Ninguém o viu nascer. Mas todos acreditam Que nasceu. É...

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Estafeta da Comunicação na Formação Nº 25 | NOVEMBRO/DEZEMBRO 2014 Ilustração da capa – Rute Pinto Ninguém o viu nascer. Mas todos acreditam Que nasceu. É um menino e é Deus. Miguel Torga

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Estafeta da Comunicação na Formação

Nº 25 | NOVEMBRO/DEZEMBRO 2014

Ilustração da capa – Rute Pinto

Ninguém o viu nascer.Mas todos acreditam

Que nasceu.É um menino e é Deus.

Miguel Torga

Editorial

“Quem tem ouvidos, oiça”José Carlos PinheiroMocho peregrino

Cá está novamente junto de cada um de vós, pela vigésima sexta vez, a Newsletter Goodyear, nesta edição nº 25, que aponta para o Natal – o Nascimento do Salvador. É este um tempo de preparação – tempo de Advento, que é como quem diz, tempo de caminhada para a reconciliação…

Para nós Escuteiros, de forma particular, é também tempo de implementar o percurso inicial que nos leva, com certeza, a um novo paradigma da formação no CNE. Nestas páginas, por um lado, apresentamos o balanço da implementação do Sistema de Formação de Adultos no Escutismo, concluindo que “… é já uma realidade em todas as Regiões do CNE”. Por outro, porque também é verdade, verificamos ao falar deste “tempo”, que nesta “como em qualquer mudança que exista, há um tempo de adaptação e este é o seu tempo.”

Pois bem… é neste “tempo” que importa reconhecer, realçar e en-tusiasmar os “Talentos dos Adultos no Escutismo”, já que “num mo-vimento de educação como o Escutismo, a presença de indivíduos com diferentes “graus de talentos” não é só uma inevitabilidade, é um imperativo”. Lembrando as palavras de Baden Powell, pode-mos recordar que o objectivo do Escutismo é “desenvolver os 10% de bom” que existem mesmo nos mais destituídos de talento”.

Este é, enfim, o tempo de “Agir segundo uma Mundividência Cristã…” De facto, como afirma Nuno Higino, “talvez seja mais fá-cil construir uma mundividência a partir duma ideologia do que a partir duma Fé e duma Boa Nova. A ideologia recorta mais, deli-mita de forma apertada, facilita o desenho dum mapa de acção. A Fé, quando liberta de fundamentalismos, exige criatividade infinita porque, em vez de fornecer mapas, apenas coloca marcos ao lon-go do caminho…”

O Papa Francisco nos nºs 222 e 223 da sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium também nos alerta que “o tempo é superior ao espaço” (…)e que “este principio permite trabalhar a longo pra-zo, sem a obsessão pelos resultados imediatos, (…) sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes.”

Este é o “tempo”!

Saibamos vivê-lo!

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Sentinela

Gerir o talento numa organização voluntária: três mitos e algumas propostas

João Paulo Feijoo

“Os bosques seriam um sítio muito silencioso se só cantassem a aves que cantam melhor.”Henry Van Dyke(Diplomata Americano do Século XIX)

A “gestão do talento” tem sido seguramente um dos temas mais “badalados” no domínio da gestão das pessoas ao longo dos úl-timos anos: não há quem não fale da “guerra pelo talento”, no “mercado global de talento”, “fuga de talentos” e de tantas outras variantes do assunto. A razão é simples: vivemos num contexto so-cioeconómico que depende cada vez mais do conhecimento e do trabalho intelectual como fator de criação de riqueza e de orga-nização da sociedade, e isso leva-nos a pôr a tónica nos detento-res do conhecimento, ou seja, nas pessoas, em detrimento dos ou-tros fatores de produção clássicos – o capital, a terra, e o trabalho na sua dimensão física.

Como todas as revoluções, esta “revolução do conhecimento” é turbulenta, desordenada e complexa, e arrasta consigo um grande número de equívocos, confusões e ambiguidades – e a “gestão do talento” tem sido uma das suas maiores vítimas. Este artigo procu-ra identificar e desmantelar três mitos comuns sobre a gestão do talento e discutir o significado desta clarificação para o Movimento Escustista, quer no plano da educação dos jovens quer no da ges-tão dos recursos adultos.

MITO Nº 1: O TALENTO É UM BEM ESCASSO

Depende do que entendemos por “talento”: esta expressão é mui-tas vezes usada no sentido superlativo, de uma qualidade existente num grau muito elevado. Quem pensa assim considera que o “ta-lento” é algo escasso e reservado a uma elite de “talentosos”.

A verdade é que todos somos “talentosos” nalguma coisa, e as or-ganizações precisam de toda essa diversidade e complementari-dade de “talentos” para funcionarem eficazmente, embora nem sempre saibam tirar partido desse potencial. Nunca me esqueço de quando, jovem quadro bancário, tive de lidar com uma agên-cia numa localidade do interior onde um dos caixas ia bem en-trado na casa dos quarenta, contrastando vivamente com os cole-gas quinze ou vinte anos mais novos, e sem nunca ter aparentado aptidão ou motivação para progredir. Incapacidade? Indolência?

Manifesta falta de “talento”? Vim a descobrir que o indivíduo era o presidente da filarmónica local. Nessa função, talento não lhe fal-taria por certo.

O Escutismo sabe isto desde sempre: não é do contributo de dife-rentes talentos complementares que vive o Sistema de Patrulhas? Não é o sistema de progresso um admirável instrumento de desen-volvimento personalizado do talento?

E no plano dos recursos adultos, não são bem-vindos diferentes ti-pos de talentos? A organização não precisa de educadores e de gestores, de gente prática e de visionários? E saberá aproveitar, va-lorizar e mesmo promover essa diversidade?

Educar não é moldar os jovens segundo um padrão uniforme, é fazer desabrochar a vocação que existe em cada um de nós. Este ideal de educação só é possível reconhecendo a riqueza que está presente na diferença, e isto não é compatível com uma noção uni-dimensional do talento.

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MITO Nº 2: PARA TER ÊXITO, UMA OR-GANIZAÇÃO PRECISA DOS “MELHORES TALENTOS”

Este mito pode ser visto como uma extensão do anterior: se só alguns têm talento, é desses que pre-

cisamos, e podemos passar sem os restantes.

Com efeito, mesmo considerando que o talento é uma reali-dade multifacetada, não custa admitir que alguns indivíduos pos-suem determinado talento em maior grau do que outros: se o meu talento é tocar violino, há com toda a probabilidade pessoas que tocam melhor do que eu, e outras pior. Assim, segundo este princí-pio, a orquestra deve procurar recrutar os melhores violinistas que conseguir, pois o seu desempenho dependerá da qualidade – ou “talento” – destes.

Esta crença tem vários problemas.

Em primeiro lugar, sabe-se há muito que o desempenho de uma organização depende de muitos outros fatores para além do ní-vel de desempenho. Cultura, organização, objetivos claros, lideran-ça, relações interpessoais, comunicação interna, condições e ins-trumentos de trabalho, etc. – todos eles condicionam fortemente o desempenho da organização. São inúmeros os exemplos – da história à política e de bandas de música a equipas de futebol – em que a simples acumulação de “estrelas” só por si não funciona se a organização for deficiente ou as pessoas não se entenderem.

Esta dificuldade de entendimento é o se-gundo problema: as “estrelas” tendem a ter egos inflamados e a competirem umas com as outras; os colegas menos “brilhantes”, que perdem na compara-ção, acabam por desmotivar-se e cru-zar os braços; e a necessidade de ge-

rir as quezílias, invejas, conflitos e choques de personalidade

origina um consumo exagerado de ener-gias e de tempo.

Os indivíduos dota-dos de determina-das qualidades ou ap-tidões muito acima da média podem dar um valiosíssimo con-

tributo a uma organiza-ção, mas esta precisa também

dos outros, os menos “brilhantes”: todos eles têm uma mis-são a cumprir, de acordo com a natureza e a quantidade de talen-to que possuem.

