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| 1 | Diálogos em todas as cores e feitios no Ano Europeu para o Diálogo Intercultural No âmbito das Comemorações do Ano Europeu para o Diálogo Intercultural, a Casa da Leitura decidiu associar-se à iniciativa através da disponibilização deste dossier onde podem ser encontrados materiais diversificados sobre o tema, destinados aos mediadores de leitura, com vista não só ao desenvolvimento da reflexão pessoal sobre a questão do Multiculturalismo e da Interculturalidade, mas à selecção de leituras capazes de, junto dos mais novos, promoverem uma abertura face ao Outro e a tolerância e a aceitação, no sentido de integração, da diferença. A realidade social portuguesa contemporânea é muito diferente da de alguns anos atrás. Apesar de ainda existir em Portugal uma taxa elevada de emigração (crescente nos últimos anos), a verdade é que o número de estrangeiros a viver a trabalhar em Portugal cresceu exponencialmente. As escolas, por exemplo, são a prova viva dessa nova realidade onde se cruzam crianças oriundas da Europa de Leste, nomeadamente da Ucrânia, da Moldávia e da Rússia, com outras vindas da China, do Brasil, e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Atento a esta realidade, o Ministério da Educação já incluiu o Português Língua Não Materna no Currículo Nacional, com orientações programáticas específicas para o Ensino Secundário, para além de outros materiais de apoio, incluindo a caracterização dos diferentes perfis linguísticos e testes diagnósticos. A Literatura para a Infância também tem revelado atenção a esta realidade e sucedem-se as publicações onde surgem personagens imigrantes, situações de intolerância ou racismo e apelos mais ou menos implícitos à integração e à valorização da diferença. Aqui pode encontrar • Ensaio inédito de José António Gomes, Literatura para a infância e a juventude entre culturas • Leituras de Uma Questão de Cor, de Ana Saldanha, e Os Ovos Misteriosos, de Luísa Ducla Soares, por José António Gomes, Sara Reis da Silva, Ana Margarida Ramos • Bibliografia variada • Links para saber mais • Sugestões de leitura | 1 | | 1 |

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Diálogos em todas as cores e feitiosno Ano Europeu para o Diálogo Intercultural

No âmbito das Comemorações do Ano Europeu para o Diálogo Intercultural, a Casa da Leitura decidiu associar-se à iniciativa através da disponibilização deste dossier onde podem ser encontrados materiais diversificados sobre o tema, destinados aos mediadores de leitura, com vista não só ao desenvolvimento da reflexão pessoal sobre a questão do Multiculturalismo e da Interculturalidade, mas à selecção de leituras capazes de, junto dos mais novos, promoverem uma abertura face ao Outro e a tolerância e a aceitação, no sentido de integração, da diferença.

A realidade social portuguesa contemporânea é muito diferente da de alguns anos atrás. Apesar de ainda existir em Portugal uma taxa elevada de emigração (crescente nos últimos anos), a verdade é que o número de estrangeiros a viver a trabalhar em Portugal cresceu exponencialmente. As escolas, por exemplo, são a prova viva dessa nova realidade onde se cruzam crianças oriundas da Europa de Leste, nomeadamente da Ucrânia, da Moldávia e da Rússia, com outras vindas da China, do Brasil, e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.

Atento a esta realidade, o Ministério da Educação já incluiu o Português Língua Não Materna no Currículo Nacional, com orientações programáticas específicas para o Ensino Secundário, para além de outros materiais de apoio, incluindo a caracterização dos diferentes perfis linguísticos e testes diagnósticos.

A Literatura para a Infância também tem revelado atenção a esta realidade e sucedem-se as publicações onde surgem personagens imigrantes, situações de intolerância ou racismo e apelos mais ou menos implícitos à integração e à valorização da diferença.

Aqui pode encontrar

• Ensaio inédito de José António Gomes, Literatura para a infância e a juventude entre culturas• Leituras de Uma Questão de Cor, de Ana Saldanha, e Os Ovos Misteriosos, de Luísa Ducla Soares, por José António Gomes, Sara Reis da Silva, Ana Margarida Ramos• Bibliografia variada• Links para saber mais• Sugestões de leitura

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Literatura para a infância e a juventude entre culturas

José António Gomes*

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RESUMO

Neste ensaio, o autor debate a questão candente do multiculturalismo nas sociedades contemporâneas,

contextualizando o fenómeno tanto do ponto de vista histórico como literário. A análise centra-se no

universo do livro para a infância, caracterizando as diferentes publicações que se ocupam, em registos

distintos e com objectivos igualmente diversos, desta questão, passando em revista os livros informativos, as

traduções, os livros bilingues e algumas das obras mais marcantes sobre a diversidade e a multiculturalidade

de autores portugueses. Pelo número de exemplos apresentados, merece referência a obra de Luísa Ducla

Soares, mas a leitura do autor estende-se a muitos outros nomes relevantes do panorama literário português

para a infância e juventude.

«Uma portuguesa, branca, disse então que não sentia, nos círculos onde se movia, nenhum racismo. Explicou que era professora e, na escola onde estava, nas outras em que tinha estado, nunca tinha sentido qualquer discriminação em relação aos alunos africanos. Brancos, negros ou mulatos, os estudantes entendiam-se sem qualquer problema – e, para os professores, os alunos não tinham cor.Lembrei-me então de duas meninas cabo-verdianas de Pedreira dos Húngaros que, também elas, me tinham dito que, na escola onde uma estava e a outra estivera até pouco tempo atrás, não sentiam que houvesse qualquer discriminação. Disseram isto e quedaram-se a pensar. E depois uma delas disse: “Mas nós jogamos andebol. E há uma equipa que, sempre que joga contra nós, se ganha, está tudo bem. Mas, sempre que perde, chama-nos pretas – e eu não acho que seja por sermos pretas que ganhamos. É só porque jogamos melhor do que elas!»

Diana Andringa, «Achas que tenho cara de judia?», Público, 28/5/1994

Na Mesquita de Córdoba

Recolheu ao seu berço, perseguidoPor um outro colega intolerante,Alá, deus das Arábias ressequidas.Cansado das securas do deserto,Veio ver como era a Andaluzia; E gostou deste chão de riso abertoOnde o seu coração reverdecia.

Mas, corrido a orações e virotões,Num minguante de moiras ilusões,Lá se foi novamente às suas dunasCaiar de branco a fé das açoteias.E o seu palmar divino arquitectado,Que aqui plantou, ondula mutilado,Com saudades do dono e das areias.

Miguel Torga (1951), Antologia Poética. Coimbra: 1981, p. 296

*NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da Escola Superior de Educação do Porto

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1. O livro infantil nas sociedades multiculturais

O fluxo de pessoas que, por motivos vários, quase sempre dramáticos, se transferem dos seus lugares de origem para outros países ou regiões é uma realidade desde o início dos tempos. As expansões territoriais de tipo imperialista são um fenómeno quase tão velho como o mundo; iniciadas muito antes do nascimento de Cristo, prolongam-se até aos nossos dias. Entre os séculos XVII e XIX, milhões de africanos foram transportados das suas terras de origem para as plantações do Novo Mundo. Ao longo da História da humanidade, incontáveis são as situações em que refugiados por razões políticas, religiosas ou económicas se vêem coagidos a procurar asilo noutros países que não os seus. As lutas étnicas dos séculos XX e XXI, por exemplo, são responsáveis por milhões de refugiados. De vários modos, em suma, muitos países do mundo se foram tornando multirraciais, multiétnicos e multiculturais. Os actuais emigrantes não enfrentam apenas problemas de sobrevivência física em novos ambientes; experimentam também dificuldades de ajustamento emocional a uma nova situação e às inter-relações sociais que a caracterizam (v. Segun, 1992: 101).

Na Europa, as sociedades do nosso tempo são, cada vez mais, sociedades multiculturais. As palavras «multicultural» e «interculturalismo» entraram, há muito, no vocabulário pedagógico, soam bem e tornam-se pretextos para belos discursos, sem, contudo, conseguirem ocultar o seu «carácter ocidentalocêntrico». No entanto, daí a sabermos o que estes termos verdadeiramente recobrem1, no quotidiano das nossas sociedades, vai uma grande distância. Suzanne Bukiet (1991: 3) escreve:

«Se é “multicultural” tudo o que favorece um diálogo verdadeiro com o outro, com o estrangeiro, aquele que fala uma outra língua, que tem porventura uma outra escrita, uma outra religião, outras referências distintas das nossas, então direi que partimos mal, que a nossa época apressada e superficial não é multicultural e que se encontra, além disso, ameaçada por dois perigos mortais e contraditórios na Europa de hoje:Testemunhamos, por um lado, a eclosão inquietante de nacionalismos e fundamentalismos cegos. Ao mesmo tempo, assistimos ao avanço insidioso e vertiginoso de uma uniformização redutora, sob a hegemonia de uma cultura e de uma língua dominantes. A pouco e pouco, a insubstituível diversidade das línguas e das culturas corre o risco de nelas se diluir. É pequena a distância que vai do homem (...) barricado nos seus particularismos ao homem “unidimensional”.»

No Ocidente, afirma ainda a mesma autora, estamos particularmente desarmados face a esta ameaça, já que, com os nossos media, o nosso nível de escolarização, as nossas universidades, vivemos na ilusão de saber desmontar e compreender as outras culturas. A verdade, porém, é que não sentimos uma curiosidade real e uma vontade autêntica de

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1 Para uma definição e problematização destes conceitos e para um aprofundamento de noções e questões básicas referentes ao contacto de culturas (aculturação, grupos étnicos e minorias, preconceito, discriminação, estereótipos, xenofobia, racismo e outros), ver Ferreira (2003).Sugere-se também a leitura de um artigo de Adalberto Dias de Carvalho (2007: 5), no qual é possível encontrar uma «crítica da interculturalidade enquanto lugar-comum». Este é um dos autores que alertam também para o «carácter ocidentalocêntrico» da noção de interculturalidade.

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conhecer os outros. Se pensarmos bem, interessa-nos menos o conhecimento do que o espectáculo – e este nada mais é que «a espuma das coisas» (Bukiet, 1991: 3-4).

Seguindo de perto um texto publicado por Mabel Segun em 1992, recorde-se que as sociedades multiculturais são complexas por natureza. As crianças que crescem no seu seio são apanhadas no meio de duas culturas. Por vezes, os resultados são desastrosos, como no caso de crianças adoptadas em Inglaterra que rejeitam os seus pais negros, a sua identidade africana e, em casos extremos, se suicidam (Biggs, 1978, cit. por Segun, 1992). São conhecidas situações de filhos de afro-americanos tratados durante muito tempo como cidadãos de segunda que perderam a sua auto-estima. A incompreensão das culturas de outros povos origina, com frequência, graves clivagens entre crianças de diferentes grupos étnicos. A infância necessita, assim, de estar preparada para viver em sociedades multiculturais; mas deverá começar a ler, demasiado cedo, livros sobre a vida neste tipo de sociedades?

A investigação tem mostrado que a criança nasce desprovida de preconceitos de natureza racial. A partir dos dois anos e meio-três anos, o ambiente familiar, a educação – por vezes os manuais escolares –, a televisão, o cinema e mesmo alguns livros para crianças são responsáveis pela criação de preconceitos. Na literatura portuguesa dada aos mais novos, não é difícil encontrar textos que veiculam, de modo mais ou menos evidente, visões preconceituosas e de natureza racista, mesmo que mascaradas de um paternalismo só na aparência não-racista. Textos cuja compreensão reclama o devido enquadramento epocal e uma leitura que não pode ignorar a ideologia dominante em determinado período histórico. Um punhado de exemplos colhidos ao acaso, alguns deles porventura surpreendentes: certas obras de Ana de Castro Osório2 (pese embora o seu progressismo republicano e feminista), de Virgínia de Castro e Almeida e de Fernanda de Castro (cujas ligações ao Estado Novo são conhecidas), o livro Joanito Africanista (1ª ed. 1932; 2ª ed., Figueirinhas, 1949), de Emília de Sousa Costa, e o poema «O Preto-Papusse-Papão» de O Mundo dos Meus Bonitos (1ª ed. 1920; 2ª ed., Livraria Didáctica, 1951), de Augusto de Santa-Rita (não vai longe o tempo em que este poema, por exemplo, figurava em manuais escolares de Língua Portuguesa). Ainda sobre a presença de atitudes do racistas na ficção juvenil, cite-se um circunstanciado estudo de Isabel Vila Maior centrado na série de vinte e um volumes «Cinco Brancos e um Preto», publicada por Alice Ogando entre 1961 e 1964 (na sequência de uma narrativa com o mesmo título editada em 1948), série essa cujo hipotexto é «The Famous Five» de Enid Blyton. Uma das conclusões desta análise refere que a série se esforça

«por representar um mundo que, conscientemente ou não, corresponde à ideologia de um estado autoritário e remete para os acontecimentos que emergem com especial acuidade no primeiro ano da sua publicação, 1961, o “ano de todas as crises” [segundo Fernando Rosas], com especial relevo para a guerra colonial, o que explica a importância na série da personagem

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2 Curiosamente, em livros em que se «promove o bom convívio entre as raças, por outro lado, reverte-se muito facilmente para um discurso racista» – afirma-o, com justeza, Ferreira (2007: 51) na leitura que propõe de duas obras de Ana de Castro Osório: Viagens Aventurosas de Felício e Felizarda ao Pólo Norte (Lisboa: Instituto Piaget, 1998) e Viagens Aventurosas de Felício e Felizarda ao Brasil (Lisboa: Instituto Piaget, 1998), cujas primeiras edições datam, respectivamente, de 1922 e 1927.

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do pequeno negro, submetido a um tratamento narrativo claramente paternalista, em que o Outro é subsumido pelo Idêntico e a alteridade escamoteada e culpabilizada. O racismo do homem comum, transversal a toda a série, é paralelo à insistência no papel das elites e da juventude por elas educada na aceitação de uma “igualdade” racial em que a superioridade pertence ao branco.» (Vila Maior: 2007: 91)

Vários estudos têm demonstrado que o contacto de crianças do Ensino Básico com livros multi-étnicos e outros materiais de ensino com essas características contribui positivamente para o desenvolvimento de atitudes de tolerância e aceitação das diferenças culturais e étnicas. Abra-se, contudo, um parênteses para referir que o simples uso, neste contexto, do termo tolerância não se acha isento de problemas e conotações perversas, pois aquele que tolera é em geral o que se encontra em situação de dominância. E é a partir desse estatuto hegemónico ou de poder que concede, por conseguinte, um espaço ao outro – o dominado – e à sua cultura. Paradoxalmente, em suma, o recurso ao termo tolerância tem implícita alguma dose do seu contrário, ou seja, a intolerância. Parece ser, em parte, o que Paulo Mendes Pinto (2007) sublinha, em comentário ao projecto internacional «Aliança de Civilizações»: «Todos sabemos que “toleramos” o que, nos criando repulsa, temos de aguentar! O fim desta ideia e das suas práticas, profundamente marcadas por uma visão centrada em si mesmo, é a base da criação de uma clara e recíproca prática do respeito, a palavra mágica que pode abrir muitas portas, mesmo as mais reticentes.»3 Reconheça-se, por outro lado, que a questão tolerância / intolerância se complexifica ante uma sociedade ou comunidade em que se impõem, como «valores» indiscutíveis, o não reconhecimento dos direitos da mulher, o esclavagismo ou o sistema de castas, para não falar da opressão e da exploração do homem pelo homem – realidade que, sejam quais forem os subtis eufemismos utilizados para a denominar, nunca deixou de existir, por exemplo, nas sociedades ditas democráticas de tipo ocidental.

