem 0 polimento gramatical aplicado pode ser mais visivelmente demonstrado par Hungria resgataria os vicios desse que pela transcriyao da agravante previs­tipo, indicador da importancia do eixo ta no art. 36: "a procura da satisfa~ao de medico-fannaceutico no acesso as dro- prazeres sexuais, nos crimes de que trat~ gas ilicitas. Alias, 0 profissional que este decreto, constituini circunstancia prescrevesse"continuadamente" substan- agravante". cias entorpec~n~;s poderia. ver-se "d~- 0 Dec. 24.505, de 29.06.34, que in­c1arado suspelto pela autondade samta- trodUZIU algumas modifica~5es eo Dec. ;i~' se?do _seu rec~ituari? submetido a -82], de 25.11.38, que revogo~ 0 DeC:' flscahza9ao espeCial e ngorosa ( ... ) fl- 20.930 de 11.01.32 nilo alteraram subs­

cando .as ~armacias pr?ibidas de ~viar- tancial~ente essa 'proposta, salvo na lhe ,as ~eceltas ,~em 0 Vlsto da, autonda~e criminaliza~ao do con sumo, urn verbo a samtafla local (art. 29). ~ Importa9ao mais na nova multiplica9iio que se"ope­de entorpecentes por via aerea, ou pos- rou l !' que nao produziria efeitos praticos tal, ou qualquer outra inobservancia das '

(18) La iegislacion antidrogas Latilloamerica­na: sus componellles de derecho penal autoritario, ill Fascfculos de CH!ocias Penais, v. 3, n.o 2, p, Alegre: 1990, Fabris, t:'. 18.

(1~) Art. 33 - Facilitar, instigar par atos au par palavras, a aquisi~ao, usa, emprego au aplica~ao de qualquer substancia en­torpecente, au, sem as fonnalidades pres­critas nesta lei, vender, ministrar, dar,

. deter, guardar, transportar, enviar, trocar,

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face a pr6xima vigencia do CP 1940. Registre-se, por outro lado, a elirnina~ao da expulsao automatica para reus estu­dantes, as process os criminais, no Dis­trito Federal, eram da atribui9ilo da procuradoria dos Feitos da Saude PU­blica (art. 58, Dec. 20.930/32), e urn dispositivo do Dec. 891138 sela 0 COffi­promisso medico-criminal desse rp.o­delo: Has autoridades sanitarias e poli­dais prestarao auxflio recfproco nas diligencias que se tornarem necessari­as ao born cumprimento dos dispositi­vos desta lei" (art.. 63).

Sobrevem 0 .£I!_194Q, que confere a materia uma disciplina equilibrada, nao so optando por descriminalizar 0 consu­mo de drogas, mas tambem com urn sobrio recorte dos tipos legais, observan­do-se inclusive uma reduyao do numero de verbos em compara~ao com 0 antece­dente imediato (Dec. 891/38, art. 33), redu~ao tanto mais admiravel quanta se observa a fusiio, no art." 2!ll CP, do trafico e da posse ilicita no mesmo dis­positivo. No contexto liberalizante da redemocratiza9ilo, ~p..6ill§ 0 tema das drogas cai para urn segundo plano. a eixo mftico repressivo central ainda re­pousa - e assim pennanecera ate os anos sessenta - na "completa perdi~ao moral" Oll na predisposiyao para "a practica de actos criminosos" do decreto de 1921, porem afirrelevancia estatistico-criminal do trafico e do abuso de drogas nao atrai a aten~ao dos juristas, dos criminologos e mesmo dos legisladorest Con vern mencionar 0 Dec.- lei 4.720, de 21.09.1942, 0 Dec. lei 8.646, de 11 de janeiro de 1946, e 0 Dec.-lei 20.397, de 14.01.1946. 0 primeiro fixava as "nor-

sonegar, consumir substancias compreeo­didas no artigo 1.0 au plantar, cuitivar, calher as plantas rnencionadas 00 artigo 2.0, ou de qualquer modo proporcionar a aquisi~ao, uso ou aplica~ao dessas sl,bi­tancias - Pena: urn a cinco anos de prisao celuia, e multa de I :000$000 a 5:000$000.

mas gerais para 0 cultivo" de plantas entorpecentes e para a extra~ao, trans­formayao e purifica~ao de seus princfpi­os ativo-terapeuticos"; 0 segundo altera­va 0 Dec. lei 891, de 25 de novembro de 1938, centralizando em determinada re­parti9ilo publica 0 poder de autorizar importa~ao e exporta~ao de entorpecen­tes para "drogarias, laboratorios, farma­cias e estabelecimentos fabris", e 0 ter­ceiro regulamentava a industria fanna­ceutica no pais, detendo-se, nos arts. 19 a 26, sobre os laborat6rios que fabricas­sem especialidades contendo entorpe­centes. No peculiar quadro da industri­aliza~ao restringida brasileira, a conver­silo da droga em mercadoria de urn lado sinaIizava os bons negocios futuros no ambito silencioso e Heito das fannaco­dependencias, e de outro lado contribuia para dissipar 0 protagonismo dos pr6pri­os operadores sanitarios no comercio das chamadas substaneias entorpecentes, segundo a 10gica - basta recordar Freud e a cocafna - de que/I droga e a cura da (fr'ogjif".

3. 0 modelo belico

A escolha de 12M como ~i­sorio eilfreO modelo sanitario e 0 mode-10b6lico de politica criminal para drogas certamente niio se prende ii edi9ilo da Lei 4.451, de 04.11.1964, que acrescentou 0

verbo "plantar" ao art. 281 CPo (Ainda que tecnicamente ociosa, como logo re­gistrou Heleno Fragoso, toda altera~ao no sentido da "multiplica,ilo dos ver­bos" e sintomatica para 0 panpenalismo da proposta, para 0 delfrio de uma ilicitude continua e inescapavel.) A Ei­£olha <:!~_J2.2.4 se prende obviamente ao golEe q~.estadQ_ Q!1aEriou as condi~5es para a implanta,ilo do modelo belico, 0

(20) Cf. Passeti. Edson. Das Fumeries ao NarcotnHico, S. Paulo: 1991, Educ, p. 45.