Num movimento de educação como o Escutismo, a presença de indivíduos com diferentes “graus de talento” não é só uma inevi-tabilidade, é um imperativo. Todos são chamados a desenvolver--se de acordo com as suas necessidades e com o seu potencial, por diminuto que seja: nas palavras de Baden-Powell, o objetivo do Escutismo é “desenvolver os 10% de bom” que existem mes-mo nos jovens mais destituídos de talento. Mais: por dever de fra-ternidade, os mais talentosos têm o dever especial de “puxar” pe-los seus companheiros menos dotados, e inculcar-lhes esta atitude deve ser um objetivo educativo especial para este grupo.

MITO Nº 3: O TALENTO DEVE SER RETIDO A TODO O CUSTO

Este terceiro mito decorre, por sua vez, do segundo: se o alicer-ce da minha eficácia organizacional (no mundo das empresas fala--se em “competitividade”) está no elevado desempenho dos seus membros (ou trabalhadores), então não posso de maneira nenhu-ma perdê-los!

Acontece que, como referido logo de início, vivemos num contex-to socioeconómico dominado pelo conhecimento, e o conheci-mento tem algumas caraterísticas peculiares – entre elas, tem de ser aplicado e constantemente renovado (ou, por outras palavras, “exercitado”) sob pena de se desatualizar muito rapidamente. Ora, isto é cada vez mais difícil de conseguir dentro das “fronteiras” da organização; para ter um contributo relevante, o indivíduo tem de ir buscar ideias “lá fora”, às suas redes de contactos. Sabe-se mesmo que as ideias mais úteis e inovadoras vêm quase sempre das cha-madas “ligações fracas”, isto é, de relacionamentos mais distantes e esporádicos, o que levou muitas organizações a procurar delibe-radamente ideias no seu exterior, junto de clientes ou mesmo pes-soas totalmente estranhas – uma prática designada por open inno-vation ou crowdsourcing.

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Por outro lado, a relação entre as organizações e os seus membros é cada vez mais volátil. No plano profissional, as gerações mais no-vas, em particular, encaram as suas carreiras futuras como uma su-cessão de funções em empresas diferentes, ao sabor do que lhe parecerem as oportunidades mais interessantes na perspetiva da sua valorização pessoal e da congruência com os seus valores pes-soais; a remuneração tem um papel cada vez menos importante enquanto fator de atração.

Numa palavra: no que respeita à vinculação dos seus membros, as empresas estão a ficar cada vez mais parecidas com as organiza-ções voluntárias!

Não é por acaso que um dos best sellers de 2014 no domínio da gestão de recursos humanos é um livro que defende que o talen-to deve ser gerido numa sucessão de “alianças” voluntárias entre a organização e o trabalhador, baseada na definição de objetivos de mútuo interesse por um período limitado: para a organização, a concretização de determinados objetivos de negócio; para o indi-víduo, a aprendizagem e a valorização pessoal que lhe permitam ambicionar uma nova aliança, num patamar superior, naquela mes-ma ou noutra organização.

Ora, esta ideia de uma missão mutuamente acordada, com ob-jetivos específicos e uma duração limitada e renovável (ou não) no final desse período está presente na reflexão da OMME sobre os Adultos no Escutismo pelo menos desde meados dos anos 1980!

Seja numa empresa ou numa organização voluntá-ria, a questão fulcral é esta: o que acontece se o in-divíduo se for embora? Quais são os riscos? Quais os potenciais ganhos e perdas?

Por tudo aquilo que foi dito anteriormente, há um grupo cada vez maior de especialistas que se pronunciam contra a sabedoria convencional: é preferível deixar partir do que reter contra vontade; um antigo membro com boas recor-dações pode dar um contributo mais valioso do que se tives-se permanecido na organização, através de recomendações, de ideias, de contactos… e até mesmo de um possível regresso fu-turo (nome inventado para isto: “carreiras boomerang”), enriqueci-do por experiências e aprendizagens que nunca poderia ter con-seguido “dentro do cercado”.

Para isso, basta que a tónica que hoje é posta na retenção a todo o custo seja deslocada para o cultivo e manutenção de excelen-tes relações com todos aqueles que passaram pela organização.

O que é que isto tem a ver com o Escutismo? Desde logo, no pla-no dos recursos adultos, aceitar a rotatividade natural: estruturar as “carreiras” em torno de missões específicas com durações limi-tadas, e abdicar das pressões afetivas visando a retenção. Mas tal-vez valha a pena ir mais longe: porque não encorajar ativamente os responsáveis adultos a sair por uns tempos? A fazer outras ex-periências de voluntariado? Porque não criar processos e meca-nismos de “rastreio” sistemático de todos aqueles que já passaram pelo Movimento, para alimentar esta grande corrente de convec-ção com o exterior?

Afinal, no plano educativo, foi isto que o Escutismo sempre apre-goou (mas nem sempre praticou): o que é a Partida do Caminheiro senão a continuação da sua caminhada de crescimento e apren-dizagem “lá fora”, no século? E se quiser assumir responsabilida-des de adulto no Escutismo, não dará um melhor contributo se ti-ver tido o tempo necessário para viver essa experiência externa?

Quando Baden-Powell disse “Escuteiro um dia, Escuteiro toda a vida”, talvez estivesse a pensar numa coisa diferente daquela que tem sido a interpretação mais frequente. E de qualquer maneira, os tempos hoje são outros…

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Para lá da cerca

AGIR SEGUNDO UMA MUNDIVIDÊNCIA CRISTÃ DA PESSOA E DO MUNDO

Nuno Higino

MUNDO E MUNDIVIDÊNCIA

Segundo as definições mais comuns, a mundividência refere-se a uma determinada percepção do mundo, um determinado modo de o apreender e conhecer. Cada pessoa, individualmente consi-derada, tem uma maneira de se orientar e organizar dentro daqui-lo a que chamamos o mundo. Tem, portanto a sua própria mundi-vidência. Mas esse jeito pessoal de olhar o mundo cruza-se com outros olhares, integra-os, caminha com eles. E, aos poucos, aper-cebe-se que o mesmo horizonte é partilhado por outros, por uma multidão. E se não há nada mais pessoal do que o olhar, ele apren-de a partilhar ideias, valores e paixões que são comuns a muitos outros.

Mais difícil é pormo-nos de acordo sobre o significado de ‘mundo’, pois ele integra uma multiplicidade de significações. No contex-to duma mundividência, seja ela qual for, ‘mundo’ pode significar uma certa posição a partir da qual se olha o que está à volta. Tudo o que acontece e se compreende dentro dessas vivências leva im-plícita uma determinada interpretação. Essa leitura de posição não escapa a uma limitação de ordem física (perspectivista, relativista) mas tende a superá-la. Isto quer dizer que aquilo que se vê e inter-preta a partir dessa posição não despreza nem ignora o que não está explicitamente diante do olhar. Aquilo que uma mundividên-cia tem de próprio é precisamente a capacidade de ver além do visível e do evidente. Os antigos distinguiam entre o mundo sen-sível e o mundo inteligível. O homem, habitante do mundo sensí-vel, está capacitado para o transcender, para ver para além dele, para ‘perceber’ o pensamento e o mundo das ‘coisas verdadeiras’. O Cristianismo assume estes dois mundos mas liga-os de uma for-ma tão solidária que um não é concebível sem o outro. Esse víncu-lo que une os dois mundos é encarnado por uma ideia e uma pes-soa. A ideia de Reino de Deus liga a história e a eternidade, o aqui e o além, o já e o ainda não. A pessoa de Cristo dá carne, forma e realidade a essa ideia.

Desta posição, o cristão cria a sua mundividência, a sua percep-ção do mundo. E o que vê a partir dela? Vê um arco, uma aliança, um início e uma consumação. Um percurso não necessariamente linear mas cheio de saliências e ressaltos. Não há história sem aci-dentes de percurso. Dito de uma forma um pouco mais filosófica, não há história sem interpretação. Não há história pura, neutra, ob-jectiva. Mas, apesar dessa limitação insuperável, há um horizonte omnipresente que enquadra e dá sentido a toda e qualquer acção humana: o Reino de Deus. Há uma figura que ocupa o centro e, a partir dele, define o caminho, a verdade e a vida: a pessoa de Cristo.

