Nilo Batista - Sobre El Filo de La Navaja

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Revista EPOS; Rio de Janeiro – RJ; vol2, nº1, janeiro-junho de 2011; ISSN 2178-700X. 1 SOBRE EL FILO DE LA NAVAJA * Nilo Batista** Resumo: Em agosto de 2011, Raúl Zaffaroni (catedrático da UBA, ex-deputado, ministro da Corte Suprema da Argentina), Lola Aniyar de Castro (catedrática da Un. del Zulia - Venezuela, ex-senadora e ex-governadora) e Nilo Batista (titular da UFRJ e da UERJ, ex-secretário de Justiça e Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro) compuseram uma mesa redonda para compartilhar suas experiências na gestão do sistema penal e refletir sobre os timbres autoritários assumidos pela política criminal das redemocratizações latino-americanas. A comunicação brasileira registra a derrota das concepções elaboradas pela criminologia e pelo penalismo crítico, mas procura dela extrair alguns conselhos para jovens criminólogos e penalistas trabalhando no sistema penal. Palavras-chave: segurança pública, direito penal, política criminal. Abstract: In August 2011, Raúl Zaffaroni (Professor of UBA, former congressman and Justice of Argentina's Supreme Court), Lola Aniyar de Castro (Professor of Univ. del Zulia - Venezuela, former senator and governor) and Nilo Batista (Professor of UERJ and UFRJ, former Secretary of Justice and Civil Police of Rio de Janeiro state) took part in a meeting to share their experiences on the administration of the criminal system and to reflect upon the authoritarian trend of the criminal policy in the re-democratized latin american countries. Brazilian social communication acknowledges the defeat of the concepts formulated by the critical criminology and penology, but strives to withdraw from it some advice to young criminologists and penologists that labour inside the criminal system. Keywords: Law enforcemet, Penal Law, Criminal Policy. Quando Raúl Zaffaroni, essa grande liderança intelectual latinoamericana, me convidou para participar desta mesa redonda (que bem poderia intitular-se, como o livro de poemas de um revolucionário brasileiro, Inventário de Cicatrizes 1 ) não hesitei um segundo em aceitar. No dia seguinte, porém, instalou-se em meu espírito muito mais do que uma simples hesitação: um radical arrependimento. Sim, dizia comigo, atento também a meus companheiros de seminário, como converter em algo prazeroso uma reflexão sobre nossas retumbantes derrotas? Caberia encerrar a mesa redonda com aquele hino à derrota do talentoso grupo argentino Les Luthiers, no qual o sol assomava no poente e cujo estribilho evocava gloriosamente que “perdimos otra vez”? Como explicar que os frutos teóricos * Intervenção na mesa redonda Inseguridad y Política, do Congresso Internacional de Ciência Política realizado em San Juan, Argentina, de 24 a 27 de agosto de 2010. ** Professor titular de direito penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-secretário de Estado de Justiça e Polícia Civil, ex-vice-governador e ex-governador do Estado do Rio de Janeiro.

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Em agosto de 2011, Raúl Zaffaroni (catedrático da UBA, ex-deputado, ministro da Corte Suprema da Argentina), Lola Aniyar de Castro (catedrática da Un. del Zulia - Venezuela, ex-senadora e ex-governadora) e Nilo Batista (titular da UFRJ e da UERJ, ex-secretário deJustiça e Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro) compuseram uma mesa redonda para compartilhar suas experiências na gestão do sistema penal e refletir sobre os timbres autoritários assumidos pela política criminal das redemocratizações latino-americanas. A comunicação brasileira registra a derrota das concepções elaboradas pela criminologia e pelo penalismo crítico, mas procura dela extrair alguns conselhos para jovens criminólogos e penalistas trabalhando no sistema penal.

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  • Revista EPOS; Rio de Janeiro RJ; vol2, n1, janeiro-junho de 2011; ISSN 2178-700X.

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    SOBRE EL FILO DE LA NAVAJA*

    Nilo Batista**

    Resumo: Em agosto de 2011, Ral Zaffaroni (catedrtico da UBA, ex-deputado, ministro da Corte Suprema da Argentina), Lola Aniyar de Castro (catedrtica da Un. del Zulia - Venezuela, ex-senadora e ex-governadora) e Nilo Batista (titular da UFRJ e da UERJ, ex-secretrio de Justia e Polcia Civil do Estado do Rio de Janeiro) compuseram uma mesa redonda para compartilhar suas experincias na gesto do sistema penal e refletir sobre os timbres autoritrios assumidos pela poltica criminal das redemocratizaes latino-americanas. A comunicao brasileira registra a derrota das concepes elaboradas pela criminologia e pelo penalismo crtico, mas procura dela extrair alguns conselhos para jovens criminlogos e penalistas trabalhando no sistema penal. Palavras-chave: segurana pblica, direito penal, poltica criminal.

    Abstract: In August 2011, Ral Zaffaroni (Professor of UBA, former congressman and Justice of Argentina's Supreme Court), Lola Aniyar de Castro (Professor of Univ. del Zulia - Venezuela, former senator and governor) and Nilo Batista (Professor of UERJ and UFRJ, former Secretary of Justice and Civil Police of Rio de Janeiro state) took part in a meeting to share their experiences on the administration of the criminal system and to reflect upon the authoritarian trend of the criminal policy in the re-democratized latin american countries. Brazilian social communication acknowledges the defeat of the concepts formulated by the critical criminology and penology, but strives to withdraw from it some advice to young criminologists and penologists that labour inside the criminal system. Keywords: Law enforcemet, Penal Law, Criminal Policy.

    Quando Ral Zaffaroni, essa grande liderana intelectual latinoamericana, me convidou para participar desta mesa redonda (que bem poderia intitular-se, como o livro de poemas de um revolucionrio brasileiro, Inventrio de Cicatrizes1) no hesitei um segundo em aceitar. No dia seguinte, porm, instalou-se em meu esprito muito mais do que uma simples hesitao: um radical arrependimento. Sim, dizia comigo, atento tambm a meus companheiros de seminrio, como converter em algo prazeroso uma reflexo sobre nossas retumbantes derrotas? Caberia encerrar a mesa redonda com aquele hino derrota do talentoso grupo argentino Les Luthiers, no qual o sol assomava no poente e cujo estribilho evocava gloriosamente que perdimos otra vez? Como explicar que os frutos tericos

    * Interveno na mesa redonda Inseguridad y Poltica, do Congresso Internacional de Cincia Poltica realizado em San Juan, Argentina, de 24 a 27 de agosto de 2010.