A propósito da necessidade de os mais novos estarem preparados para viver em sociedades multiculturais, Mabel Segun escreve ainda:

«Uma minoria de bibliotecários, professores, pais, intelectuais e grupos de cidadãos têm defendido o uso de livros para crianças que contenham uma orientação positiva no sentido de combater o racismo e restituir às crianças a sua auto-estima, dando-lhes um lugar e uma boa imagem na literatura para crianças e fornecendo-lhes informação acerca dos seus países de origem, para que se tornem equilibradas e bem adaptadas. Adicionalmente, estes livros valem na medida em que mostram às crianças a riqueza que a diversidade cultural traz às sociedades em que vivem, assim como a outras.» (Segun, 1992: 103)

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3 Giacomo Marramao parece matizar um pouco melhor esta questão. Em conferência realizada na Fundação de Serralves (Porto), em Março de 2007, e reportada por Andreia Azevedo Soares (2007), refere que «A mesa dos conflitos de interesses e identidade deve ser entendida (…) “como um encontro/confronto de narrativas associadas à nova organização desta sociedade global e oriundas de diversos contextos de vivências no mundo”. Cada uma dessas narrativas, na opinião do filósofo italiano, deve ser lida à luz da sua contingência. Sem “tentações paternalistas”, sem o discurso da tolerância que prega o respeito recíproco de culturas e identidades, mas não prevê o real intercâmbio entre ambas as partes (com todas as asperezas que isso implica).» Não resisto a citar outra passagem deste texto, pela pertinência das questões suscitadas: «O filósofo acredita haver hoje uma “pandemia” a que chama “obsessão identitária”, uma espécie de vírus que contamina sobretudo os abastados (preocupados em demarcar o seu espaço, o seu local de pertença), mas também os desfavorecidos (estes sim cada vez mais globais, uma massa migratória de “inesperados convidados”). O caminho europeu para a construção de uma esfera pública global, capaz de encontrar um equilíbrio dinâmico entre os conflitos de interesses e identidades, passa, na opinião de Giacomo Marramao, pela valorização da filosofia que nos serviu de berço – os valores socráticos, por exemplo, baseados na dialéctica e no diálogo. No encontro de narrativas múltiplas que encontrem “ouvidos e tradutores “entre diferentes experiências e culturas”. “Ou, simplesmente, não haverá” caminho, concluiu o italiano.»

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O International Board on Books for Young People (IBBY), organização que pugna, desde a sua fundação em 1953, pela promoção da leitura e das obras de qualidade junto da infância e da juventude, tem defendido, justamente, a ideia de que «os livros, enriquecendo os conhecimentos que os jovens possam ter dos valores e das tradições dos países estrangeiros, contribuem para desenvolver a convivência entre os povos e estão ao serviço da paz» (IBBY – International Board on Books for Young People, 1994 – desdobrável da Secção Portuguesa do IBBY). A Associação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil (APPLIJ, Secção Portuguesa do IBBY) – que agrupa investigadores, escritores e ilustradores, editores, bibliotecários e educadores – pauta, igualmente, a sua acção por este princípio. Daí que várias intervenções dos seus membros sempre tenham sublinhado a relevância do livro no diálogo intercultural e posto em prática esse mesmo princípio, quer através da cooperação com outras secções do IBBY, quer por meio da organização de espaços de formação, estudo e discussão – como os Encontros Luso-Galaico-Franceses do Livro Infantil e Juvenil, que há vários anos têm lugar no Porto, na Biblioteca Almeida Garrett, e que por mais do que uma vez abordaram esta temática.

2. Livros informativos, traduções e obras bilingues

Em matéria de livros para crianças e jovens4, e no que respeita à promoção da abertura a outros países e outras culturas, sublinhe-se a importância de três tipos de obras: os livros informativos, os textos literários traduzidos (narrativa, drama ou poesia) e os volumes bilingues.

• Os livros informativos de qualidade podem cumprir, entre outros, um papel de mediação entre o mundo a conhecer e o leitor, colocando em evidência a diversidade desse mesmo mundo. Existem obras deste tipo para todas as idades, quase sempre profusamente ilustradas com desenhos ou fotografias. Os jovens leitores são confrontados com a realidade de outros continentes e países, têm a oportunidade de conhecer a sua História, os hábitos e costumes das comunidades humanas, bem como a fauna, a flora, o clima de diversas regiões do globo, além das idiossincrasias deste ou daquele povo e os traços mais marcantes das respectivas identidades culturais.

• As obras de ficção traduzidas revelam-se também fundamentais para o propósito de promover a compreensão de culturas diferentes da do leitor. A vantagem destas obras prende-se com a própria natureza da literatura e com as virtudes intrínsecas da leitura literária. Importa por isso lembrar, em primeira instância, que:

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4 Sobre a temática abordada no presente ensaio, sugere-se a leitura da obra coordenada por Roig Rechou; Soto López; Lucas Domínguez (coord.) (2006) – volume que conta com a colaboração do autor destas linhas, no âmbito das actividades da Rede de Investigação LIJMI (http://www.usc.es/lijmi/) – e ainda da obra de Leite; Rodrigues (2000). Ver também Sarto Canet (dir.) (1994), AA VV (1995) e Pellón Incera (2007), entre outros títulos. Ver ainda as bibliografias dos trabalhos mencionados.De referir que o ensaio agora apresentado constitui uma versão refundida e aumentada do artigo «Literatura para crianças: um mundo sem fronteiras. Os livros para crianças na sociedade multicultural» que publiquei no nº 17 da Revista Internacional de Língua Portuguesa (Lisboa: Associação das Universidades de Língua Portuguesa, Julho, 1997), pp. 38-46.

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«A literatura permite (…) tempo de maturação e essa é a sua força, aquilo que tem de insubstituível e de único para oferecer: a vivência lenta e processual das emoções e as mudanças que elas provocam. A literatura permite não apenas a acção e o movimento, mas a sensação, de angústia, de sonho, de terror, de alegria com o seu tempo durativo e transformacional – o que a torna um extraordinário enriquecimento humano e nos permite a todos, muito limitados a um espaço e a um tempo, viver mil vidas, duma forma quase real: sermos rebeldes, aventureiros, marginais ou resignados. Sentirmos, nós funcionários públicos e amanuenses de mornidões cinzentas, como íntima e nossa, a solidão de R. Crusoe ou a vida selvagem de Jack London.» (Dacosta, 1984: 67).

As obras literárias transpostas para outras línguas requerem, porém, cuidados acrescidos no que toca à qualidade do trabalho de tradução. Dele se espera que não desvalorize, apagando-os, os traços nacionais que singularizam as obras – pois o diálogo entre culturas não significa, bem pelo contrário, o esbatimento da diversidade5 e muito menos o menosprezo pelas culturas e idiomas minoritários. A «Caminho Jovens», da Editorial Caminho, foi, durante anos, um bom exemplo de colecção cujos livros puderam contribuir para um conhecimento não superficial de outros espaços culturais. Reuniu um notável conjunto de romances e novelas juvenis oriundos das mais diversas regiões do mundo, muitos deles distinguidos com prémios literários de prestígio, internacionais ou nacionais. Aí encontramos nomes consagrados da moderna ficção juvenil, como os norte-americanos Mildred D. Taylor, Esther Forbes, Scott O’Dell e Brock Cole, a colombiana Lyll Becerra de Jenkins, o sul-africano Norman Silver, os ingleses Geoffrey Trease, Janni Howker, Leon Garfield e Lynne Reid Banks, os nórdicos Tormod Haugen e Cecil Bødker, a austríaca Christine Nöstlinger, a grega Alki Zei, o francês Jean Joubert, o italiano Gianni Rodari e os espanhóis José María Merino e Joan Manuel Gisbert, entre outros.

No domínio dos álbuns (ou de obras em formato de álbum), destacarei, a título exemplificativo, dois títulos, ambos publicados na colecção «Caleidoscópio», da Edinter (actual AMBAR), e destinados a crianças entre os sete e os dez anos. Em O Segredo de Salomão (1989), de Saviour Pirotta e Helen Cooper, deparamos, inicialmente, com o quotidiano de um bairro negro, situado, possivelmente, numa cidade europeia. Na companhia do velho senhor Zee – personagem bondosa mas de comportamento estranho – o pequeno Salomão enceta uma viagem fantástica que o leva do quintal do seu amigo ao deserto australiano, passando pela China e pela Índia.

Leïla (1989), de Sue Alexander, é uma obra admiravelmente ilustrada por Georges Lemoine que narra a história de uma rapariguinha de dez anos pertencente a uma família de Beduínos. A acção decorre algures no deserto de um país árabe e complica-se com o desaparecimento de Slimane, o irmão de Leïla. Além de abordar aspectos da vida e da

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5 Tal como acontece com o conceito de tolerância, a utilização do termo diversidade não é isenta de problemas. Leiam-se, a este propósito, as palavras de Iara Tatiana Bonin (2007: 7): «Sobre a diversidade entendida como “natural”, obviamente não é pensada como algo que possa ou deva ser superado, e sim como uma característica das sociedades nacionais a ser aceite e suportada, desde que ordenada para que não se dissemine em rebeldia, para que não ofereça riscos, nem desestabilize as frágeis certezas. Tomada como menor e subordinada, a diversidade complementa e fortalece a identidade referencial. // Problematizar a pedagogia da diversidade implica considerar que as diferenças se produzem em relações de poder e saber, prestando atenção aos processos de diferenciação, às estratégias de hierarquização e de sujeição. Significa ir além do reconhecimento e do acolhimento de uma multiplicidade de sujeitos e de práticas, para que se possa reflectir sobre o modo como identidades e diferenças vão sendo constituídas e posicionadas na cultura.»

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cultura dos povos árabes, a história configura uma lição sobre formas positivas de lidar com a morte e com a ausência dos que nos são queridos, mantendo viva a sua imagem através da memória e do poder evocativo da palavra.

Destacarei ainda um terceiro álbum, de Umberto Eco e Eugenio Carmi: Os Três Cosmonautas (Quetzal, 1989). Como já tive ocasião de escrever noutro local (v. Gomes, 1991: 82), o livro narra a história de um americano, um russo e um chinês que, no decurso de expedições espaciais simultâneas, aprendem gradualmente que as dissemelhanças entre os seres humanos (sintomaticamente sinalizadas pelas diferenças ao nível da linguagem e da cultura a ela subjacente), embora causadoras de equívocos, não podem ser impeditivas da concórdia, da aceitação mútua de percursos individuais mas também da compreensão do que lhes é comum. Em última análise, o conto confronta o leitor com a questão da incomunicabilidade como elemento gerador de intolerância. Uma obra, em suma, que sublinha a necessidade do diálogo, contrapondo-o à irracionalidade da desconfiança e da violência.

• Os livros bilingues podem assumir, igualmente, um papel de relevo. Raras ainda no nosso país, estas obras têm a virtude de não permitir à criança ignorar que se encontra perante o outro. De facto, «o outro está presente em cada página nessa língua, nessa escrita por vezes diferente. Para além da simples função linguística, o livro bilingue tem um papel de sensibilização, de despertar da curiosidade, de familiarização e aceitação da diferença.» (Bukiet, 1992: 5)

Vale a pena apontar, como exemplo, a «Estafeta do Conto», projecto de escrita colaborativa concretizado em 2004 e 2005, com oito escritores e centenas de alunos da Galiza e do norte de Portugal por iniciativa da Conselleria de Cultura da Xunta de Galicia e da Delegação Regional de Cultura do Norte (Ministério da Cultura de Portugal), com o apoio do Programa de cooperação transfronteiriça INTERREG III. Operação de complicada logística, que implicou a assistência de professores e bibliotecários e exigiu um considerável trabalho de coordenação, este projecto contou, numa das equipas, com a participação dos escritores galegos Paco Martín e Gloria Sánchez e dos portugueses Anabela Mimoso e João Pedro Mésseder, e, na segunda, com Fina Casalderrey, Xabier Puente Docampo, pela Galiza, e Ana Luísa Amaral e Vergílio Alberto Vieira, por Portugal. As línguas de trabalho foram o português e o galego e tudo se processou em interacções presenciais dos autores com crianças de várias vilas e cidades do Minho, de Trás-os-Montes e de diversas cidades galegas. Participaram na elaboração de ambas as histórias mais de quatro centenas de jovens, com idades compreendidas entre os 10 e os 14 anos. As sessões de brain storming e criação oral colectiva tiveram lugar quase sempre em bibliotecas públicas e com o apoio indispensável de bibliotecários e professores. O saldo final foi a publicação dos livros bilingues Como Um Pé-de-vento / Como Un Golpe de Vento (Santiago de Compostela: Xunta de Galicia e MC – DRCN, 2006), com ilustrações de António Modesto, no caso da primeira equipa, e Pasos de Música, Camiños de Auga / Passos de Música, Caminhos de Água (Santiago de Compostela: Xunta de Galicia e MC – DRCN, 2006), com ilustrações de Xosé Cobas, no caso do segundo colectivo. Redigidas e revistas pelos escritores envolvidos, trata-se de pequenas novelas de tipo fantástico, em que se tornam visíveis traços culturais de duas regiões diferentes, mas irmanadas por idiomas muito semelhantes e pela contiguidade geográfica.

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No conjunto das obras bilingues, merecem ainda referência dois livros em formato de álbum: Sam e o Som / Sam and Sound (Caminho, 2006), em português e inglês, de Ana Saldanha e Basil Deane (texto) com ilustrações de Gémeo Luís, centrado na infância e juventude de um violoncelista irlandês; e ainda as narrativas em verso, em torno do alfabeto, de Rua do Abecedário / Rue de l’Abécédaire (ASA / Éditions St.-Paul, 1993) de Augusto Múrias (texto) e Romain Lenertz (ilustrações), obra editada em Portugal e no Luxemburgo e com texto em português e francês.

3. Diversidade e outros temas em obras portuguesas para crianças e jovens

Abordarei, em seguida, algumas obras literárias ou paraliterárias (exceptua-se uma, de natureza mais didáctica) da produção portuguesa para os mais jovens, as quais se distinguem seja por tematizar a diferença e a diversidade, seja por abordar o confronto com o estrangeiro, a condição de imigrante ou tópicos afins (v. também o Anexo ao presente ensaio). Podem por isso favorecer uma reflexão sobre o diálogo de culturas e concorrer para uma educação simultaneamente literária e social, enformada por valores positivos subjacentes a esse intercâmbio.

Publicado pela primeira vez em 1976, O Meio Galo (Edições ASA), de Luísa Ducla Soares, integra um conto breve intitulado «Meninos de todas as cores». Miguel, um menino branco e contente da sua condição, parte para uma viagem que o leva a diferentes continentes. Neles encontra crianças amarelas, pretas, vermelhas e castanhas, todas elas satisfeitas com as cores das suas peles. No regresso à «sua terra de meninos brancos», Miguel afirma: «É bom ser branco como o açúcar / amarelo como o Sol / preto como as estradas / vermelho como as fogueiras / castanho da cor do chocolate.» (ed. de 1982, p. 24). O narrador conclui que «enquanto na escola, os meninos brancos pintavam em folhas brancas desenhos de meninos brancos, ele fazia grandes rodas com meninos sorridentes de todas as cores.» (pp. 24-25).

O Soldado João (Estúdios Cor, s.d.), da mesma autora, relata o modo como um simples soldado, que se distingue pela sua bonomia e é incapaz de se libertar de certos costumes da terra natal, logra, um tanto involuntariamente, tornar absurda e desnecessária uma guerra entre generais inimigos. É a instituição castrense posta a ridículo e o texto a funcionar como parábola: um pequeno libelo a favor da paz e do convívio entre pessoas provenientes de campos aparentemente opostos.

Em vez da tradicional rivalidade entre irmãos que inúmeras histórias infantis, sobretudo tradicionais, abordam, Os Ovos Misteriosos (Afrontamento, 1994) – outra obra escrita por Luísa Ducla Soares e ilustrada por Manuela Bacelar – propõe imagens de força e solidariedade que assentam numa insólita aliança de animais de distinta natureza. Indignada com o roubo sistemático dos seus ovos, uma galinha decide, na mata, chocar cinco de diferentes tamanhos e feitios, conquanto apenas conheça a proveniência do único por cuja postura é responsável. A sua prole deixa-a perplexa: um papagaio tagarela, uma avestruz voraz, uma serpente com cócegas e um crocodilo; apesar de apenas o quinto filho se comportar como um pinto, a mãe trata os cinco com igual desvelo. A história só atinge, no entanto, o seu clímax quando um rapaz tenta roubar o frango: os outros

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animais perseguem-no e assustam-no, cada um deles mobilizando as «armas» que lhe são próprias. Libertado o irmão, todos se reúnem à volta da mãe, festejando e entoando uma canção que traduz bem a intencionalidade da obra.