CONSTRUIR MUNDIVIDÊNCIAS

Talvez seja mais fácil construir uma mundividência a partir duma ideologia do que a partir duma fé e duma Boa Nova. A ideologia recorta mais, delimita de forma apertada, facilita o desenho dum mapa de acção. A fé, quando liberta de fundamentalismos, exige criatividade infinita porque, em vez de fornecer mapas, apenas co-loca marcos ao longo do caminho. A ideologia ocupa uma posição mais ou menos fixa e determinada. A fé exige uma rotação perma-nente de posição, ou melhor, uma invenção permanente de posi-ção. Neste sentido, olhar o mundo a partir da fé exige mais do in-divíduo, responsabiliza-o mais, porque a posição não está dada à partida, mas apenas apontada. É neste sentido que deve ser en-tendido o papel da instituição: balizar a liberdade, colocando limi-tes à iniciativa puramente individual e aos perigos da arbitrarieda-de. Não há maior perigo para a liberdade do que a desordem. A instituição tem por tarefa orientar uma liberdade responsável, inte-grando nessa responsabilidade os carismas individuais, fazendo-os reverter em favor do todo. Não há liberdade puramente carismá-tica nem liberdade puramente institucional. A liberdade funciona como um pêndulo que integra no seu movimento os dois aspec-tos. Essa é a razão por que não existe uma liberdade adquirida, fixa, definitiva. Porque é um movimento, algo que se vai construindo, a liberdade está sempre sujeita a revisão e correcção do percurso.

A instituição representa tantos perigos para a liberdade quan-to os excessos carismáticos. Pretender uma liberdade inteiramen-te controlada pela instituição é tão deplorável quanto a sua ava-liação por critérios unicamente individuais. Não há liberdade sem ambiguidade.

AGIR

Porque a maior parte das nossas acções acontece de forma ins-tintiva, podemos pensar que agir é algo natural e que não neces-sita de grande reflexão. Não é bem assim: agir é algo complexo. Sobretudo para o Cristianismo que tem como um dos seus fun-damentos precisamente o oposto da acção, a paixão. A Paixão (com maiúscula) não é o ponto de chegada dum processo, mas um momento desse processo. A fé cristã não começa nem acaba no Calvário, mas passa necessariamente por lá. Jesus Cristo foi víti-ma duma acção hostil sobre ele desencadeada pelos poderes po-lítico e religioso da época: foi condenado pela acção daqueles que o condenaram. Mas essa paixão foi consequência da sua acção. No entanto, o resultado não foi o esperado por aqueles que lhe infli-giram o castigo: o silenciamento, a morte. A Paixão deu passagem a uma acção absolutamente nova. A Ressurreição defraudou, sa-botou, todas as expectativas no âmbito da lógica da acção. É nes-te ponto que as articulações da lógica, da estratégia e da políti-ca começam a ceder. E é neste ponto que as implicações para a acção cristã se tornam complexas e verdadeiramente difíceis. Agir cristãmente envolve esta passagem, este salto mortal. Nem acção sem sentido da paixão; nem paixão sem perspectiva nem vontade

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de saltar e vencer o mundo. O Evangelho utiliza por diversas ve-zes esta imagem: as águas em que navega a barca da fé nunca são águas tranquilas. O mundo sempre foi e sempre será um lu-gar de acção e de paixão, de iniciativa e de espera, e nem sempre é fácil discernir quais são os momentos de actuar e os momentos de esperar.

AGIR E PRODUZIR

A acção refere-se ao actuar e ao resultado da actuação. A acção daquele que intervém para apaziguar uma luta envolve a sua de-cisão de intervir e o seu resultado, o apaziguamento. Segundo Aristóteles, a ética e a política, enquanto ciências práticas, ocupam--se da acção. No entanto, segundo ele, a acção, por si só, não pro-duz nada (‘actuar não é fazer, nem fazer é actuar’). A produção é outra coisa e dela se ocupa outra ciência, a poética. Não sei se é exactamente assim como diz Aristóteles, mas agrada-me a ideia de associar uma poética ao mundo das actividades humanas. E jul-go que podemos encontrar no Evangelho razões mais do que sufi-cientes, não apenas para a acção como também para a produção. O Evangelho implica uma ética, uma política e uma poética. Esta última será a dimensão mais esquecida, pois aquilo que ela pro-duz nem sempre pode ser escrutinado e descortinado na acção. Como, aliás, acontece na poesia propriamente dita e nas artes em geral. Não deveria haver cristianismo sem poética, sem capacida-de de produzir: produzir obra de vida, de amor e de reconciliação. Produzir sentido. Um cristianismo demasiadamente pragmático, baseado exclusivamente na acção, pode esconder essa produção de sentido que, segundo a metáfora do grão de trigo, germina no interior da terra, longe da vista e da evidência da acção. O grão de trigo, no seu processo de paixão, não actua. E no entanto produz. A poética será, portanto, esse halo que se insinua entre a acção e a contemplação, entre a mão e o pensamento, entre a praxis e a teo-ria. Uma espécie de terceiro reino. Segundo a conhecida tese de Jacques Le Goff, a teologia medieval produziu o purgatório como ‘terceiro lugar’ (como a ele se referiria mais tarde Lutero). E essa pro-dução foi, segundo Le Goff, a razão principal para o grande desen-volvimento dos dois séculos e meio que se seguiram ao ano mil. E porquê? Porque operou uma revolução mental no seio da cristan-dade, dando origem a uma mundividência nova e ‘inclusiva’, como hoje está em moda dizer-se. Isto é, entre o Céu e o Inferno a teo-logia medieval produziu um espaço intermédio, um espaço para a possibilidade de afirmação da liberdade individual. Um espaço de purificação e de confronto. Uma superação do dualismo. Um ter-ceiro incluído.

O terceiro é o Espírito, a testemunha (testis, o que está e assiste como terceiro) e o intérprete: ‘O Espírito receberá daquilo que é meu e o interpretará para vós’ (Jo 16, 15). O Espírito é a face poética de Deus, Aquele que produz a interpretação e a dispensa aos dis-cípulos de Cristo. Toda a acção cristã é, portanto, mediada e inspi-rada pelo Espírito.

Na minha interpretação, o papa Francisco tem sido um produtor infatigável, mais do que um homem de acção. E se alguns se sen-tem incomodados pelo seu ar de pároco de aldeia e consideram demagógicos os seus gestos e a sua quebra dos protocolos, então,

para esses, também o Evangelho será um compêndio de demago-gias. Jesus fez demagogia quando curou os leprosos e os cegos, quando multiplicou os pães e os peixes, ou quando ressuscitou o seu amigo Lázaro. E fez demagogia quando nasceu.

NÃO HÁ ACÇÃO NEM PRODUÇÃO FORA DA LINGUAGEM

Embora estas subtilezas da filosofia sejam coisas da linguagem, a verdade é que nada pode ser pensado fora dela. Como disse Heidegger, a linguagem não está em nós, nós é que estamos na linguagem. A consciência deste facto é determinante para a ac-ção. O desleixo da linguagem, o desprezo pelo seu refrescamento, explica, em boa medida, a má qualidade das acções e a ausência duma poética na vida contemporânea. Não está em causa, obvia-mente, a qualidade gramatical da linguagem, o falar bem ou o fa-lar mal. Há muito discurso vazio dentro dum aprumado rigor da linguagem e muita sabedoria e poesia dentro dum discurso sin-tacticamente desconexo. Nós somos habitantes dignos da lingua-gem quando comprometemos o espírito com as palavras. Esse é um dos problemas de hoje: as palavras que se dizem não são mais do que falatório, articulações fonéticas que em nada comprome-tem o espírito de quem as profere. A expressão ‘dar a sua palavra’ significa precisamente este compromisso. A ética e a política (as ciências práticas da acção humana) deixam de ser relevantes, per-dem-se no emaranhado do falatório em que se tornou a comu-nicação. Rob Riemen, filósofo e ensaísta holandês, que tem dado um contributo inestimável para o debate cultural do nosso tempo, diz que ‘a perda dos valores espirituais acarreta o desaparecimen-to não só da moral como também da cultura na acepção original da palavra: cultura animi, ou cultura da alma’. Aquilo que caracte-riza uma mundividência cristã é a capacidade de tocar os valores absolutos. Tocá-los na acção e na linguagem, indiscernivelmente li-gados. Ninguém pode aspirar à liberdade sem lutar contra si mes-mo e contra a tendência que há em si de se entregar desenfreada-mente aos impulsos, medos e preconceitos. O adormecimento do espírito: eis o perigo maior. O espírito adormecido não pode impe-dir a entrada do ladrão dentro da sua casa. O já citado Rob Riemen acha que esse adormecimento é o principal responsável pelo flo-rescimento da ‘sociedade de massas’, com o perigo associado do retorno das ideologias fascistas. Perigo antevisto já por Alexis de Tocqueville na sociedade americana de primeira metade do século XIX e por Ortega y Gasset quando em 1930 cunhou o termo ‘socie-dade de massas’ para identificar o maior paradoxo das democra-cias ocidentais: permitir o adormecimento da liberdade, em nome da liberdade. A insensibilidade ao sofrimento alheio (aquilo que o papa Francisco designou como ‘globalização do sofrimento’) é o sintoma mais preocupante da retirada do espírito. Vale a pena, aliás, citar as palavras de Francisco no nº 54 da sua exortação apos-tólica Evangelli Gaudium: a sociedade do nosso tempo ‘desenvol-veu uma globalização da indiferença; tornámo-nos incapazes de

