No Ceará A Peleja da Vida Contra o Urânio

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CÁRITAS DIOCESANA SOBRAL - CEARÁ

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CÁRITAS DIOCESANASOBRAL - CEARÁ

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nO cEaRá a pElEjA dA vIdA cOnTrA o uRânIo

nO cEaRáa pElEjA dA vIdA cOnTrA o uRânIo

SuMárIo

O chão de beleza merece ser respeitado (apresentação ) 02

Territórios ameaçados 05

Urânio, fosfato, energia nuclear – o que é? 07

Energia cara e perigosa: como o nuclear é explorado no Brasil? 10

As ameaças do presente que temos em Caetité 13

Caminhos de Luta da Articulação Antinuclear do Ceará 16

Resistências camponesas 21

Nas “tramas” da pesquisa-ação 23

Alternativa camponesa à Mina de Itataia 20

Bibliografi a

Agradecemos às mulheres, homens, jovens, crianças das comunida-des de Caetité e Santa Quitéria que nos contaram suas histórias de vida, muitas vezes de sofrimento e dor, mas ,também de um bem viver feliz no semiárido. Somos gratos as/aos ativistas sociais e todas/os que contribui-ram para esta realização.

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O cHão dE bElEzA mErEcE sEr rEsPeItAdO

“As terras deste lugarJá foi um mato fechadoCom as árvores secular

Deixava o chão adubadoEsse torrão de beleza

Faz parte da naturezaMerece ser respeitado”

(Chico Paiva – Riacho das Pedras)

No Sertão Central do Ceará, entre serras, morros, pedras, rios e uma vasta vegetação de caatinga, localizam-se as comunida-des atingidas pela Mina de Itataia. São aproximadamente seis

mil famílias, distribuídas em 27 comunidades no município de Santa Quitéria e 15 no município de Itatira, que fi cam a uma distancia mé-dia de 20 km da Mina de Itataia; a estas, chamamos de comunidades diretamente impactadas.

Os dois municípios têm histórias comuns em relação à invasão dos portugueses no fi nal do século XVII e início do século XVIII. Am-bos são conhecidos na região como municípios fortes na atividade da pecuária, o que explica a grande concentração de terras que foi alinhada à escravidão de nativos e negros nas fazendas. Em Santa Quitéria, em meados do século XX, chegou-se a contar 350 fazen-das; enquanto isso, diversos sem-terra viviam debaixo das botas dos fazendeiros. Da sede do município de Santa Quitéria, que mede 60 km até o Assentamento Morrinhos, este distante 5 km da Mina, existem, ainda hoje, 15 fazendas. No caminho da estrada, não é di-fícil encontrar inúmeros sinais do massacre latifundiário que perdu-ra ainda hoje, gerando pobreza e degradação ambiental extremas. Esta realidade começa a mudar a partir da ocupação de terras pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pelos traba-lhadores organizados nos Sindicatos Rurais. Hoje, existem 34 assen-tamentos no município.

Caatinga no Assentamento Morrinho

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Das 27 comunidades atingidas diretamente pelo empreendi-mento, quatro são assentamentos, portanto, formadas por famílias que saíram do regime de servidão e vivem com liberdade e num processo de reaprender a viver no coletivo. Nas outras comunida-des, à exceção dos pequenos proprietários, as famílias ainda moram e trabalham em terras de patrão, subordinadas à lei do latifúndio. Apesar desta realidade, existe uma forte cultura camponesa arrai-gada na vida das pessoas: o roçado, o criatório de pequenos ani-mais, as festas religiosas, as cacimbas, as cisternas, a casa de semen-tes, as reuniões e as celebrações, entres outras, são ações diárias de homens e mulheres que fazem e vivem a vida naquelas comunida-des. “Com desalento e orgulho”, como o poeta descreve na epígrafe deste texto.

É neste pedaço de chão de contradições e, ao mesmo tempo, de resistências que estão nos impondo o Projeto de Extração de Urânio e Fosfato (Projeto Itataia). Em nome do “desenvolvimento” da região, os governos municipal, estadual e federal, barganhados por um consórcio entre a estatal Indústria Nucleares do Brasil (INB) e a mineradora privada Galvani, fazem discursos, desde a década de 1970, relacionando a Mina de Itataia ao progresso das comunidades.

A problemática da mineração de urânio em Caetité, na Bahia, nos alerta para os impactos socioambientais, as violações aos direitos humanos e os riscos e danos à saúde que os afetam atualmente e podem atingir as populações situadas na área de infl uência direta e indireta da Mina de Itataia, considerando todo o ciclo do combustí-vel nuclear – extração do minério, transporte, conversão, enriqueci-mento, reconversão e lixo radioativo.

O projeto de Itataia, então, poderá ser a segunda etapa de um latifúndio revertido de idealismo desenvolvimentista que, em vez de cercados com bois e escravos, está criando uma nefasta mentira de progresso industrial a partir da matéria prima (urânio e fosfato), deixando muitas pessoas livres para andar nas estradas, mas escra-vas, amarradas pela consciência, do lobby nuclear em nome do “de-senvolvimento”.

Articulação Antinuclear do Ceará

Com a ideia de contribuir e proporcionar o debate sobre os im-pactos socioambientais da Mina de Itataia e, ao mesmo tempo, criar alternativas de enfretamento e construir caminhos concretos ca-pazes de empoderar as famílias das comunidades atingidas direta-mente, nasce, no início de 2011, a Articulação Antinuclear do Ce-ará, composta pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Cáritas Diocesana de So-bral e o Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde da Universidade Federal do Ceará (TRAMAS-UFC), além de, atualmente, contar com a participação direta de membros das comunidades impactadas e en-

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tidades parceiras como a Paróquia de Santa Quitéria e o Sindicado dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santa Quitéria.

A Articulação tem como princípios básicos de ação:•Formação e mobilização das comunidades atingidas diretamen-

te; •Contribuir na divulgação dos impactos ou antecipação de ris-

cos; •Intercambio entre as comunidades atingidas no Ceará e as co-

munidades de Caetité na Bahia; •Acompanhamento do Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA)

que está sendo feito pelo IBAMA; •Realizar atividades e ações que possam contribuir no enfrenta-

mento da implementação da Mina junto às comunidades. Esta cartilha quer ser um instrumento capaz de criar debates nas

comunidades, instituições, movimentos, igrejas, enfim, qualquer ser humano atingido pelo projeto de Itataia ou qualquer outro projeto imposto pelo estado brasileiro.

A metodologia da cartilha está organizada a partir da observa-ção da realidade, da reflexão e da ação transformadora que a Arti-culação Antinuclear do Ceará tem construído coletivamente e con-cretamente com as comunidades.

Iniciaremos com uma discussão sobre o contexto atual da mine-ração, dando enfoque, principalmente, a energia nuclear; em segui-da, faremos um paralelo do presente que temos em Caetité e do futuro já quase presente em Santa Quitéria, Itatira e municípios vizi-nhos. Refletiremos acerca do que é e em quê consiste o projeto de Itataia e quais os impactos para a saúde humana, os/as campone-ses/as, o ar, a terra, a água, enfim, para a vida das comunidades. Por fim, destacaremos a resistência das comunidades e a proposição de um modelo de desenvolvimento capaz de incluir todos/as de forma participativa na construção de um mundo mais justo, sustentável e solidário.

Rio Gruairas dentro da área da Mina de Itataia

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TeRrItórIoS aMeAçaDoSQue a história possa mostrar

Qual progresso nós queremosNum tem haver com a Mina

Vou logo aqui lhe dizendoTem haver com meu roçado

Com os animais bem cuidadoAno a ano fl orescendo.

(Erivan Camelo)Nas estradas de Itatira

O município de Itatira está situado na microrregião dos Sertões de Canindé e fi ca a aproximadamente 216 km da capital cearen-se, Fortaleza. Seus 784 km² de área encontram-se limitados pe-

los municípios de Canindé, Madalena, Santa Quitéria e Boa Viagem; Itatira possui clima frio e temperado, por estar situada nos altos da Serra do Machado, uma das mais famosas do Ceará.