Os Ovos Misteriosos não é pois uma história pueril – no sentido pejorativo da expressão –, mas antes uma fábula em que a diferença de cada um é valorizada. Para ser mais rigoroso, deveria talvez dizer que subjaz a este discurso a ideia de que a força de um grupo não repousa apenas na identidade de estatutos e de interesses daqueles que o compõem. Luísa Ducla Soares vem mostrar que cada elemento de uma pequena ou grande comunidade possui individualidade própria e que o poder dessa comunidade nasce, afinal, da combinação das várias idiossincrasias dos sujeitos que a compõem. Só assim a união faz a força e consolida os laços entre estes, já que as peculiaridades de uns complementam as dos outros.

Propondo uma visão das coisas situada nos antípodas do egoísmo, a história da galinha e dos seus cinco filhos, destinada a crianças entre os cinco e os sete anos, não prescinde, contudo, da valorização da identidade pessoal. Os laços de cumplicidade afectiva aliados ao respeito pelas particularidades individuais surgem como condição essencial da sobrevivência dos grupos. Por mais inocente que aparente ser, qualquer texto de literatura para crianças está, pois, saturado de ideologia. Esta parece oportuna. Num tempo como o nosso, assolado pela intolerância e por tentações de unanimismo acrítico, não se poderia encontrar mensagem mais actual, neste caso transmitida com subtileza, humor e economia de meios expressivos (v. Gomes, 1995).

Num livro de poesia significativamente intitulado A Cor que Se Tem (Plátano, 1986), Maria Cândida Mendonça escreve, no poema com o mesmo título: «E assim / há-de chegar / o dia de acreditar / que o valor / de alguém / não se pode avaliar / pela cor / que tem. // E então / tudo estará bem.» (p. 18). Outra composição («Mariana, menina cigana») é um dos raros textos portugueses para a infância que abordam a discriminação dos ciganos: «A amizade / aquece menos / que o sorriso / na tua face / Mariana / menina cigana. // Mas o ódio / esse é menos frio / que a voz que te chama / esquecendo teu nome / e dizendo / mordendo / cigana / CIGANA» (p. 32).

Para a colecção «Triciclo voador», de Edições Afrontamento, criou Manuela Bacelar um álbum ilustrado, intitulado O Dinossauro (1990), próprio para crianças entre os cinco e os sete anos. O gigantesco animal, adormecido há muitos milhares de anos e confundido, por isso, com um monte, desperta um dia e inicia um passeio, transportando no dorso uma aldeia inteira. Relatada num registo bem humorado, esta viagem bizarra vai permitir aos aldeãos conhecer a diversidade do mundo. Atravessando regiões desérticas e países frios, têm oportunidade de observar «gente igual» e «gente diferente», «casas de todos os tamanhos» e feitios. Acompanhando a sucessão de imagens, o pequeno leitor contacta com nórdicos, árabes, chineses, africanos e índios norte-americanos; vê a Torre de Pisa, a Torre Eiffel, arranha-céus, vivendas, palhotas, igloos, tipis e outros tipos de habitações e edifícios históricos. Eis, pois, como uma obra destinada a crianças pequenas pode contribuir para uma iniciação ao conhecimento das culturas de outros povos.

Ainda com ilustrações de Manuela Bacelar e texto de Anita Burlet, Jan Powels e Maria Praia, A Europa dos Direitos Humanos (RIF, 1993) é uma obra constituída por dezasseis cartões de formato A4, plastificados e resistentes, que se destina a ser lida pelas

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crianças em contexto escolar e explorada com a orientação do professor. Como escrevi noutro local (Gomes, 1994: 19), o trabalho obedece à seguinte estrutura: na frente de cada cartão uma ilustração colorida dialoga com um pequeno texto narrativo que, no verso, vai contando, de modo muito simples e claro, a história do conturbado continente que a Europa sempre foi. Aí se explica a génese da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a sua importância para a construção de um mundo onde, como é dito no texto, «as meninas e os meninos puderam (...) ser livres, sentir-se felizes, conviver e ter o direito de aprender» – afirmação mais utópica do que real, não obstante os progressos verificados. No verso de cada cartão, uma parte destinada aos docentes destaca pequenos excertos da Declaração, isola os conceitos que lhes estão subjacentes e integra sugestões de actividades que o professor pode desenvolver com os alunos a partir das imagens e do texto. Estas propostas revelam a preocupação constante de relacionar os conceitos em análise com práticas sociais vivenciadas pelos mais novos, sem esquecer a dimensão cultural patente em muitas delas. A obra, enquadrada na problemática geral da dimensão europeia na educação, e destinada sobretudo a crianças da escola básica, procura dar resposta à seguinte questão: «Como solucionar a tremenda frustração de educar em valores, princípios e direitos que a sociedade é incapaz de promover? Não se trata de pensar utopicamente uma sociedade sem conflitos. A questão reside em como utilizar a educação como contributo para a resolução desses conflitos.» (2º cartão, texto «A Europa dos Direitos Humanos»). Trata-se, em suma, de um trabalho voltado para «uma educação de vocação internacional, que desperte em cada um a responsabilidade solidária. Uma educação para a compreensão do outro, para o respeito pelas liberdades fundamentais.» – assim se pode ler num dos textos introdutórios.

«Por que não tens uma cor igual à nossa? Por que não cricrilas?» – perguntam à personagem do Grilo Verde os outros grilos, na obra que António Mota publicou com o título O Grilo Verde, em 1984 (1ª ed., Livros Horizonte; 4ª ed., Gailivro, 2005), um conto em cujo subtexto se lê um apelo à aceitação da diversidade. Outros exemplos merecem referência, como certos contos de Luísa Dacosta (História com Recadinho, Figueirinhas, 1986) e de Manuel António Pina – neste caso incluídos em O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1ª ed., A Regra do Jogo, 1973; reed., Pé de Página, 2007) e em O Têpluquê e Outras Histórias (Afrontamento, 1995; reed., Assírio & Alvim, 2006) edição refundida de dois livros inicialmente editados na década de setenta).

A seu modo, também a novela e o romance juvenil podem concorrer para o despertar da curiosidade por experiências de vida noutros países ou para uma meditação sobre problemas como o racismo ou a inadaptação social provocada pelo choque de culturas. Encontram-se no primeiro caso alguns dos livros de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada publicados pela Editorial Caminho na colecção «Uma aventura»: Uma Aventura no Deserto (1988), Uma Aventura nas Ilhas de Cabo Verde (1990), Uma Aventura em França (1991) e outros. Brasil! Brasil! (colecção «Viagens no tempo», Caminho, 1992), das mesmas autoras, é uma narrativa centrada em aspectos da História do Brasil no século XIX, nomeadamente a luta pela abolição da escravatura. A questão do racismo, nas suas várias dimensões, atravessa por isso todo o texto.

O herói do romance Alex, o Amigo Francês (Caminho, 1989), de Carlos Correia, é um jovem filho de emigrantes portugueses. A sua dificuldade de integração, tanto

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na sociedade de origem dos pais como no país de acolhimento, está na origem da sua inadaptação social. Sobre este livro escreveu Alice Vieira (cit. por Oliveira (ed.), 1993: 11): «É uma história por onde passa o racismo, o trabalho precário, o biscate, o pequeno delito, o bando – que leva o herói a recusar ambas as sociedades e a embarcar num navio em busca de aventura. A recusa do final cor-de-rosa em favor da verdade. Por cruel que esta seja. Um livro de emigração sem sabor a fados e guitarradas. Mas também, evidentemente, sem sabor a javas ou valses musettes.»

Mais obras poderiam ser mencionadas, como Uma Questão de Cor (Edinter, 1995; 3ª ed., Caminho, 2006) ou Os Caçadores de Cabeças (Verbo, 1994), de Ana Saldanha e Alexandre Honrado, respectivamente. Ambos são representativos de uma tendência emergente na nossa narrativa juvenil para tematizar o racismo, a xenofobia e outros tipos de exclusão – temas que ganharam uma triste actualidade na sociedade portuguesa (v., a este propósito, Blockeel, 1996 e 2001).

4. Textos e intertextos, contos e recontos

Embora não abordem de modo directo tópicos como o racismo ou a aceitação das diferenças nas sociedades multiculturais, as obras a que farei agora referência constituem narrativas de qualidade literária, cuja génese as vincula a textos estrangeiros, de origem dita popular ou erudita. Algumas resultam mesmo de um prolongamento dos enredos que lhes servem de ponto de partida, como Sonhos na Palma da Mão (Porto Editora, 1990; 2ª ed., ASA, 2004), de Luísa Dacosta, ou O Pajem Não Se Cala (1ª ed., 1981; 2ª ed., Civilização, 1992), de António Torrado, ambos inspirados por dois conhecidos contos de Hans Christian Andersen, respectivamente «O rouxinol» e «A vestimenta nova do imperador».

Em casos como estes, uma leitura orientada pode enfatizar a ideia de que a própria criação literária é consequência de um diálogo frutífero, explícito ou implícito, com textos que a precederam, muitos deles oriundos de outros universos culturais. A consciência desta realidade, além de concorrer para o desenvolvimento da competência intertextual (dimensão essencial da competência literária) confere novos matizes ao conceito de interculturalismo. Um leitor habituado desde cedo a reflectir sobre este fenómeno estará, porventura, mais aberto ao respeito pela arte e cultura de outros povos, desvalorizando, assim, sentimentos exacerbados de nacionalismo cultural.

Neste sentido, a obra de Ilse Losa é exemplar a vários títulos, averbando algumas narrativas e peças teatrais baseadas em contos populares alemães ou de outros países. Silka (1ª ed. 1984; 2ª ed., Edições Afrontamento, 1991), por exemplo, toma como ponto de partida uma história tradicional do norte da Europa (região báltica), tematizando a perseguição de que pode ser vítima um povo de raça e cultura diferentes. É difícil, aliás, não ler Silka como uma parábola focada na questão da intolerância étnica e como dolorida meditação sobre o destino do povo judeu.

Falar da educação para a alteridade e para aquilo a que, com certa precipitação e não poucas conotações perigosas, chamamos tolerância implica, aliás, recordar os três contos originais publicados por Ilse Losa no seu livro A Minha Melhor História (Editora Nova

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Crítica, 1979). Alguma desta matéria ficcional encontra-se relacionada com a infância e juventude da autora, vividas na sua Alemanha natal, nos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial, trazendo à memória – numa linha de intertextualidade homo-autoral – outro belo livro de Ilse Losa: O Mundo em que Vivi (20ª ed., Afrontamento, 1990). Particularmente tocante é o conto «Apesar de tudo», história de reconciliação, centrada na festa de aniversário do pequeno Rolf, filho de um resistente ao nazismo. O conflito interior vivido pela mãe, ante a eventualidade da presença na festa de outra criança, filha de um criminoso nazi, é a questão central do conto, cuja acção principal se situa no imediato pós-guerra. Superando, por momentos, a dor e o ódio provocados pela morte do marido às mãos dos torcionários, a mãe de Rolf acaba por ceder à insistência do filho e admitir a presença de todas as crianças na festa, independentemente do passado dos pais. Ao recusar penalizar uma delas pelos terríveis erros cometidos pelo pai, a mãe de Rolf afirma a sua superioridade moral. O conto termina com uma nota de esperança: «Talvez fosse possível haver um futuro sem lugar para torturas de inocentes, um futuro melhor do que o passado, para bem de seu filho, para bem daquelas crianças... para bem do rapazinho que lhe sorri...» (p. 42).

Sophia de Mello Breyner Andresen – que, em O Cavaleiro da Dinamarca (Figueirinhas, 1964), esboçara já um belíssimo fresco da efervescência social, cultural e artística da Europa entre o fim da Idade Média e a Renascença – dá a ler, em A Árvore (Figueirinhas, 1985), duas recriações de histórias tradicionais do Japão, em que é possível descobrir diversos elementos da cultura deste país.

A atracção que a literatura oral tradicional sempre exerceu sobre António Torrado conduziu-o inevitavelmente a deixar-se cativar pelas narrativas tradicionais do Oriente. É o que se verifica nos recontos que – à semelhança de Alice Vieira (v. Contos e Lendas de Macau, Caminho, 2002) –, publicou na colecção «Contos e lendas de Macau», do Instituto Cultural de Macau / Editorial Pública: O Coelho de Jade, A Noite Luminosa e A Cerejeira da Lua, todos eles de 1990. «O rei fez justiça», história incluída em Dez Contos de Reis (Edições O Jornal, 1990), inspira-se, por seu turno, num conto tradicional árabe. E é a mesma atracção pelo mundo árabe que leva o autor de O Jardim Zoológico em Casa a situar a acção da sua conhecida história «O mercador de coisa nenhuma» num país do Médio Oriente (ver O Mercador de Coisa Nenhuma, 1ª ed., 1969; 2ª ed. revista e aumentada, Civilização, 1994). Finalmente, em O Pajem Não Se Cala, Torrado retoma, como foi dito, um dos mais conhecidos contos de Hans Christian Andersen prolongando-o numa divertida parábola sobre a hipocrisia dos poderosos.

Andersen é também um dos autores de referência de Luísa Dacosta. Não se estranhará, por isso, que, no já citado Sonhos na Palma da Mão, narrativa breve mas de elaborada urdidura, a escritora regresse ao conhecido conto «O rouxinol», cuja acção decorre na corte de um imperador chinês. Tive já oportunidade de escrever (v. Gomes, 1991) que o texto de Luísa Dacosta se estrutura em torno de três sonhos da pequena protagonista da narrativa de primeiro grau, três etapas de um percurso que encontra, no final, o seu momento de síntese. No primeiro sonho, o olhar da menina, a quem a avó contava a velha história do autor dinamarquês, descobre uma dama nobre costurando, no palácio do imperador, um minúsculo rouxinol. Ele destina-se a fechar a sua cabaia de seda e a realçar ainda mais a sua beleza, provocando assim a inveja das outras damas da

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corte. No segundo sonho, os olhos da criança revelam-nos a rapariga pobre do conto de Andersen a afeiçoar também um pequenino corpo de pássaro, com um retalho de seda vermelha do quimono do imperador. Trata-se de um presente para a mãe, testemunho simbólico do amor filial da personagem. O terceiro e último sonho prefigura um encontro entre dois amantes. Uma vez mais, entram em cena personagens do conto de Andersen. O pescador leva à amada – a criadinha do segundo sonho – um testemunho do seu amor: um gancho com a forma de um pequeno pássaro, destinado a «prender a cascata negra» (1ª ed., p. 22) do cabelo da jovem. A última cena do sonho sugere, então, o encontro amoroso dos amantes. Eis-nos, em suma, perante três modos de realização amorosa, que se não excluem mas ordenam, segundo um processo evolutivo. Os olhos da menina encaminham-na de um amor narcisista (o da dama por si própria) para uma situação de afecto num quadro parental (filha-mãe) e, finalmente, para uma relação amorosa fora desse quadro: o encontro entre a criadinha e o pescador. Pelo meio, não se torna difícil identificar elementos vários da cultura chinesa – que a ilustração de Ângela Melo sublinha e enriquece –, alguns dos quais já se encontravam no conto de Andersen.