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que nao signifiea que motives do mode-10 sanitaria - muita especialmente oa consideral'ao do "estere6tipo da depen­dencia" t magistral mente descrito por Rosa del Olmo21 - naD continuassem a operar residualmente.

Nac foi 0 aeaso que reuniu, nO.8 mo­vimentos contraculturais jovens dos anos sessenta, a generalizacrao do contacto com a draga e a den uncia publica dos horrores da guerra, e a derrota de tais movimentos nao pade ser melher repre­sentada que pela politic. criminal que resolveu opor-se a droga com qs metD'-. dos da guerra. Refugindo 'par comp1eto aos'limites desse trabalho uma anaIise dos conflitos e contradil'aes que explo­dira.m naqueles movimentos, e indispen­save! uma referencia ao s:.apW\1i~!!lJljp.­l!\I~trj!l!....4.e •. gyerra. Como se sabe, a chamada "guerra fria" produziu nos Estados Unidos - e fixamo,nos nos Es­tados Unidos porque a chanceler brasi­leiro dizia em 1966 que "0 que e born para os Estados Unidose born para 0

Brasil" - uma a1ian~a de setOfes milita­res e industriais para a qual a iminencia da guerra era condic;ao de desenvolvi­mento, ao pontq do fracasso. da confe­rencias sobre desarmamento no final dos anos cinquenta repercutir favoravelmen­te em Wall Stre.et 22; segundo, Leontief, o gl!§.\!Ll:njti1~r,my,!d!"L gpl'Iicou, entre (1951 e 1970, passando de cern bilhaes a \!y.zentos bilh5es de d6Iares23. Estas ci­fras fantasticas, nesse perfodo fortemen­te concentradas nos dais bloeos de eujo antagonismo dependiam (Estado Unidos e OTAN de urn lado e Uniao Sovietica

(2l) A Face Oculta da Droga, cit., 'p. 34 e passim.

(22) Cf. Fred 1. Cook, 0 Estado Militarista, trad. F. C. Ferro, Rio: 1964, Civ; Bras., p. 154 ss. '

(23) Leontief, Wassily, e Duchin, Faye, El gas/o' militar, trad. A Hibbert, Madri: 1986, Alianza, p. 22.

e Pacto de Vars6via de outra) aglutina­yam interesses para os quais era funda­mental nao apenas a militarizac;ao das rela~6es internacionais, no campo do que entao se chamou de geopolitica, mas tambem ao nfvel interno dos pafses in­eorporados. 0 instrumento te6rico desse prajeto foi agoutrina da seguranl'a na­cionall elaborada no Brasil pela Escola SuperIor de Guerra, fundada em 1949 sob a inspiral'ao do National War Col/ege e com a ajuda de_ uma missao militar americana24 • 0 autoritarismo da doutri­na da seguran~a p.acional, expressamen­te 'adotaila ria legislal'ao de defesa do Estado ·dtifah.le 'a' ditadura militar5

, bern como a efetividade de seus poraes, ultra­passa os objetivos desse estudo, porem e preciso recolher urn de seus conceitos - 0 de "inimigo interno" - que, intensa­mente vivenciado pelos operadores poli­ciais, militares e judiciarios no ambito dos delitos politicos, transbordara para 0

sistema penal em geral, e sobrevivera a pt6pria guerra fria. No discurso de uma alta patente militar da epoca, 0 "uso de t6xicos" - ao lado, claro esta, do "amor livre" - constitui tatica da guerra revo­Iucionaria contra a '~civiliza~ao crista"26 .

Em .!26~ lreze dias ~ois do Ato Institucl0na1.n.o~ 0 edito militar que ministrou 0 coup-de-grace na democr~­cia representativa e garroteou a urn s6 tempo as garantias individuais, a liber­dade de expressao e 0 Poder Judiciario,

(24) Cf. Comblin, Joseph, 'A Ideologia da , Seguranya Nacional, trad. A V. Fialho,

Rio, 1978, Civ. Bras., p. 151 ss; Martins, Rober'to R., Seguranga NaCi­anal, S.paulo: 19-86, Brasiliense, p. -11 et ~eq.

(25) Cf. Helena Fragoso, Lei de .Seguranya Nacional - Uma Ex'periencia Antiderno­cnitica, P. Alegre, 1980, Fabris; Antonio Evaristo de Moraes Filha, Lei de Segu­ranga Nacional - Urn Atentado a Liber­dade, Rio, 1982, '-Zahar.

(26) APlld Comblin, op.cit., p. 48.

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o Dec.- lei 385, de 26 de dezembra, alterava 0 art. 281 C;P.Alem da intradu­I'ao de mais alguns verbos no tipo de injusto do trMico ( "preparar, produzir"), e de sua amplia~ao para as materias­primas, a novidade estava -na~uipara­I'ao quoadpoenam do usuario - daquele que "traz consigo, para uso pr6prio substancia entorpecente"- ao traficant~ Cerca de seis meses depois, 0 Dec.- lei 753, de 11 de agosto de 1969, estabele­cia fiscalizal'iio policial sobre as labora- ' t6rios cujos produtos contivessem subs­tancias entorpecentes;' neste diploma, a preocupac;ao com as amostras gratis ocupava a fun~ao que no imaginario carioca de hoje tern os baleiros das portas de escolas. '

A equiparacao quoad poena~ do usu­aria ao traficante de drogas grovoc,?u alg,!-~ .. .!ea2~ no escasso grupode ju­ristas e maglstrados que ousavam insur­gir-se contra 0 regime autoritario . ...1!!:!:!..a das J~§!ri,3J~g!~.s por eles utiIizadas foi

muestionar a validade do depoimento dos

policiais que haviam part,icipado da pri­sao em flagrante do usurario, tendo se notabilizado por suas· sentenc;as e seus trabalhos te6ricos a respeito 0 juiz Helio Sodre". 0 absurdo dessa equiparal'ao, mesmo (ou principalmeIite) diante da visao "oficial" do problema, nao sensi­bilizou os legisladores da ditadura, como demonstraria sua manuten~ao pela Lei 2J.l6, de 29.11..1211 -

Desejamos selecionar alguns aspectos dessa Lei 5.726, de 29.10.71. Seu famo,e so art. 1.0, inspirado no art. 1.0 da "lei" de seguranc;a nacional vigente, como observou Celso Delmanto28

,- que declara

(27) No infcio de 1971, Helio Sodre publicou urn artigo, "Prova penal referente a posse de entorpecentes" (Revista de Direito Penal, Rio, 1971, Bors6i,.p. 91 ss), e no ana seguinte urn livro, ''T6xicos - A Nova Lei", Rio: 1972, ed. Rio.