Seu topônimo Itatira vem do tupi Ita (Pedra) e Tira (Áspero) e sig-nifi ca pedra de aparência áspera. O município tem suas raízes na cultura indígena, já que a Serra do Machado foi habitada pelos ín-dios Kanindé e, provisoriamente, pelos Jenipapo-Kanindé.

De acordo com dados do Censo Demográfi co de 2010 do Insti-tuto Brasileiro de Estatística e Geografi a (IBGE), o município conta com uma população de 18.894 habitantes, dos quais 9.522 residem na área urbana e 9.372 na zona rural. Conforme o mesmo Censo de 2010 do IBGE, aproximadamente 863 pessoas migram anualmente de Itatira, sendo que, deste total, 461 são homens e 404 são mulhe-res.

A economia local é baseada na agricultura: feijão, milho, man-dioca e mamona. Os cereais mais cultivados pelos agricultores no município são o feijão (743 toneladas/ano), milho (5.225 toneladas/ano) e mamona (88 toneladas/ano). Esses produtos geram, juntos, uma renda anual de R$ 791.174 para o município.

Na pecuária está presente a criação de bovinos, ovinos, suínos e avícolas. Os dados do IBGE para esta atividade nos mostram que a criação de pequenos animais é maioria (49.420 cabeças), seguida

(Erivan Camelo)

Dialogo sobre Energia Nuclear na escola de Riacho das Pedras

Diálogo sobre Energia Nuclear na escola de Riacho das Pedras

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pela criação de ovinos (10.156 cabeças), caprinos (6.963 cabeças), bovinos (9.818 cabeças) e suínos (6.604 cabeças).

Tomando como base, ainda, os dados do IBGE, no município, o grupo de pessoas com 15 anos ou mais de idade que não sabem ler e escrever é de 4.176, sendo a taxa de analfabetismo da população de 32,6 %. A população extremamente pobre do município, com renda per capita mensal de até R$ 70,00, perfazia um total de 7.554, que representava 39,98% da população, divididos entre a área urba-na (3.197, ou seja, 33,57%) e a zona rural (4.357, representando um percentual de 46,49%). Índice de Desenvolvimento Municipal (IDM), em 2008, era de 22,81 e sua colocação no ranking de posições era o número 137.

Apesar ter 63 anos de emancipação política, mesmo em compa-ração com outros municípios da região com menos tempo de auto-nomia, Itatira ainda possui considerável dependência de Canindé, principalmente no tocante ao comércio e à saúde; serviços básicos, como o recebimento de benefícios sociais, são realizados no mu-nicípio, mas sem comportar a demanda. Em contraponto, Itatira é culturalmente rico, mas pouco desenvolvido na preservação e re-produção dessa cultura devido à falta de incentivo e iniciativa dos gestores municipais.

Algumas ameaças pairam sobre a população do município. Além dos riscos à biodiversidade local, gerados por atividades depredató-rias da natureza, as pessoas também precisam conviver com a polui-ção de alguns reservatórios hídricos e a possibilidade de exploração da mina de urânio e fosfato nos limites com o município de Santa Quitéria.

Nas estradas de Santa QuitériaO município de Santa Quitéria está situado no bioma caa-

tinga, na microrregião do Sertão Central do Ceará (noroeste cearense); distante 222 km de Fortaleza, tem uma área geográ-fi ca de 4.260 km2, sendo assim o maior município em extensão do estado do Ceará.

Segundo o senso do IBGE de 2010, Santa Quitéria tem uma população de 42.759 habitantes, sendo 21.436 homens e 21.323 mulheres. A população urbana é de 22.257 habitantes e 20.502 pessoas vivem no meio rural.

O nome da cidade é uma homenagem a Santa Quitéria, mártir do século II e habitante da Lusitânia. No século XVIII, os irmãos José Machado Freire e Miguel Machado Freire conseguiram, por sesma-ria, seis léguas de terra as margens do rio Groaíras. Foi só em 1760, porém, que João Pinto de Mesquita, residente na Fazenda Jacurutu Velho, próximo de onde é hoje o distrito de Malhada Grande, ins-talou uma fazenda para abrigar seu fi lho, João de Mesquita Pinto; esta, localizada às margens do Riacho Cascavel, foi a primeira da re-gião e chamava-se Fazenda Cascavel.

Atualmente, os quiterienses vivem das transferências diretas e indiretas de recursos federais e estaduais (aposentadorias, Bolsa-Família, FPM etc.), bem como dos empregos públicos que injetam recursos diretamente na economia; a movimentação fi nanceira fi ca por conta do comércio e serviços.

As famílias que vivem no campo têm como principal atividade a agricultura (algodão arbóreo e herbáceo, mamona, milho e feijão) e a criação de animais. Os desafi os são grandes, pois não existem in-centivos para as famílias camponesas que já possuem a terra e mui-tas ainda não tem sequer a terra, vivem em fazendas trabalhando apenas para o patrão e sobrevivendo dia a dia. A renda per capita dessas famílias é de aproximadamente R$ 162,00.

Quanto à riqueza mineral, nas terras de Santa Quitéria foram re-gistradas ocorrências de coridon, ametista, berilo, calcita, granada, calcário, mármore e, por ultimo, o fosfato e o urânio. 

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UrânIo, FoSfAtO, eNeRgIa nUcLeAr – o qUe é?

Energia nuclearÉ tão cara e sem noção

Chernobyl e FukushimaSão vítimas de tal ação

Não a mina de ItataiaPra que o povo aqui não caia

Na boca do tal dragão(Erivan Camelo)

O que é o que é?

O urânio é um elemento cujos átomos contêm 92 prótons, 92 elétrons e entre 135 e 148 nêutrons. O urânio é encontrado na crosta terrestre em forma de minerais, os principais tipos de mi-

nerais de urânio são pechblenda, a uraninita, a carnotita, a autunita e a torbenita. Na mineração, esses minérios são tratados para ob-tenção do Yellow Cake, uma mistura de óxidos de urânio de onde é extraído o urânio puro. Suas aplicações são variadas, indo de foto-grafi a a indústria madeireira, mas, a sua principal aplicação é o uso na produção de energia, a Energia Nuclear.

O urânio sai das minas na forma de dióxido de urânio (UO2), mis-turado à argila, enxofre e outras impurezas. Uma tonelada desse metal na natureza contém apenas 7 quilos de urânio-235 (U-235), que poderá gerar energia nuclear. O principal composto restante é o menos aproveitável urânio-238 (U-238) que permanecerá no am-biente durante muito tempo com sérios riscos de radiações.

Concentração perigosa: Nível de enriquecimento torna o metal útil para usinas ou para bombas atômicas

O fosfato natural ou rocha fosfática é comercialmente expresso sob a forma de pentóxido de fósforo (P2O5), o denominador comum para exprimir o teor/conteúdo de fósforo de todos os produtos da cadeia de fertilizantes fosfatados.

A rocha fosfática, depois de extraída, é tratada para atingir um

Pedra de Urânio

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contido em P2O5 adequado, sendo comercializada na forma de concentrados fosfáticos, que contêm entre 30% e 38% de P2O5, sendo estes as fontes primárias e únicas de fósforodos fertilizantes1.

O uso principal (68%) da rocha fosfática no Brasil é na indústria de fertilizantes, mas apresenta também um conjunto grande de outras aplicações, como na alimentação animal e nas indústrias químicas.

O que é de fato!A exploração de fosfato e urânio em larga escala ameaça a vida

e a saúde de muitas famílias camponesas que moram em comuni-dades ao redor da jazida, onde também ficará localizada a Usina de extração e processamento de Itataia, no município de Santa Quité-ria, no semiárido cearense.