Registe-se ainda António e o Principezinho (1ª ed., Edinter, 1993; 2ª ed., AMBAR, 2004), de José Jorge Letria. Até certo ponto, pode afirmar-se que estamos perante a continuação da existência de Saint-Exupéry após o seu desaparecimento no mar, na sequência de um provável ataque de caças alemães, no dia 31 de Julho de 1944. O topos da revisitação de uma vida inteira no momento que precede a morte torna-se irrecusável ponto de partida para uma história, sobretudo se protagonizada por alguém como Saint-Exupéry, cuja personalidade vem sendo objecto de mitificação crescente. O narrador encontra assim o dispositivo que lhe permite a rememoração de momentos fulcrais da biografia do escritor-aviador (a infância na casa de Saint-Maurice, a escola em Friburgo, o despertar da paixão pelo voo, as experiências como piloto...), bem como de lugares e pessoas que marcaram a sua vida (a mãe, Léon Werther, Jules Védrines...). Homenagem comovida ao autor de Vol de Nuit, o texto de Letria necessita, para um adequado entendimento pelo pequeno leitor, de prévia referência ao intertexto, Le Petit Prince, já que o guia de António (de Saint-Exupéry) nesta viagem ao passado é, justamente, o Principezinho, reencontrado no fundo do mar, após a queda do avião. A dualidade morte/regresso ao seio materno (origem da vida) surge, assim, associada ao elemento aquático. Partindo da ambivalência simbólica desse espaço marinho, três linhas de leitura se articulam: o regresso à infância/revisita do passado, a imortalidade do escritor (e sua conversão em mito) e o aniquilamento físico do homem. Em jeito de confirmação, registe-se o desfecho da história, espécie de deriva metaliterária: o Principezinho leva António «até uma página branca de um livro por escrever» e aí o deixa adormecer. O narrador conclui: «António, quando acordou, já não pertencia ao mundo dos aviões e das viagens feitas no dorso dos cometas. Tornara-se personagem de um livro interminável como só os sonhos das crianças podem ser.» (1ª ed., p. 38). Antoine converte-se assim em personagem de uma pequena biografia romanceada, realimentando desse modo o mito do homem e do escritor (cf. Gomes, 1993: 15).

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Ao contrário do que possa parecer, não esqueci as palavras de Suzanne Bukiet citadas no início deste artigo. O que implica deixar um último sublinhado. É manifestamente insuficiente cingir a utilização do livro, no quadro de uma educação para a multiculturalidade e o interculturalismo, à leitura de recontos numa segunda língua (exemplos, da autoria de José Jorge Letria: Contos da China Antiga, 2002; Lendas e Contos Judaicos, 2003; Contos e Lendas do Japão, 2004; Lendas e Contos Indianos, 2006; Contos Populares Árabes, 2007, todos editados pela AMBAR), ou de obras literárias baseadas em textos provenientes da literatura de outros povos (como alguns dos trabalhos mencionados de Luísa Dacosta e António Torrado) ou ainda de antologias de contos tradicionais de países com o mesmo idioma oficial (exemplo: Contos da Lusofonia: Os Mais Belos Contos Tradicionais (Civilização, 1998), com recolha de M. Margarida Pereira-Müller). Sobre as vantagens da tradução, Walter Benjamin (2007: 134-135) refere a «libertação do preconceito da língua própria (o salto por cima da língua própria)» e ainda «o domínio dos movimentos intelectuais coevos nos vários povos». Donde, conhecer e aprender a respeitar a cultura do outro começa, sobretudo, na possibilidade de acesso a versões criteriosas de obras literárias, originalmente editadas noutras línguas, que sejam representativas de culturas diferentes da do leitor. E, neste aspecto, o panorama editorial português revela-se por vezes confrangedor, em especial no domínio da ficção estrangeira destinada a crianças e jovens (onde encontrar obras de autores latino-americanos, árabes, africanos e asiáticos?) e sobretudo no que respeita à qualidade das traduções.

5. Notas finais

Sociedade multicultural, diálogo de culturas... Vivemos num mundo em que a chamada globalização e o reforço de estruturas de governo e pólos de decisão supranacionais, de mais do que discutível legitimidade democrática (União Europeia; multinacionais e seu poder…), têm como paradoxal reverso o recrudescimento do preconceito racial e da xenofobia e o reforço dos mecanismos de exclusão social e económica, indissociáveis de um capitalismo discursiva e ideologicamente estribado na vulgata neo-liberal. Neste quadro, há um longo caminho a percorrer no sentido de educar para algo mais do que a mera curiosidade pelo outro e para a aceitação activa do que nele é, por vezes, da ordem do radicalmente «diferente». (Refiro-me em especial à diferença étnica e cultural, numa sociedade em que a maioria pertence a determinado grupo étnico. Mas poderia aludir a outros tipos de diferença – termo também ele ambíguo e perigoso6 – como por exemplo a social.) Os livros para crianças, designadamente as traduções de obras estrangeiras, impõem-se como mediadores relevantes do diálogo entre culturas – estimulando a curiosidade, dando a conhecer outros povos e etnias, contribuindo para a integração em comunidades multi-étnicas, estimulando, enfim, atitudes de valorização das diferenças que não ponham, contudo, em causa valores humanos fundamentais e universais.

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6 Releia-se o que ficou dito sobre os conceitos de tolerância e de diversidade, nomeadamente na nota 5.

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Ajudar os mais jovens a tomar consciência dos laços que se criam entre diferentes universos culturais (refiro-me, sobretudo, às dimensões intertextual e inter-artística) parece ser outra das virtudes da literatura. Para tal contamos com o inestimável trabalho de criação e recriação levado a cabo pelos escritores. Para estes – como tantas vezes acontece no que toca ao seu público preferencial: os mais novos – as fronteiras nem sempre têm sentido. Como se a arte fosse, afinal, a linguagem do entendimento universal.

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Originalmente para: Multiculturalismo e Identidades Permeábeis na Literatura Infantil e Xuvenil, ROIG RECHOU, Blanca-Ana, SOTO LÓPEZ, Isabel e LUCAS DOMÍNGUEZ, Pedro (coord.), Vigo: Edicións Xerais de Galicia, pp. 109-119 (ISBN 84-9782-486-5).

Multiculturalismo, identidades permeáveis e literatura infanto-juvenil

Comentário com vista à formação leitora de Os Ovos Misteriosos, de Luísa Ducla Soares

José António GomesSara Reis da SilvaAna Margarida Ramos

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RESUMO

A abordagem que a seguir se apresenta centra-se em Os Ovos Misteriosos, conto infantil em formato

de álbum da autoria de Luísa Ducla Soares, com ilustrações de Manuela Bacelar. Trata-se de uma

obra em que isotopias como a convivência multicultural, a tolerância, a aceitação da diferença ou

a fraternidade são fundamentais. Na leitura efectuada, salientam-se, ainda, aspectos relativos à

arquitectura narrativa, à configuração simbólica de alguns elementos, bem como ao estilo quer da

autora, quer da ilustradora.

1. Publicada, pela primeira vez, em 1994, pelas Edições Afrontamento, na colecção «Triciclo Voador», a obra Os Ovos Misteriosos, de Luísa Ducla Soares (n. 1939, Lisboa) é uma das mais divulgadas do extenso conjunto de textos desta autora, que se estreou na escrita para os leitores mais jovens, em 1972, com A História da Papoila. O conto seleccionado encontra-se traduzido em neerlandês e em francês, tendo sido também publicada, em França, uma edição bilingue.

2. Com mais de meia centena de títulos editados, um universo plural em que se incluem recolhas e adaptações do património oral, colectâneas poéticas, narrativas, desde o conto à novela juvenil, texto dramático e, ainda, outras obras com um fundo mais didáctico, Luísa Ducla Soares é uma das autoras mais reconhecidas da Literatura Portuguesa comummente designada como infantil e juvenil.

Na globalidade, na sua produção literária, como, em outros lugares, já foi explicitado (Gomes, 1997; Florêncio, 2001; Silva, 2005), detecta-se a ficcionalização de temáticas como a convivência social, a harmonia possível na diferença, a aceitação do Outro, a crítica social (ao materialismo, à sociedade de consumo, ao racismo, por exemplo), sempre num discurso muito expressivo, coloquial, marcadamente lúdico, por vezes, irónico, nonsensical e humorístico, e sempre próximo do destinatário. É o que se constata na colecção «Sete Estrelas» (Livros Horizonte), em que se inserem contos como A Menina Branca, o Rapaz

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Preto, O Homem Alto, a Mulher Baixinha ou A Menina Verde – alguns deles reeditados nas colectâneas Gente Gira (2002) e Tudo ao Contrário (2002) –, em obras como O Soldado João (1973), A Princesa da Chuva (1984/2005), A Festa de Anos (2004), ou no conto «Meninos de todas as cores», incluído em O Meio Galo e outras histórias (1976). Este último texto foi, aliás, a base de uma maleta pedagógica organizada pela UNICEF e pela OIKOS, em 1990, como apoio ao projecto escolar e à exposição «Um Mundo de Crianças».

3. Também da narrativa breve seleccionada, Os Ovos Misteriosos, emerge uma das linhas ideotemáticas fundamentais, como temos vindo a sugerir, da produção literária de Luísa Ducla Soares. É esta a do “elogio da diferença”, tópico para o qual acabam por convergir outros vectores como o da tolerância, da solidariedade e, muito particularmente, o da convivência multicultural, aspectos que determinaram a nossa opção por este texto.

Tratando-se de um conto profusamente ilustrado por Manuela Bacelar, a obra escolhida para este comentário destina-se preferencialmente às primeiras idades, situando-se tipologicamente na categoria do álbum narrativo.

Do ponto de vista estrutural, em Os Ovos Misteriosos, a trama narrativa, pautando-se pela brevidade, pela linearidade e pela univocidade, desenvolve-se segundo a arquitectura tradicional do conto, que se traduz numa situação inicial – neste caso, de desequilíbrio para a protagonista –, nas peripécias, num ponto culminante e no desenlace, momento em que se soluciona o conflito, em que a acção se fecha de modo eufórico e em que se reafirmam alguns dos valores que, ao longo de todo enredo, se ensaiam. Desde o início, o discurso literário rege-se por uma simplicidade lexical e sintáctica, por um tom coloquial, pela presença de segmentos dialogais, pela tendência para o visualismo e ainda pela integração expressiva de pequenos segmentos poéticos – quase sempre quadras rimadas com uma estrutura repetitiva –, um conjunto de estratégias que favorecem, de um modo determinante, a adesão dos leitores mais novos. Mesmo o enigma que o título introduz a partir do nome «ovos» e do próprio adjectivo «misteriosos», coadjuvado, à medida que a acção vai avançando, pela capacidade de facultação doseada ou paulatina da informação, desempenha um relevante papel na captação da atenção do destinatário extratextual.

Os Ovos Misteriosos, uma «fábula simples e bem-humorada» (Gomes, 1997: 47) introduzida a partir da fórmula hipercodificada «Era uma vez», coloca em primeiro plano uma galinha, figura anónima, como todas as outras com quem “contracena”, que se revela, desde o início, como uma personagem personificada, com alma, voz, um forte desejo e muita determinação:

«Era uma vez uma galinha que todos os dias punha um ovo. E todos os dias vinha a dona, com uma cestinha tirar-lho.

– Já pus 1.000 ovos. Podia ser mãe de mil filhos. Mas não tenho nenhum por causa da gente gulosa – cacarejou certa manhã a galinha. – Vou fugir.» (Soares, 1994).

O sonho da maternidade, que, muitas vezes, quer na literatura tradicional, quer na literatura de potencial recepção infantil, surge associado à figura animal mencionada, aliado ao da liberdade, motivam a partida da futura mãe-galinha que, assim, deixa para trás um lugar de cativeiro para se aventurar num espaço desconhecido, a mata ou o bosque, e cumprir a sua vontade. Capoeira e mata/bosque, espaços físicos da acção narrada, opõem-

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se do ponto de vista simbólico. Na verdade, enquanto o primeiro espaço é dominado pela clausura, pelo aprisionamento, pela solidão/isolamento e pela frustração, o segundo destaca-se pela relativa segurança, pela intimidade e pela superação do “obstáculo” que possibilita, funcionando, ainda, enquanto cenário de conhecimento e de confronto com a perspectiva do Outro. Aliás, é neste espaço de liberdade que se situa, ainda, um outro, o ninho, local matricial da coexistência harmoniosa, da diversidade e da concretização do sonho. A pluralidade de seres, que este «ninho cheio de ovos de todos os tamanhos e feitios» (Soares, 1994) guarda, surpreende e faz prever a possível coabitação de figuras diversas, à semelhança, aliás, do que acontece em outros textos de potencial recepção infantil, como, por exemplo, no clássico O Patinho Feio, de H. C. Andersen.

As cinco diferentes personagens animais, escondidas nos distintos ovos – o papagaio, a serpente, a avestruz, o crocodilo e o pinto –, unidas por fortes laços de fraternidade, convivem de modo saudável, agem de acordo com a sua essência e unem-se numa difícil situação de perigo. A ligação que entre si celebram, bem como as várias acções apaziguadoras da mãe-galinha, do ponto de vista simbólico, parecem redundar num cenário de ordem e perfeição. O respeito pela singularidade de cada um dos seus filhos, bem como a compreensão e o amor maternais que determinam a actuação da protagonista, constituem elementos prevalecentes e fundamentais não só em relação à construção diegética, mas também quanto “efeito de espelho”, ou seja, ao reflexo do mundo ficcional no mundo social e real que a leitura deste conto possibilita.

De facto, o comportamento das personagens animais deixa antever alguns dos sentidos, dos valores, das críticas e dos “recados” que Luísa Ducla Soares veicula, com invulgar vivacidade, na narrativa seleccionada. A galinha, verdadeira heroína, manifestando a sua felicidade e o seu amor por todos os seus diferentes filhos, a quem dedica, por igual, afecto, atenção e respeito, vê-se confrontada com uma atitude explícita de marginalização e de preconceito por parte das suas congéneres:

«– Olhem a minha ninhada! – mostrava ela às galinhas do mato. – É tão variada, é tão engraçada.

– Trata só do teu pinto. Não ligues aos outros bichos – aconselhava a perdiz.Mas como podia ela abandoná-los depois de os ter chocado com tanto amor? Que

outra mãe havia de tratar deles?» (Soares, 1994). Na verdade, estas figuras testemunham, à semelhança do que ocorre nas fábulas, o

comportamento humano e, mesmo, alguns dos aspectos inerentes à sociedade coeva, como sejam, por exemplo, a rejeição da diferença, o racismo ou a valorização das aparências.

Em Os Ovos Misteriosos, verifica-se, ainda, um confronto ou um conflito desigual entre as personagens animais e as personagens humanas, aparentemente mais fortes, determinadas em exercer o seu poder sobre aquelas, desrespeitando o valor da sua vida e desempenhando o papel próximo do vilão, uma recriação em que parece estar implícita uma carga pejorativa, através da qual se “desumaniza os humanos” e se denunciam genericamente – note-se que estas personagens são anónimas – alguns dos seus defeitos.

O desenlace positivo e exemplar suscita, portanto, o (re)encontro com as isotopias estruturantes desta narrativa fechada. Com imaginação e humor, a resolução do conflito é apenas possível pela compreensão mútua, pela união – que faz a força –, pela entreajuda

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e, somente desta forma, as personagens deste conto, em particular a galinha, vêem concretizados os seus desejos.

Num estilo que Natércia Rocha apelida de «sereno e decidido» (Rocha, 1984: 110), expressão a que acrescentaríamos o adjectivo vivo, Luísa Ducla Soares propõe, em Os Ovos Misteriosos, um encontro literário, visivelmente enriquecido pelo discurso artístico de Manuela Bacelar, com um mundo afectivo em que a pluralidade de espécies animais e a sua tranquila convivência sinalizam, com subtileza, a possibilidade de que o mundo dos Homens também assim possa existir. A pluralidade cromática das extensas ilustrações (muitas vezes, em página dupla), o seu predomínio em relação ao texto linguístico, que, frequentemente, surge em locais “secundários” da página, bem como a representação expressiva das emoções que vão dominando as personagens intervenientes, um percurso estético em tudo consentâneo com a própria narrativa verbal, funcionam como factores de atracção do leitor e também como sugestivos elementos de reiteração das temáticas basilares que o conto em análise esboça. De salientar ainda que Manuela Bacelar opta, neste livro, por aquele seu registo mais alinhado com uma linguagem que se apresenta como misto de caricatura e de cartoon. Tal registo sublinha em geral as virtualidades humorísticas de narrativas para os mais novos e distingue-se claramente da linha mais dramática da ilustradora, marcada pelos tons escuros e suportada pelo recurso ao óleo ou ao acrílico, como é visível em Silka (1989), de Ilse Losa, A Sereiazinha (1995), de Andersen e em outras obras.