(28) T6xicos. S. Paulo: 1982, Saraiva, p. 3.

constituir "dever de toda pessoa flsica ou juridica colaborar no combate ao trafico e uso· de substancias entorpecentes", para alem do compromisso belico que a vox 'combate" contem, utiliza-se da estrutu­ra normativa da imposi~ao do dever juridico, fundamento dos ilfcitos omissi­vos, para converter qualquer· opiniao dissidente da poUtica repressiva numa especie de cumplicidade moral com as drogas-;· Decorre daf q~e "sob pena de perda do cargo,' ficam os diretores obXi­gados a comunicar as autoridades sani­tarias os casas de uso e trafico ( ... ) no ambito escolar" (art. 7.", par. un.) Quei­mando etapas burocniticas, a diretora de urn colegio estadual do Rio de J aneira encaminhou em 1973 a Polfcia Federal' cinquenta e quatro nomes de alunos "suspeitos de estarem envolvidos em t6xico"" , fato que poderia ter levado ao trancamento da matrfcula de todos, tal como previsto no art. 8.° da lei. Para a lei, essa edueadora estava prestando "ser­vic;o relevante", ao colaborar "no com­bate ao trafico e uso" de entorpeeentes (art. 24). Aos usuarios de dragas cujo vicio pudesse fundamentar uma situa~.ao de inimputabilidade, construfda segundo o modelo biopsicol6gico, aplicava-se uma "rnedida de recupera~ao", consistente em intema~ao "para tratamento psiquiatrico pelo tempo necessario a sua recupera­,aD" (arts. 9." e 10). A Lei 5.726171 criava urn procedimento judicial suma­rio (art. 14 et. seg.) e alterava as regras para expulsao de -estrangeiros, colocan­do 0 uso e trMico de dragas ao lado dos crimes contra a seguran~a nacional numa investiga~ao sumaria com 0 pra~o de cinco dias (art. 22). Quanto as normas criminalizadoras, sem perder a oportuni­dade de ,acrescer J..lm ve!bi~hQ' a rn~lli (qessa feita, "oferecer'.'), as pen.'lS _eram·

, elevadas (a esc~la da receita fictfcia subia

(/9) Vera Malaguti S. W. Batista, Drogas e Crirnina1ita~ao da luventude Pobre no RiQ,. de janeiro, Niter6i, 1997, mimeo,' p.' 84:

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de 6 meses' a 2 anos para 1 a 5 aoos), criava-se a "guadrUha de dais" que ate hoje constitui urn problema teenico-juri­dica, e mantinha-se a equipara~ao penal entre usuarios e traficantes, agora com 0

teta de 6 aoos de reclusao. A cultura policial dos anos setenta

compreendeu perfeitamente as expectati­vas do regime militar aeefea de seu desempenho, e respondeu a elas. com dedica,ao. A opiniao de urn inspetor de policia mineiro, trans,crita no livre de urn general que exerda importantes fun90es na Secretaria de Seguran,a Publica do Rio de Janeiro, e. bern representativa: u s6 hii urn rumo para P9r fim ao problema, a enquadramento dos traficantes oa lei de seguranl'" nacional ( ... ) a interferencia das autoridades miJitares"Ju. Vera MalagutiS; 'W:B,atistaexaminou as fi­chas do DOPS-Rioreferentes ao verbete t6xicos nesse per{odQ, ~dt?monstrativas dessa orientactaO; um.dos documentos, de 1973, intitulado "Taxicos e Subversao", apresenta a droga como arma da guerra fria: "citando' Unin, Mao e Ho Chi Min, atribuF·se a disseminactao do uso de dro­gas a uma estrategia comunista para a destrui,ao do mundo ocidental"31.

Mas a cultura juridico-penJiJ tambem incorporou a visao segundo a qual a questao das drogas nao passava de uma face da guerra. Vicente Greco Filho, que na introdu'1ao de seu livro recordava a utiliza~ao hist6rica de t6x"icos "como arma b6Iica", interpretava 0 art. 1.0 como exorta~ao as 'forctas da Nay1io para essa verdadeira guerra sapta que e 0 combate aos t6xicos"32. "Ninguem contestani que

(30) Jaime Ribeiro da Gra~a, T6xicos, Rio: 1971, Rene" p. 24.

(31) Drogas e CriminaIiza~ao da luventude Pobre no Rio de Janeiro, in Diseursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade, Rio: 1996, v. 2, p. 238.