O Projeto Santa Quitéria, consórcio entre as Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e a empresa Galvani, orçado em cerca de 750 milhões de reais, conta com financiamento de recursos públicos do Banco do

Nordeste do Brasil (BNB) e do Governo do Estado do Ceará, que ar-cará com as obras de infraestrutura, como o fornecimento de água, energia, estradas e capacitação de mão de obra, no valor aproxi-mado de R$ 85 milhões de reais. Além disso, o projeto faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal.

O  urânio será destinado à produção de energia, demandada principalmente pelo setor industrial, e o fosfato terá com fim a pro-dução de adubos químicos e ração animal para o agronegócio. De acordo com o Governo do Estado do Ceará, a previsão é de que se-jam produzidas 240 mil toneladas de fosfato por ano e 1.600 tonela-das anuais de urânio; ainda segundo o Governo do Estado o urânio será utilizado pela usina nuclear Angra III, no Rio de Janeiro.

É veneno que gera veneno. Atualmente, o consumo de fertilizan-tes pelas grandes empresas do agronegócio, no Brasil, é escandalo-so. Somos o principal consumidor mundial desses venenos que se espalham pela comida que compramos, em especial nas cidades. A agricultura camponesa é o principal modo de produção das famílias do entorno da mina e, mesmo que elas não façam a opção pelo cul-tivo com adubos químicos e agrotóxicos, poderão ser obrigadas a conviver com a presença de radiação uranífera ou fosfática bem ao lado de seus quintais. Ainda segundo o governo estadual, a produ-ção do fosfato é mais importante que a de urânio, pois fomentaria as indústrias dos fertilizantes e, assim, diminuiria a importação do produto usado no agronegócio.

O processo, em Santa Quitéria, será o da mineração convencional, com lavra a céu aberto de minério de urânio e fosfato. Após a ope-ração de lavra, o minério de fosfato é transportado, via caminhões, para os processos de britagem e concentração, onde será produzi-do o concentrado fosfático. O urânio, por sua vez, será transportado em caminhões, trens ou navios, por percursos distantes, depois de transformado em “yellowcake”; esta é uma das maiores razões de preocupação, pois, onde passa o transporte, passa, ao mesmo tem-po, uma bomba nuclear - imagina se um caminhão sofre um aciden-te numa rodovia movimentada, ou mesmo dentro de uma cidade?

Yellowcake - URA INB Caetité – BA

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Itataia concentra a maior jazida de urânio do Brasil e a quinta maior de todo o mundo. Sua exploração estava prevista para co-meçar em 2012, pois os empreendedores da Mina, buscando driblar o licenciamento, solicitaram à Superintendência Estadual do Meio Ambiente (SEMACE) que separasse a atividade de extração de fosfa-to da extração de urânio. Porém, obtida a licença, o Ministério Públi-co Federal conseguiu derrubá-la na justiça e suspendeu as obras até a realização do procedimento adequado para verifi car os impactos da extração do urânio no território. A licença ambiental deve ser fei-ta por um órgão federal, já se trata de um empreendimento com características federativas, e precisa, também, de parecer da Comis-são Nacional de Energia Nuclear (CNEN), por se tratar de extração de urânio.

Hoje, a previsão das INB é para que a usina comece a funcionar em 2015 e que o faturamento anual seja de, pelo menos, US$ 525 milhões; além disso, segundo o consórcio formado pelo Governo do Ceará, Indústrias Nucleares do Brasil e Galvani Mineração, a pro-dução nacional de concentrado de urânio deve ser quadruplicada. Uma vez concretizada a instalação, a mina permite também a explo-ração de outros produtos, como o mármore, trazendo assim mais elementos poluentes para a água e para o ar.

É necessário salientar que, para a exploração, o Governo do Esta-do do Ceará está assegurando, além da infraestrutura, os incentivos fi scais na forma de isenção de impostos, ou seja, todo o ônus fi nan-ceiro do projeto está sendo custeado pelo poder público. Enquan-to isso, a região carece de investimentos em políticas sociais que possibilitem o melhor acesso à saúde, educação e lazer, estímulos à produção sustentável de alimentos e acesso a políticas culturais. Da previsão dos três mil empregos prometidos pelos governos e pelas empresas, ainda não se vê nem sombra.

Em Caetité (BA), a famosa promessa dos empregos, mesmo de-pois de 12 anos de exploração da mina, ainda é sombria até para aqueles que conseguiram trabalhar na mineração, pois, além dos salários precários, os riscos a integridade humana são muito gran-

des, causados, principalmente, pela alta irradiação do urânio que pode provocar doenças como câncer.

No Brasil, encontra-se a maior reserva de urânio do mundo – são, aproximadamente, 300 mil toneladas. Este total distribui-se entre as jazidas de Itataia, Ceará (142 mil toneladas); Lagoa Real, em Caetité, Bahia (93.200 toneladas); e outras jazidas menores, como Gandarela, Minas Gerais, onde há ouro associado ao Urânio; Rio Cristalino, no Pará; e Figueira, no Paraná.

No país, existe, ainda, o Complexo Mínero-Industrial do Planalto de Poços de Caldas (CIPC), uma indústria nuclear que extrai urânio, o separa e concentra, produzindo a substância conhecida como “yellowcake” (U3 O8), dando início, assim, ao ciclo do combustível nuclear, igualmente como será feito em Itataia.

Produzir para o quê?Todo o urânio produzido no Brasil é combustível para alimentar

as usinas nucleares de Angra I e Angra II, responsáveis pela produ-ção de apenas 5% da energia consumida no país.

A exploração de Santa Quitéria faz parte de um plano da INB para aumentar a produção de urânio. Além de colocar a nova mina em operação, a empresa também pretende triplicar a produção da mina de Caetité (BA), das atuais 400 toneladas para 1,2 mil toneladas em 2014 e, ainda, dobrar este valor para 2,7 mil toneladas em 2015; para alcançar essa meta, serão abertas duas novas frentes de lavra no complexo de mineração baiano.

O que nos resta é a resistência para frear a ação do governo. Por-tanto, é hora de nos perguntar: o quê já fi zemos e o quê ainda pre-cisamos fazer para fortalecer a Articulação Antinuclear, começando em cada comunidade, e resistir sempre a qualquer forma de injusti-ça socioambiental que comprometa a vida?

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EnErGiA cArA e pErIgOsA: cOmO o nUcLeAr é eXpLoRaDo nO BrAsIl?

A usina do CaetitéContinua trabalhando

Os habitantes sem féEstão sempre reclamando

Á água contaminadaNão serve para beberA que usam é doada

Sem eles nem conhecerem(Chico Paiva – Riacho das Pedras)

Apesar de cara e perigosa, vários países do mundo, inclusive o Brasil, continuam apostando na energia nuclear como uma das possibilidades para seus setores energéticos. Por outro lado,

após o acidente de Fukushima alguns países europeus como, por exemplo, a Alemanha decidiu por fi m no seu programa nuclear até 202, paralelamente a Alemanha continua vendendo sua tecnologia nuclear inclusive para o Brasil.

Uma das maiores desvantagens da opção é a imensa produção de lixo radioativo através da lavra do urânio; mesmo com promessas de 100% de segurança para a realização da atividade, acontecem vazamentos ou transbordamentos nas instalações durante o pro-cesso de extração e transformação em concentrado de urânio e nas usinas nucleares.

Na unidade das Indústrias Nucleares do Brasil (INB), em Caetité (Bahia), por exemplo, o lixo radioativo fi ca provisoriamente armaze-nado em piscinas, caldeiras e barris, expostos à chuva e ao ar. Já em Poços de Caldas (MG), a exploração de urânio foi encerrada há 15 anos e, ainda hoje, as pessoas têm problemas de saúde decorrentes da radiação. Outro exemplo é o das usinas como as de Agra I e II, no Rio de Janeiro, onde se produz o lixo atômico, para o qual, até agora, nenhum país encontrou solução de tratamento ou despejo e ainda

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serve para a fabricação da bomba atômica; caso seja deixado ex-posto no meio ambiente, este tipo de dejeto demora, pelo menos, 50 mil anos para se decompor, podendo ameaçar gerações futuras.