    ** Professor titular de direito penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-secretrio de Estado de Justia e Polcia Civil, ex-vice-governador e ex-governador do Estado do Rio de Janeiro.

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    elaborados por uma vanguarda criminolgica e penalstica que floresceu na Amrica Latina tenham sido ignorados ou desprezados at mesmo ou principalmente por foras polticas que se autodefinem como de esquerda, substitudos por um punitivismo rombudo ancorado num lixo policialesco do padro janelas quebradas e tolerncia zero, importado do norte para encantamento de nossas velhas e sanguinrias oligarquias? Como relatar sem azedume as delicadas opes poltico-criminais de criminlogos e penalistas crticos momentaneamente refns do jogo do poder, quase todas elas invariavelmente mal recebidas pela arrogncia reacionria dos meios de comunicao?

    Uma das maiores representantes da vanguarda qual me referi, que viveu e ainda vive singular e brilhante carreira acadmica e poltica, e est conosco aqui, Lola Aniyar de Castro, escreveu certa ocasio que respeitar as garantias individuais e simultaneamente consolidar a segurana faz o governante caminar sobre el filo de la navaja2. Essa velha metfora foi muito bem escolhida por Lolita para exprimir as perplexidades, as inquietaes e as angstias de quem, conhecendo academicamente a brutalidade infecunda das intervenes punitivas, v-se colocado na condio de gestor poltico do sistema penal. realmente impossvel vivenciar tal situao sem ficar com as plantas dos ps retalhadas por essa navalha afiada e traioeira. E no h sada para tal situao, porque a nica alternativa para no ter os ps embebidos no prprio sangue ter as mos para sempre manchadas por muito sangue alheio.

    II

    Antes de mais nada, relatarei como foi que um advogado criminalista e professor de direito, cuja militncia esteve sempre ciosamente restrita a suas reas de habilitao profissional e acadmica, viu-se por uns anos no front da vida pblica.

    Na sada da ditadura, aps a anistia e o retorno ao pas de lderes exilados, houve eleies diretas para os governos estaduais (1982), antes das eleies presidenciais. Nossa federao muito centralizada e a Constituio de 1988 no alteraria muito essa caracterstica, ainda que a tenha atenuado e deixar

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    que o povo voltasse a escolher seus governantes apenas em nvel estadual nem ameaava a transio, que um general-presidente planejara lenta, gradual e segura, nem frustrava o anseio geral por prticas democrticas. Na base desse anseio geral estava o desalento das elites empresariais com o fracasso do chamado milagre brasileiro, resultante direto de nossa dependncia econmica: crise nas economias centrais, desastre na periferia3.

    No Estado do Rio de Janeiro, surpreendendo os institutos de pesquisa e conseguindo neutralizar uma tentativa de fraude eletrnica (que o maior jornal local levou alguns dias at admitir e noticiar), Leonel Brizola elegeu-se governador. Ele era o legtimo representante do trabalhismo, uma fora poltica que, a partir de 1930, modernizara o pas, reivindicando para o Estado planejamento econmico em perspectiva nacionalista, criando a legislao e a Justia do trabalho, incrementando a industrializao, favorecendo a emergncia da classe trabalhadora com a previdncia social e a organizao sindical4. Se me fosse permitida uma comparao, respeitadas sempre as peculiaridades de cada processo histrico, eu diria que o trabalhismo brasileiro correspondeu quela fora poltica argentina cujos dois personagens mais fascinantes de sua primeira expresso histrica se conheceram precisamente nesta cidade de San Juan, em 1944, nas atividades de reconstruo e atendimento s vtimas e aos danos do terremoto.

    Getlio Vargas, nosso maior estadista do sculo XX, teve que dar um tiro no peito em 1954, quando era iminente um golpe militar. Joo Goulart, que fora ministro do Trabalho de Getlio, teve sua posse na Presidncia em razo da renncia em 1961 de Janio Quadros impedida pelos ministros militares. Leonel Brizola, ento governador do Rio Grande do Sul, insurgiu-se contra o golpe militar, levantando em armas seu Estado e galvanizando com o que se chamou Campanha da Legalidade os trabalhadores e os estudantes. Graas sabotagem dos sargentos, que furaram os pneus dos caas, impossibilitando-os de decolar, o Palcio Piratini de onde Brizola inflamava a nao com seus pronunciamentos pelo rdio no foi implacavelmente bombardeado. Aps a adeso de alguns oficiais generais legalistas, os ministros militares tiveram que reconsiderar seu veto posse do Presidente constitucional. O restante da costura, a pgina menos herica desta saga, foi a negociata do parlamentarismo, que um Jango atordoado (ele estava na China, de onde voou para Montevidu, diante do anncio de que seria preso caso ingressasse

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    em territrio nacional) e para mim muito mal aconselhado resolveu aceitar. No era o que Brizola lhe sugerira. Para Brizola, ele deveria repetir Vargas em 1930, no rumo norte frente das foras que haviam aderido legalidade. Joo Goulart seria deposto em 1964, sem controle das Foras Armadas. Ningum me convencer de que no preconceito dos militares conservadores para com Brizola havia um s respingo da desapropriao e estatizao da Bond & Share e da IT&T. Esse era o preconceito da burguesia industrial. O que os militares conservadores nunca perdoaram a Brizola foi t-los derrotado... militarmente.

    Pois foi este herdeiro legtimo de Vargas e Jango, que reelaborara o trabalhismo para transform-lo numa espcie de via brasileira para o socialismo, quem me convenceu em 1986 a deixar minhas atividades eu era, poca, presidente da OAB-RJ para ajud-lo a enfrentar uma das tantas crises de segurana pblica construdas para desacreditar governos progressistas. Quando ele se re-elegeu, em 1990, convidou-me para ser vice-governador, cargo que acumularia com as secretarias de Estado da Justia e da Polcia Civil.