Para lá da cerca

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nos compadecer ao ouvir os clamores alheios; já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos em cuidar deles’. A crueldade e a impiedade representam uma regressão da civiliza-ção. Albert Camus, no seu livro O homem revoltado afirmara em meados do século passado: ‘Os europeus já não acreditam no que existe, no mundo e no homem vivo; o segredo da Europa é este: ela já não ama a vida’.

A proximidade humana perante todas as formas de vida (da qual faz parte o sofrimento) que inspirou e preencheu a totalidade da acção de Cristo produziu uma nova visão do mundo assente na misericórdia e na tolerância. Essa precisamente que a violência actual está a deitar por terra. Não apenas a violência das armas, mas, essencialmente, a violência mansa gerada por uma econo-mia descontrolada e geradora de desiguldades e injustiças sem qualificação.

DO ADORMECIMENTO AOS ‘SONHOS DOGMÁTICOS’

Do seu ponto de observação do mundo, que o mesmo é dizer da sua esfera de acção, como pode um cristão deste tempo intervir? O que pode fazer para despertar o espírito do seu adormecimen-to? A pior atitude é a resignação, pois a resignação torna mais pro-fundo o adormecimento do espírito. É quando o espírito dorme que os ‘sonhos dogmáticos’ entram nas ideias. Quanto mais sono do espírito, mais dogmatismo: na economia, na política, na ecolo-gia, nos costumes, na religião, etc. O capitalismo triunfante, e sem alternativa credível que se vislumbre, vai impondo as suas normas, tomando todos os postos verdadeiramente decisivos, a começar por aquele que devia ser o último reduto de dignidade moral e de cultura: o espírito humano. Quando o inimigo é explícito e tem ros-to, é mais fácil enfrentá-lo e dar-lhe luta. Mas este inimigo, embora sem rosto, tem a aparência dum amigo. Ele promete, aponta para depois do túnel, embora não se importando com os que não con-seguirão atravessá-lo. Ele tem quase sempre razão nas estatísticas, porque sabe controlá-las e conhece todos os artifícios da lingua-gem para as apresentar e delas colher vantagem. Ele coloca den-tro de todas as portas as ilusões necessárias para acreditar na sua bondade.

É verdade que o mundo ocidental vive um dos maiores, senão o maior, período de paz da sua história. As três últimas ge-rações não sabem, por experiência própria, o que é a guerra. E isso deve-se, julgo eu, à consolidação da democracia e dos procedimentos demo-cráticos nas mais diversas áreas da vida so-cial. A democracia social e política vai as-segurando os direitos fundamentais dos cidadãos. Mas a democracia económi-ca permanece uma miragem. E por-quê? Porque o mercado se sobrepôs à ética e à política. Hoje quem deci-de não são os políticos mas os agentes económicos. Os políticos são eleitos e legitimados por sistemas representa-tivos, mas os mercados não têm ros-to, não são elegíveis, não obedecem a outra lógica que não seja a do lucro. Aquilo que é próprio do cristianismo e duma visão cristã do mundo é a defesa intransigente da pessoa humana, so-bretudo daquela que se encontra em

posição débil. Ainda bem que o papa Francisco retomou esta ideia que algumas mundividências cristãs recentes tinham esquecido. ‘Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem’ esta opção pelos mais débeis ‘já que existe um vínculo indissolúvel en-tre a nossa fé e os pobres. (Exortação Evangelii Gaudium, n.48). Este vínculo é indissolúvel, não está sujeito a revisão de ocasião nem a interpretações de conveniência ou estratégia. A acção cristã no mundo tem por missão produzir possibilidades de libertação, abrir caminhos de vida, encontrar posições para a verdade.

VIGILÂNCIA, COMPAIXÃO E POESIA

Como se deve agir segundo uma mundividência cristá da pessoa e do mundo? Seguindo o Evangelho. Na linha dos horizontes que procurei traçar ao longo do texto, resumiria em três esses critérios de acção: vigilância, compaixão e poesia. Vigilância para impedir o adormecimento do espírito. Esse adormecimento leva ao des-prezo pelos valores éticos absolutos, ao enfraquecimento da cul-tura, ao limbo das ideias. Compaixão para não perder o vínculo es-sencial que define e orienta o homem na sua peregrinação sobre a terra: a salvação, que une o tempo e a eternidade, é comunitá-ria. Ninguém se salva sozinho. Ninguém se salva passando ao largo daquele que está caído na berma da estrada. Poesia para pressin-tir e acolher o sopro do Espírito. A poesia produz uma sensibilida-de, uma afinação do espírito, que favorece e une dimensões diver-sas. Assim como a metáfora leva ao encontro termos que não era suposto encontrarem-se, assim uma visão poética da acção leva o espírito para encontros redentores da realidade. Nenhum cristão o pode ignorar: é sobre a palavra (o Verbo) que está construído o edifício da sua mundividência. É pela força da Palavra que o mun-do foi criado e redimido.

MUNDIVIDÊNCIAS CONSTRUÍDAS SOBRE UM ‘CORAÇÃO INQUIETO’

Em bom rigor nem devíamos falar duma mundividência cristã, mas de mundividências cristãs, pois o potencial hermenêutico da Palavra divina é infinito. Aprisionar esse potencial dentro duma vi-são única pode representar um caminho fácil e curto para o funda-mentalismo. Por esta razão, e como a história não se cansa de nos ensinar, os avanços civilizacionais acontecem muitas vezes, menos

por acção das ideias e dos grandes princípios, e mais por força das paixões, dos sentimentos, das experiên-

cias de libertação. O que fez mover Francisco, o de Assis? Foram as ideias? Mais do que pelas

ideias, o seu mundo, a sua visão do mun-do, foi orientada por uma paixão, um cor

inquietum, de que também tinha falado Santo Agostinho. Um ‘coração inquie-to’: eis terreno sobre o qual se podem fundamentar as mundividências cristãs, por diversas que sejam. Com vigilância, compaixão e poesia.

Vitrais de Kim en Joongpadre dominicano sul coreano

Para lá da cerca

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Agenda

2º Encontro Nacional de LeigosA Conferência Nacional de Associações de Apostolado dos Leigos (CNAL) promove o 2º Encontro Nacional de Leigos, sob o mote “Recolocar o Homem no centro da sociedade, do pensa-mento e da vida”, no dia 24 de janeiro de 2015, na Alfândega do Porto.

Convida os homens e mulheres cristãos leigos, de diversidade de carismas e serviços, a congregarem-se, numa perspetiva de refle-xão, de testemunho e de trabalho comum sobre a cultura do en-contro, a que o Papa Francisco tem interpelado, para melhor res-posta às necessidades no mundo contemporâneo, ao serviço das pessoas, ao estilo de Jesus e em comunhão com a ação pastoral da Igreja.