(32) T6xieos, S. Paulo: 1977, Saraiva, pp. 1 e 43. Urn aeordao reeente do TJRJ

fa dissemina'1ao de taxicos entre a juven. Ltude ( ... ) constitui bitica subversiva", pontificava Seixas Santos, acrescentan. do: Eo deIito do traficante deveria sec inserido na. lei de seguran~a nacional, porque e crime de lesa-patria"3:l A rela­'130 entre a toxicomania e a "seguran~a eo desenvolvimento" - a divisa paIitica da ditadura - era assinalada por Sergio de Oliveira Medici" , enquanto Carvalho . Rangel tomava em consideractao "as medidas adotadas pelo govemo america­na" para assinalar a necessidade de uma "a~3o conjunta" entre a Judiciario e outras agencias governamentais para coibir 0 tnifico, "pais so assim 0 mal sera eliminado"35. Essa amostragem c suficiente para eonstatar que a p..f.9Q.ll~ao juridicocpenal daquela conjuntura&bsor! veu a ideia de que a generalizayao do contacto de jovens com drogas devia se compreendida, no quadro da guerra fria. .. como uma estragegia do bloco comunis­ta, para solapar as bases morais da civi­liza<;ao crista ocidentalJe que 0 enfren­tamento da questao devia valer-se de metodos e dispositivos militares. A reu­nHi.o do elemento belieo e do elemento religioso-moral resulta na metafora da guerra santa, da cruzada, que tern a vantagem - extremamente flmcional para

. as agendas ·policias ....:. de exprimir uma guerra sem restrict0es, sem padroes regulativos, na qual os fins justificam

retoma 0 rnotivo da guerra santa, ao lembrar que "a eruzada contra 0 t6xieo nao se confina nos Hndes de urn deter­minado pais", eonsistindo num "desafio internaeionaI". A ernenta define 0 easo: "T6xieo. Plantm;ao da rnaeonha no quin­tal de moradia do aeusado" (Ap.Crim. 1415/96, I." C.Cr. TJRJ, DO-RJ 17.04.97, P. III, p. 160).

(33) A Nova Lei Antit6xicos Comentada, Sao Paulo: 1977, Pr6-1ivro, p. 21.

(34) Toxieos, Bauru: 1977, ed. lalovi. p. 29, m) Lei de T6xicos, Rio: 1978, Forense, p.

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2. DOUTRINA NACIONAL 141

todos as meios. No plano intemacional, o novo front das drogas refor~ava as· fantasticas verbas oryamentiirias· do ea­pitalismo industrial de guerra.

A vigente Lei 6.368, de 21.10.1976, aprimorou, para 0 bern e para 0 mal, a Lei 5.726171. Aquele dever juridico ge­DericO do art. 1.0 permaneeeu, parem a palavra "combate" foi substitufda pela expressao "preven~ao e repressaa". Os alunos surpreendidos com urn cigarro de . maeonha ja nao estavam sujeitos ao traneamento ·da matrfcula nem os direto­res a delayao, mas se os ultimos nao adotassem medidas preventivas coloear­se-iam na linha de uma responsabiliza­~ao "penal e administrativa" felizmente nlio explicitada (art. 4." e par. un.). 0 procedimento judiciiirio foi regulamen­tado mais minuciosamente, e 0 reu con­denado por trafico nao poderia apelar sem recolher-se • prisao (art. 35). As penas subiram estratosfericamente, indo a escala penal do tipo basico do triifico (art. 12) - ao qual se acresceram novos verbos, "remeter", "adquirir" e "prescre­ver", este ultimo porque a reeeita fictfeia se transmudaria em crime culposo (art. 15) - para a faixa de 3 a 15 anos de reclusao e multa. Uma modalidade de apologia, oriunda da legisla,ao dos anos trinta, construfda como tipo aberto de conteudo indeterminado ("contribuir de qualquer forma para incentivar ou difun:.. dir 0 usa indevido ou 0 tnifieo" - art. 12, § 2.0, inc. TIL), capaz de, nas maos de urn delegado de policia devotado, levar • instaurayao de inquerito contra Charles Baudelaire, Aldous Huxley, Jean Cocteau e Walter Benjamin numa uniea estante de livraria, estava agora sujeita a pena de 3 a 15 anos de reclusao. A posse para uso proprio, entre tanto, recebeu discipli­

( "em regime extra-hospitalar" - art. 10, § I."), mantida a clausula de inimputabi­lidade segundo 0 modelo anterior (art. 19 e par. un.). A regulamenta,ao dessa lei, efetuada pelo Dec. 78.992, de 21.12.1976, alem da veda,ao das amos­tras gratis (art. 13), proibia qualquer ·"texto, cartaz, representayao, curso, se­mimirio au conferencia" sobre 0 tema sem previa autorizayao (art, 8.°), bern como recomendava a fiscaliza~ao rigo­rasas pelas "autoridades de censura", sabre espehiculos publicos para "evitar representact6es, eenas au situa~6es que possam, ainda que veladamente, suscitar interesse" pelo tema (art. 9."). "A liber­dade artistic a - dizia urn dos elaboradores dessa legisla~ao - precis a de ser contro­lada".36

A CQnstitui&j!Q, da Republica de 1988 de urn lade revogou esses ultimos dispo­sitivos, ao banir a censura (art. 5.°, inc. IX) e de outro determinou que 0 trafico de drogas constituisse crime inafiancta­vel e insuscetfvel de graya au anistia (art. 5.", inc. XUm, no contexto de urna "'Isputa constituinte entre representantes~.

a corrente que a epoca designamos por 'direita penal" e representantes da ten­.encia que Maria Lucia Karam chamaria

~de "esquerda punitiva"37. A ehamada lei dos crimes hediondos (8.072, de 25.07.90) proibiria tilmbem 0 indulto e a liberdade provisoria para 0 trlifico de drogas (art. 2.", incs. I e II) e, pretenden­do elevar as penas da quadrilha votada • pratica de todos os delitos por ela contemplados (art. 8."), sem aperceber­se que a quadrilha de dois do art. 14 de Lei 6.368176 ja dispunha de uma escala

(36) \,\>, \ na a parte, cominando-se-lhe uma pena privativa da liberdade (deten,ao de 6 meses a 2 anos e multa - art. 16) s6 / excepcionalmente executada. 0 trataow ....... ./ to dos drogaditos f01 aprimor~dp"",,---

(37)

Menna Barreto, .F"'/ Lei de T6xj...·/ p. 160, " ... -~ .~'(,

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penal elevadlssima (3 a 10 anos de reclu­sao), acabou por involuntariamente re­duzi-Ia.38 Essa meSma lei dobrou os pra­zos do procedimento judicial (art. 10), para garantir uma prisao provis6ria roais extensa dos -acusados por tnifico.