A primeira exploração do minério urânio no Brasil ocorreu no planalto de Poços de Caldas, e data, oficialmente, do início dos anos 1980, embora, de acordo com o sítio eletrônico da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) a extração já tivesse sido ini-ciada em 1977. À época, o governo municipal apoiou o empreen-dimento da Nuclebrás (atual INB) e realizou uma intensa campanha para acalmar a opinião pública sobre os riscos da radioatividade.

Em 1982, se iniciou também a atividade de conversão do urânio beneficiado em yellowcake, a matéria-prima básica do ciclo de pro-dução de combustível nuclear. De acordo com o sítio eletrônico da ONG Greenpeace, foram produzidas ali cerca de 1.300 toneladas de yellowcake, “o suficiente para o suprimento de Angra I e de programas de desenvolvimento tecnológico, como por exemplo, pesquisas para fins pacíficos. Em 1995, a extração de urânio na região tornou-se economicamente deficitária devido ao custo alto da exploração, passando o complexo local a dedicar-se apenas ao tratamento quí-mico da monazita e de minerais contendo o urânio como subprodu-to; a partir de então, a extração e beneficiamento de urânio concen-trou-se na unidade de Lagoa Real, em Caetité, na Bahia, onde têm ocorrido intensos conflitos com população local, que atribui ao em-preendimento a responsabilidade pelos altos índices de ocorrência de câncer na região.

Logo após a desativação das atividades de extração e beneficia-mento de urânio em Caldas, a região tornou-se palco de grandes e intensas movimentações, quando, no final dos anos 1990, esteve sob ameaça de receber dejetos radioativos da Usina de Santo Amaro (SP) que acabara de ser desativada. Segundo  matéria publicada nas páginas 20 e 21 da revista Caros Amigos, edição de julho de 2010,“a população da região se revoltou. Milhares de toneladas dos materiais radioativos torta II e mesotório produzidos pela Usina já estavam esto-cados no local, e os moradores da região ainda teriam que mais uma

vez aceitar estes vizinhos indesejáveis? [...] moradora de Caldas, conta: ‘Ficamos revoltados, não fomos nós que produzimos este lixo, por que devemos aceitá-lo aqui?”

Desde 2000 a INB explora a mina de urânio de Lagoa Real, no município baiano de Caetité. O minério extraído lá é transpor-tado, por via terrestre, até o porto de Salvador, distante 647 km; do porto, o material segue para o Canadá e, em seguida, para Holanda, Alemanha e Inglaterra, no continente europeu, onde passa pelas etapas de beneficiamento. Só depois de todo esse trânsito o mate-rial retorna para o Brasil.

Vários conflitos com a população dos dois municípios baia-nos já aconteceram por conta dos transtornos trazidos pela mina. Em 2008, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou o não licenciamento, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA), para a ampliação do volume de ex-tração mineral naquela unidade até o cumprimento, pela INB, de medidas atenuantes sobre os impactos sociais e ambientais causa-dos pela extração do urânio.

Na Bahia, esses conflitos são acompanhados pela Associação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça e Cidadania (AMPJ), Co-missão Pastoral da Terra (CPT), Grupo Ambientalista da Bahia (Gam-bá), Comissão Pastoral do Meio Ambiente de Caetité e Sindicato dos Mineradores de Brumado. Estas entidades, além de denunciar, pro-movem campanhas, na tentativa de apoiar e informar a população local, para reverter ou mesmo amenizar os impactos já existentes e tentar evitar novos problemas para o povo daquela região. Tam-bém acompanham de perto o funcionamento da INB e vêm denun-ciando desvios e falhas da empresa e dos órgãos encarregados da fiscalização.

A mineração de urânio é considerada como de alto risco à saúde devido às possibilidades de contaminação do solo e das águas por resíduos que, por sua vez, podem ser responsáveis por doenças que afetam as regiões ósseas e renais, causam diferentes tipos de câncer e têm chance de se constituir como fator mutagênico e com possí-

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veis conseqüências hereditárias. Todas essas enfermidades podem vir a afetar seres humanos e animais que vivem na região.

De acordo com Zoraide Villasboas, da Associação Movimento Paulo Jackson, apesar dos perigos representados pelos sucessivos problemas operacionais, parte da população urbana ainda pensa estar livre da infl uência do complexo INB, seja pelo fato de a mine-ração fi car longe da sede municipal ou por não consumir a água usada na área do empreendimento, cujos mananciais vertem para a Bacia Hidrográfi ca do Rio de Contas - que banha 63 municípios baianos.

A AMPJ atua desde o ano 2000 na região, buscando acionar os órgãos competentes e denunciar irregularidades para evitar que contínuos acidentes ocorram e continuem a ameaçar a população - especialmente os camponeses, tradicionalmente vitimados pela negligência e injustiça socioambientais provocadas pelos grandes projetos.

Ainda segundo Zoraide, em 1999, as famílias que viviam no en-torno da mina já sofriam as conseqüências de sua instalação: “foram obrigadas a permitir a perfuração de poços artesianos e autorizar o uso gratuito, por tempo indeterminado, das águas subterrâneas dos seus lotes. Dezenas de poços foram abertos: com a extração de água duran-te doze horas por dia, a disponibilidade do produto, sempre mínima no semiárido nordestino, chegou ao ponto crítico no segundo semestre de 2007. Proprietários rurais que sofrem mais vitalmente com a suspeita de contaminação do lençol freático, a poluição e a exaustão dos manan-ciais, ouviram a empresa estadual que abastece o município, a Emba-sa, afi rmar que o quadro tende a fi car crítico em 10 anos.”.

Segundo relatos colhidos nas comunidades por pesquisadores, os impactos sociais e ambientais da mineração de urânio nas co-munidades rurais de Caetité são diversos, como o fato de a mina ter passado a operar sem licença ambiental, perca de terras, saídas de pessoas de suas localidades, comunidades vivenciando diariamente tremores causados pelas detonações, falta de água com a explora-ção da mina através das empresas, vários poços lacrados pela con-

taminação da água, alto índice de morte por causas desconhecidas, casas com rachaduras provocadas pelas detonações das rochas de-baixo da terra e difi culdades com o escoamento e desvalorização da produção dos agricultores nas localidades e no município.

Em 2009, houve um acidente que provocou vazamento na usina e foi denunciado pelo conjunto das organizações que acompanham a situação e, também, pelo Greenpeace. Segundo estas organiza-ções, houve um vazamento de cerca de 30 mil litros de licor de urâ-nio, que foi confi rmado pela CNEN, mas com menção a um volume bem inferior. Em maio de 2011, houve o impedimento da entrada dos caminhões carregados com material suspeito de ser lixo atômi-co em Caetité.

Depois das experiências sofridas pelas comunidades, principal-mente em Caetité, em função da mineração e das mineradoras, po-demos nos perguntar “qual será a situação da minha comunidade, daqui para frente, se for explorado nela algum tipo de mineração, seja urânio, fosfato ou ainda outro?”.

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As aMeAçaS dO pReSeNtE qUe tEmOs eM CaEtIté

O que melhor que agente fazÉ ir se organizando

Fazer um mutirão de pazUns ao outros ajudando

Nossa vida ameaçadaTambém precisa viverSe a mina for explora

Muita gente vai morrer(Chico Paiva – Riacho das Pedras)

O município de Caetité, com população estimada em 50 mil habi-tantes, localiza-se a 757 km de Salvador, no sertão da Bahia. Lá está localizada a única mina de urânio em produção no Brasil. É

uma unidade de mineração e benefi ciamento de urânio, explorada pelas Indústrias Nucleares do Brasil, empresa vinculada ao Ministé-rio da Ciência, Tecnologia e Inovação; considerado uma província uranífera, com reservas de 100 mil toneladas do minério, o muni-cípio de Caetité produz anualmente 400 toneladas de yellowcake

Implantada em 2000 a unidade de mineração funciona com au-torização de operação concedida pela Comissão Nacional de Ener-gia Nuclear (CNEN) e com licença de operação emitida pelo Insti-tuto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renová-veis (IBAMA). Embora a mina esteja localizada a 70 km da sede do município, existem várias denúncias das comunidades ao redor e matérias da imprensa acerca da contaminação, por urânio, do len-çol freático da região. A situação torna-se especialmente crítica em anos de estiagem, como o de 2012.