    Ser talvez desnecessrio dizer que o trabalhismo foi muito desqualificado acadmica e politicamente. A discutvel categoria poltica do populismo foi pejorativamente imposta ao trabalhismo brasileiro, inclusive por intelectuais marxistas. Deve ser realmente difcil identificar-se como vanguarda da classe operria sem dispor de uma dzia de ouvintes, enquanto milhes de trabalhadores respaldavam e legitimavam, na praa pblica ou na disputa eleitoral, os governos trabalhistas de Vargas, Jango e Brizola. Sobre as ambiguidades dessa categorizao populismo devemos lcidas pginas a Ernesto Laclau5. Para os proslitos neoliberais do Estado mnimo, nenhum inimigo seria mais odivel do que o pesado Estado previdencirio varguista. Fernando Henrique Cardoso, o socilogo paulista que geriu como Presidente da Repblica as reformas privatizantes e desregulamentadoras preconizadas pelo consenso de Washington, disse certa ocasio que o objetivo essencial de seu governo seria encerrar a Era Vargas. No momento em que isso era falado, encerrar a Era Vargas significava derrotar Leonel Brizola6. Ele, sem dvida, o conseguiu.

    Desvio-me do ncleo trgico dessa histria para as preocupaes de um personagem secundrio: um advogado, que frequentara os

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    tribunais da ditadura e tambm exercia o magistrio, convocado para uma durssima tarefa poltica. A partir dessa experincia, que recomendaes poderamos ministrar aos jovens criminlogos e penalistas crticos que esto hoje na militncia poltica?

    III

    As prticas escravistas produziram no Brasil um estilo punitivo que sobreviveria abolio do escravismo, como se o prprio escravismo se prorrogasse numa explorao capitalista igualmente controladora e dura. Na Primeira Repblica existiram trabalhadores rurais mais baratos para seus patres do que haviam sido os escravos para seus senhores, por exemplo no ciclo da borracha7. Os proprietrios da terra dispunham na Primeira Repblica da mesma capacidade coercitiva de que dispunham os senhores de escravos no Imprio8. Numa fbrica da cidade do Rio de Janeiro, em 1903 quinze anos aps a abolio da escravatura o patro mandava aoitar com vara de marmelo operrios grevistas9, tal qual se fizera com escravos na plantagem. Um dos fundadores da Escola de Polcia do Rio elogiava em 1910 o emprego correcional de aoites10. As penas, pblicas ou domsticas, previstas ou impostas aos escravos no Imprio escravista refugiaram-se, na Primeira Repblica, nos regulamentos disciplinares penitencirios11 ou militares12. Detenhamo-nos sobre um marcante episdio policial da primeira metade do sculo XIX, que podemos designar como o prstito de Vidigal. Cedamos a palavra a Thomas Holloway:

    Uma das proezas mais decantadas de Vidigal ocorreu em 19 de setembro de 1823, quando liderou uma fora da polcia e tropas do Exrcito regular contra um quilombo no morro de Santa Tereza. Na manh seguinte, ele entrou triunfalmente na cidade, montando um garanho empinado, frente de uma coluna de mais de 200 prisioneiros seminus capturados na incurso, entre homens, mulheres e crianas, muitos deles usando colares de conchas marinhas e decoraes de penas que sugeriam elementos de cultura africana13.

    Num governo de oposio consentida, no Rio dos anos setenta, uma foto publicada no Jornal do Brasil gerou um grande debate: nela, um sargento da Polcia Militar, como Vidigal fizera 150 anos atrs, conduzia em fila indiana meia-dzia de favelados negros amarrados pelo pescoo por uma corda. Leonel Brizola, que percebera o carter poltico das opresses punitivas mais do que qualquer outro ator da vida pblica brasileira, deu-se conta de que sua tarefa neste setor era fazer chegar as velhas garantias individuais de corte iluminista s favelas,

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    miradas pela maior parte da polcia com o mesmo olhar que Vidigal disparara contra o quilombo de Santa Tereza.

    No ano em que Brizola morreu, 2004, com o trabalhismo derrotado no s pela social-democracia neoliberalizante, que negociara quase todo o patrimnio nacional, mas tambm por uma nova fora poltica com ampla base sindical, que aumentaria a distribuio de renda mantendo porm a mesma poltica criminal superencarceradora, vigilantista e criminalizante das estratgias de sobrevivncia populares, mais de cem favelados negros do Morro da Providncia, no Centro do Rio, foram conduzidos em fila pelas ruas at uma repartio policial, num cortejo similar ao de Vidigal14. H juzes que no tm pudor em expedir mandados de busca e apreenso genricos, que abrangem todos os barracos de uma favela e assim habilitam a polcia a violar todos os domiclios nela situados.

    Quem ignora o legado escravista incapaz de produzir uma poltica criminal emancipatria para o Rio de Janeiro, para a cidade que no terceiro quartel do sculo XIX concentrava a maior populao africana ou afrodescendente do mundo.

    IV

    Em primeiro lugar, portanto, cabe partir do processo histrico que determina os alvos sociais do sistema penal. Ainda que seja inegvel, na apreenso desse processo histrico, o protagonismo das variveis econmicas modo de produo e relaes sociais de produo a investigao da cultura e das mentalidades punitivas expande o horizonte de seu conhecimento. Cabe substituir a perfunctria histria oficial da poltica criminal aquela histria de legisladores, juzes e verdugos por uma nova histria, que no apenas oua a voz das vtimas do sistema penal, mas tambm surpreenda o cotidiano de seus operadores, seus compromissos e preconceitos, o cerimonial da criminalizao formalizada (que de algum modo exprimir hierarquias e subordinaes sociais), os ritos e mitos que milenarmente cercam a imposio do sofrimento punitivo.

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    A gesto tecnocrtica do sistema do sistema penal completamente cega. Nazareth Cerqueira15, o saudoso comandante negro da Polcia Militar nos dois governos de Brizola, conhecia muito bem a esterilidade da gesto tecnocrtica. Foi ele o introdutor da tcnica do policiamento comunitrio no Brasil, em 1983; talvez na Amrica Latina. Mas o manejo neoliberal do policiamento comunitrio logo o converteria num instrumento de vigilncia e informao sobre as atividades dos moradores das comunidades pobres. A verso mais radical desse manejo ocorre neste momento no Rio. Como efeito direto do proibicionismo, o comrcio varejista de drogas ilcitas armou-se. Para expulsar esses grupos armados de suas comunidades, concebeu-se uma tcnica de policiamento que submete todo o cotidiano da favela a uma gesto policial-militar. Aps a chacina de alguns rapazes (a polcia do Rio mata cerca de 1.500 jovens por ano16), instala-se na favela uma fora policial, cujo comandante geralmente, um capito passa a exercer uma autoridade sobre tudo e todos. ele quem autoriza a realizao de qualquer evento, mesmo em recintos privados, bem como o horrio em que devem terminar; alguns decretam toque de recolher. Chamam a isso de Unidade de Polcia Pacificadora (UPPs). As UPPs so na realidade centros de sonegao coletiva de direitos humanos. No admira que sua primeira concepo, dentro de um programa que se chamava Mutiro da Paz e previa ocupaes policiais permanentes, tenha sido elaborada por um socilogo que propusera cadastrar nos batalhes da Polcia Militar mo de obra recrutada nas favelas17. A mdia e a classe mdia adoram as UPPs. Fica para outra oportunidade aprofundar a crtica das UPPs: por ora, constatemos apenas que a governana neoliberal transformou uma tcnica de insero policial que pretendia superar o velho patrulhamento, com as razes militares da patrulha que incursiona no territrio sob controle inimigo, em algo mais dialogado e atraente num minicampo de concentrao urbano.