4. Em Os Ovos Misteriosos, conforme procurámos aflorar ao longo da nossa análise, Luísa Ducla Soares aborda um dos tópicos mais recorrentes na sua escrita. Nesta narrativa atemporal, em que actua um número restrito de personagens, predominantemente animais, seguindo alguns dos modelos da escrita de potencial recepção infantil, a autora testemunha uma singular capacidade narrativa, que espelha a opção por um conjunto de estratégias discursivas (como o tom humorístico ou o carácter dialógico) bastante eficazes no processo de aproximação ao receptor. Sem moralismos forçados, Os Ovos Misteriosos reveste-se de uma importante dimensão ética, ficcionaliza temáticas fundamentais, como a paz na diferença ou a união e a solidariedade, e espelha simultaneamente um olhar atento sobre o real e o sonho de um mundo melhor. Neste, como em outros textos, Luísa Ducla Soares parece apenas querer dizer que, para os Homens, no que toca à convivência com o Outro, “é preciso crescer”, sem esquecer que, felizmente, há “meninos de todas as cores”.

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Referências bibliográficas

BIEDERMANN, Hans (1994). Dicionário Ilustrado de Símbolos. São Paulo: Melhoramentos.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain (1994). Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Teorema.

FLORÊNCIO, Violante (2001). «O Elogio da Diferença na Obra de Luísa Ducla Soares» in Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infância e a Juventude], Nº 5, Abril de 2001, pp. 3-8.

GOMES, José António (1997). Para uma História da Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude. Lisboa: Ministério da Cultura-Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.

VILA MAIOR, Isabel (2005). «A Obra Narrativa de Luísa Ducla Soares» in No Branco do Sul as Cores dos Livros (Encontros sobre Literatura para Crianças e Jovens, Beja, 2001 e 2002 – Actas). Lisboa: Caminho, pp. 205-220.

ROCHA, Natércia (1984). Breve História da Literatura para Crianças em Portugal. Lisboa: ICALP-ME.

SILVA, Sara Reis (2005). Dez Réis de Gente… e de Livros. Notas sobre Literatura Infantil. Lisboa: Caminho.

SOARES, Luísa Ducla (1994). Os Ovos Misteriosos. Porto: Afrontamento.

SOARES, Luísa Ducla (2001). O Meio Galo. Porto: Asa (ilustrações: João Machado) (5ª ed.).

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Originalmente para: Multiculturalismo e Identidades Permeábeis na Literatura Infantil e Xuvenil, ROIG RECHOU, Blanca-Ana, SOTO LÓPEZ, Isabel e LUCAS DOMÍNGUEZ, Pedro (coord.), Vigo: Edicións Xerais de Galicia, pp. 189-201 (ISBN 84-9782-486-5)].

Multiculturalismo, identidades permeáveis e Literatura infanto-juvenil

Comentário com vista à formação leitora de Uma Questão de Cor, de Ana Saldanha

José António GomesSara Reis da SilvaAna Margarida Ramos

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RESUMO

Neste texto, é apresentada uma leitura da obra Uma Questão de Cor, de Ana Saldanha, incidindo

nas principais linhas temáticas ligadas à promoção da tolerância e do multiculturalismo. São, ainda,

considerados os elementos relativos à construção narrativa do texto e à definição do estilo da autora,

tomando como ponto de referência o universo dos destinatários preferenciais.

A novela de Ana Saldanha, Uma Questão de Cor, foi publicada pela primeira vez em 1995 pela Edinter e reeditada, sob a chancela da Caminho, em 2002, com novas ilustrações de José Miguel Ribeiro – artista que vem somando à sua ligação ao livro infantil um singular e premiado percurso na área do cinema de animação. Esta obra foi ainda integrada em vários manuais1 do 8º ano de escolaridade, pela Porto Editora.

O texto de Ana Saldanha em análise foi recomendado pelo IBBY e seleccionado para as Olimpíadas da Leitura de 1996. Foi, igualmente, obra finalista do Prémio Unesco de Literatura Infantil e Juvenil em Prol da Tolerância de 1997. Para a distinção do texto terá certamente contribuído o tratamento da temática da multiculturalidade, a valorização da tolerância perante as diferenças e a denúncia do racismo, associado à incompreensão e ao desconhecimento do Outro. A pertinência da promoção de uma educação intercultural tem vindo a ser salientada frequentemente, sobretudo nos países ocidentais, a braços com problemas graves de integração efectiva de minorias étnicas, culturais e religiosas. A educação intercultural2 apresenta-se, pois, como um paradigma alternativo ao nível da formação, visando desenvolver, tanto nos grupos maioritários como nos minoritários, uma

1 Confrontar com: Com todas as Letras – Língua Portuguesa – 8.º Ano, de Fernanda Costa e Luísa Mendonça (Porto Edito-ra); A Casa da Língua – Língua Portuguesa – 8.º Ano, de Sofia Melo e Manuela Rio (Porto Editora).

2 Confrontar com Ouellet (1991) e (2002) e Perotti (1997).

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maior capacidade de comunicação entre os indivíduos de culturas diferentes, comunicação essa baseada na compreensão das especificidades das diferentes culturas e grupos. Deste modo, é objectivo da educação intercultural a promoção de atitudes adaptadas ao contexto da diversidade cultural em que nos situamos. Assim, é evidente a articulação desta política educativa com a educação para a cidadania, numa interacção3 pautada por cinco linhas de força essenciais: a coesão social; a aceitação da diversidade; a igualdade de oportunidades; a participação na vida democrática e a preocupação ecológica.

Aliás, a leitura da novela de Ana Saldanha enquanto texto promotor de uma educação intercultural terá estado, acreditamos, na origem da selecção da obra como de leitura integral sugerida pelos manuais escolares. A actualidade e a pertinência das temáticas tratadas, assim como a proximidade discursiva em relação aos leitores preferenciais, explicarão o sucesso da obra junto de leitores adolescentes e juvenis.

Uma Questão de Cor4 estrutura-se em dez pequenos capítulos a que correspondem quase cem páginas, numa clara opção pela brevidade e condensação discursiva para a qual concorrem a inexistência de momentos descritivos ou de pausa na narração da acção. Esta ideia é igualmente reforçada pela presença insistente do diálogo e utilização sistemática do discurso directo, imprimindo agilidade à narrativa que segue o fluxo discursivo das personagens e é assim marcada pela isocronia. Esta questão revela-se particularmente pertinente logo na abertura da novela que é introduzida por um segmento de diálogo5 sem qualquer contextualização. Desta forma, o leitor, em vez de ler informação (descrições, por exemplo) acerca das personagens, “ouve-as” em acção e constrói, de forma rápida (e com recurso à caracterização indirecta), o seu retrato, estabelecendo os nexos de proximidade ou de afastamento existentes entre elas. O diálogo é ainda caracterizado pelas frases curtas ou mesmo muito curtas, que se sucedem a um ritmo vivo e que surgem, muitas vezes, entrecortadas pelos comentários da narradora.

Trata-se de uma estratégia narrativa e discursiva que caracteriza os textos de Ana Saldanha destinados a um público juvenil e que visa a captação imediata da atenção dos leitores, promovendo a sua identificação não só com os temas tratados, mas também com a linguagem, muito ágil e fluida, favorecendo uma leitura sem sobressaltos e sem momentos de rotina e de paragem. Os capítulos mais extensos apresentam marcas gráficas que estabelecem uma separação entre as diferentes cenas ou momentos narrados, permitindo uma organização da acção.

Além disso, a autora procura recriar universos particularmente próximos dos vivenciados pelos seus leitores, sobretudo o familiar e o escolar, dando conta de algumas das suas principais características – às vezes fortemente tipificadas – tensões e problemas. A questão do conflito de gerações, da falta de diálogo no meio familiar, a problemática

3 Confrontar Ouellet (2002).

4 Sara Reis da Silva (2005) apresentou uma conferência onde estabelece as principais linhas de força, quer do ponto de vista ideotemático quer estilístico, da produção de destinatário juvenil de Ana Saldanha e onde inclui referências à obra aqui analisada.

5 Confrontar com: «– Nina, o jantar está na mesa. Já vou.– Nina, vem jantar.Só mais um bocadinho. Estou quase a conseguir acabar a paciência.– Nina, olha que o jantar está a arrefecer» (Saldanha, 2002: 9).

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de integração dos jovens no grupo, a dificuldade da afirmação de uma individualidade num universo muito codificado e regido por normas muito estereotipadas são algumas das linhas de força que também contribuem para o costurar da narrativa.

As personagens, construídas com realismo e a pinceladas muito vivas e rápidas, promovem a identificação do leitor pela idade, hábitos, gostos, actividades desenvolvidas, relação com os adultos (pais, familiares, professores) e com os colegas. O facto de se tratar de uma narrativa de primeira pessoa, de focalização interna, facilita a adesão do leitor ao ponto de vista do narrador, uma vez que é o seu olhar sobre o mundo e sobre os outros que prevalece. Este olhar reveste-se, ainda, de mais pertinência quando assume uma postura interrogativa (por vezes mesmo de incompreensão) acerca do que o rodeia, dando conta de incertezas e de muitas dúvidas. É evidente o tom confessionalista, próximo do utilizado no diário, que caracteriza a narrativa e que permite uma aproximação ao interior da personagem, incluindo a sua intimidade, os seus pequenos segredos e o seu lado mais obscuro e menos solar…

O texto, apesar de breve e muito condensado, não deixa de conter uma série de referências culturais, históricas e políticas particularmente pertinentes para a temática central do texto. É assim que entendemos, por exemplo, as referências ao apartheid na África do Sul e ao papel de Nelson Mandela na conquista de direitos para a população negra desse país. No contexto português, são feitas alusões às manifestações dos estudantes angolanos vivendo em Portugal ou ao simbolismo do primeiro deputado português negro, Fernando Ka, também presidente da Associação Guineense de Solidariedade Social. Nas referências a Nelson Mandela, por exemplo, a narradora privilegia a apresentação, sob a forma de uma listagem, de alguns momentos cruciais da sua vida, destacando, através de casos muito concretos e perfeitamente objectivos, exemplos concretos de descriminação. O capítulo, intitulado “herói (breve história de um)”, recria, de forma acessível mas extremamente completa, a vigência e o fim do apartheid na África do Sul.

Os temas aflorados são muito variados e apesar, como o título o indicia, de a questão central da novela ser o racismo, ela é entrecruzada por outros eixos ideotemáticos como a amizade, a tolerância e os afectos. A este propósito, veja-se a forma como, no texto, é construída a relação entre Nina e Vítor, entre os pais da narradora e, de alguma forma, entre os seus avós, apresentando várias facetas das relações amorosas, em sentido mais restrito, e humanas, em sentido geral. Aliás, a família reveste-se de particular relevo na narrativa, como as três gerações presentes dão a perceber. O equilíbrio familiar acontece, apesar dos conflitos geracionais e culturais que se vão sucedendo, sustentado pela confiança e por um diálogo que se mantém do início ao fim da obra.

A questão da informática funciona mais como pretexto para o desenvolvimento da narrativa, permitindo empréstimos vários, tanto ao nível da própria comunicação narrativa, como nos planos linguístico e temático, e funciona como forma de caracterizar Nina, individualizando-a, por exemplo, face ao primo e inserindo-a num grupo definido por determinados gostos e interesses. Permite também a sugestão de cómico, aquando da construção das bases de dados de Nina sobre os seus ódios de estimação, ou das confusões da avó com software e tupperware (Saldanha, 2002: 14 e 15), acentuando as diferenças entre gerações ao nível dos interesses e da relação que estabelecem com a inovação. Particularmente interessante é o aproveitamento deste vocabulário específico em

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contextos diferentes dos habituais. Assim, o fecho da narrativa surge como uma simulação do fecho ou encerramento do programa de computador ou do próprio sistema.

O discurso da narradora é, ainda, marcado pelo humor, por um registo familiar e por um estilo coloquial. Verifica-se a utilização, com moderação e pertinência, de alguns vocábulos e expressões da gíria juvenil e/ou escolar. A narrativa desenrola-se a um ritmo quase alucinante, cativando o leitor da primeira à última página.

O ambiente escolar e o familiar são reconstruídos com pormenor e realismo, sugerindo o conhecimento preciso pela autora destes universos que revisita com assiduidade nos seus textos, como o provam as publicações de Cinco Tempos, Quatro Intervalos (1999) ou Doçura Amarga (1999).

A questão do racismo, sugerida desde o título como central no desenvolvimento da novela, é aflorada pela primeira vez na página 47, pelo pai da narradora, queixando-se da forma como tinha sido tratado no hospital. Mais tarde, é no diálogo de Vítor e Daniel que aparece explícita a referência à “pele escura” do primo de Nina, através do uso de expressões com claras conotações pejorativas como «primo escurinho» (Saldanha, 2002: 52), «não sabia que tinhas disto6 na família» (idem), «é bem tostadinho» (idem, ibidem: 53), «pretinho tão giro» (idem, ibidem: 56). Neste caso concreto, saliente-se o valor semântico dos diminutivos e o recurso ao pronome indefinido invariável usado para referir Daniel.

Verifica-se, pois, o tratamento de um conjunto muito diversificado de temáticas reais e complexas, cuja seriedade não é posta em causa pela forma acessível e clara como são tratadas na obra, sem ligeirezas, facilitismos ou moralismos. Há, sobretudo, uma desmistificação de algumas ideias e conceitos que, apesar de extraordinariamente actuais, nem sempre são facilmente percebidos, como é o caso do racismo. Mais do que uma lição de moral sobre a igualdade, a multiculturalidade e a tolerância, a narrativa desmonta o conceito, apresentando-o como consequência de comportamentos estereotipados, irreflectidos e acríticos que não têm em conta a individualidade da pessoa humana. No texto, percebe-se que o racismo não é monopólio das classes sociais mais baixas ou culturalmente menos esclarecidas, mas atravessa diferentes grupos e gerações, como se percebe no capítulo 5, pertinentemente intitulado “Estupidez (como controlar a)”, através das descrições das reacções dos colegas de Nina e dos professores quando insistem na ideia de que Daniel não pode ser originariamente português: «Disse-lhe o nome do subúrbio onde vivem a tia Liz e o tio André. A professora voltou à cara: – Não, eu pergunto donde é que ele é mesmo7» (Saldanha, 2002: 54).

Aliás, não deixa de ser curioso (além de particularmente relevante) o facto de a informação aos leitores sobre a cor da pele de Daniel não ser dada por Nina, aquando do surgimento da personagem em cena, e ser apenas percebida através da reacção dos seus colegas na escola. Desde o início, o leitor percebe que os problemas de Nina em relação ao primo nada têm a ver com esse “pormenor” que a narradora nem sequer valoriza ao ponto de não o registar, mas com as diferenças etárias e de maturação psicológica (além das de sexo) existentes entre ambos. O facto de Nina ser filha única combinado com

6 Negrito nosso.

7 O itálico é usado no original.| 26 |

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a chegada inesperada do primo causam grande ansiedade e irritação na personagem, sobretudo porque, mesmo inconscientemente, se vê privada do monopólio dos espaços, dos objectos e, sobretudo, dos afectos dos pais, dos avós e dos colegas. Assim, o tratamento da diferença é realizado de forma desenvolvida e a autora não se limita à distinção mais óbvia da cor. O texto aponta para um conjunto mais vasto de dissemelhanças entre as personagens, como é o caso da idade e da própria nacionalidade (com implicações ao nível da língua e de hábitos culturais e sociais, por exemplo), referidos a propósito da Tia de Nina, mãe de Daniel.