Em 2009, o Greenpeace já alertava que a INB omitia os vazamen-tos que provocava e que havia falta de transparência, também, por parte da Comissão Nacional de Energia Nuclear, órgão governamen-tal responsável pela fi scalização. No mesmo ano, foi estabelecida uma multa diária, no valor de cinco mil reais, para a INB, a prefeitura

(Chico Paiva – Riacho das Pedras)

Mina de Urânio em Caetité na Bahia

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de Caetité e o Governo da Bahia, caso não fornecessem água potá-vel para as comunidades do entorno da mina.

Denúncias da imprensa também dão conta do aumento do nú-mero de casos de câncer na região, em especial, entre os trabalha-dores e trabalhadoras, desde o início da exploração de urânio. Atu-almente, cerca de 3000 pessoas vivem nas comunidades no entorno da mina e ainda faltam estudos sobre a saúde desta população que é exposta, diariamente, às consequências da exploração de material radioativo.

Outro risco trazido pela instalação da INB na região é o do trans-porte do material radioativo entre a cidade de Caetité e o porto de Salvador. São mais de 700 km percorridos por vias terrestres, expon-do toda a população que vive próxima às estradas que cortam a Bahia a um possível acidente, o qual traria transtornos imensos para as vidas dessas pessoas, além das possibilidades de contaminação. A população de Caetité realizou manifestações contra esta prática, mas a empresa continua ameaçando vidas no vai e vem dos cami-nhões.

Uma das maiores alegações, por parte dos empresários e go-vernos, é de que a exploração do urânio trouxe desenvolvimento e empregos para região. Aqui, vale ressaltar que a grande maioria dos empregos gerados é de pessoal terceirizado, contratado por curtos períodos de tempo e muitos sem seus direitos trabalhistas assegurados, trabalhando de maneira irregular. Além disso, mina trouxe imensa desvalorização das terras dos pequenos agricultores residentes no entorno.

Em maio de 2011, a população do município se mobilizou e im-pediu a entrada na cidade de nove contêineres provenientes de São Paulo, cada um com cerca de 90 toneladas de carga, que trans-portavam material radioativo. Centenas de pessoas bloquearam a rodovia que fica entre a cidade de Caetité e o distrito de Maniaçu, impedindo a passagem do material.

As pessoas não estavam suficientemente esclarecidas sobre o conteúdo da carga e havia a forte suspeita de que era lixo tóxico

que estava sendo transportado à cidade para ser armazenado nas dependências da INB, o que traria ainda mais riscos para população do entorno. Gilmar Santos, membro da Comissão Pastoral da Ter-ra de Caetité, afirma que faltou clareza e transparência da INB para com a população nesse episódio, assim como em muitos outros.

Também em 2011, a empresa enfrentou uma greve dos trabalha-dores contra o corte das horas-extras, o que significava uma redu-ção de cerca de 50% do salário, e que também denunciava diversas situações de falta de segurança nos locais de trabalho. Entre as de-núncias, estava a de exposição dos trabalhadores a níveis de urâ-nio acima dos permitidos em lei, como afirma Lucas Mendonça dos Santos, trabalhador da empresa e membro do Sindicato dos Mine-radores de Brumado e Microrregião.

Ainda de acordo com Lucas Mendonça, durante o processo de reentamboramento (mudança de tambor de concentrados de urâ-nio), realizado em junho deste ano e combatido pela comunidade em manifestações públicas, “se viu urânio para tudo quanto é lugar da área. Chegou-se a despejar urânio no chão e recolher de pá. O su-pervisor de serviço abriu o portão da área para jogar a poeira de urânio para fora do local. Não havia equipamento de proteção respiratória”. Os macacões usados pelos trabalhadores, que deveriam ser descar-tados, eram lavados e entregues aos funcionários terceirizados. A empresa conta com aproximadamente 500 funcionários, sendo que cerca de 300 são terceirizados.

Seu Florisvaldo Cardoso é um desses agricultores que vivem nas proximidades da mina. Ele que afirma que, além da terra, também a produção que vêm dessas áreas é desvalorizada: “Antes disso a gente plantava mais, vendia mais, produzia mais e vendíamos com facilida-de nossos produtos. Hoje, quando a gente diz de onde é, que é perto do urânio, ninguém quer mais comprar. E o pior são os atravessado-res, que vêm e compram barato da gente e vendem ao povo dizendo que é de outra região”. Seu Florisvaldo também manda um recado para os agricultores e agricultoras da região de Santa Quitéria: “Que eles procurem uma maneira de não serem enganados como nós fomos

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aqui em Caetité. Exijam antes que a empresa se instale. A gente confi ou e não conseguiu.”.

Hoje, na comunidade de Seu Florisvaldo, existe a suspeita de a água estar contaminada, além de um grande número de casas com rachaduras, estas atribuídas as explosões diárias na mina, que fi ca a menos de 1 km. A empresa sempre alega que as rachaduras acon-tecem por erro das próprias famílias na construção e no material usado. Mesmo diante desse cenário, os moradores da comunidade de Gameleira, assim como seu Florisvaldo, não querem sair do lugar onde nasceram e cresceram. “A gente tem amor por essa terra, não é uma planta, tem laços. Caetité é uma cidade famosa em todo o Brasil, mas a riqueza é pra quem vem de fora não para quem é daqui. Quem vem de fora tem o direito de gritar alto e quem é daqui só pensa e não fala”, disse Seu Florisvaldo.

Elenice Alves é agente de saúde e também mora nas imediações da Mina, em Caetité. Ela conta que, no início, os/as moradores/as das comunidades achavam que a instalação da empresa ali seria uma coisa boa, que os ajudaria, pois, nas propagandas que faziam antes da implantação, prometiam melhor qualidade de vida naquelas lo-calidades. Nada disso aconteceu e, ainda, segundo Elenice, o urânio só trouxe coisas ruins. “Para mim, urânio signifi ca morte”, explica.

A empresa secou todas as nascentes da região, impedindo os agricultores/as de produzir com qualidade e atrapalhando a comer-cialização dos produtos. “Quando as pessoas descobrem que a gente é do entorno da mina, na feira, as pessoas não compram nossos pro-dutos, aqui muita gente já deixou de produzir por isso. Antigamente a gente tinha uma nascente, um brejo onde a gente plantava. Todas as nascentes secaram. A água que a gente usa hoje é de poço artesiano. A qualidade da água que bebemos é duvidosa, nunca tivemos acesso às análises feitas pela INB nos poços artesianos”. Como Agente de Saúde, Elenice acompanhou de perto o aumento do número de casos de câncer nas comunidades.

Ficha suja da INB: o que acontece em Caetité/BA e pode acon-tecer em Santa Quitéria/CE. Veja a seguir um quadro que relata os principais acidentes em Caetité.

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CaMiNhOs dE lUtA dArTiCuLação AnTiNuClEaR dO CeArá

Com grande articulaçãoConstruindo o Bem Viver

Somos antinuclearResistimos ao poder

Das empresas e do EstadoConsórcio bruto e malvado

Lutaremos pra vencer!(Erivan Camelo) N

o Ceará, as resistências à Mina de Itataia e ao consórcio para exploração de urânio e fosfato em Santa Quitéria começam no ano de 2010, com a iniciativa da Cáritas Diocesana de Sobral e

do Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (TRAMAS-UFC) que, em parceria, realizaram, na comunidade Riacho das Pedras e com a participação de outras comunidades do município de Santa Qui-téria, um encontro coordenado pelo curso de Medicina da UFC. O encontro foi um trabalho de extensão para construir a cartografi a social das comunidades do entorno da mina e tornou-se, também, um marco inicial para a história antinuclear no Ceará. A ideia germi-nou diante da ameaça, pelas empresas que farão a extração dos mi-nérios em Itataia, aos modos de vida camponeses, que asseguram a história de vida desenhada e retratada pelas comunidades.