Essas derradeiras altera~6es na disci­plinajurfdico-penal do abuso e trMico de drogas ilfcitas, todas -flO senti do de uma severidade e urn rigor so companivel aD modele repressivo dos crimes contra a seguraml;;a nacional durante a ditadura militar, ja se dao num quadro politico internacional distinto. Nos aDOS oitenta, uma sequencia vertiginosa de entendi­mentos e articulayoes conduz aD fim da guerra fria, cujo sfmbolo consistiu oa reunifica~iio da cidade de Bedim. ·0 capitalismo monopolista de base indus­trial- af cornpreendida a industria belica - se reorganizava. aD irnpacto do surto dos servi~os e da corrida tecnol6gica, com a emergencia de novas potencias economicas atuando transnacionalmente C 0 advento de uma sociabilidade urbana na qual 0 consumo e as comunica<;oes de massa passavam a exercer fun<;5es estra­tegicas. Para as classes hegemonicas do mundo ocidental e suas corpora<;5es as perspectivas de expansao sobre os des­tro~os do bloco socialista eram deslum­brantes, e as possibilidades de desloca­menta de recursos e investimentos de tal envergadura, a nfvel planetaria, s6 podi­am ser em seus sonhos emparelhada, guardadas todas as peculiaridades dos respectivos processos hist6ricos, aos horizontes abertos, meio milenio atreis, com a descoberta da America. Os artIfi­ces e ide6logos da- guerra fria viam sua hist6ria terminar, e nada mais compreen­slvel que proclamassern 0 fim da Histo­ria. A economi a de mercado vencera, as leis de mercado assumiam a ftin~ao de

- .0.&). A Corte Suprema recentemente deslindou . -".-nr!iio. no julgamento do HC 68.793-

. "fI';n. Moreira Alves, D)

estatuto fundarriental das rela~6es eco­nomicas, e a competitividade se conver. tia no Harne sinalagmatico da conviven_ cia hum ana. Nao compete mais ao Esta­do imiscuir-se na economia para fomen_ tar e garantir condh;5es decentes de 50-

brevivencia para a popula<;ao, devendo sim privatizar todos os setores de sua interven<;lio, desregulamentar os merca­dos e promover a mais ampla liberaliza­<;ao financeira e comercial; para favore­cer estes objetivos, a midia - agora 0

bra<;o armado do imperio transnacional da produ~iio de tecnologias, equipamen­tos e dos servi<;os de telecomunica<;5es - golpeia enfaticamente e procura des­moraIizar cotidianamente toda e qual­quer irregularidade que se passe no ambito da administra~iio publica, enaltecendo paralelamente a "eficien­cia" das gestoes privatizadas, reduzindo o notichirio ou mesmo silenciando sobre suas negociatas. Como ol!esultado real dessa especie de "vale-tudo" economico e 0 aumento da marginaliza<;ao social e do desemprego, com todos os conflitos e tens5eil que, exprimindo-se tambern nas incidencias criminais • .a.lgyancam crescenN demanda de repressao p-OTiCIal, estabelece-se urn curioso paradoxo, to­cando ao "Estado minimo" exercer urn co!!g-gle social penal maXimo.

Paralelamente a essas-transforma<;5es, a amplia<;ao inimaginavel dos mercados -j internacionais de drogas ilicitas alterara o cenario geogriifico da guerra que Nixon enunciara e Reagan veio a dec1arar. Rosa del Olrno mostra como, apos as gran des opera<;5es na Jamaica e no Mexico, em meados dos setenta, a produ~ao da rna­conha, "seguindo a logica do capital", vai estabelecer-se na empobrecida Co­lOmbia39 . Nos anos oitenta, 0 apoio nOf-

(}9) Prohibir 0 Domesticar? Politicas de dro­gas en America Latina, Caracas: 1992, Nueva Sociedad,_ p. 18.

• • 2. DOUTR1NA NACIONAL 143 ~

te~americano a contra-revolu<;ao nicara­guense e empreendido "em nome da luta contra as drogas"40. Dessa forma, ainda nos estertores de urn mundo antagonica­mente bipolarizado.f!. droga vai se conJ

vertendo no grande eixo - 0 mais imperturbavelmente plastico, capaz del associar motivos religiosos, morais, po Ifticos e etnicos - sobre 0 qual se pod reconstruir a face do ini~o (interno tambem num compatriot:;a no Rio de Janeiro, na figura de urn adolescente negro e favelado que vende maconha ou cocafna para outros adolescentes bem­nascidos. A severidade de nossa legisla­'lao, acima examinada, exprime nao so­mente a sindrome dos govemos latino­americanos de serem "mais drasticos que 0 -pr6prio govemo norte-america­no"41, mas tambern a EunclOnahdadq

"mfticll da droga para 0 exercfcio daquele controle social penal maximo sobre as classes marginalizadas, cujos filhos sao recrutados para trabalhar nos arriscados estagios da produ~iio e comercia1iza~iio de urn produto cujo mercado esta condi­cionado por sua criminaliza<;ao e cujos pre<;os oscilam na razao direta da maio ou menor eficiencia das agencias d repressao penal42 . Consoante lucidamente observa Nils Christie, "com 0 fim da guerra fria, num quadro de profunda recessao economica, no qual as -na<;5es industrializadas mais importantes-nao tern inimigos externos contra os quais se mobilizar, nao parece improvavel que a guerra contra inimigos internos seja

(40) Sauloy. Mylene. e Le Bonniec. Yves, A qui profite la cocaine?, Paris: 1992, Calmann-Levy, p. 297.

{41l Rosa del Olmo, Prohibir 0 Domesticar? cit.. p. 67 .