    V

    Um equvoco recorrente consiste em pretender o que, h algumas dcadas, se chamava de uso alternativo da lei penal. Nas suas indicaes para uma poltica criminal das classes subalternas, Alessandro Baratta j advertia para os riscos de supervalorizar um tal uso alternativo, que resultaria numa poltica panpenalista18. O jovem gestor do sistema penal, de formao progressista, pode ser

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    tentado a pensar que chegou a hora dos ofendidos e humilhados, e procurar as condies jurdicas para criminalizar ruralistas que lesam o meio-ambiente, banqueiros que quebram, comerciantes que iludem consumidores, empresrios negligentes com os acidentes de trabalho etc. Mas a seletividade inerente aos sistemas penais em geral, e muito especialmente naqueles que operam em sociedades de classes, converter seus esforos numa acentuada dinamizao da criminalizao das classes dominadas. O inventrio que Pavarini fez da chamada Operao Mos Limpas, na Itlia, demonstra isto: para cada mafioso a mais na priso, mais cem jovens drogaditos tambm presos; para cada poltico corrupto legalmente privado de liberdade, cem imigrantes de cor jogados no crcere19. Toda legitimao do poder punitivo acaba repercutindo no lombo estereotipado dos suspeitos de sempre.

    Atrs dessas iniciativas est geralmente uma concepo que poderamos designar por democratizao atravs da pena, perfilhada por inmeros quadros importantes do campo progressista. Leiamos trechos de uma entrevista concedida por Jos Paulo Seplveda Pertence, Ministro aposentado do STF e ex-Procurador Geral da Repblica, a Mauro Santayana, um notvel jornalista brasileiro. Ambos so importantes intelectuais, sempre alinhados ao que ainda se possa chamar de esquerda. Num trecho da entrevista, intitulado Igualdade diante da cadeia, o entrevistador afirma que hoje o brasileiro comum sabe que cadeia no foi feita s para pobres, e o entrevistado arremata: Se comeamos pela igualdade diante da lei penal, um avano para que a igualdade chegue a outras dimenses, como educao, cultura e bem-estar20. No admira o estardalhao que a mdia faz com a criminalizao de um branco rico: ali est a prova viva de nossa democracia punitiva, produzida por nosso sistema penal justo e igualitrio.

    Essa idealizao encobridora do desempenho seletivo e das funes repressoras do sistema penal generalizou-se sob a mono do pensamento nico neoliberal. Em primeiro lugar porque, como outros nichos aparentemente dissociados das determinaes econmicas e alheios luta de classes (pense-se naquele ambientalismo da sociedade de risco para o qual o capitalismo nada tem a ver com a destruio do planeta), a questo criminal presta-se eficientemente a esconder o debate poltico sobre os conflitos sociais. No se discute reforma agrria, e sim esbulho possessrio ou plagium. Em segundo lugar, porque a responsabilidade subjetivada do direito penal pode ser harmonicamente ajustada sociedade do

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    individualismo de mercado: toda culpa tem um sujeito, o sistema sempre inocente. No se discute a rapacidade do capitalismo vdeo-financeiro, e sim a ganncia do banqueiro rapace. Aquela idealizao tambm ajuda a encobrir os bons servios que, muito mais claramente aps a privatizao de alguns servios pblicos, o sistema penal presta ao processo de acumulao do capital. As UPPs, logo que se instalam numa favela, apreendem os instrumentos que viabilizam o furto de energia eltrica (gatos), tolerados ou negociados enquanto a empresa distribuidora era pblica, bem como os equipamentos de recepo clandestina do sinal de televiso por satlite ou mesmo por cabo (gatonet). Admirvel pacificao, esta que se reflete no balano das empresas de energia e de comunicao; os elogios da mdia so merecidos.

    Em sntese: no existe uso alternativo da lei penal. Todo e qualquer uso da lei penal termina nos estereotipados alvos sociais do sistema penal. O protagonismo do poder punitivo no espetculo das democracias reintroduzidas em nosso continente representa na verdade um perigo para essas democracias. atravs do poder punitivo que o fascismo se introduz e governa.

    VI

    Um caso especial de uso alternativo, que eu me permitiria designar por uso supletivo da lei penal, passou a ocorrer aps a coliso de duas crises agudas: a crise de eficcia dos direitos humanos e a crise de legitimidade da pena.

    Do formidvel encontro dessas duas crises resultou milagrosa superao de ambas. Imediatamente a pena reivindicou relegitimar-se pela elevada tarefa de responder a violaes de direitos humanos. Ao mesmo tempo, o espetculo da punio do violador como que conferia ao direito violado uma espcie de segunda eficcia: sim, verdade que a polcia matou uns mil jovens negros ano passado, mas olha a condenao a 72 anos daquele sargento! Essa eficcia simblica, que os direitos humanos preferem a no ter nenhuma, mascara seu desamparo real.

    O uso supletivo da lei penal procura encobrir a crise de eficcia dos direitos humanos, deixados ao relento pelo Estado mnimo. A punio

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    espetaculosa de um violador procura revalorar positivamente a pena, ocupando simbolicamente o lugar da eficcia dos direitos humanos violados.

    A desproteo dos direitos humanos no capitalismo do trabalho morto isso que a eficcia simblica ou segunda eficcia (conferida pela punio do violador) procura encobrir. A brutalidade infecunda da pena, que portanto deve ser pouco empregada numa democracia isso que a revalorao positiva da pena pela responsabilizao do violador de direitos humanos tambm procura encobrir.

    O uso supletivo da lei penal assim o encontro de duas mentiras.

    VII

    A mdia no cronista e menos ainda historiadora da questo criminal: a mdia um personagem da questo criminal, um personagem que assumiu o protagonismo nas relaes entre agncias policiais e judicirias e o pblico; que no jornalismo investigativo pretende exercer tarefas policiais; que detm a seletividade do sistema penal pela capacidade de pautar suas agncias; que gosta de apresentar-se como servio pblico; em suma, um personagem poderoso e perigoso.