No que toca ao racismo e às suas manifestações, convém destacar que a novela acaba por questionar todo um conjunto de ideias feitas do senso comum. Desta forma, mais do que insistir em actos de violência mais ou menos gratuita sobre pessoas de outra cultura ou cor, a autora fomenta a auto-análise e a desconstrução do mito de que em Portugal não existe racismo. Assim, são descritas situações concretas em que é evidenciada a tomada de consciência da diferença, como as cenas passadas na escola ou, principalmente, a cena do autocarro8. A ideia de que os negros são imigrantes que “roubam” o emprego e as regalias sociais aos “verdadeiros” portugueses encontra algum eco na sociedade, promovida, inclusivamente, por alguns discursos populistas e de inclinação xenófoba. Não deixa de ser curioso, por isso mesmo, que a desmontagem do argumento seja feita por Nina, quando questiona a senhora sobre o facto de os seus filhos também não estarem a estudar e, nesta medida, não serem prejudicados pelos privilégios concedidos aos estudantes angolanos9. O facto de Nina se revelar particularmente sensível em relação à discriminação (sobretudo na escola e no grupo de amigos) de que o primo Daniel é alvo permite a adesão do leitor ao ponto de vista na narradora e a constatação das injustiças cometidas. A promoção da tolerância resulta do tratamento, na vida do quotidiano, da questão em concreto e não de um discurso abstracto sobre este assunto. O final feliz (resultante da resolução dos problemas vivenciados ao longo da diegese e da reinstauração do equilíbrio – pessoal, familiar e escolar – momentaneamente perdido) e o (r)estabelecimento de laços afectivos entre as personagens – também promovidos pela interferência da avó – vão ao encontro das expectativas dos leitores e permitem suavizar a densidade e a complexidade da temática proposta.

O tratamento do tempo é importante na construção da narrativa. A analepse inicial permite explicar a chegada do computador a casa de Nina e é introduzida de forma muito simples, através das memórias da personagem, activadas por uma alusão10. No

8 Confrontar com: «Estudantes? E o que é que eles têm de andar a estudar à minha custa? Olha, filha, aprende que eu não duro sempre: que eu tenho três lá em casa que desde a idade de catorze anos que dão ali no duro, trabalham de sol a sol. E vêm para aí os pretos tirar-nos o lugar. Ouviam-se vozes no autocarro a apoiar esta tirada (…).Que ignorância! Virei-me para a senhora e disse:– Mas se os seus filhos trabalham desde os catorze anos, os estudantes negros não lhes estão a tirar os lugares na Univer-sidade.» (Saldanha, 2002: 59 e 60).

9 Na discussão aí gerada, não deixa de ser relevante o facto de várias pessoas intervirem, de forma animada, levantando questões relativas à descolonização. De forma subtil, a autora levanta questões que, mesmo nos nossos dias, não estão completamente resolvidas e que se relacionam com a identidade nacional e com a reconfiguração geográfica e política que se seguiu ao 25 de Abril de 1974.

10 Confrontar, por exemplo, com: «Esta piada repete-se ano após ano, desde que me recordo. Desde muito novinha que deixei de acreditar no Pai Natal. (Foi a tia Luís quem me tirou as ilusões, quando eu tinha cinco anos. – Pai Natal? – disse ela. – Mas tu acreditas nessa treta?)» (Saldanha, 2002: 12).

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início da obra, é a partir da referência ao Pai Natal que são evocadas lembranças relativas a Natais passados e às prendas recebidas. Assim, é visível uma gestão muito pessoal, subjectiva mesmo, do tempo narrativo, uma vez que os acontecimentos relatados seguem o fio mental da narradora que os manipula de acordo com as suas vivências. É, pois, através das suas memórias que conhecemos, de forma rápida mas totalmente eficaz, a vivência em África do tio, as relações entre os avós, a aproximação de Vítor, entre outros aspectos. São intercaladas referências a tempos diferentes, ainda que a acção se prenda, preferencialmente, no episódio da chegada a Lisboa do primo Daniel.

A narrativa, essencialmente de tipo diarístico, é ainda entrecortada pela presença de outras tipologias textuais, como é o caso da epistolar. Quando Nina decide escrever uma carta à avó entretanto internada11, essa carta é introduzida na narrativa, ocorrendo alterações ao nível gráfico e visual na apresentação do texto, através da simulação da caligrafia da personagem e da demarcação dos limites da página. Estratégia semelhante pode também ser observada logo no índice, uma vez que os nomes dos capítulos surgem ordenados alfabeticamente (das letras A a J), assemelhando-se a um manual de instruções ou a uma espécie de índice onomástico que permitisse a leitura livre, não sequenciada da narrativa.

A narrativa dialoga, desta forma, como outros textos (e mesmo outras tipologias discursivas, se atentarmos também no recurso à linguagem informática, em sentido literal e metafórico), simulando uma aproximação mais efectiva (e também mais “realista”) ao quotidiano das personagens.

Mas as sugestões de “subversão”, sobretudo ao nível da derrogação das expectativas dos leitores, surgem ainda nas alusões ao Inferno e ao seu peculiar simbolismo, uma vez que em lugar de estar conotado com um espaço terrível e assustador ao qual as personagens são condenadas por acções vis, como a referência no índice sugere, sobretudo pela articulação com “Juízo final”, surge como espaço de eleição e de desejo, uma vez que se trata de um original restaurante da moda… Mais do que condenação, a ida ao Inferno (um espaço repleto de sugestões vicentinas) representa a recompensa das personagens e a pacificação das relações pessoais existentes entre elas. A linguagem revela-se como forma subjectiva e particular de modelizar o mundo a partir do ponto de vista da personagem/narradora, obrigando à sua leitura não só em sentido literal, mas também simbólico.

Do ponto de vista visual, merece ainda referência a discreta, mas presente, componente ilustrativa da publicação. As ilustrações, a preto e branco, estão presentes no início de cada capítulo e integram uma espécie de legenda, através de uma frase ou apenas algumas palavras retiradas do texto. O paratexto da contra-capa é composto por uma série de interrogações cuja resposta, supostamente, será dada pela narrativa. Trata-se, assim, de captar a atenção do leitor pela sugestão de diversos “mistérios” que perpassam pela obra. A opção por caracteres de tamanho significativo e por uma mancha gráfica não muito compacta acentua a celeridade da leitura, actuando de forma decisiva ao nível da captação da atenção e da adesão dos leitores. Uma nota ainda sobre o desenho da

11 Mesmo o internamento, para o qual vão sendo fornecidos vários indícios, é explicado pormenorizadamente, com recur-so a terminologia médica e científica específica. A analogia entre o sistema informático e o corpo humano é sintomática da forma como Nina compreende o que se passa à sua volta. Veja-se, por exemplo, como a questão dos “problemas de sistema” são tratados, através do estabelecimento de afinidades com o corpo humano e os limites físicos que tanto o computador como o homem podem suportar.

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capa, o qual dá a ver, em primeiro plano, uma mão manipulando um «rato» junto a um computador, conjunto luminoso e em cores vivas, que parece aludir, metonimicamente, à própria narradora-personagem. Em fundo, uma figura masculina abre uma porta, recortando-se a sua silhueta escura sobre a luz provinda de um compartimento contíguo, enquanto uma silhueta idêntica, em tons claros, surge no ecrã do computador. Lembrando uma vinheta de banda desenhada, num registo a que José Miguel Ribeiro nos habituou, este desenho atractivo, mas de problemática interpretação para quem desconheça o texto, indicia, no seu jogo de claro-escuro, as tensões que os eventos narrados farão emergir, sugerindo ao mesmo tempo a entrada de alguém na vida social e interior de outrem. Ao impor-se pela sua atmosfera de mistério, a imagem da capa torna-se assim um elemento susceptível de aliciar potenciais leitores.

Em termos globais, Ana Saldanha parece ter encontrado uma das “fórmulas mágicas” de contar histórias aos jovens, tratados como leitores de pleno direito, em que ficcionaliza a partir de um conhecimento muito próximo da realidade, os seus problemas, preocupações, desejos e pontos de vista, em suma, a sua cosmovisão.

Referências bibliográficas

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OUELLET, Fernand (2002). Les Défis du Pluralisme en Éducation : essais sur la formation interculturelle. Laval: Presses de l’Université Paris.

PEROTTI, António (1997). Apologia do Intercultural. Lisboa: Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural.

SALDANHA, Ana (2002). Uma Questão de Cor. Lisboa, Caminho.

SILVA, Sara Reis da (2005). «Tendências da Narrativa Juvenil Contemporânea: o Caso de Ana Saldanha», conferência apresentada no 7º Encontro de Literatura para a Infância “No Branco do Sul as Cores dos Livros”, Beja, 25-26/2/2005.

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A reler

1 – Interculturalidade

AGUALUSA, José Eduardo (2000): Estranhões & Bizarrocos [estórias para adormecer anjos], Lisboa: Publicações Dom Quixote (ilustrações de Henrique Cayatte) ISBN: 972-20-1938-4

ANTUNES, António Lobo (1994): A História do Hidroavião, Lisboa: Contexto & Imagem (ilustrações de Vitorino) ISBN: 972-575-189-2

BACELAR, Manuela (1990): O Dinossauro. Porto: Afrontamento ISBN: 972-36-0248-2

CORBEL, Alain (2003). A Viagem de Djuku. Lisboa: Caminho (ilustrações de Eric Lambé) ISBN: 972-21-1578-2

CORREIA, Carlos (1989). Alex, o Amigo Francês. Lisboa: Caminho ISBN 972-21-0452-7

LOSA, Ilse (1991): Silka. 3ª edição, Porto: Edições Afrontamento (ilustrações de Manuela Bacelar) ISBN 972-36-025-9

SALDANHA, Ana (2002): Uma Questão de Cor. 2ª ed., Lisboa: Caminho ISBN: 972-21-1501-4

SOARES, Luísa Ducla (1994): Os Ovos Misteriosos, Porto: Edições Afrontamento (ilustrações de Manuela Bacelar) ISBN: 972-36-0338-1

SOARES, Luísa Ducla (2001). O Meio Galo. Porto: Asa (ilustrações de João Machado) (5ª ed.) ISBN: 972-41-0246-7

VIEIRA, Alice (1991): Promontório da Lua: histórias de Cascais, Lisboa, Caminho ISBN: 972-21-0683-X

2 – Outras Culturas

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (2003): O Anjo de Timor, Marco de Canaveses, CENATECA – Associação de Teatro e Cultura (ilustrações de Graça Morais) ISBN: 972-98834-3-2

ARAÚJO, Jorge (2003): Comandante Hussi, Lisboa: Quetzal Editores (desenhos de Pedro Sousa Pereira) ISBN 972-564-575-8

LETRIA, José Jorge (2000) Olá, Brasil. Lisboa: Terramar (ilustrações de João Fazenda) ISBN: 972-710-266-2

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LETRIA, José Jorge (2003): Lendas e Contos Judaicos (ilustrações de Alain Corbel). Porto: Ambar ISBN: 972-43-0695-X

MAGALHÃES, Ana Maria e ALÇADA, Isabel (1991): Uma Aventura no Deserto, Lisboa: Caminho, 5ª edição (ilustrações de Arlindo Fagundes) ISBN: 972-21-0020-3

MAGALHÃES, Ana Maria e ALÇADA, Isabel (1992): Brasil! Brasil!, Lisboa: Caminho (ilustrações de Arlindo Fagundes) ISBN: 972-21-0740-2

MÉSSEDER, João Pedro (2001): Timor Lorosa’e. A Ilha do Sol Nascente, Porto, Ambar (ilustrações de André Letria). ISBN: 972-43-0437-X

SALDANHA, Ana (1995): A Caminho de Santiago. Porto: Campo das Letras (ilustrações de Fernando Oliveira) ISBN 972-8146-53-1

SUOYING, Wang; ALVES, Ana Cristina (2000): Contos da Terra do Dragão – contos tradicionais e populares da China, Lisboa: Caminho (ilustrações de Alain Corbel) ISBN: 972-21-1370-4

VIEIRA, Alice (2002): Contos e Lendas de Macau, Lisboa, Caminho ISBN: 972-21-1468-9

3 – Outras Obras

ALBERTY, Ricardo (1959). A Galinha Verde. 2ª edição Lisboa : Ática

ALVIM, Pedro (1984): Os filhos dos outros, Mem-Martins: Europa-América

AMADO, Jorge (1991): O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. Mem-Martins: Europa-América, 3ª edição ISBN: 972-1-00951-2

AMARAL, Ana Luísa (2000): A História da Aranha Leopoldina, Porto: Campo das Letras (ilustrações de Elsa Navarro) ISBN: 972-610-318-5

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1996): O Rapaz de Bronze. Lisboa: Salamandra, 16ª edição ISBN: 972-689-020-9

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (2004): A Árvore, Porto: Figueirinhas ISBN: 972-661-193-8

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (2004): O Cavaleiro da Dinamarca. Porto: Figueirinhas. ISBN: 972-661-196-2

ARAÚJO, Matilde (1990): O Passarinho de Maio. Lisboa: Livros Horizonte. ISBN: 972-24-0796-1

BACELAR, Manuela (2005): Bernardino, Porto: Afrontamento ISBN:

BARRADAS, Daniel e POTT, Carla (2004): Cotãozinho e os seus irmãos, Lisboa: Dom Quixote ISBN: 972-20-2637-2

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CLÁUDIO, Mário e PESTANA, Maria Antónia (1988): Olga e Cláudio, 2ª edição, Porto: Edições Afrontamento (sem ISBN)

COLAÇO, Maria Rosa (1982): Gaivota, Lisboa, Editorial Caminho (sem ISBN)

COLAÇO, Maria Rosa (2003): O Coração e o Livro, Porto, Ambar, 2ª edição (ilustrações de António Modesto) ISBN: 972-43-0697-6

COLOMBO, Jorge (1992): Tamanho Grande, Lisboa: Dom Quixote ISBN: 972-20-0943-5

COTRIM, João Paulo e CORBEL, Alain (2002): A Cor Instável. Porto: Afrontamento

COUTO, Mia (2001): O Gato e o Escuro, Lisboa: Caminho (ilustrações de Danuta Wojciechowska) ISBN: 972-21-1415-8

DACOSTA, Luísa (1986): História com recadinho. Porto: Figueirinhas

DACOSTA, Luísa (1996): O Elefante Cor de Rosa. Porto: Civilização (ilustrações de Francisco Santarém) (2ª ed.) ISBN 972-26-1187-9

GOMES, José António Gomes (coord. ) (2000): Conto Estrelas em Ti, Porto: Campo das Letras ISBN 972-610-337-1

GOMES, Madalena (1998): O Crocodilo e o Passarinho, 3ª edição, Lisboa: Vega ISBN 972-699-604-X

HONRADO, Alexandre (1994): Os Caçadores de Cabeças, Lisboa: Verbo ISBN 972-22-1648-1

LETRIA, José Jorge (1988) Fadas Contadas. Sintra: Câmara Municipal de Sintra (sem ISBN)

LETRIA, José Jorge (2000): Campos de Lágrimas, Porto, Âmbar ISBN 972-43-0386-1

LETRIA, José Jorge (2001) Lendas do Mar. Lisboa: Terramar, 3ª edição ISBN: 972-710-260-3

LETRIA, José Jorge (2002): Mouschi, o gato de Anne Frank, 2ª edição, Porto, ASA Editores II (ilustrações de Danuta Wojciechowska) ISBN 972-41-2822-9

LETRIA, José Jorge (2003) Lendas da Terra. Lisboa: Terramar. ISBN: 972-710-359-6

LOPES, Manuela Moniz e MADAÍL, Cremilde (1995): Os imbatíveis em Paris, Porto: Civilização ISBN: 972-26-1206-9

LOSA, Ilse (1999): O mundo em que vivi, Porto, Edições Afrontamento, 20ª edição (sem ISBN)

LOSA, Ilse (2001): A minha melhor história, 6ª edição, Porto: Asa (ilustrações de Luísa Brandão) ISBN: 972-41-2170-4

MAGALHÃES, Ana Maria e ALÇADA, Isabel (1990): Uma aventura nas ilhas de Cabo Verde, Lisboa: Caminho

MAGALHÃES, Ana Maria e ALÇADA, Isabel (1995): Uma aventura em Macau, Lisboa: Caminho ISBN: 972-21-1000-4

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MAGALHÃES, Ana Maria e ALÇADA, Isabel (1996): Uma aventura em Espanha, Lisboa: Caminho

MAGALHÃES, Ana Maria e ALÇADA, Isabel (2004): Uma aventura em França, Lisboa: Caminho, 9ª edição ISBN 972-21-0483-7

MARMELO, Manuel Jorge e MARMELO, Maria Miguel (2003): A Menina Gigante, Porto: Campo das Letras ISBN: 972-610-741-5

MATA, Maria (1996): L. A. & Cª e o Clandestino, Porto: Civilização ISBN 972-26-1172-0

MEIRELES, Ana (2001). Baunilha e Chocolate. Lisboa: Verbo ISBN 972-22-2066-7

MENDONÇA, Maria Cândida (1986): A cor que se tem, Lisboa: Plátano

MÉSSEDER, João Pedro (2004): O Aquário. Porto: Deriva (ilustrações de Gémeo Luís) ISBN 972-9250-11-1

MOTA, Arsénio (2001): A Nuvem Cor-de-rosa. 3ª edição, Porto: Asa (ilustrações de Júlio Resende). ISBN: 972-41-2174-7

MURALHA, Sidónio (1978): Todas as Crianças da Terra, Lisboa: Livros Horizonte (sem ISBN)

NEVES, Leonel (1977): Amigos em Todo o Mundo, Lisboa: Livros Horizonte (sem ISBN)

ONDJAKI (2004): Ynari, a menina das cinco tranças. Lisboa: Caminho

PINA, Manuel António (2004): A Guerra do Tabuleiro de Xadrez. Porto: Campo das Letras

PINHÃO, Carlos (1981): Era uma vez um Coelho Francês, Lisboa: Livros Horizonte

SALDANHA, Ana (1995): Num Reino do Norte. Porto: Campo das Letras ISBN 972-8146-29-9

SALDANHA, Ana (1995): Umas férias com música. Porto: Campo das Letras. ISBN 972-8146-30-2

SALDANHA, Ana (1996): Animais & Cª. Porto: Campo das Letras (Sem ISBN)

SALDANHA, Ana (1997): Irlanda Verde e Laranja. Porto: Campo das Letras.