(42) Sobre a atividade policial pressionando 0

pre~o das drogas, cf. Charles-Henri de Choiseul Praslin, La Drogue, une economie dynamisee par la repression, Paris: 1991, ed. CNRS, p. 23 e passim.

priorizada"43: as drogas ilfcitas, conve­nientemente demonizadas, e suas ilega­lidades satelites vieram a constituir 0

campo de batalha dos experimentos e taticas dessa guerra.!: A guerra contra as drogas - escreve Gilberto Medina -adotou as mesmas pautas estabelecidas para enfrentar a 'amea<;a Gomunista"j e tanto 0 discurso penal(stico quanta a pratica do sistema penal 0 revelam.

Vma polftica criminal de guerra tern efeitos beneficos para a industria do controle do crime, seja no aquecimento dos gastos publicos com equipamentos adequados, com a reengenharia das divi­soes encarregadas da inteligencia e do confronto, e com a ampliayao do sistema penitenciario, seja no ambito desse novo setor que e a seguran<2..Nivaqa, 0 qual. segundo urn relat6rio americano de 1991 citado por Nils Christie, ultrapassa as verbas das agencias publicas de seguran­~a em mais de 70% (US§ 52 bilhOes anuais), e ocupa duas vezes e meia mais pessoas do que elas, a que significa urn milhao e meio de empregos45 . Essa maquina gigantesca. capaz de redirecio­nar frustra<;oes or<;amentarias oriundas do fim da guerra fria, deve uma bela fatia de suas engrenagens a ilegalidade da droga, e trata de realimentar todos os m~.3!!-e'Q .partiY da droga, desata!ll pamcos SOCIalS e mstam por repressao penal:(E faci! perceber que o@ucros da industfia do contrale do crime sao tribu­tarios da polftica criminal adotad~ para compreender as verdadeiras razoes pelas quais as orienta<;oes polftico-criminais passam, neste perfodo, a assumir uma posi~iio de destaque no debate politico em geral, bern como os verdadeiros COffi­

promissos dos representantes das cor-

(43) Crime Control as IlJdlJstry, Londres: 1993, Routledge, p. 13-14.

(44) La Narco.po[{tica de los EEUU, in Region, Medellin, nov. ~6. n.o 22. p. 20.

(45) Op. cit., p. 104.

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rentes chamadas de "lei e ordem". A mudanl,;a de identidade do inimigo, da guerra fria para- a guerra contra as drogas e 0 "crime organizado" internacional, se reflete tambern na industria cultural do crime: sai de cena 0 agente sovietieo ruivo que Sean Connery mataYa, entre uma namorada e outra, e entra urn ho­mem latino, muito parecido com todos n6s, perverso traficante que teve a des­ventura de conhecer a filha de Charles Bronson.

-4. As marcas da guerra

Seria relativamente simples reduzir as poIiticas sociais brasileiras a urn aforismo elaborado para a guerra, e nao hesitari­amos em eleger aquele que Maquiavel recolheu em Vegecio: "e melhor vencer o inirnigo com a fame do que com 0

ferro"46. As coisas se complicam urn pouco ao pretendermos surpreender al­guns principios da arte militar aplicados a urn sistema penal cujo funcionamento e concebido como uma guerra, mas essa angulal,;ao podeni recompensar-nos corn a revela~ao de certas correspondencias inquietantes.

Principiemos por aquilo que 0 rnais antigo te6rico da guerra conhecido, Sun Tzu, chamava de "lei moral", que segun­do ele "faz com que 0 povo fique de completo acordo com seu governante"47 , e Clausewitz chamou de "informa~ao", observando que as noticias que circulam em tempo de guerra sao na maior pElfte falsas"; as guer.ras_do -!'§-"IJI~_~_~~,.

(46) MaquiaveI, A Arte da Guerra, trad. S.

(47)

Bath, Brasflia, 1980, UnB, p. 33; Vegecio, A Arte Militar, trad. G.C.C. de Souza, Sao Paulo: 1995, ed. Prumape, p. 120, A Arte da Guerra, trad. 1. Sanz, Rio: 13. ed., Record, p. 17.

(48) Da Guerra, cit., p. 127.

monst~.~!..iam a ~.I!!p'~.~~~n~l~_. ~strategica oa:' propaganda: No caso das dragas enfre -"birihis·'~mistifical,;oes ideo16gica~ produzidas nao apenas pela mfdia, mas tambem pela elabora9ao conceitual te6-rica, selecionamos 0 dog!!!.a da ilicitude ontol6gica como aquele commaior ap­tidao para coneentrar opiniOes, para co~ loear a povo de acordo com 0 govemante. como dizia Sun Tzu. Trafico ilfcito de dragas e sinonimo perfeito de trllfico de drogas iIfcitas, porem nem mesmo a conhecida experiencia da malograda "lei seca" norte-americana consegue desper­tar essa desconfian~a na generalidade dos juristas; muitos procuram refugiar­se numa argumentagao qufmica para preservar a convic~ao de que a maconha e praibida pelo que e, e nao porque e praibida - como se 0 alcool tambem nao dispusesse de uma qufmica. como se s6 o tabaco pudesse indenizar os danos aos pulm6es, como no recente acordo biliomlrio nos Estados Unidos. Par essa razao, enquanto, sob 0 modele sanitaria, procuravam-se , como vimos. solw;5es semelhantes para usuarios de drogas ilf­citas e para a alcoolismo, 0 modele belico distingue completamente: 0 de­mania nao pode ser urn adjetivo.

Liga-se a tal emposta~ao a caracte­rfstica de crimes de perigo abstrato dos tipos de injusto. Como anota~g_ de Carvalho, "nas leis de entorpecentes nao ha ofensividade causal, apenas jurfdica, eis que 0 resultado das condu­tas nao produz dana empfrico, apenas normativo"49. Todo 0 desprestfgio te-6rieo dos cril!!~.~_~_Rq!g<l_abs.llittQ.. as vezes proclamado pelos tribunais -versando materia distina - nao abalou. cantu do, a aplical.(ao massiva e indiscriminada da lei. Dir-se-ia. como Clausewitz, que na guerraEa violencia arma-se com as inven~5es das artes e das ciencia~"5(J, e no caso toca a cien-

WI) Op. cit., p. 88. (SO) Op. cit., p. 73.