    A investigao espetacularizada de um crime tem muitas utilidades polticas, e a primeira delas ocupar o espao da prpria poltica. O noticirio da investigao, muito mais do que transmitir informaes sobre as iniciativas policiais e criminalsticas, produz sentidos e consolida o senso comum criminolgico. O crime reduzido ou expresso psicopatolgica de uma natureza a ser domada pela pena, ou opo interna do indivduo pelo mal, a ser retribuda tambm pela pena. Em suma, o crime apresentado como determinao natural ou como problema moral, sem o menor vnculo com a estrutura econmica, com a cultura (e, dentro dela, com a prpria mdia), com a classe social do sujeito etc. Os pobres roubam no por serem pobres, e sim por serem ladres eis o sentido raso desse jornalismo, sempre confortado por especialistas das cincias sociais, psi, e jurdicas. A coisa to tacanha que comeou a aparecer na mdia uma testemunha de sua tese: o irmo do ladro (ou seu colega de escola primria) que, pobre como ele, no entanto no roubou. A averso social construda sobre a pessoa do infrator, insultado e s

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    vezes agredido por vidiotas quando a caminho de uma diligncia policial espetaculosa (como a reconstituio do delito) recorda os insultos e cusparadas que o povo lanava ao herege a caminho da fogueira. O mais importante desses sentimentos produzidos no est em expulsar do gnero humano o infrator, autorizado pois o prazer que se possa extrair da viso de sua vergonha e de seu sofrimento. O importante a relegitimao da pena e das coeres processuais-penais que esses sentimentos provocam. Curioso observar que quando essas investigaes espetacularizadas perduram por algum tempo, seu noticirio se deixa impregnar pelo ritmo dramatrgico das novelas: os captulos rememoram as melhores cenas anteriores, anunciam-se peripcias subsequentes, e, como nas novelas, espera-se pelo resultado dos exames de DNA.

    No pode o gestor do sistema penal conformar-se com a espetacularizao dos procedimentos criminais, desatento das frequentes violaes do direito a um julgamento justo21 e a tantas outras garantias do ru. H poucos meses, em So Paulo, o advogado de defesa num caso de grande repercusso foi agredido por populares. o conhecido caminho do fascismo.

    Permitam-me pormenorizar uma experincia pessoal.

    No segundo governo Brizola, eu j tentara compreender os caminhos da mdia. J sabia que um governo que tente reduzir as violncias do sistema penal contra as classes populares ser sempre responsabilizado por todo delito que ocorra; como se diria hoje, responsabilizado pela no-evitao do delito. J sabia tambm que um governo que exera implacavelmente o mximo poder punitivo disponvel sobre as classes populares fica isento de crtica neste flanco: a demonizao do infrator faz do juiz um exorcista, o assunto no passa pela poltica e o governo conservador no responsabilizado. Ao contrrio, governo e mdia, em unssono, cobram do Congresso Nacional mais penas, mais exorcismos.

    Tivramos muitas dificuldades para reduzir as atividades de pequenas quadrilhas integradas quase sempre por policiais (da ativa, aposentados ou demitidos) que praticavam execues sumrias em certas reas perifricas (grupos de extermnio). Como inibir tais grupos fra declaradamente nessa prioridade, cada homicdio representava a prova morta de nosso fracasso, a despeito dos nmeros

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    terem interrompido uma ascenso delirante do governo anterior (cujo Chefe prometera acabar com a violncia em seis meses e fora muito tolerante com aqueles grupos) e terem comeado a baixar.

    Caminhvamos sobre o fio da navalha: nossas iniciativas para conter a violncia policial sobre as favelas eram vistas como estmulos a toda sorte de delitos. Foi quando pensei em revelar outros estmulos, pouco importando fossem to incuos quanto o nosso.

    Montamos uma equipe para pesquisar em tempo integral toda a programao da mais importante rede de televiso brasileira transmitida para o Rio de Janeiro, na semana de 5 a 11 de janeiro de 1992. Dias agitados: 188 homicdios tentados, 56 consumados (renasce-se frequentemente nos desenhos animados); 400 agresses, 190 ameaas, 50 quadrilhas, 5 crimes sexuais violentos, 26 crimes sexuais de abuso da inexperincia, 12 trficos ou usos de drogas ilcitas e assim por diante. Para simplificar: havia menos homicdios por dia no Estado do Rio do que na programao inclusive a infantil da emissora que nos responsabilizava por eles. Brizola publicou admirveis artigos divulgando essas informaes. Intitulamos provocadoramente o relatrio da pesquisa: O Exterminador Eletrnico. Nossos adversrios sentiram o golpe: tnhamos entrado na linguagem deles.

    Fique claro que no compartilho absolutamente das idias daquele nosso colega sovitico que, no Congresso da ONU de 1960, garantiu que o Tarzan aumentara a delinquncia juvenil. No acreditava nem acredito que haja qualquer relao mecnica entre a programao da televiso e a infrao da lei penal. Mas eles acreditavam, porque eles participaram e apoiaram a ditadura que instaurara a censura, e a censura tem por princpio indescartvel que o conhecimento pode contagiar e mobilizar quem o recebe. Mais grave, eles incorporaram a censura e a praticavam espontaneamente. Por exemplo, aqueles melodramas folhetinescos designados por novelas so regidos por um moralismo vitoriano, que mais de uma vez censurou e o dramaturgo teve que refazer seu roteiro cenas de afetividade homossexual. Para a autocensura no noticirio relembre-se a edio do Jornal Nacional que divulgou os incidentes essa foi a palavra qual recorreram as Notas Oficiais e todos os reprteres para falar da invaso da siderrgica por tropas do Exrcito e do assassinato de trs operrios incidentes de Volta Redonda22. Para a

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    tica da censura, a chacina dos Trs Porquinhos ou o estupro da Bela Adormecida na programao infantil era muito desconfortvel.

    Durante uns breves dias pudemos todos respirar um pouco, j que todos ramos culpados.