SOARES, Luísa Ducla (2001): As viagens de Gulliver de Jonathan Swift, Porto, Civilização Editores

SOARES, Luísa Ducla (2002): Gente Gira. Lisboa: Livros Horizonte ISBN 972-24-1232-9

SOARES, Luísa Ducla (2002): O Dragão, Porto: Civilização Editores ISBN 972-26-2048-7

SOARES, Luísa Ducla (2002): Tudo ao Contrário. Lisboa: Livros Horizonte ISBN: 972-24-1233-7

SOARES, Luísa Ducla (2004): A Festa de Anos, Porto: Livraria Civilização Editores

SOARES, Luísa Ducla (2004): A Princesa da Chuva. Porto: Civilização

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TORRADO, António (1994): O Veado Florido, 2ª edição, Porto: Civilização (ilustrações de Manuela Bacelar) ISBN 972-26-1035-X

VAZ, José (2000): A fábula dos feijões cinzentos. Porto: Campo das Letras ISBN: 972-610-268-5

4 – Traduções

ALEXANDER, Sue; LEMOINE, Georges (1989): Leïla. Porto: Edinter. ISBN 972-43-0055-2

CARMI, Daniela (2005). Samir e Jonathan. Porto: Ambar. ISBN :::::::

ECO, Umberto; CARMI, Eugénio (1989): Os Três Cosmonautas. Lisboa: Quetzal. ISBN – sem indicação

GREJNIEC, Michael (2002): A que Sabe a Lua?. Lisboa: Kalandraka.

GUTMAN, Claude (2001): A Casa Vazia. ISBN 972-43-0426-4

GUTMAN, Claude (2003): Rua de Paris. ISBN 972-43-0647-X

KERR, Judith (1992): Quando Hitler me Roubou o Coelho Cor-de-Rosa. ISBN 972-21-0752-6

LIONNI, Leo (2004): Frederico. [Lisboa]: Kalandraka. ISBN 97-2878-127-X

McKEE, David (1997): Elmer. Lisboa: Caminho. ISBN 972-21-1070-5

MULLER, Birte. (2003): Querida Avó. Porto. Ambar. ISBN: 972-43-0730-1

O’DELL, Scott (1989): Ribeiros para o Rio, Rio para o Mar. Lisboa: Caminho. ISBN 972-21-0490-X

ORLEV, Uri (1998): A Ilha na Rua dos Pássaros. Porto: Ambar. ISBN 972-43-0282-2

ORLEV, Uri (2001): Lídia, Rainha da Palestina. Porto: Ambar. ISBN 972-43-0409-4

PIROTTA, Saviour; COOPER, Helen (1989): O Segredo de Salomão. Porto: Edinter. ISBN 972-43-0007-2

SILVER, Norman (1991): Não Há Tigres em África. ISBN 972-21-0781-X

VAUGELADE, Anaïs (2002): A Guerra. Porto: Ambar. ISBN 972-43-0510-4

VELTHUIJS, Max (1999): O Sapo e o Estranho. Lisboa: Caminho. ISBN 972-21-1227-9

YOURCENAR, Marguerite (1996): Contos Orientais. Lisboa: Dom Quixote (2ª ed.). ISBN 972-20-1295-9

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Bibliografia

BALÇA, Ângela Coelho de Paiva (2003): «“Somos todos irmãos, somos todos diferentes” - A narrativa infanto-juvenil como meio de promover uma educação multicultural», in AZEVEDO, Fernando Fraga de (Coord.), A criança, a língua e o texto literário: da investigação às práticas. Actas do I Encontro Internacional, Braga: Universidade do Minho, Instituto de Estudos da Criança, pp. 421-428.

BALÇA, Ângela Coelho de Paiva (2004): A finalidade educativa das narrativas infanto-juvenis portuguesas actuais, Évora: Universidade de Évora (Dissertação de Doutoramento em Ciências da Educação apresentado à Universidade de Évora).

BALÇA, Ângela Coelho de Paiva (2005): «A promoção de uma educação multicultural através da literatura infantil e juvenil», in Língua Materna e Literatura Infantil. Elementos nucleares para Professores do Ensino Básico (no prelo) [texto inédito, cedido pela autora]

BALÇA, Ângela (2006): «“Era uma vez…” Da literatura infantil à educação para a cidadania» in A Criança, a Língua, o Imaginário e o Texto Literário. Centro e Margens na Literatura para Crianças e Jovens. Actas do II Congresso Internacional, Braga: Universidade do Minho – Instituto de Estudos da Criança [no prelo]

PIRES, Maria da Natividade (1996): «Literatura infantil e educação multicultural», in Inovação, nº.9, pp. 99-105.

BLOCKEEL, Francesca (2001): Literatura juvenil portuguesa contemporânea: identidade e alteridade, Lisboa: Caminho

DEARDEN, Carmen Diana (1995): «La literatura infantil y juvenil como útil de aproximación y comprensión de la diversidad cultural» In AAVV, 24º Congreso internacional del IBBY de literatura infantil y juvenil – Memoria. OEPLI, pp. 29-37.

GOMES, José António (1997): «Literatura para crianças: um mundo sem fronteiras. Os livros para crianças na sociedade multicultural», in Revista Internacional de Língua Portuguesa. Associação das Universidades de Língua Portuguesa, nº 17, pp. 38-46.

LEITE, Carlinda e RODRIGUES, Maria de Lurdes (2000): Contar um conto, acrescentar um ponto. Uma abordagem intercultural na análise da literatura para a infância, Lisboa: Instituto de Inovação Educacional.

LLORENS GARCÍA, Ramón F. (2000): «Literatura infantil y valores» in Puertas a la lectura, Universidad de Extremadura, Vicerrectorado de Acción Cultural, Seminario Interfacultativo de Lectura, nº 9-10, pp. 75-78.

MARCO, Aurora (2000): «Multiculturalismo y educación» in Puertas a la lectura. Universidad de Extremadura, Vicerrectorado de Acción Cultural, Seminario Interfacultativo de Lectura, nº 9-10, pp. 100-105

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Links para saber mais

http://www.aedi2008.pt/Site oficial do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural

http:/ /www.interculturaldialogue2008.eu/fi leadmin/downloads/documents/133-nationalcampaigns/PT/aedi_roteiro_final.pdfEnquadramento e programa oficial.

http://badinfo.apbad.pt/Congresso9/COM66.pdfEnsaio de Cláudia Brites, Vera Silva, da Biblioteca Municipal do Seixal, A Intervenção Social da Biblioteca na Comunidade: Qualificação Individual e Crescimento Colectivo

Sugestões de leitura

As preocupações do BillyAnthony Browne, Anthony Browne (ilustrador)

Este conto em formato de álbum, escrito e ilustrado pelo inglês Anthony Browne, Prémio Andresen 2000, é protagonizado por Billy, uma personagem infantil, e desenvolve-se em torno de um nó problemático singular, como sugere o seu título. O pequeno herói debate-se com preocupações diversas – chapéus, sapatos, nuvens, chuva, pássaros gigantes e, em particular, ficar em casa de outras pessoas. A solução para os seus problemas é-lhe dada pela avó e por uns pequenos bonecos, os bonecos das preocupações, que, colocados debaixo da almofada, servem de alívio à criança. Como se explicita em nota de fim, esta história é baseada numa antiga tradição originária da Guatemala.Neste livro, a interacção entre as palavras e as ilustrações é muito fértil e, portanto, a narrativa, verbalmente económica e pautada, não raras vezes, por estruturas reiterativas e/ou paralelísticas, ganha contornos renovados quando lida em consonância com a componente pictórica, atendendo-se, em especial, aos jogos cromáticos que nesta se observam.

As preocupações do Billy, Anthony Browne, Anthony Browne (ilustrador), Kalandraka, 2006

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O DinossauroManuela Bacelar, Manuela Bacelar (ilustradora)Em O Dinossauro, a enunciação discursiva, aparentemente infantil, efectua-se na primeira pessoa, estratégia que, a par do humor e do papel determinante que a componente pictórica possui, facilita a aproximação do leitor infantil da mensagem narrativa que o livro vai progressivamente desvendando. As ilustrações, sempre de dimensão superior à mancha vocabular, precedem e alargam o sentido do texto verbal, que, aliás, se pauta por uma natural contenção. A riqueza figurativa e a luminosidade policromática do texto icónico cativam o pequeno leitor que segue com entusiasmo as pisadas do gigante dinossauro, que aparentava ser um monte, que viajou com várias pessoas no seu dorso e que viu e fez ver «gente igual, gente diferente» e «casas de todos os tamanhos». De ressaltar o desenlace inesperado e a tonalidade cómica com que encerra este álbum.

O menino de cor (adaptado de um conto tradicional africano)Ale+Ale (ilustrador)Recriação, sob a forma de um álbum ilustrado de pequenas dimensões, de um conto tradicional africano, este livro alerta, com humor e de forma desmistificadora, para a questão do racismo e da intolerância perante a diferença. Estabelecendo várias comparações entre uma criança branca e uma criança negra, a narrativa permite concluir acerca da inutilidade de alguns preconceitos verbalizados sob a forma de expressões como “menino de cor”, valorizando ideias como a igualdade e a tolerância face ao outro. As ilustrações, com recurso a várias técnicas, exploram a questão da variação cromática ao mesmo tempo que sublinham a dimensão afectiva e até humorística do texto, propondo diferentes situações facilmente identificáveis e reconhecíveis.

O Pintainho & o PatinhoBrigitte Sidjanski, Sarah Emmanuelle Burg (ilustrador)Narrativa protagonizada por animais publicada em formato de álbum, O Patinho & o Pintainho tematiza a questão da diferença, defendendo a tolerância e a amizade como forma de a superar. As personagens que dão título à história interrompem uma sólida amizade por imposição familiar devido à incompreensão de que um e outro são alvo. Contudo, os afectos e afinidades que os unem permitem derrubar preconceitos e conduzir à aceitação das diferenças, na criação de laços entre as respectivas famílias. De temática multicultural, o livro conta ainda com ilustrações particularmente expressivas que recriam as diferenças existentes entre os protagonistas, tanto ao nível físico como do habitat a que pertencem, assim como dão conta das variações de humor existentes ao longo da acção. O recurso a formas arredondadas e a cores fortes, assim como a combinação do desenho de linhas pouco definidas com a pintura asseguram a verosimilhança dos cenários e permitem a sua fácil identificação.

O Dinossauro, Manuela Bacelar, Manuela Bacelar (ilustrador), Afrontamento, 1990

O menino de cor (adaptado de um conto tradicional africano), Ale+Ale (ilustrador), Livros Horizonte, 2007

O Pintainho & o Patinho, Brigitte Sidjanski, Sarah Emmanuelle Burg (ilustrador), Âmbar, 2007

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Tanto, tanto!, Trish Cookie, Helen Oxenbury (ilustrador), Gatafunho, 2006

A Flor vai pescar num bote, Alves Redol, José Miguel Ribeiro (ilustrador), Caminho, 2006

A Flor vai ver o mar, Alves Redol, José Miguel Ribeiro (ilustrador), Caminho, 2006

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Tanto, tanto!Trish Cookie, Helen Oxenbury (ilustrador)

Álbum narrativo de grandes dimensões e fortes jogos cromáticos, Tanto, tanto! tematiza, com recurso a um enredo linear, muito simples e de estrutura paralelística, a manifestação dos afectos em família, em particular junto dos bebés, como forma de promover a união e o equilíbrio. As ilustrações, ao completarem o sentido do texto, recriam, com humor e de forma pormenorizada e com recurso ao movimento e à acção, uma família singular na qual o bebé ocupa uma posição de destaque, uma vez que é segunda a sua perspectiva que a acção se desenrola. Original, sobretudo no panorama editorial português, é o facto de a família retratada ser de cor negra, permitindo a representação de elementos culturais particulares e incentivando o diálogo sobre as situações propostas.

A Flor vai pescar num boteAlves Redol, José Miguel Ribeiro (ilustrador)

O enredo de A Flor Vai Pescar num Bote, de Alves Redol, retoma o final de A Flor vai ver o mar, aprofundando o contacto do grupo de protagonistas com o ambiente marítimo, desta vez através da participação colectiva numa pescaria em alto mar. A alegoria recriada permite que cada uma das personagens encarne diferentes personalidades, conduzindo a uma leitura simbólica da sua actuação. As ilustrações de José Miguel Ribeiro, através do recurso à aguarela e a linhas muito finas, recriam, com subtileza, as personagens e os ambientes por onde elas se movem.

A Flor vai ver o marAlves Redol, José Miguel Ribeiro (ilustrador)

A Flor vai ver o mar é o primeiro volume de quatro narrativas versificadas, da autoria de Alves Redol, protagonizadas por uma flor e pelo seus companheiros de aventuras. História alegórica de uma amizade (mas duradoura e cúmplice) entre uma flor, um pau, uma rã, um cão e um boi, a narrativa em causa é ainda um texto que seduz pela linguagem, pelos jogos de palavras, pelas repetições e paralelismos, pelo ritmo e feitos sonoros, aproximando-se, por esta via, do universo das rimas infantis com as quais reparte as vertentes lúdica e melódica. O texto também dá conta da irresistível atracção das personagens por outras paisagens e ambientes, neste caso os marítimos, levando-as a ultrapassar as suas limitações físicas.