2. DOUTRINA NACIONAL 145

cia jurfdico-penal fornecer a inven~ao de urn resultado presumido.

Para nao perder tempo com as 6bvias impropriedades da criminalizal,;ao do usa, fixemo-nos na indistin~ao da escala pe­nal do trafico de dragas ilfcitas. Como cornpreender que as rnulheres pobres latino-americanas que operam como transportadoras de pequenas partidas, as "mulitas"51 , ou 0 "traficante famelico"52 , all aquele que se envolve em deeorrencia do consuffi053 , ou ainda a usm'irio que adquire tambem para seu colega, como compreender que tais pessoas se sujei­tern a mesma escala penal de urn ataca­dista facinoroso, a nao ser por urna 16gica de guerra, segundo a qual- valha­nOS novamente Clausewitz - "enquanto ell nao tiver abatido a meu adversario passo temer que ele consiga destruir­me"", 16gica que abstrai toda a fragili­dade daqueles personagens, transform a­do,S magicamente em in~migos temfveis?

Imaginemos a sutpresa do pesquisa­oar que urn dia comparar 0 mlmero de pessoas mortas pelas drogas, por overdose, debilita~ao progressiva ou qualquer outro mati va, com 0 mlmero de pessoas mortas pela guerra contra as drogas. No Brasil em geral, e no Rio de janeiro em particular, aquele pesquisa­dar percebera que as vftirnas da guerra contra a droga, aMm da extra~ao social comum, sao jovens - taLcomo_na- guerra convencional - e sera tentado a tomar uma vereda psicanaiftica para conduir que ao sistema penal a nova ordern internacional reservou as tarefas do fiIicidio, antes cumpridas pela guerrass .

un Zaffaroni, op.cit., p. 22. (52) Sal0 de Carvalho, op.cit., p.128. (53) Rosa del Dlmo, Prohibir 0 Domesticar?

cit., p. 68. (54) Op. cit., p. 76. (55) "Entre as diversas causas que desencadei­

am as guerras, destaca-se a necessidade de perpetuar 0 sacrificio humano na for-

./"''..

. A questao da inimputabilidade por me­noridade, e dentro dela particulannente a tendencia para rebaixar 0 marco etario, guarda impression ante correspondencia com a questao da idade de recrutamento militar dos jovens, que historicamente tam bern sofria altera90es ao sabor das necessidade de esforl.(o belico da oca­siaoS6 ._ as amplos setores da imprensa comprometidos com 0 projeto economi­co neoliberal fazem 0 que podem para omitir ou recalcar 0 noticiario nosso de cada dia; urn dos recursos [onsiste em subtrair as execw;;:5es policials sua auto­ria real (pela aceitayao acrftica da versao de "disputa de quadrilhas") ou sua sig­nifica9ao de abuso de poder (pela tantas vezes indevida atribui9lio da qualidade de "traficantes" as vitimas)1 0 jomal carioca 0 Dia, edi9ao cte'-29.mar.97, estampava em sua primeira pagina: "PM mata um a cada quatro horas - Nos uItimos seis dias, a Polfcia Militar matou 32 pessoas suspeitas de crime. S6 ont<?m, no Rio e na Baixada, foram oito. E 0

resultado da ordem do general Cerqueira: 'atirar primeiro e perguntar depois". Caso este desempenho fosse mantido penna­nentemente, a proje~ao para oito anos e meio - 0 tempo que durou a escalada norte-americana - nos convenceria de que a Policia Militar carioca tern capa­cidade belica capaz de executar mais de

(56)

rna de holocausto dos mhos, com seus primitivos significados s6cio~culturais implfcitos. ( ... ) A guerra mantem a ame­a~a de morte sobre a juventude, que deve se submeter totalmente ao exercito e des­locar seus la~os emocionais do lar para a comunidade" - Arnaldo Rascovsky, D Filicidio, Rio, 1974, Artenova, p. 164. Do mesmo Rascovsky, FiHcidio e Guerra, in Gley P. Costa (arg.), Guerra e Marte, Rio: 1988, Imago, p. 60. et seq. Sabina Loriga, A Experiencia Militar, in Levi, Giovanni e Schmitt, Jean-Claude (orgs.) Historia dos Jovens, trad. P. Neves, N. Moulin e M: L~ Machado, Sao Paulo: 1996, Cia. das Letras, v. 2. p. 23.

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urn ter~o do total de mortos norte-ameri­canps em cambate na guerra do Vietnam. Enquanto alguns juristas desatentos nao se dao conta de quanto e ridiculo propor a pena de morte num pais em que a poifcia a executa tiio intensamente, no Rio de Janeiro a boa pontaria e premiada com aquila que 0 hornem carioca chama de "gratificayao faroeste". Mas af encontra­mas o.!!trQ_.p-ti,~fJpLo, qti~ 1'jJs'Pnjayel tam­bern tomou a Vegecio e transcreveu em sua Arte da Guerra: tTantemos as solda­dos nos quarteis com 0 medo e c.om penalidades; na guerra,. n6s as conduzi~os com a esperanr;a e premio~5?

o modelo belicoda poiftica criminal imprime suas mareas tambem no Pt:0ce­dimento judiciario, a come,ar pela con, tradil,ao de julgar alguem que, por cons­tituir-se num inimigo, 'cleve ser implaca­velmente abatido (= condenado). Tal contradi,ao ficara exposta nas mtiltiplas tolerllncias para com violas;6es ao -devi­do processo penal, no preconceito gene­ralizado contra as garantias constitucio­nais dos acusados por trMico de drogas, que alcan,am tamMm os democratas que nao transigem com os direitos hu­manos. "As almas filantropieas - dizia Clausewitz - poderiam facilmente julgar que existe uma maneira artificial de desarmar e derrotar 0 adversario Sem verter demasiado sangue. Por mais dese­javel que isso pareya, e urn erro que e preciso eliminar. Num assunto tao peri..; goso como e a guerra, os ereos devidos a bondade da alma sao precisameIite a pior das coisas"58 . Diante de tal enfoque, as limitayoes constitucionais ao exercf­cio do poder penal se convertem num absurdo, e retomemos Clausewitz: "nao seria passIvel introduzir urn princIpia moderador na propria filosofia da guerra sem cameter urn absurda"59. Basta alhar

(m Maquiavel, op.cit., p. 34; Vegecio, op.cit., p. 122.