    VIII

    Administrar penitencirias deveria ser uma atividade tranquila, sem muitas tenses. Afinal, h mais de dois sculos desde Howard sabemos bem dos horrores da institucionalizao total. No fossem os interesses da poderosa indstria do controle do crime, especialmente do ramo da hotelaria punitiva, e a privao de liberdade estaria desacreditada como pena; alis, como pena que, na reincidncia penitenciria, reproduz o crime. Quando era chamado de utpico, Louk Hulsman respondia com doura que no existe ningum mais utpico do que aquele que espera alguma coisa da priso. A priso sempre foi um grande fracasso, quaisquer que tenham sido os regimes penitencirios, a formao do pessoal, as condies arquitetnicas, a judicializao da execuo penal etc. Portanto, o administrador penitencirio no corre muitos riscos: ele tem aquele emprego no qual se tudo der errado que est tudo certo.

    Todos ns conhecemos um socilogo que elaborou aquele projeto perfeito para a penitenciria finalmente funcionar bem. Cuidado com ele e com a imaginao dele. Neste terreno, a conta dos aprimoramentos geralmente paga por restries duras aos direitos remanescentes dos internos, por intervenes autoritrias na difcil sociabilidade carcerria, pela introduo de novas micro-opresses punitivas. A recomendao que eu faria ao jovem criminlogo ou penalista crtico envolvido na gesto do sistema penitencirio seria manter, como estratgia geral, objetivos de reduo de danos e de entretenimento.

    A educao no crcere, muito mais do que a misso impossvel de suprir o deficit educacional dos internos, deve favorecer neles a compreenso das condies sociais que os expuseram e a seus companheiros criminalizao. O ensino de msica e de artes plsticas; o acesso literatura, atravs de uma biblioteca

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    qualificada; a prtica de esportes; o estmulo ao artesanato; todas essas atividades so to ou mais importantes do que os cursos escolares formais. Na sade, o reconhecimento pelas autoridades sanitrias de que o hospital penitencirio um hospital pblico quem duvidaria disso? pode abrir novos padres de atendimentos. Neste mbito da sade, preciso vigiar bem os portes, no tanto para evitar a fuga de um interno quanto para impedir que o positivismo criminolgico entre lpido por eles. As asspticas prises no capitalismo do trabalho morto vo realizar o assustador sonho dourado das prises-fbricas do capitalismo industrial? A penitenciria supermax no teria se inspirado um pouco nos galpes de montagem de produtos eletrnicos, tambm sem janelas, de Ciudad Juarez, at que as idias de liberdade de comrcio e de que tudo mercadoria passassem a atrapalhar a explorao transnacional? preciso substituir a velha concepo de um trabalho prisional produtivo por um trabalho que envolva entretenimento. No interior de uma cadeia, a nica virtude fazer o relgio andar mais rapidamente.

    Invocarei outra experincia pessoal, na qual estive e estou certo de ter tomado a melhor deciso. Dentro das vises de uma poltica criminal do sculo XIX, foram construdas, no final dele, algumas prises em ilhas martimas, uma delas no Estado do Rio de Janeiro, na Ilha Grande (Colnia Correcional de Dous Rios). Ela foi mais ou menos contempornea de Ushuaia. As famlias dos internos, no dia de visitas, tinham que caminhar doze quilmetros do ancoradouro at a priso (um velho nibus j no funcionava). Uma priso numa ilha uma proposta que colide frontalmente com o artigo 1 da nossa lei de Execuo Penal, comprometido com a utopia preventivista especial. Em 1994, o neoliberalismo se instalava no Brasil, com a eleio de Fernando Henrique Cardoso. Comeava-se a falar de privatizao de prises. Os mais imaginativos falavam de prises em navios algo preocupante num pas que conhecera essa prtica23. Brizola percebeu que no poderamos deixar o governo com aquilo de p. Implodimos a velha priso, e cedemos a rea para um instituto de estudos marinhos da UERJ. Se no o tivssemos feito, hoje haveria quatrocentos prisioneiros l. Esta foi provavelmente a nica deciso que tomei, como Secretrio de Justia, tendo absoluta certeza de estar fazendo a coisa certa: implodir uma priso.

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    IX

    No h fracasso mais estrondoso e reconhecido do que a poltica criminal de drogas; ao mesmo tempo, no h instrumento jurdico que permita mais amplamente a violao de domiclios e da privacidade, a aterrorizao de comunidades inteiras e a execuo sumria de infratores do que a legislao que exprime aquela poltica. As bases da Conveno de Viena j comearam a rachar. impossvel hoje negar o aumento no comrcio e no consumo e o advento colateral de muita violncia institucional e muita corrupo, como inerente a todo proibicionismo, bem como a presena do argumento droga em mobilizaes diplomticas e mesmo militares, naquela geopoltica que Rosa del Olmo to bem descreveu. Uma mudana de orientao parece sinalizada internacionalmente. At as naus mais conservadoras j perceberam que o vento vai mudar, e esto corrigindo seu rumo. A commoditie cultural andina ser apropriada e liberada (liberada para a apropriao transnacional). Curiosamente, os governos latinoamericanos do campo progressista jamais se sensibilizaram para um movimento diplomtico regional que pudesse minorar o sofrimento punitivo que recai cotidianamente sobre os mais vulnerveis entre os mais pobres de seus povos. E bastaria construir uma poltica criminal latinoamericana independente para as drogas ilcitas, bastaria exercer soberania. Ao contrrio. Esse talvez o nico tema no qual a mesmssima opinio pode ser enunciada por Bush ou por Fidel, por Uribe ou por Chavez, por Caldern ou por Lula. A chancelaria brasileira tem independncia bastante para a questo nuclear no Oriente Mdio; para maconha, nem pensar. O fracasso virou tabu? Passar o cu e a terra porm a Conveno de Viena no passar? Ou na verdade este fracasso um sucesso que no pode ser explicado? Ou simplesmente o Estado do vigilantismo policial no pode abrir mo dos amplos pretextos que as leis anti-drogas lhe facilitam? O poder, facultado pelas leis anti-drogas, de violar domiclios e privacidades, aterrorizar comunidades inteiras e executar sumariamente infratores integra o arsenal das burocracias policiais-militares encarregadas do controle punitivo dos contingentes humanos desamparados e marginalizados pelo empreendimento neoliberal. A poltica criminal de drogas um fracasso; mas o duro poder punitivo que ela concede s agncias policiais um trgico sucesso. Por isso, recomenda-se moderao no manejo dessas leis.

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    Para concluir, sintetizemos o que seriam as seis primeiras recomendaes, que tentamos fundamentar anteriormente, a elas agregando algumas outras.

    1. A gesto meramente tecnocrtica do sistema penal resulta sempre na expanso do poder punitivo. S uma gesto poltica, confortada pelo conhecimento histrico da conflitividade social e legitimada democraticamente pode evitar tal expanso. A reivindicao de autonomia de gesto para a fora policial incompatvel com o Estado de direito.