Ainda em 2010, aconteceu uma audiência, na comunidade Ria-cho das Pedras, articulada pela Cáritas Diocesana de Sobral e com a presença do Núcleo TRAMAS-UFC, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Movi-mento Sindical dos Trabalhadores/as Rurais, entre outros, além de comunidades do entorno da Mina. Estiveram presentes, também, a prefeitura de Santa Quitéria, a Galvani (empresa privada) e repre-sentantes da empresa estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB), que fi zeram parte da mesa juntamente com todas as outras institui-ções citadas. O resultado da audiência foi negativo, pois não se che-gou a qualquer consenso sobre os malefícios da extração de urânio

(Erivan Camelo)

Crianças na manifestação na cidade de Santa Quitéria

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e fosfato e, muito menos, acerca dos pontos positivos apresentados pelo governo e as empresas. Daí, surge a grande necessidade de se trabalhar o assunto diretamente com as comunidades impactadas do entorno da Mina.

No início de 2011, ocorreram diversas reuniões e rodas de conver-sas, na cidade de Santa Quitéria, com o governo estadual e munici-pal e a participação da Superintendência Estadual do Meio Ambien-te (SEMACE). Dia 3 de março, aconteceu o III Encontro de Mulheres da Via Campesina do Ceará, onde se tirou o encaminhamento de que a luta do Dia Internacional de Luta das Mulheres daquele ano seria uma manifestação pública contra a Mina de Itataia. A mani-festação realizada pelas mulheres da Via Campesina no dia 8 de março de 2011, em Santa Quitéria, teve o intuito de formar e mobilizar sobre questões referentes à mineração de urânio e seus impactos para as comunidades atingidas diretamente e para toda a sociedade atingida indiretamente. A manifestação atingiu todo o município e demonstrou que as mulheres e as comunidades estão em alerta.

Ainda no primeiro semestre de 2011, depois de reuniões envol-vendo a Cáritas, o MST, o Núcleo TRAMAS-UFC e a CPT, tivemos a ideia de fazer um seminário para reunir as comunidades diretamen-te impactadas e pesquisadores em torno da temática A Mineração de Urânio e Fosfato: seus impactos socioambientais e para a saúde humana, que aconteceu no dia 6 de maio, no município de Itatira. O evento contou com a presença de representante da CPT de Caetité, que relatou para todos/as os presentes os impactos e as desordens causadas pela extração de urânio no complexo de Lagoa Real. Na ocasião, foram apontadas várias ações a serem trabalhadas, no intuito de fortalecer a luta contra o Nuclear e, especificamente, construir resistências junto às comunidades impactadas. É desse se-minário que nasce a Articulação Antinuclear do Ceará (AACE), ten-do em vista a necessidade de continuarmos nos encontrando e, ao mesmo tempo, de estarmos ligados a Articulação Antinuclear Bra-sileira.

AACE se reúne novamente dia 18 de junho, no distrito de Lagoa do Mato, uma das comunidades impactadas diretamente, para uma oficina de Planejamento do trabalho de formação de base sobre o en-frentamento à mineração de urânio e fosfato nas comunidades. Des-de esse tempo, até hoje, a AACE vem se encontrando a cada dois meses para ir discutindo, planejando, construindo, aperfeiçoando e, principalmente, realizando ações de fortalecimento da luta contra o Nuclear.

No segundo semestre de 2011, tivemos uma ação muito impor-tante e que foi uma das primeiras estratégias para o trabalho de base nas comunidades: o intercâmbio de instituições e pessoas das comunidades impactadas de Santa Quitéria e Itatira para conhecer a situação de Caetité, na Bahia. Os relatos das ameaças, dos medos, da insegurança e da falta de perspectivas de vida, causados pelo projeto de extração de urânio das comunidades de Caetité, mos-traram a realidade e o que provavelmente será o futuro das comu-nidades de Santa Quitéria e Itatira. Este se tornou um dos principais motes que usamos em contraposição à Mina até hoje no Ceará: o presente de Caetité é o futuro que não queremos para Santa Quitéria e Itatira.

Ao longo do segundo semestre de 2011 e de todo ano de 2012, realizamos diversas atividades, ligadas principalmente ao trabalho de base nas comunidades, e alguns encontros de abrangência re-gional e estadual. Um exemplo foi o seminário realizado pelo Sindi-cato dos Docentes da Universidade Vale do Acaraú (SINDIUVA), na Universidade Vale do Acaraú, em Sobral, com o tema Usina Nuclear e Exploração de Urânio: porque e para quem? Sobral é uma ci-dade banhada pela bacia do Rio Acaraú, que recebe água de um afluente nascente na serra em que está situada a jazida de urânio e fosfato em Santa Quitéria.

A Articulação trilha caminhos nas comunidades de base para fa-zer jus ao planejamento. Escuta o povo, pergunta e vai construindo, coletivamente, conceitos a partir do entendimento das pessoas e através da contribuição dos/as facilitadores/as dos diversos mo-

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mentos de reuniões. A ideia principal foi e continua sendo desmis-tificar a ideia de desenvolvimento ressaltada pelo governo e pelas empresas com a chegada do empreendimento e, ao mesmo tempo, reforçar os modos de vida camponeses que, historicamente, estão enraizados nas comunidades e precisam ser valorizados e respei-tados. Conseguimos, nas idas e vindas, identificar 27 comunidades em Santa Quitéria e 14 em Itatira que ficam na faixa de 20 km de dis-tância do entorno da Mina de Itataia. No total são 41 comunidades e aproximadamente 6.087 famílias.

Entre as comunidades impactadas foram criados núcleos de base para facilitar, do ponto de vista geográfico, as reuniões e os momen-tos de encontro da AACE. Atualmente, a AACE tem representantes das comunidades e prima sempre que suas reuniões aconteçam nos núcleos de base. A interação é marcada por discussões e ativi-dades feitas nas escolas, com grupos de jovens, com educadores/as e momentos envolvendo toda a comunidade; a metodologia de discussão sempre é a partir de documentários, palestras, trabalho em grupos, escuta e intercâmbios de conhecimentos, entre outros.

Em 25 de julho de 2012, mais uma vez ocupamos as ruas da ci-dade de Santa Quitéria. Na data, que marca o Dia do Agricultor/a, camponeses e camponesas afirmaram que o desenvolvimento ne-cessário para as comunidades é a preservação da cultura campone-sa, não a extração de urânio e fosfato que ameaça a vida e fragiliza e desarticula as comunidades.

Já no segundo semestre de 2012, realizamos, com todas as co-munidades, a I Jornada Antinuclear do Ceará, com o tema O pre-sente que temos em Caetité e o que futuro que queremos em Santa Quitéria. Começamos a Jornada nas comunidades de San-ta Quitéria e Itatira e terminamos com um seminário em Fortaleza. Foram três momentos marcantes: a articulação e mobilização das comunidades; a realização da Jornada propriamente dita e os re-sultados que repercutiram dentro das comunidades e para toda a sociedade cearense. A metodologia usada foi a partilha e a escuta de pessoas que vieram de Caetité para fomentar a discussão feita sobre que Santa Quitéria queremos.

Ressaltamos, aqui, que há dois estudantes da UFC fazendo pes-

Manifestação do MST e Articulação Antinuclear do Ceará na cidade de Santa Quitéria

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quisas sobre os impactos da mineração de urânio e fosfato na saúde humana. Na verdade, é um trabalho de construção sobre o que as comunidades entendem por saúde e o que pode ameaçá-la; em to-dos os momentos, os mapas construídos pelas comunidades mos-tram a mineração como grande ameaça para a saúde humana.