(SK) Op.cit., p. 74. (S~) Ibidem.

a tolerancia dos tribunais - com honrosas excec;oes - para com as nulidades, com 0 . excesso do prazo da prisao preventiva em ' processos concernentes a tnifico de dro­gas; para constatar a influencia velada do. pensamento de Clausewitz. A questao da prova illcita, que esta para a investigac;ao policial como a espionagem para a guerra, tambem revel ani uma tolerancia especial para casos de t6xicos. Curiosamente, a operayao de contra-espionagem, mediante" a qual uma falsa infonnac;ao e passada ao inimigo, e-designada par "intoxicaC;ao" ... ro No limite, as "tensoes intemas" ass'ociadas aos "aprisionamentos em massa", aos "maus tratos ou condiyoes inumanas de 'deten,ao" e ao menosprezo habitual pel .. ' garantias fundamentais que equivalha a sua suspensao - estamos transcrevendo Swinarski6i - poderao criar condiyoes di­ante das quais a _ invocaC;ao do- direita intemacional humanitario, as regras das Conven,oes de Genebra que limitain os metodos da guerra, deixaria de constituir uma tnigica metafora.

Podemos ficar por aqui. A sllbstitui­,ao de urn modelo sanitario par urn modelo belieo de politica criminal, no Brasil, nao representa uma metafora academica, e sim a intervem;ao dura e " frequentemente inconstitucional de prin­clpios de guerra no funcionamento do sistema penal. M,aQ_ Tse-T"l!Dg, retomou certa feila a famosa compara,ao de·Clau­sewi~ formulanda-a nas seguintes ter.;.­mos:L'a polftica e guerra sem derrama­mento de sangue, e.nquanto que a guerra e poHtica com derramamento de san­gue") Neste senti do, podemos concluir que?ern nosso pals, temos para as drogas uma polftica- criminal com derrarnarnen­to de sangue.

(1iO) Jean-Pierre Alem, EI Espionagem y el Contraespionage, trad. D. Huerta, Mexi~ co: 1983, Fondo de Cultura Econoniica, p. 17 e 103.

(6\) Christophe Swuinarski, A Norma de Guerrjl, Porm Alegre: 1991, Fabris, p. 30.

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2. DOUTRINA NACIONAL . !, "

AJ:'1:l&..V CONTRA A VONTADE DO RED

S~GIO DEMORO HAMILTON

1. Pode parecer, em urn Prim~o me, que a questaa' envolvenda 0 ree apela,ao coritra a vontade do reu seja rna esdruxularia, de interesse puramente co e que, na pnitica, jamais encontre doncia. Nada mais equivocado. Todos os que militam no foro criminal ja se depara­ram, urn sem-mlmero de vezes, Gom a problema, que, embora nao se apresente de forma rotineira, ocorre com certa freqiien­cia, gerando perplexidade para 0 interpret diante do tema, sem saber, na verdade a caminho. a ser tornado diante da eve ual colidencia de defes ... De urn lado reu, manifestando, exp""''''''''''n"I".nt". "''''' ..-1",,,,,..,, de nao apelar; do interpondo a recurso. impasse?

2. Duas correntes digladiam na

se ques­

a jurispmden­diante da comple-

tao. Tanto a cia se mostram xa materia tos

trazenda argumen­em favor da predomi­do imputado, ora pela

da atua,ao da defesa teonica nao menos respeitaveis.

3. Para as que 'sustentam que a von­tade do reu deve, sempre, prevalecer, a titularidade do direito de recorrer perten­ce ao acusado e nao ao defensor. Este ha de ser f§.m~10 da vontade de seu cliente, pais, em_ ultima analise, 0 senhor primei­co da sua liberdade e 0 proprio reu e nao seu advogado, que, apenas, atua no pro­cesso dando-Ihe a indispensavel assis­tencia tecnica sem, no entanta, poder intervir nos limites de atuac;aa da auto­defesa. Caso 0 advogado, por esta ou por

autra qualquer ao, nao cancorde corn a atitude pro ssual do seu constituinte, cabe-Ihe d itir-se do munus que Ihe foi confiad renunciando ao mandato.

ainda, os defensores des­que 0 direita de recorrer e e que, portanto, 0 imputado,

sua oposic;ao ao apelo, esta direito que Ihe e assegurado

nao podendo, assim, ser obstado sua osiyao contnma a manifestac;ao Irsal. om efeito, vige em nosso pro-so pena 0 principio da voluntariedade ,recursos, endo em conta a regra con­

Codig respectivo que estabelece serem os recur s voluntarios, excetuan­do-se os -~asos e que deverao ser inter­postos de offcio 10 juiz (art. 574 do CPP). Ora, se os rec sos sao voluntarios, Garno admitir-se 0 ap contra a vontade do sucumbente? Em til a analise, quem sucumbiu foi 0 proprio eu e nao seu advogado, queestaria, ao ap lar, tomando caminho mais .re~sta que 0 pr6prio rei.

Esta linha de pensamento, embora nern sempre usando os mesmos argu­mentos aqui expendidos, tern encontrado farta aceitac;ao no seio da doutrina e no campo da jurisprudencia~ Na primeira, temas a voz autorizada de Damasio para quem "a direito de recorrer pertence ao reu, nao ao defensor",' Na esteira do ensinamento daquele ilustre Procurador de Justi,a e Professor de Sao Paulo

(I) "C6digo de Processo Penal Anotado", Damasio Evangelista de Jesus, p. 401, Saraiva, 11. ed .• 1994.

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