    2. No existe um uso alternativo da lei penal. Todo e qualquer uso da lei penal acaba repercutindo nos suspeitos de sempre, impossibilitados de escapar do prprio corpo, do esteretipo criminal que os denunciar.

    3. O uso supletivo da lei penal serve apenas para dissimular a crise de eficcia dos direitos humanos e a crise de legitimidade da pena.

    4. um equvoco transigir com a espetacularizao dos procedimentos penais. A mdia hoje parte importante da questo criminal, no sua cronista, como quer parecer.

    5. A gesto da penitenciria sobretudo reduo de danos e entretenimento.

    6. Seja moderado nas doses quando tiver que executar a poltica criminal de drogas.

    A essas recomendaes caberia agregar algumas outras.

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    7. Convm ser cauteloso com a judicializao do cotidiano, entusiasticamente sustentada no Brasil por certos cientistas polticos. Pequenos conflitos interindividuais podem ser adequadamente tratados por dispositivos conciliadores sociais e no judiciais, protegendo-se os envolvidos dos registros que logo se convertero em antecedentes.

    8. No deixe de constatar empiricamente se as chamadas penas alternativas privao de liberdade esto mesmo oferecendo alternativas ao encarceramento ou esto apenas ampliando o controle e a vigilncia do sistema penal sobre a populao.

    9. Ao ouvir o canto das sereias da preveno (de qualquer natureza ou contedo, geral, especial, positiva, negativa etc), amarre-se imediatamente a um mastro para no pular no mar. A preveno resulta mais invasiva e dilargante do poder punitivo do que a tacanha represso retributiva. Se a tentao for muito forte, leia os preventivistas, de Bentham a Jakobs.

    10. Ainda ao preo de passar por excntrico, no empregue em seus programas de governo a palavra combate. No h combate sem mortos.

    XI

    Quero concluir esta exposio, que foi afinal mais divertida do que imaginei a princpio, e isto pode ser atribudo estratgia de abandonar as reminiscncias da prpria luta em favor de contribuir para as lutas que uma juventude generosa e resistente est comeando a travar. Recordar os quinze Centros Comunitrios de Defesa da Cidadania que Verinha e seus companheiros conseguimos implantar em favelas do Rio prestamente desnaturados pelo governo estadual subsequente, tambm ele neoliberal seria melanclico. Trocar idias, a partir de sua experincia, com aqueles que de alguma forma detm responsabilidade poltica sobre a gesto do sistema penal ou esto prestes a det-la, ao contrrio, renovar esperanas.

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    No h nada mais prioritrio, em minha opinio, do que as foras polticas progressistas qualificarem seu debate sobre a questo criminal. Teremos este ano eleies no Brasil. Salvo uma fora poltica minoritria, todos os candidatos tm o mesmo discurso sobre a questo criminal. Como acreditar que o domnio do pensamento nico esteja em decadncia?

    A esquerda tem que se interrogar sobre as significaes polticas, os usos e efeitos da criminalizao. Ser possvel que os preconceitos contra o lumpesinato, explicveis do ponto de vista da organizao da classe operria no capitalismo industrial, sejam mantidos no capitalismo vdeo-financeiro globalizado sem trabalho? Afinal, o que era, no incio da modernidade, a futura classe operria, seno um punhado de inteis econmicos, aqui ladres, ali vadios, acol assassinos, todos a caminho da forca? Ordenar e disciplinar a mo de obra urbana passou a ser uma tarefa dos socialistas?

    espantoso como se conseguiu produzir uma imagem positiva da mxima negatividade jurdica: a pena. Talvez isso fosse impensvel sem o cristianismo. Mas no altar republicano no se instala um instrumento de suplcio, por mais conveniente que seja para quem detm o poder de criminalizar atribuir pena propriedades redentoras e purificadoras. O orculo de Delfos ainda tem credibilidade.

    Encerrarei parodiando Darci Ribeiro. Fomos derrotados. No conseguimos criar dispositivos que impedissem o extermnio massivo da juventude pobre e a criminalizao de suas estratgias de sobrevivncia. At recentemente, quando um programa governamental ocupou-se da tarefa, o nico projeto habitacional para a pobreza no Brasil era a construo de penitencirias. Os movimentos sociais, especialmente o MST, esto sendo criminalizados. O Congresso Nacional, ao sabor dos interesses eleitoreiros dos deputados justiceiros, mutila periodicamente o Cdigo Penal, sempre na perspectiva de ampliao do poder punitivo e reduo ou flexibilizao de garantias. Fomos derrotados. Um fascismo social acometeu setores da classe mdia que perfilhavam, trs dcadas atrs, idias progressistas. O generoso olhar cultural que esses setores da classe mdia lanavam sobre as favelas foi substitudo por um olhar policialesco; basta comparar a filmografia brasileira dos anos 70 com a atual, basta comparar O Assalto ao Trem Pagador ou Deus e o Diabo na

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    Terra do Sol com Tropa de Elite. Fomos derrotados. Porm e esta foi a ressalva de Darci Ribeiro que ora parodiamos jamais trocaramos a dignidade dessa derrota por todas as vitrias de nossos adversrios; essas vitrias, sim, nos envergonhariam.

    Est na hora de ouvir Les Luthiers.

    Referncias bibliogrficas

    1 Polari de Alverga, Alex, Inventrio de Cicatrizes, S. Paulo, 1978, ed. Comit Brasileiro pela Anistia e Teatro Ruth Escobar.

    2 Aniyar de Castro, Lolita, El Zulia que Queremos, Maracaibo, 1996, p. 86.

    3 Sobre isso, Werneck Sodr, Nelson, Vida e Morte da Ditadura, Petrpolis, 1984, ed. Vozes, especialmente pp. 127 ss.

    4 Sobre essa fora poltica, Castro Gomes, ngela, A Inveno do Trabalhismo, Rio, 1994, ed. R. Dumar; Ferreira, Jorge, Trabalhadores do Brasil, Rio, 1997, ed. FGV; do mesmo, O Imaginrio Trabalhista, Rio, 2005, ed. Civ. Bras.; Ribeiro, Jos Augusto, A Era Vargas, Rio, 2001, ed. Casa Jorge, 3 vols.; Diehl Ruas, Miriam, A Doutrina Trabalhista no Brasil (1945-1964), P. Alegre, 1986, ed. Fabris; para um intelectual trabalhista histrico, Pasqualini, Alberto, Busca e Sugestes para uma Poltica Social, Rio, 1958, ed. Liv. S. Jos; fontes da Revoluo de 1930 em Salgado Guimares, M.L. Lima et al. (orgs.) A Revoluo de 30 Textos e Documentos, Braslia, 1982, ed. UnB, 2 vols.