“Quando o Homem perde a sua humanidade, o que nos espe-ra? (…) uma política, uma sociologia, uma atitude «do descar-tável»: descarta-se o que não serve, porque o Homem não está no centro. (…) Portanto, a ideia é salvar o Homem, no sentido que volte para o centro: da sociedade, dos pensamentos, da re-flexão. (…) É o rei do Universo! E esta não é teologia, não é fi-losofia — é a realidade humana. Com isto, vamos em frente.“

Papa Francisco, 12 de julho de 2014

PROGRAMA - CENTRO DE CONGRESSOS DA ALFÂNDEGA DO PORTO

09.00 Credenciação

09.30 Sessão de Abertura

10.00 Conferência “Recolocar o Homem no Centro – Desafio Antropológico”

Comunicação de Fabrice Hadjadj (filósofo, dramaturgo, diretor do Institut Philantropos, membro do Conselho Pontifício para os Leigos)

Conversa com Paula Moura Pinheiro (jornalista)

11.30 Intervalo

12.00 Ateliers “Recolocar o Homem no Centro – Desafio nas Urgências do Mundo”

Ateliers - 1ª Parte

Atelier 1: Na Vida e na Ecologia Humana e do Planeta

Walter Osswald (médico, professor universitário aposentado, com cátedra de bioética da Unesco)

Bento Amaral (enólogo, campeão paralímpico)

José Souto Moura (juiz conselheiro no STJ)

Joana Araújo (investigadora, vice-presidente do Instituto de Bioética do Porto)

Moderação por Isabel Pessanha Vilaça Carneiro (bancária, presidente do Vida Norte)

Atelier 2: Na Família Humana

Joaquim Azevedo (professor universitário, coordenador da Comissão para uma Política de Natalidade)

Teresa Ribeiro (psicóloga, terapeuta familiar, professora universitária)

Pedro e Margarida Appleton (arquitetos, pais de 5 filhos)

Alexandre e Joana Trindade (engenheiro físico, educadora de infância, pais de 9 filhos)

Moderação por Pedro Vaz Patto (juiz desembargador no TRP, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz)

Atelier 3: Na Comunidade Política

Raquel Vaz Pinto (professora universitária, presidente da Associação Portuguesa de Ciência Política)

Pedro Mexia (escritor, poeta, cronista, crítico literário)

Paulo Melo (professor)

Moderação por Filipe Anacoreta Correia (advogado, vogal do conselho diretivo do IDL - Instituto Amaro da Costa)

13.30 Almoço

15.00 Ateliers- 2ª Parte

Atelier 4: No Desenvolvimento Económico e Social

Maria José Melo Antunes (MBA em Finanças)

Américo Mendes (professor universitário, investigador e consultor)

José Maria d’Orey Soares Franco (empresário vitivinícola)

Moderação por Jorge Líbano Monteiro (gestor, secretário- geral da ACEGE - Associação Cristã de Empresários e Gestores)

Atelier 5: No Progresso Cultural

Maria de Lurdes Correia Fernandes (professora universitária, membro do Comité Pontifício de Ciências Históricas)

Henrique Leitão (historiador da Ciência, prémio Pessoa de 2014)

João Madureira (compositor)

Filipe Avillez (jornalista)

Moderadoração por Isabel Alçada Cardoso (teóloga e presidente do Centro Cultural Pedro Hispano)

Atelier 6: Na Paz Internacional

Luís Macieira Fragoso (almirante, chefe do Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional)

Susana Refega (master em cooperação para o desenvolvimento e ajuda humanitária, diretora executiva da FEC)

José Reis-Sá (escritor, editor)

Moderação por Félix Lungu (teólogo, responsável pelo departamento de comunicação da Fundação Pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre)

16.30 Intervalo

17.00 Sessão Final

Na Igreja Monumento de S. Francisco

18.00 Missa

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2º ENCONTRO NACIONAL DE LEIGOSCULTURA DO ENCONTRO24 JANEIRO 2015

ALFÂNDEGA DO PORTO

RECOLOCAR O HOMEM NO CENTRO

DA SOCIEDADE, DO PENSAMENTO E DA VIDA

22 CONFERÊNCIASCONVIDADO ESPECIAL FABRICE HADJADJ

INFORMAÇÕES

www.cnal.pt

CONFERÊNCIA NACIONALDE ASSOCIAÇÕESDE APOSTOLADO DOS LEIGOS

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Este convite também é para nós!9

Sistema de Formação do CNE

Sistema de Formação de Adultos no Escutismo – Balanço inicial

Olga Oliveira CunhaTigre persistente

“Cada época é definida pelo que apresenta de novo, de especifi-camente seu. Pode não ser um alto pensamento filosófico, uma grande reforma moral, uma arte requintada, uma ciência gene-rosa. Mas há-de ser a dádiva de qualquer uma dessas manifes-tações humanas, ou todas, numa conceção inteiramente inédi-ta, original, inconcebível noutro tempo da história”.

Miguel Torga, in Diário (1943)

O Sistema de Formação de Adultos no Escutismo é já uma reali-dade em todas as Regiões do CNE. Para isso têm contribuído inú-meros Dirigentes e Candidatos a Dirigentes, Aspirantes e Noviços, Formadores, Chefes de Agrupamento, Tutores, Juntas Regionais, Juntas de Núcleo, Direções de Agrupamento, Equipas Nacionais, enfim, um número que grosso modo ronda quase 50% do nosso efetivo de Adultos.

Como em qualquer mudança que exista, há um tempo de adap-tação e este é o seu tempo. Somos chamados a ir para além de nós próprios, da nossa zona de conforto e, tal como outros antes de nós, desafiarmos os paradigmas existentes e, como diz Miguel Torga “ser a dádiva da manifestação humana…inconcebível noutro tempo de história”, mas só possível porque há uma história que nos antecede, a nossa história enquanto associação e as pessoas que no passado contribuíram para que estivéssemos hoje noutro pas-so da evolução.

Fazer um balanço é sempre analisar o que já se realizou, o que se está a realizar e o que ainda temos à nossa frente, num horizonte não muito distante.

Mas vamos por partes. O que já se fez: Com a colaboração de to-dos os intervenientes acima descritos, já se realizaram, em todas as Regiões, à exceção de duas, Encontros Iniciais com os diversos Candidatos a Dirigentes, Chefes de Agrupamento e Tutores Locais. Foram mais de 350 horas presenciais de formação. Em algumas regiões já se realizaram também os primeiros IPE (Introdução à Pedagogia Escutista), momento de formação presencial com a du-ração de um fim-de-semana dedicado inteiramente às sete mara-vilhas do método.

Relativamente a documentos e ferramentas, estão já publicados diversos documentos, a saber, “Adultos no Escutismo” (documen-to com as diversas políticas aprovadas na nossa Associação), o “Sistema de Formação de Adultos no Escutismo” (estrutura base do atual sistema), o Dossier “Recrutamento e Percurso Inicial de Formação” onde se podem encontrar os documentos orientado-res da nossa ação, as normas de formação de adultos no escutis-mo, as ferramentas de diagnóstico, os conteúdos referentes ao EI (Encontro Inicial), não só para os Candidatos mas também para os Chefes de Agrupamento e Tutores Locais de Formação. Poderemos ainda encontrar no Dossier, os conteúdos referentes ao Percurso

Inicial, quer da fase de Discernimento, quer da fase de Estágio, num total que ultrapassa já os 30 documentos.

Para colaborar com as Regiões na implementação, foram nomea-dos Formadores da Equipa Nacional de Adultos que se constituem como um recurso para tirar dúvidas, apresentar sugestões, entre outros. Os SRRA (Secretários Regionais dos Adultos e/ou Formação) são os interlocutores por excelência e a sua participação e comuni-cação tem sido essencial.

O que estamos a fazer: No que se refere à produção de documen-tos, estão a ser concluídos os módulos para a formação marítima, os módulos para a formação em e-learning, para o FGPE (Formação Geral de Pedagogia Escutista) e para a fase de Enriquecimento. São diversos os Dirigentes, Formadores e outros colaboradores que tra-balham atualmente para este acervo da formação.

As Regiões continuam a preparar e a realizar os diversos momen-tos de formação bem como a realizar as reuniões de acompanha-mento aos seus Tutores Locais. Os 20 percursos iniciais, correspon-dentes às 20 Regiões têm já, na sua grande maioria, o seu Diretor de Percurso e o trabalho destes com as suas equipas continua em movimento.

Paralelamente, a Equipa Nacional de Adultos, através das suas equi-pas nacionais e de projeto, continua a desenvolver diversos esfor-ços no que se refere à atualização das ferramentas informáticas (em conjunto com os outros departamentos e equipas nacionais), à co-municação e divulgação do sistema de formação (ex. elaboração de artigos para a Lis e para a Goodyear, noticias, mails, contactos telefónicos, entre outros), à formação (ex. curso de tutores regio-nais realizado em colaboração com Lisboa), entre outros.