Estamos, desde 2012, nos articulando, no Ceará, com outras co-munidades e movimentos atingidos por outros tipos de mineração, como ferro, granito e petróleo, entre outros. Portanto, a AACE está apoiando a criação do Movimento dos Atingidos pela Mineração (MAM).

Primeiro Seminário “A Mineração de Urânio e Fosfato e seus Impactos Socio-ambientais e para a Saúde Humana”

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ReSiStênCiAs cAmPoNeSaSA terra é nossa mãe

A água é sangue nas veiasDando vida ao camponês

Que não mora em terra alheiaVivendo da produçãoCultivando no sertão

De barriga sempre cheia(Erivan Camelo)

É do espaço contemporâneo da zona rural que emergem duas palavras para o cenário social atual: camponês e latifundiário. Não são, porém, simples termos, mas palavras políticas, como já

afi rmava José de Souza Martins, que procuram expressar a unidade das situações de classe nas quais se encontram os sujeitos a que elas se referem.

Nas páginas deste escrito, em todo momento, procuramos pôr em evidência o protagonismo das famílias camponesas e o constan-te confl ito no qual elas se encontram com a iminente mineração de urânio e fosfato que bate à sua porta. Contamos essa história sem-pre a partir “dos de baixo”, pois, sendo a memória, como as palavras, também política, é necessário registrar a versão dos trabalhadores e das trabalhadoras que resistem e se rebelam. Queremos evitar que, no Brasil, se perpetue, na historiografi a ofi cial, a narração dos vence-dores, das classes dominantes, dos senhores e generais.

É preciso que contemos a história da luta e do sofrimento das famílias que residem no entorno da Mina de Itataia, pois, no Brasil, poucos sabem, e se dão conta, que os camponeses e as campone-sas vivem, há muito tempo, em confl ito, cotidianamente defenden-do seus territórios e modos de vida. Podemos citar, como exemplo, os casos de Canudos, Contestado, Trombas e Formoso, Caldeirão, Araguaia-Tocantins e tantos outros.

Seu Chico Paiva, 79 anos, é um desses camponeses que muito já viveu e pelejou e hoje tem muita história para contar. Ele mora na comunidade Riacho das Pedras, em Santa Quitéria, e lembra que,

(Erivan Camelo)

Manifestação no dia 25 de julho de 2012 para resistir à mina e apoiar o campesinato

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desde que era criança, muita gente na região pagava renda. Em contrapartida, ele acrescenta, o povo se organizou: “aqui, se a polícia intimasse duas pessoas por conta de um conflito de terra, ia à comuni-dade toda e foi aí que nós fomos conseguindo as desapropriações, mas mesmo assim, quando a gente começava a plantar, vinha o fazendeiro e colocava o gado dentro do roçado da gente”.

Do ano de 1958, seu Chico conta de uma grande seca e que ele foi um dos retirantes que migrou para a cidade de General Sampaio, também no Ceará, para procurar emprego de fazer estrada – “mas lá o ganho era muito pouco”. Na memória, vêm também as secas de 1970, 1981, 1982 e 1983 e como ele e a família foram passando por cada uma.

Antiga por essas bandas também é a história da mina. “Diziam que era uma coisa boa que vai gerar muito emprego. Faz uns 20 anos que entra eleição, sai eleição e a bandeira política desses candidatos é esse urânio, que hoje as comunidades estão dizendo que não querem.”, continua seu Chico.

Hoje, a comunidade Riacho das Pedras tem açude próximo, luz elétrica, bonitos canteiros com hortaliças diversas, pomares, plan-tação de forrageiras e animais bem cuidados, além de cisternas de placa e casa de sementes, que ajudam a semear vida. Ali, as pessoas não querem ter estas conquistas prejudicadas com a mineração de urânio que ameaça chegar.

A mineração não preocupa só o Riacho das Pedras, mas também as comunidades de Queimadas, Alegre Tatajuba, Irapuá, Morrinhos, Raimundo Martins e Uberlândia, e outras em Santa Quitéria. Dentre estas, quem está mais próximo da Mina é o Assentamento Morri-nhos. Lá, os agricultores e agricultoras conquistaram a posse da terra em 1994; na altura, eram 45 famílias. Hoje, a área do assentamento é de 2.124 hectares e, atualmente, abriga cerca de 200 pessoas, con-tando 52 famílias. O Assentamento Morrinhos está a 60 km da sede do município de Santa Quitéria e a 21 km do distrito Lagoa do Mato, no município de Itatira. “Depois que aqui virou assentamento, tudo melhorou muito, agora é agente que decide o que faz. Porque antes, a

renda aqui era 5x1 e o que a gente produzisse tinha que vender para o dono da terra; aqui, ele mandava na política a gente votava em quem ele mandava.”, conta Guda, uma das lideranças da comunidade.

Atualmente, a maioria das famílias da comunidade cuida de seus canteiros, dos roçados de feijão e milho e fruteiras nos quintais; segundo a Associação de Moradores, depois de muitas reuniões e discussões, poucos são os que brocam e queimam. Quase todas as famílias também criam animais, que servem para alimentação e me-lhoria da renda. Em comunhão com a maioria das comunidades ru-rais, Morrinhos sofre com a falta de políticas públicas e com a nega-ção de direitos básicos, como, por exemplo, o acesso à saúde. “Aqui, uma enfermeira só aparece de seis em seis meses”, comenta Guda.

Todas as comunidades que citamos são formadas por famílias camponesas que produzem seu sustento, com o trabalho na pouca

Agricultor camponês Júnio da comunidade Riacho das Pedras plantando e recuperando o solo

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terra que cada uma cuida. Faz-se necessário, porém, ressaltar que a agricultura camponesa não é só um modo de produzir alimentos, é um jeito de viver, de se relacionar com a natureza e com toda a co-munidade. É uma agricultura diversificada, que combina produção animal com produção vegetal e, prioritariamente, para o autocon-sumo.

Um elemento central neste modo de vida é a comunidade. Ali, se encontra o espaço da festa, do lazer, da cultura, dos conflitos, da memória, do poder. Em uma comunidade camponesa, todos importam, se conhecem e estabelecem relações, sejam elas de pa-rentesco ou vizinhança, ninguém é anônimo. Por isso, destruir os territórios sociais destrói as estruturas comunitárias por inteiro.

Mas, como nos lembra Frei Sérgio Antônio Gorken, “não existe agricultura camponesa em estado puro. Ela está sempre marcada por contradições e enfrentamentos para sua própria afirmação, assim como as permanentes pressões para seu desaparecimento. Vive um processo continuado de afirmação e de tentativas de varrê-la do mapa.

Sua existência é sua resistência e sua luta permanente”. Temos outra reflexão importante a fazer: o momento histórico em que nos en-contramos pressiona, cada vez mais, as famílias camponesas a de-fenderem seus territórios.

Ao final, seu Raimundo, do Assentamento Morrinho, nos diz de forma mansa: “já conquistamos a terra uma vez das mãos dos fazen-deiros, mas, infelizmente estamos sendo ameaçados em perdê-la nova-mente para as mineradoras”. O que ele diz é de extrema importância para compreendermos que o fazendeiro de ontem é a mineradora de hoje, tomando dos/as agricultores/as seu meio de produção. O latifúndio, agora, age de forma diferente, mais agravante. A terra, agora, não é só espaço de poder para os latifundiários, mas também o espaço ocupado pelas empresas do agronegócio e superprotegi-das pelo estado em nome do “desenvolvimento” a qualquer custo. As populações tradicionais, então, vão sendo expulsas de seus ter-ritórios, seja pela força estatal ou pela negação dos direitos básicos.