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Cotãozinho e os seus irmãosDaniel Barradas, Carla Pott (ilustrador)

Álbum narrativo sobre a questão da diferença e da integração, Cotãozinho e os seus irmãos retrata, com particular expressividade e sem moralismo explícito, uma mensagem de tolerância e de inclusão da diferença, valorizando a ideia da união e da amizade. Protagonizada por um cotão, a narrativa adopta uma perspectiva singular da realidade, valorizando um universo esquecido. Apostado em representar o olhar infantil sobre o mundo, o texto recorre ainda à rima e aos jogos sonoros, criando cumplicidades muito relevantes com a imagem.Organizado de forma a tirar partido da relação muito estreita entre texto e imagem, este livro surpreende pela novidade do tema trabalhado e pela perspectiva adoptada.Do ponto de vista visual, atente-se no grande investimento ao nível da ilustração e na curiosa particularidade de a contra-capa e as páginas introdutórias e finais apresentarem esquissos e rascunhos das imagens presentes no livro, dando a conhecer ao leitor/espectador o processo criativo que antecede a publicação e que habitualmente se encontra escondido e fora do alcance do seu olhar. Ainda no que às imagens diz respeito, saliente-se as várias perspectivas e pontos de vista adoptados, em perfeita simbiose com o texto e com o seu ritmo e sentido(s), os efeitos de movimento e dinamismo. AMR

Primeiro Livro de PoesiaSophia de Mello Breyner Andresen, Júlio Resende (ilustrador)

A autora clarifica, em posfácio, que quis fazer uma recolha de poemas de poetas de todos os países de língua oficial portuguesa, havendo o cuidado de começar pelos mais simples para chegar aos mais complexos, ou seja, acompanhar o crescimento da infância à adolescência. Assim, vamos encontrar textos poéticos do património tradicional como A Nau Catrineta ou a Cantiga dos Reis, lado a lado com poemas muito acessíveis de Eugénio de Andrade ou de Sidónio Muralha que convivem com outros de Nemésio, Manuel Bandeira, Craveirinha, ou Jorge Lauten; ora recuamos no tempo, para ler João Roiz de Castelo Branco ou Camões, ora lemos O’ Neill ou Miguel Torga. Não há infantilismo, porque a criança não é pateta.Esta é uma colectânea de «poemas em língua portuguesa para a infância e a juventude», publicada, pela primeira vez, com o apoio do Ministério da Educação. De um rápido olhar pelo índice da obra em análise facilmente se conclui acerca da variedade de textos aqui reunidos, uma variedade evidente, por exemplo, ao nível da origem, da nacionalidade, da autoria e até das tendências e dos períodos literários. Cruzam-se, aqui, vozes poéticas de vários séculos de Portugal, do Brasil, de Angola, de Timor, de Cabo Verde, da Guiné Bissau e de São Tomé e Príncipe, sendo possível ler ou reler textos tão distintos como uma popular «Cantiga de Reis», como algumas estâncias do episódio do Adamastor, d’Os Lusíadas de Luís de Camões, ou

Cotãozinho e os seus irmãos, Daniel Barradas, Carla Pott (ilustrador), Dom Quixote, 2004

Primeiro Livro de Poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen, Júlio Resende (ilustrador), Caminho, 1991

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como os poemas «Alforreca e Faneca», resgatado à colectânea Fala Bicho, de Violeta Figueiredo, e «Canção de Leonoreta», da obra Aquela Nuvem e Outras, de Eugénio de Andrade. D. Dinis, Bocage e Luís de Camões convivem, neste livro, com Miguel Torga, Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade e Alexandre O’ Neill, apenas para citar alguns, todos num diálogo fraterno também com João Cabral de Melo Neto, Ruy Cinatti, José Craveirinha ou Glória de Sant’ Anna, entre outros. Quanto a este livro, as palavras de Sophia de M. B. Andresen dizem tudo: «o [este] livro está por isso aberto a todos para que a todos esteja aberto o acesso à sua plena possibilidade.» (Andresen, 1999: 185), porque a poesia é, acima de tudo, «mestra da fala: quem, ao dizer um poema, salta uma sílaba, tropeça, como quem ao subir uma escada falha um degrau» (idem, ibidem: 186). SRS

Querida avóBirte Muller, Birte Muller (ilustrador)

Com este álbum em formato extenso, inspirado nas tradições da América do Sul, viajamos até um espaço longínquo, uma aldeia no alto dos Andes, e conhecemos Felipa, uma menina que se esforça por perceber e por conviver com a perda da avó. É, assim, em torno de uma situação de desequilíbrio vivenciada por esta personagem infantil que a história vai crescendo, sempre num registo verbal e icónico feito de cores fortes e quentes, a condizer com um cenário cultural bastante exótico. Pela temática ficcionalizada e pela forma delicada como é textualizada, bem como pelo facto de se tratar de um livro que promove o contacto com um rico e dominante discurso plástico e com um registo literário fundado num notório humanismo, esta obra cativa, de imediato, o leitor.

Todas as crianças da TerraSidónio Muralha, Fernando Lemos (ilustrador)

Em Todas as crianças da Terra (1978), de Sidónio Muralha, encontramos uma tentativa de definição da Paz através de inúmeras metáforas. O livro, que resulta muito conotado temporal e ideologicamente, como até é visível nas opções cromáticas e no tipo de ilustração seleccionado, estabelece claramente, desde a primeira página, um conjunto de oposições entre a guerra e a paz, associando a primeira ao «capacete de guerra [com] ar carrancudo» por oposição à beleza da flor, conotada com a paz. O capacete, contudo, pode ser reutilizado ao serviço da paz, servindo de vaso à flor, o que remete para a desconstrução dos símbolos bélicos, tal como acontece com o canhão que se personifica e humaniza, colocando-se ao serviço da liberdade: «A paz é quando um canhão, muito feio e de poucas falas, sente bater um coração e dispara cravos em vez de balas».

Querida avó, Birte Muller, Birte Muller (ilustrador), Âmbar, 2004

Todas as crianças da Terra, Sidónio Muralha, Fernando Lemos (ilustrador), Livros Horizonte, 1978

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Todo o texto é construído de acordo com as normas do género lírico, percorrido por uma poeticidade que também resulta de aspectos rítmicos e sonoros, como as rimas e as repetições, é uma definição de paz, associada a elementos da natureza, a afectos e a emoções, a actividades humanas, à cultura e ao saber. Nesta longa enumeração, ganham especial relevo, até pela simbologia que encerram, algumas das ideias-chave (hoje quase estereotipadas pela sua clara conotação político-ideológica) do período pós-revolucionário em que se insere a publicação: “[a paz é] o povo todo unido”, “as papoilas vermelhas”, “é o trabalho, a mesa, a seara de trigo”, “são as madrugadas”… AMR

A Cerejeira da Lua e Outras Histórias ChinesasAntónio Torrado, Alain Corbel (ilustrador)

Quatro histórias, localizadas na China, confrontam-nos com a sabedoria oriental em torno da dimensão humana. Em A cerejeira da Lua, o sonho do imperador de ir à Lua concretiza-se no puro acto da imaginação: fechando os olhos e agarrando o bordão do mago. No segundo conto, o altruísmo constante de uma lebre é recompensado por Buda que a coloca no panteão lunar. Em A noite luminosa, um archeiro triste refugia-se no Sol ao passo que a sua mulher, ao engolir a pílula da eternidade, se transforma em rã e é atirada para a Lua. “Para chamarmos às paisagens nossas, temos de combater por elas”, pensa o poeta pintor ao receber um bolo com a senha que irá unir o povo no levantamento contra o ditador mongol.

A Viagem de DjukuAlain Corbel, Éric Lambé (ilustrador)

Partindo de uma das questões mais relevantes da actualidade – a imigração e a integração de estrangeiros na sociedade portuguesa – este conto, com soberbas ilustrações de Éric Lambé, repletas de exotismo e recriando com expressividade o encontro de culturas de que o texto fala, apela a um olhar mais atento, e também mais solidário e tolerante, perante o outro, a sua cultura e a sua especificidade. A multiculturalidade ganha, pois, neste livro, uma particular atenção, talvez pelo facto de os seus autores serem estrangeiros. Identidade e alteridade são algumas das linhas de leitura de um texto particularmente poético que revela a faceta de escritor de um dos ilustradores que tem marcado o panorama editorial português dos últimos anos.

A Cerejeira da Lua e Outras Histórias Chinesas, António Torrado, Alain Corbel (ilustrador), Asa, 2003

A Viagem de Djuku, Alain Corbel, Éric Lambé (ilustrador), Caminho, 2003

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Barbatanar nas cores do Arco-ÍrisCarlos Canhoto, Marc (ilustrador)Nesta narrativa, repleta de incidentes felizes e infelizes, conhecemos a história de Flu, um peixe muito colorido que vive, com a família, no estuário de um grande rio, cheio de barbos, bogas, bordalos, pimpões, tainhas, carpas e muitos outros. O discurso, vivo, marcadamente sensorial e pontuado de animados diálogos, desenvolve-se em torno das vivências da pequena protagonista Flu, a mais curiosa e audaz, mas também a mais distraída e incauta da família. Entre Flu, uma perca-sol, e Sara, um saramugo, nasce uma amizade em que a diferença de “cores” pouco importa. Humor, aventura, desafio, perigo, alegria e solidariedade são ingredientes fundamentais neste conto, uma história em que apetece mesmo “barbatanar”.

Desejos de NatalLuísa Ducla Soares, Ricardo Rodrigues (ilustrador)Três belos contos integram este livro de Luísa Ducla Soares: “A Carta para o Pai Natal”, “O Carro Vermelho” e “Na Cova da Moura”. A primeira história é protagonizada por Zeca, um menino órfão que vive numa barraca com o tio Arnaldo, um guarda-nocturno, e que tem grandes dificuldades em acreditar no Pai Natal. Numa noite especial, tem, porém, uma surpresa e acaba por perceber que, afinal, vale a pena não desistir de sonhar. O herói do segundo conto é um menino chinês de oito anos que ajuda os tios numa loja e que se apaixona irremediavelmente por um carro vermelho telecomandado. Acaba, no entanto, por perdê-lo e por ver o seu sonho desfeito. A última narrativa possui como figura central Tino, um menino em idade escolar, representante das muitas infâncias roubadas ou da inocência quase destruída pelo contexto dos bairros sociais. A simplicidade diegética e discursiva destas narrativas, a construção predominantemente dialógica e coloquial, bem como a presença de figuras infantis com as quais o potencial leitor facilmente se identifica são fundamentais do ponto de vista receptivo. As ilustrações, compostas com recurso a cores fortes, em formato extenso e muito expressivas, além de recriarem o universo narrativo, colocando especial ênfase nas personagens e articulando-se, assim, com a componente verbal, contemplam, ainda, aspectos que esta não inclui.

História com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas e A Guerra do Tabuleiro de XadrezManuel António PinaNeste volume, ressurgem duas peças breves, editadas, pela primeira vez, pela Pé de Vento, Companhia responsável pela sua encenação, nos anos 80. O primeiro título, arquitectado, a partir de segmentos de outros textos já levados à cena pela Companhia referida, é dominado pelo nonsense e pelo burlesco, um espaço povoado de bobos, tropelias, trampolineiros, pantomineiros, “dançadores, cantadores” e tantos outros. O segundo texto tematiza, recorrendo a uma construção alegórica, baseada no jogo do xadrez, um singular conflito bélico, uma guerra com um desfecho feliz.

Barbatanar nas cores do Arco-Íris, Carlos Canhoto, Marc (ilustrador), Pé de Página, 2006

Desejos de Natal, Luísa Ducla Soares, Ricardo Rodrigues (ilustrador), Civilização, 2007

História com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas e A Guerra do Tabuleiro de Xadrez, Manuel António Pina,

Campo das Letras, 2004

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Olá, Brasil!José Jorge Letria, João Fazenda (ilustrador)

Quinhentos anos após a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil (1500), José Jorge Letria poetiza, de modo criativo, esse “achamento”, bem como alguns dos sucessivos encontros da História luso-brasileira, celebrando, em Olá, Brasil, um reencontro com esse “país-sonho” dos marinheiros do Rei D. Manuel. A memória da relação multissecular de Portugal com o Brasil lê-se, assim, através de um conjunto de personagens históricas, de espaços novos - exóticos, até -, de episódios individuais e colectivos ou de aventuras, que imprimem um estatuto de verosimilhança a este texto lírico.A poesia faz-se de História, uma história fraterna que acolhe em si, em primeiro lugar, o momento do encontro dos «camponeses do mar» ou dos «cavaleiros de mil viagens», que partiram de Portugal nas treze naus de Cabral, com esse «grande mundo» feito de Índios «espantados» e «bronzeados» e de «cheiros fortes e raros» das terras de Vera Cruz. Percorre, depois, algumas cidades nascidas desse encontro, bem como importantes personagens referenciais - da religião à literatura -, como Pedro Álvares Cabral, Pêro Vaz de Caminha, Diogo Álvares Correia, Padre António Vieira, Tomás António Gonzaga ou Gregório de Matos. Deparamos com um discurso apelativo e muito conciliador, cujo alcance pedagógico passa, inclusivamente, pela valorização da fraternidade, da tolerância e da aceitação multicultural, vectores ideológicos sugeridos, por exemplo, nos versos «pressentem depressa a diferença / que é preciso compreender / para não chamarem selvagens / aos homens vestidos de lua / que habitam essas paragens...»; «enquanto palavras ariscas / se desencontram no ar / com sílabas tão diversas / que não dão para se juntar.».A testemunhar essa espécie de fundo formativo inerente à obra, impõem-se, ainda, as ilustrações de João Fazenda, imagens sugestivas, multicoloridas e simbólicas, que acompanham e alargam a escrita de J. J. Letria, transportando o leitor para um universo transbordante de novidade e de tonalidades fortes.

Uma questão de corAna Saldanha, José Miguel Ribeiro (ilustrador)

Ana Saldanha, uma das autoras portuguesas mais originais que se tem dedicado à escrita para jovens, revela, uma vez mais, nesta novela conhecimento profundo do universo social e psicológico em que se movimentam os adolescentes dos nossos dias. Nesta narrativa, conhecemos Nina ou Catarina, personagem e narradora hábil de uma história do quotidiano, do seu próprio quotidiano, que, com uma invulgar capacidade discursiva, nos faz ingressar na sua vida familiar e escolar. O relato , muito fluído, bem doseado e a não deixar o leitor escapar, constrói-se sempre num registo coloquial e próximo do receptor, fazendo-o participar das vivências de Nina que, como uma vulgar menina de treze anos, se vê confrontada,

Olá, Brasil!, José Jorge Letria, João Fazenda (ilustrador), Terramar, 2000

Uma questão de cor, Ana Saldanha, José Miguel Ribeiro (ilustrador), Caminho, 2002leitores medianos, leitores autónomos

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por exemplo, com algumas crises familiares, com o ataque cardíaco da avó Olga, que tem uma professora de Português que, quando se zanga, manda fazer composições de 200 palavras, que tem de ceder o seu quarto ao primo Daniel que vem para a sua escola e que acaba por ter de encarar diversas situações de racismo. Tendo como base a presença de Daniel, a quem os colegas de escola se referem pejorativamente como «tostadinho» ou «escurinho», Ana Saldanha textualiza o tema da discriminação racial, encontrando-se a narrativa pontuada de informações referindo também alguns comportamentos sociais tipificados e reprováveis acerca dos africanos em Portugal.

Ynari A Menina das Cinco TrançasOndjaki, Danuta Wojciechowska (ilustrador)

Esta é uma história protagonizada por uma menina, como o título sugere, co-adjuvada por um homem pequenino que encontrou no capim alto, um amigo que transforma as armas em barro e que acaba por conduzir a heroína num percurso de descoberta do valor simultaneamente relativo e infinito das palavras. Propondo uma viagem até ao continente africano e um ingresso no seu espaço natural quente e colorido, pontuado de pequenas aldeias, de «peixes a saltar da água», de pássaros verdes e de palancas negras gigantes, Ynari, porque «cada um tem de descobrir a sua magia», percebe que é nas suas cinco tranças que se esconde a possibilidade de reordenar ou apaziguar pequenos mundos em conflito. Com as suas cinco tranças, Ynari visita cinco aldeias, aqui a representar simbolicamente os cinco continentes, oferece as suas cinco tranças e concretiza a palavra “permuta”, delidindo a violência (aí instalada pela ausência de ouvir, falar, ver, cheirar e sentir o sabor) e estabelecendo a paz. A trajectória maravilhosa de Ynari e do seu companheiro de pequena estatura perfaz, assim, um roteiro de ligação ao Outro e de participação na construção de um mundo melhor, linha ideotemática que sustenta toda a construção artística deste livro.

Ynari A Menina das Cinco Tranças, Ondjaki, Danuta Wojciechowska (ilustrador), Caminho, 2004