O que há (ainda ) para fazer? Desde já, o continuar a envolver os Dirigentes de todas as estruturas num sistema que é de todos nós, a gestão das diversas equipas envolventes, dos diversos projetos em curso. Existem já algumas boas práticas que se vão fazendo nas nossas Regiões. É tempo de as partilharmos, de nos constituirmos como uma rede, ao serviço das nossas estruturas locais.

Os próximos passos passarão pela consolidação do Percurso Inicial e estruturação da Formação Contínua, continuar a qualificar os nossos Formadores e demais intervenientes e estabelecer parce-rias efetivas.

O Chefe de Agrupamento e o Tutor Local são a pedra-chave do sis-tema. É para eles que em primeira instância trabalhamos nas diver-sas estruturas. Meta? Conseguirmos ter bons Dirigentes para po-dermos ter um Escutismo de excelência junto das nossas crianças e jovens.

Um Bom Natal a todos!

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Quando rezares

E, de novo… vai Natal! Frei Fernando Ventura

De novo o nó da questão! O nó da questão do “nós” e da questão que é nossa, deste nós chamado a ser Natal, a ser memória viva da presença do Deus que toca a história, que se faz história, para que a História possa ser eternidade, em cada hoje, em cada Natal.

Celebrar Natal, é celebrar a eternidade que toca o tempo, num de-safio de construção da eternidade no “aqui”, no sonho dos (im)pos-síveis de ver (re)nascer relações redimidas, sem senhores nem es-cravos, sem dominadores nem dominados, sem gente que “tem a mania que tem Deus na barriga”, simplesmente porque sim, sim-plesmente porque “isso mesmo”, porque o Senhor do Tempo se fez História. A partir desse momento, os senhores do tempo e dos tempos e da história que querem construir a história sem memó-ria, deixaram de ter lugar.

Hoje, em cada hoje, é sempre o tempo de voltar a Belém, de vol-tar a (re)visitar a História de Belém, de todos os beléns, por onde Deus passa, por onde Deus se faz encontro, por onde e onde Deus se converte à humanidade, por onde e onde Deus se converte a cada um de nós!

Isso mesmo, Natal e Páscoa, dois momentos incindíveis do mistério maior que é capaz de rasgar a noite da dor, a noite das noites do medo, porque é capaz de dar um sentido a tudo, até à solidão que nos habita, neste sermos assim, às vezes, por vezes..., demasiadas vezes, solteiros de afectos e viúvos de emoções.

Celebrar Natal, neste 2000 e hoje do tempo que passa é tocar e deixar-se tocar por um Deus convertido a nós, convertido a todos, sem barreiras nem fronteiras, sem excluídos nem marginalizados, um Deus sem “religião”, daquela que exclui, daquela que não cria

pontes, daquela que cria monstros, embriagados de si mesmos sem espaço interior para mais nada nem ninguém, nem sequer para o Deus que chega, porque o único que conseguem expres-sar são regúrgitos de um ego neurótico que às vezes até chamam de fé...

Por isso, cada Natal, cada Natal de 2000 e hoje, é também por anto-nomásia o Natal da Fé, por isso é também o Natal de ver como se víssemos o invisível, a partir da gruta de Belém, a partir do espaço possível de alguém que abriu o possível do seu espaço vital, para além da “sua” religião, para que Deus pudesse nascer.

Tudo se joga aqui a este nível. Por muito que nos apraza zurzir nos habitantes de Belém, em homilias mais ou menos inspiradas (nor-malmente menos...), o que se passou, o que se passa em Belém não é de todo uma rejeição seja de quem for, muito menos do “meni-no Jesus”.

Nos habitantes de Belém, estava só presente a “sua” religião”. Deus não podia nascer naquele lugar,... são estas as religiões que matam... são estes os comportamentos “religiosos” que impedem Deus de nascer. E aqui estamos todos, chamados a ver até que ponto a nos-sa “religião” nos impede de chegar aos outros... Infelizmente, mui-tas vezes, demasiadas vezes, é a “religião” o que mais estorva à fé.

Em Belém, uma casa onde nascesse um menino devia ficar interdi-ta, impura, durante 30 dias; no caso de uma menina, 60 dias...! Não é por má vontade que rejeitam Deus... é só porque tinham uma religião...

Em cada Natal, estamos todos, estamos nós, tu e eu chamados a celebrar o Deus que chega, que vem habitar o possível da nossa história, mesmo quando o único espaço possível, de encontro de intimidade, não é mais do que um estábulo, não é mais do que um lugar cheio de bosta e palha...

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Naquele tempo

Os Reis Magos existiram mesmo? Enigmas da Bíblia, Novo Testamento Ariel Alvarez Valdés

Difusora Bíblica, 2005

OS VISITANTES ESTRANHOS

De todos os episódios da infância de Jesus, o mais conhecido é, talvez, o dos Reis Magos. Quem não recorda cada ano, ao chegar o Natal, aquelas personagens misteriosas que chegaram a Belém de terras distantes, para oferecer ao Menino Jesus, ouro, incenso e mirra?

O único evangelista que conserva a recordação deste episódio é S. Mateus (2, 1-12). Diz que vinham do Oriente e conseguiram en-contrar Jesus graças a uma estrela que os guiou no seu caminho.

Este episódio está tão gravado na mentalidade popular, que mi-lhões de crianças em todo o mundo acreditam que os Reis Magos continuam a vir todos os anos, na madrugada do dia 6 de Janeiro (dia da sua festa), para lhes deixar também presentes nos sapatinhos.

Mas, o que é que sabemos exactamente desses Reis Magos? De onde vieram? Porque desapareceram da história sem deixar ras-to, tendo sido os primeiros estrangeiros a descobrir o segredo do Deus Menino escondido no menino que havim visto em Belém?

TRÊS IDEIAS QUE HÁ QUE CORRIGIR

A primeira coisa que devemos ter em conta é que o Evangelho de S. Mateus não diz que os Reis Magos fossem três, nem que fossem reis, nem sequer magos.

Com efeito, Mateus não diz que eram “três”, mas “uns” Magos que chegaram do Oriente (Mt 2,1), sem dizer quantos eram.

Nem sequer diz que fossem “reis”. Só diz que eram “magos”. Por isso, não temos motivo algum para afirmar que fossem monarcas de qualquer reino.

Finalmente, não eram “magos” no sentido actual da palavra, quer dizer, não eram pessoas que realizavam truques de magia. Na anti-guidade, chamava-se “magos” aos estudiosos das ciências secretas, aos sábios, sobretudo aqueles que estudavam o curso das estrelas no céu; eram assim como que os cientistas da época. Portanto, os “magos” de Mateus eram astrónomos, representantes do saber e da religiosidade pagã daquele tempo.

Mas, é possível que o episódio dos magos seja verídico e que estes estrangeiros se tenham apresentado realmente em Belém quando Jesus nasceu? Se analisarmos este relato à luz das notícias históricas e científicas que temos, tudo leva a crer que não. Vejamos porquê.

MUITAS PERGUNTAS SEM RESPOSTA

a) Uma estrela que guie os magos a partir do Oriente até Jerusalém (de leste para oeste), e depois, de Jerusalém para Belém (de norte para sul) e que finalmente se detenha sobre uma casa (Mt 2,9), é um fenómeno astronómico impossível de aceitar. A ter acontecido um tal fenómeno, teria ficado regista-do em alguma outra crónica da época.

b) Mateus diz que, quando Herodes soube que havia nascido o Rei dos Judeus, ficou assustado. E acrescenta: “E com ele, toda a cidade de Jerusalém” (2,3). Mas, porque é que a população de Jerusalém que odiava Herodes e que justamente esperava an-siosamente o Messias se ia assutar em vez de se alegrar?

c) O texto diz que Herodes convocou os sumo-sacerdotes e escri-bas para o ajudarem a averiguar onde havia nascido Jesus (2,4). Mas, tal reunião resulta impossível, porque sabemos que os sa-cerdotes e os escribas de Jerusalém tinham uma relação muito má com Herodes e que o Sinédrio não estava à sua disposição desde que, uns anos atrás, ele havia mandado assassinar vários dos seus membros.

d) O v. 4 dá a entender que o nascimento do Messias em Belém era um dado escondido e difícil de se saber; por isso foi neces-sário convocar uma junta de estudiosos e especialistas para o poder averiguar. No entanto, Jo 7,42 afirma que todo o mundo sabia que o Messias devia nascer em Belém e, portanto, não era necessária qualquer reunião de eruditos para o saber.