    5 As mais recentes em La Razn Populista, B. Aires, 2010, ed. Fondo de Cultura Econmica.

    6 Sobre Leonel Brizola: Ribeiro, Darcy, Nossa Herana Poltica: Getlio Vargas, Joo Goulart e Leonel Brizola, Rio, s/d, ed. PDT; Oliveira, Baslio de, Brizola e o Estado Brasileiro, Rio, 1989, ed. L. Iuris; Deccache Mussi, Emerson et al., As Razes de Leonel Brizola, Rio, 1990; Kuhn, Dione, Brizola da Legalidade ao Exlio, P. Alegre, 2004, ed. RBS; Moraes Ferreira, Marieta (org.), Brizola e o Rio de Janeiro, Rio, 2008, ed. FGV; Sento-S, Joo Trajano, Brizolismo, Rio, 1999, ed. FGV; Maneschy, Osvaldo et al. (orgs.), Com a Palavra Leonel Brizola, Rio, 1994; Aguiar, Ricardo Osman, Leonel Brizola, Rio, 1991, ed. Record; Leite Filho, F.C., El Caudillo Leonel Brizola, S. Paulo, 2008, ed. Aquariana; Corra de Souza, Ernani, Brizolndia um Grito na Praa, Rio, 1993; Vasconcellos, Gilberto Felisberto, Depois de Leonel Brizola, S. Paulo, 2008, ed. C. Amigos.

    7 Prado Junior, Caio, Histria Econmica do Brasil, S. Paulo, 1981, ed. Brasiliense, p. 133.

    8 Passos Guimares, Alberto, As Classes Perigosas, Rio, 2008, ed. UFRJ, p. 133.

    9 Nogueira de Azevedo, Francisca, Malandros Desconsolados, Rio, 2005, ed. Relume Dumar, pp. 55 e 70.

    10 Carvalho, Elysio de, A Polcia Carioca e a Criminalidade Contempornea, Rio, 1910, ed. Imp. Nac., p. 53.

    11 Um exemplo. No cdigo imperial-escravista de 1830, aps sofrer a pena de aoites o escravo era entregue a seu senhor, que se obrigar a traz-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar (art. 60). No Regulamento da Casa de Correo do Rio, de 1910, eram cominadas as seguintes penas disciplinares: privao temporria do salrio, restrio alimentar e imposio de ferros (art. 77, incs. 2, 5 e 6 do dec. n 8.926, de 13.out.1910). Cf. Duque Estrada Roig, Rodrigo, Direito e Prtica Histrica da Execuo Penal no Brasil, Rio, 2005, ed. Revan, pp. 86 ss.

    12 Cf. Morel, Edmar, A Revolta da Chibata, S. Paulo, 2009, ed. Paz e Terra. Em documento dirigido ao Ministro, os marinheiros revoltosos pediam em 1910 a abolio dos aoites a fim de que a Marinha Brasileira seja uma Armada de cidados e no uma fazenda de escravos (p. 36).

    13 Holloway, Thomas H., A Polcia no Rio de Janeiro, trad. F.C.Azevedo, Rio, 1997, ed. FGV, p.

    49. 14

    Para fotos, cf. Discursos Sediciosos Crime, Direito e Sociedade, n 14, pp. 196-197. H um ms do momento em que escrevo, mais de 150 moradores do nico conjunto habitacional

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    pobre da requintada Zona Sul Carioca foram presos e conduzidos pelas ruas do Leblon at a Delegacia de Polcia.

    15 Nazareth Cerqueira, Carlos Magno, Do Patrulhamento ao Policiamento Comunitrio, Rio, 1998, ed. F. Bastos; tambm O Futuro de uma Iluso: o Sonho de uma Nova Polcia, Rio, 2001, ed. F. Bastos; tambm Polcia e Gnero, Rio, 2001, ed. F. Bastos; Nazareth Cerqueira, C.M. et al., A Polcia e os Direitos Humanos, Rio, 1998, ed. F. Bastos e A Polcia diante da Infncia e da Adolescncia Infrao e Vitimizao, Rio, 1999, ed. F. Bastos.

    16 Sobre os autos de resistncia, cf. Report of the Special Rapporteur on extrajudicial, summary or arbitrary executions, Philip Alston (www.ohchr.org).

    17 Cf. Batista, Nilo, Mdia e sistema penal no capitalismo tardio, em Discursos Sediciosos Crime, Direito e Sociedade, n 12, p. 281, e Mattos Rocha, Lia, Uma favela sem trfico?, em Machado da Silva, Luiz Antonio (org.), Vida sob Cerco, Rio, 2008, ed. N. Fronteira, p. 200.

    18 Criminologia Crtica e Crtica do Direito Penal, trad. J.C. dos Santos, Rio, 1999, ed. F. Bastos, p. 202.

    19 Pavarini, Massimo, O instrutivo caso italiano, trad. V.M. Batista, em Discursos Sediciosos Crime, Direito e Sociedade, n 2, p. 75.

    20 Mauro Santayana entrevista Seplveda Pertence, em Jornal do Brasil, ed. de 4.jul.10, p. A4.

    21 Sobre isso, Schreiber, Simone, A Publicidade Opressiva de Julgamentos Criminais, Rio, 2008, ed. Renovar.

    22 Ignatiuk Wanderley, Sonia, M.A., A Construo do Silncio: a Rede Globo nos Projetos Sociais de Controle Social e Cidadania, diss., Niteri, 1995, UFF, mimeo; um captulo (A greve em Volta Redonda (1988): o telejornal construindo significados) publicado em Discursos Sediciosos Crime, Direito e Sociedade, n 3, pp. 187 ss.

    23 Sobre a Presiganga, cf. Lbano Soares, Carlos Eugnio, A Capoeira Escrava, S. Paulo, 2002, ed. Unicamp, pp. 95 ss; tambm Siqueira Fonseca, Paloma, A Presiganga real, em Nunes Maia, C. et al (orgs.) Histria das Prises no Brasil, Rio, 2009, ed. Rocco, v. I, pp. 109 ss.

    Recebido em 10/02/2011 Aceito para publicao em 10/03/2011