COMO É QUE NÃO ENCONTRARAM A CASA?

a) A atitude de Herodes diante dos Magos é também pouco cre-dível. Está assustado por causa da possível aparição de um ri-val ao trono. Por isso, não parece normal que confie uma tal preocupação a um grupo de estranhos que acabam de che-gar. Porque é que, ao menos, não manda os seus homens atrás deles para ter informações mais seguras?

b) Podemos imaginar a agitação que a chegada destas figuras es-tranhas a uma cidade tão pequena como Belém teria causado. Quando partiram, os esbirros de Herodes não foram capazes de saber quem era o menino que os Magos tinham ido visitar?

c) Segundo o relato dos Magos, muita gente ficou a saber que Jesus havia nascido em Belém (Herodes, toda a cidade de Jerusalém, os sumo-sacerdotes, os escribas, a população de Belém). Mas, segundo S. João, quando Jesus saiu a pregar, nin-guém sabia que havia nascido em Belém (Jo 7, 41-42). Segundo Marcos, nem sequer as pessoas de Nazaré sabiam que o nasci-mento de Jesus tivesse tido algo de especial (Mc 6, 1-6).

O REI SALOMÃO E JESUS

É possível encontrar uma explicação para algumas destas dificul-dades, mas para todas elas juntas fica difícil encontrar resposta. Por isso, actualmente, os estudiosos da Bíblia preferem pensar que o episódio dos Reis Magos, assim como está no Evangelho, não aconteceu.

Então, porque é que Mateus o incluiu entre os acontecimentos da infância de Jesus? Para responder a isto, temos de ter em conta que

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Mateus escreveu o seu Evangelho para uma comunidade cristã de origem judaica. Ele sabia que os judeus tinham uma grande esti-ma pelas grandes personagens do Antigo Testamento. Mateus não tinha conhecimento de muitos detalhes da infância de Jesus, por isso, decidiu contar vários episódios da infância do Senhor, basean-do-se na vida de algumas personagens do Antigo Testamento.

Uma das figuras mais admiradas do Antigo Testamento era, sem dúvida, o grande rei Salomão. Segundo a Bíblia, este monarca gozava de uma sabedoria e de uma inteligência extraordinárias, como nenhum outro rei antes dele havia possuído nem viria a pos-suir (1Rs 3,12). A sua ciência foi superior à dos outros reis e à de to-dos os sábios do oriente (1Rs 4,9-11). Chegou a compor 3.000 pa-rábolas, 1.005 poemas e até tratados de botânica e zoologia (1Rs 5, 12-13).

VIAJOU PARA VER SE ERA CERTO

Qual era um dos episódios mais famosos e divulgados da vida do rei Salomão? Era, sem dúvida, o da visita da rainha de Sabá. Os ju-deus costumavam contá-lo com grande orgulho. Contava-se que, um dia, chegou a Jerusalém uma rainha anônima, vinda de um país longínquo chamado Sabá; havia ouvido falar da fama extraordiná-ria do rei israelita e queria conhecê-lo e admirá-lo pessoalmente (1Rs 10, 1-13).

Este episódio era tão conhecido e comentado entre os judeus, que o próprio Jesus se referiu a ele durante uma discussão com os ju-deus que não acreditavam nele nem queriam aceitar os seus ensi-namentos: “No dia do juízo (final), a rainha do sul (Sabá) levantar-se-á contra vós e vos condenará. Porque ela veio de longe só para escutar a sabedoria de Salomão e vós não a quereis escutar” (Mt 12,42).

Ora bem, se analisarmos o relato da rainha de Sabá, encontramos os mesmos elementos do relato dos Reis Magos.

IGUAL À RAINHA

1) Uma rainha anônima pôs-se a caminho e viajou até Jerusalém a partir de um país longínquo do Oriente (1Rs 10,1). Uns magos anônimos puseram-se a caminho e viajaram até Jerusalém a partir de um país distante do Oriente (Mt 2,1).

2) A rainha era sábia (1Rs 10,1). Os magos eram sábios.

3) Ela procurava o rei dos israelitas para o admirar (1Rs 10,9). Eles buscavam o rei dos judeus para o adorar (Mt 2,2).

4) A rainha foi guiada por uma estrela. A literatura judaica diz: “Quando a rainha de Sabá se aproximava de Jerusalém, recli-nada na sua carruagem, viu, ao longe, uma rosa muito bonita

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que crescia à beira de um lago. Mas, ao aproximar-se, viu com assombro que a rosa se transformava numa estrela luminosa. Quanto mais se aproximava, mais a sua luz brilhava.” Também os magos foram guiados por uma estrela (Mt 2,2).

5) A rainha de Sabá apresentou ao rei enigmas difíceis de resolver e encontrou respostas (1Rs 10,3). Os magos apresentaram um enigma difícil de resolver e encontraram a resposta (Mt 2, 4-5).

6) A rainha ofereceu presentes a Salomão, ouro, incenso e pedras preciosas (1Rs 10,10). Os magos ofereceram ao Menino os pre-sentes que traziam: ouro, incenso e mirra (Mt 2,11).

7) Depois de se encontrar com Salomão, a rainha regressou ao seu país e desapareceu da história (1Rs 10,13). Depois de adora-rem o menino, os magos regressaram ao seu país e desapare-ceram da história (Mt 2,12).

SÁBIO COMO O REI SÁBIO

Assim, é possível que o relato dos magos, assim como aparece no Evangelho de Mateus, não tenha acontecido realmente. Que não se trate de um facto histórico, mas que tenha sido criado por S. Mateus, tendo por base a narração da visita da rainha de Sabá ao rei Salomão. Esta forma de contar a biografia de alguém era muito comum entre os teólogos judeus daquela época, os quais, mais do que uma precisão histórica, buscavam transmitir sempre um ensi-namento ou uma mensagem.

Naturalmente, os leitores judeus, ao ler o relato dos magos, des-cobriam imediatamente aquilo que o autor lhes queria dizer; que Jesus era um novo Salomão enviado por Deus à terra; que nes-te menino nascido em Belém residia uma sabedoria e uns conhe-cimentos extraordinários, que jamais nenhum ser humano havia tido nem viria a ter; aquilo que este menino vier a dizer quando for grande, ainda que pareçam desconcertantes ou surpreenden-tes, podem ser aceites com confiança, porque é Deus que fala atra-vés dele.

O DESTINO DOS MAGOS

Os misteriosos magos do Oriente que chegaram a Belém para vi-sitar o Menino Jesus cativaram imediatamente a fantasia e a devo-ção popular cristã. Logo no séc. II foram elevados à categoria de reis; isto ficou a dever-se ao salmo que dizia: “Os reis de Tarsis e de Sabá vêm com presentes, todos os reis se ajoelham diante dele” (72, 10-11); pensava.se que estes eram os reis que haviam vindo para cum-prir a profecia.

Depois, fixou-se o seu número: ao serem três os presentes que ofe-reciam ao menino (ouro, incenso e mirra), pensou-se que os ma-gos deviam ser três. Mais tarde, no séc. VI, foi-lhes dado um nome:

Belchior, Gaspar e Baltazar. No séc. VII surgiram como pessoas de raças diferentes. Por último, na Idade Média, começou-se a dizer que um deles era negro.

Mas o detalhe mais pitoresco é, possivelmente, o das suas relíquias. Segundo uma tradição, os magos morreram na Pérsia. Dali os seus restos mortais foram levados para Constantinopla em 490. Mais tar-de, apareceram em Milão e, finalmente, foram transladados para Colónia, na Alemanha, em cuja catedral repousam actualmen-te, junto a uma inscrição ingênua que diz: “Tendo sofrido muitas penúrias por causa do Evangelho, os três sábios encontraram-se na Arménia no ano 54 d.C. para celebrar o Natal. Depois da missa, morreram, S. Belchior no dia 1 de Janeiro, aos 116 anos; S. Baltazar no dia 6 de Janeiro, aos 112 anos; S. Gaspar no dia 11 de Janeiro, aos 109 anos.”

De facto, os corpos dos magos viajaram muito mais depois de mortos do que durante a sua vida…

O SOL QUANDO NASCE É PARA TODOS

S. Mateus diz-nos que, quando Jesus veio ao mundo, uns magos do oriente inteiraram-se do seu nascimento. Não pertenciam ao povo judaico nem conheciam o Deus verdadeiro, nem praticavam a religião autêntica; só observavam os astros e estudavam as ciên-cias secretas. Mas, por causa da aparição de uma estrela, ficaram a saber da chegada à terra do Rei dos Judeus. Diz-nos também que os sumo-sacerdotes e os escribas judeus ficaram a saber do nasci-mento do Messias, mas por outra via: decifrando as profecias do Antigo Testamento. Finalmente, também o rei Herodes ficou a sa-ber do nascimento de Jesus através dos seus assessores.

O evangelista afirma, assim, que Deus quer falar com todos e que, para isso, usa a linguagem que cada um pode entender. A Herodes falou através dos seus assessores; aos mestres da Lei falou através da Bíblia; aos magos, através dos estudos astronômicos. Deus não recusa ninguém; não exclui ninguém da salvação. Nem sequer os magos, os quais, para a mentalidade judaica da época, eram es-trangeiros que viviam no meio da sua ignorância e das suas cren-ças supersticiosas. Dirigiu a eles também a sua Palavra e de uma forma que a puderam entender.

Hoje em dia, em que determinadas categorias de pessoas (divor-ciados, matrimônios irregulares, alcoólicos, drogados, doentes de sida, mães solteiras, etc.) por um motivo ou outro não encontram o seu lugar na Igreja, e em que algumas destas pessoas até são ex-cluídas pela Igreja em nome do mesmo Deus, os reis magos, longe de constituírem uma história bonita para contar às crianças, repre-sentam a advertência divina de que o sol quando nasce é para to-dos e que ninguém deve ficar de fora da salvação de Deus.

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Depoimento de formadores

“Este ano não haverá Natal!”Carlos Nobre Castor inteligente

Este ano não me parece que vá haver Natal!

Não… não é isso, o dia de Natal ainda é feriado, ainda não foi su-primido. O feriado mantem-se e com ele as luzes frias dos enfeites urbanos, mesmo que coloridos. Mantem-se a tradição das montras mais atrativas e das fitas e laços das prendas que se vão adquirin-do. Nas lojas a azáfama é menor e ouvem-se dos comerciantes co-mentários sobre tempos idos de negócio e de saudade. Parece que o hoje se projeta remotamente no passado, idílico, melhor, num mito que provavelmente é outro dos enganos ou equívocos do tempo presente.

Para os crentes, que cada vez são em menor número, este ano tam-bém não haverá Natal. Não será certamente por ao celebrarmos todos os anos o Natal, o Menino ir crescendo, sendo mais razoá-vel talvez não celebrar o seu nascimento mas os seus sucessivos aniversários... Mas não seria a mesma coisa! E o que seria dos pre-sépios? Que poderiam anunciar então os anjos nessa fria noite de inverno? E como justificaria o Rei Herodes o seu ímpio comporta-mento? E os pastores? E os Magos?

Pois é! Enchemos o Natal de encantos, de sentimentos e de esta-dos de alma, de lendas e de fábulas… de histórias! Humanizamos deveras o Natal e transformámo-lo num acontecimento para crian-ças. Criamos um pai-natal vermelho e de barbas brancas como se ninguém soubesse o que se está a celebrar e fosse necessário criar um ícone, uma imagem! Melhor, convertemos esta quadra num tempo mágico, de prendas mais ou menos vistosas, de fugazes momentos de felicidade. Ainda vamos reunindo a família, mas… também neste âmbito as nossas famílias são cada vez mais soli-tárias, sozinhas e isoladas, mais desestruturadas e menos felizes. Quantas lágrimas e quanta separação exatamente na noite em que se celebra o encontro do humano e do divino!

São estes os deuses do nosso tempo! Não vale a pena enganarmo--nos... Olhemos de frente para esta época do ano. O que vemos? “Os antigos pagãos não estavam a fantasiar, quando representa-vam praticamente tudo como deus(es). Tinham deuses do sexo, deuses do trabalho, deuses da guerra, deuses do dinheiro, deu-ses da nação… pelo simples facto de que qualquer coisa pode ser um deus que governa e serve como divindade no coração de uma pessoa ou na vida de um povo. Por exemplo, a beleza física é coi-sa agradável, mas, se nós a «deificarmos», se fizermos dela a coisa mais importante na vida de uma pessoa ou cultura, então teremos Afrodite, e não apenas a beleza. Teremos pessoas e uma cultura inteira, atormentando-se por causa do aspeto, gastando quantias exorbitantes de tempo e dinheiro pela beleza e avaliando, dispara-tadamente, o carater das pessoas com base nisso. Se qualquer coi-sa se torna mais fundamental do que Deus para a nossa felicidade, sentido da vida e identidade, essa coisa é um ídolo.”1

1 Timothy Keller, Falsos Deuses. Paulinas Editora. 2009. Pág. 21.

Advento é vinda, chegada. É um tempo e o tempo de preparação para o Natal (pelo menos assim se ensina na catequese). Preparar supõe parar. Preparar é parar antes de, é pré-parar! Parar pressupõe deixar tudo o que nos rodeia para nos concentrarmos naquilo ou n’Aquele de quem estamos à espera.

É como aquela mãe que manda o petiz preparar a mochila para a escola. Vai depender da criança preparar a mochila ou não. Vai de-pender dele ter a vontade para o fazer. Vai depender do pequeno ter na mochila tudo o que é necessário para as aulas daquele dia, e… na altura nada faltar! Mas, e se for a mãe a preparar a mochila? Ou, se ela for usada como estando sempre pronta, contendo o ne-cessário, mas também o supérfluo? E se ela estiver a abarrotar de lixo, de futilidades, de tal forma que o essencial é esmagado pelo desnecessário ou até mesmo pelo inútil? Conquanto também, pode acontecer ela ter tudo, menos o que é preciso para as aulas!

Este ano não haverá Natal! É que nós os cristãos (sem querer ser re-dundante ou mesmo excessivo) andamos cheios de ídolos, distraí-dos no tempo com a temporalidade e, na mochila da nossa vida, Ele já não tem o lugar primeiro! E… se ainda está lá, não é mais do que uma referência cultural inócua e perfeitamente relativa. Nem paramos para preparar a Sua vinda. Não valorizamos a Sua presen-ça. Aliás a maior parte das vezes até nos envergonhamos d’Ele e de nos confessarmos Seus discípulos. Será que este ano Ele vai nascer de novo? Como há dois milénios, as portas dos corações vão-se en-cerrando e não encontrará estalagem, quero dizer, mochila que o acolha… Não haverá lugar para Deus… na cidade!

Por isso, seguramente, este ano… não vai haver Natal!

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Equipa Goodyear: Carlos Nobre, Matilde Santos, José Carlos Pinheiro, Fernando Andrade.Design gráfico: Pedro Botelho

Colaboraram nesta edição:Carlos Nobre (Região do Porto)Frei Fernando VenturaJoão Paulo FeijóoJosé Carlos Pinheiro (Região do Porto)

Nuno HiginoOlga Oliveira Cunha (SNP)

Ilustração da capa: Rute Pinto

CORPO NACIONAL DE ESCUTASEscutismo Católico Português

[email protected]

Ilustração de Rute Pinto

Votos de Santo Natale Feliz Ano Novo 2015

a todos os Formadores do CNE

Equipa Goodyear

Ninguém o viu nascer.Mas todos acreditamQue nasceu.É um menino e é Deus.Na Páscoa vai morrer, já homem,Porque entretanto cresceuE recebeuA missão singularDe carregar a cruz da nossa redenção.Agora, nos cueiros da imaginação,Sorri apenasA quem vem,Enquanto a MãeTambémImaginada,Com ele ao colo,Se enterneceE enterneceOs corações,Cúmplice do milagre, que aconteceTodos os anos e em todas as nações.

Miguel Torga