Manifestação das mulheres da Via Campesina na Cidade Santa Quitéria

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NaS “tRaMaS” dA PeSqUiSa-AçãoO minério está chegando

A saúde indo emboraNossa terra adoecendo

Dos males de quem lhe explora(Erivan Camelo)(Erivan Camelo) O

Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (TRAMAS-UFC) tem buscado desenvolver, de

forma articulada, suas atividades de ensino, pesquisa e extensão em diálogo com a complexidade dos problemas derivados dos proces-sos e projetos de desenvolvimento em curso no Ceará. Nesse sen-tido, o TRAMAS tem optado por atender demandas de produção de conhecimento advindas de comunidades em confl ito ambiental, que disputam seus territórios com empreendimentos produtivos ou obras de infraestrutura. O Núcleo, então, tenta contribuir com a defesa da equidade ambiental e com a formulação de políticas públicas que venham a garantir o direito de todos à saúde, ao tra-balho digno e ao ambiente saudável, com base nos pressupostos da Justiça Ambiental.

Com base na produção compartilhada de conhecimentos e com a adoção de metodologias participativas, dialógicas e que proble-matizam a realidade, em 2012, o Núcleo TRAMAS, junto aos agentes sociais envolvidos, comunidades atingidas e movimentos sociais, realizou a pesquisa-participante “Territorialização em Saúde: estudo das relações produção, ambiente, saúde e cultura na atenção primária em saúde” (*), envolvendo comunidades de Santa Quitéria, e a pes-quisa-ação “Vigilância popular em saúde: de olho nos riscos da mine-

mapa social de Itatira produzido pela comunidade

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ração de urânio e fosfato prevista para ser implantada no município de Santa Quitéria – CE:”(**), envolvendo comunidades de Itatira.

Pautada no discurso do desenvolvimento e do progresso, da ge-ração de emprego e renda, a mineração de urânio e fosfato tem sido anunciada como uma alternativa redentora para as comunidades locais. Com base nas pesquisas realizadas, porém, verificamos que estas comunidades têm sido vulnerabilizadas pelo modelo de de-senvolvimento em curso, o qual tem o Estado como seu grande in-centivador. Observamos, ainda, a insuficiência de políticas públicas de estímulo às atividades produtivas que fortaleçam as potenciali-dades, o modo de vida e a cultura camponesa e as estratégias de convivência com o semiárido; outro ponto crítico são as fragilidades institucionais nas áreas da saúde, trabalho e ambiente, no que se refere à assistência à saúde, ao acesso a informação e à adoção de medidas de regulação, prevenção e mitigação dos riscos.

“É como o companheiro falou, com a seca convivemos, es-tamos sujeitos a ela, em qualquer ano pode vir. (...) E se essa mina de Itataia chegar a ser explorada, o mais provável, é que tenhamos que sair daqui, porque não dá pra nós morarmos aqui, porque nem um pé de fruta podemos mais plantar porque a fruta não presta pra gente comer, aí até os bichinhos que a gente cria vão beber as águas poluídas, vão adoecer também e morrer. (...) Outra coisa dá pra gente ir levando e convivendo, mas não com essa exploração dessa mina” (1).

Sob a ótica da saúde coletiva, entendemos que, à semelhança do que acontece com projetos de desenvolvimento de grande impacto implantados em outros territórios e, particularmente, com base no que ocorre em Caetité (BA) devido a mineração de urânio, o Proje-to Santa Quitéria de exploração da Mina de Itataia trará profundas transformações para as populações da região, dentre as quais pode-mos destacar:alterações no regime tradicional de uso e apropriação do território, no modo de vida e de trabalho; aumento da violência; uso e tráfico de drogas e alcoolismo;exploração sexual de crianças e adolescentes; desapropriação e deslocamento compulsório dos

moradores; desagregação de famílias; suicídios, mortes súbitas, de-pressão e sofrimento psíquico; insegurança alimentar edes/subnu-trição; doenças sexualmente transmissíveis e AIDS; gravidez indese-jada ou precoce; migração de um grande número de trabalhadores; aumento do custo de vida, com produtos e serviços ficando mais caros; aumento da demanda por serviços de educação, saúde e la-zer; aumentos de doenças respiratórias, ruídos, acidentes de traba-lho e de trânsito.

Em adendo, podemos ressaltar que, de acordo com a literatura científica, o trabalho com material radioativo está relacionado com a ocorrência de 16 tipos de câncer no ser humano: bexiga, osso, cé-rebro/SNC, mama, cólon, leucemia, fígado, pulmão, vesícula biliar, mieloma múltiplo e nasofaringe, ovário, sarcoma de tecido mole, pele, estômago e tireoide.

Diante deste quadro, é urgente uma Vigilância Popular em Saú-de sob a ótica da Promoção da Saúde alinhada ao paradigma da Saúde Coletiva cuja construção compartilhada de conhecimentos

mapa social de Riacho das Pedras produzido pela comunidade

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leve os sujeitos à emancipação, num agir micro e macro social, oca-sionando numa ruptura com o atual modelo de desenvolvimento e a adoção de outro, o do ser humano, em sua realidade, complexa, simbólica e cotidiana.

“A mineração de urânio é prejudicial à saúde porque ela pode trazer o câncer e também os acidentes de trabalho, como já foi falado aqui. E a contaminação das águas, que a gente sabe que vão fi car todas con-taminadas. Também a contaminação do ar, vai também prejudicar na produção agrícola” (2).

(1), (2) Depoimentos coletados no grupo focal de pesquisa-ação composto por moradores\as das comunidades impactadas nos municípios de Santa Quitéria e Itatira.

(*) Pesquisa de pós-doutorado fi nanciada com recursos do P RODOC/CAPES (Edital 029/2010), realizada por Ana Cláudia de Araújo Teixeira, sob orientação da Profa. Raquel Maria Rigotto.

(**) Dissertação de Mestrado de Pablo Araújo Alves, orientada pela Profa. Ana Cláudia de Araújo Teixeira.

Ambas as pesquisas foram desenvolvidas no âmbito da Linha de Pesquisa Pro-dução, Ambiente e Saúde no Nordeste Brasileiro do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Mestrado Acadêmico em Saúde Pública da Universidade Fe-deral do Ceará.

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AlTeRnAtIvA CaMpOnEsA À MiNa De ItAtAiA

Na minha comunidadeNão quero nada de fora

Nem empresa nem empregoQue mexe com nossa história

Respeite nosso lugarDe o camponês trabalharHoje, sempre, aqui agora.

(Erivan Camelo)

Até aqui, os textos deste material falam sobre o problema da mineração e suas consequências na vida das comunidades. Em contrapartida, agora vamos descrever, a partir dos gritos e cla-

mores do povo, a alternativa camponesa à Mina de Itataia.Insistimos em começar dizendo que nossa America Latina e o

Brasil são marcados, desde a invasão pelos espanhóis e portugue-ses, pela profunda expropriação de nossas riquezas naturais, a co-meçar pelo saque de minérios, como ouro, prata e diamantes, e a exterminação de muitas etnias indígenas em nome do progresso europeu. A história se repete. Atualmente, o capitalismo agroindus-trial globalizado continua saqueando, em nome de seu “desenvol-vimento”, os minérios (ouro, petróleo, ferro, urânio e fosfato, entre outros) das comunidades tradicionais que resistem em continuar com seus modos de vida.

Concordamos com o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Ga-leano quando diz, em seu livro As Veias Abertas da América Latina, que “onde existiu maior saque de riquezas maior também é a misé-ria do povo nos dias atuais”. De fato, além de extorquir as riquezas naturais, a invasão dos territórios por empresas estatais e privadas em nome do “desenvolvimento” desestabiliza a cultura local das co-munidades, as deixando sem “riquezas” e sem perspectivas de vida futura, como nos diz seu Raimundo, da comunidade Riacho das Pe-dras. Ele relata que, naquela região, foram extraídos minérios como

(Erivan Camelo)

Agricultura camponesa ameaçada pela exploração da Mina de Itataia

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rutilo, marachita e, por ultimo, falam de urânio e fosfato. “Dizem que esse minério é uma riqueza que ninguém sabe pra quem”, observa seu Raimundo.

A manutenção e reprodução da cultura camponesa nas comuni-dades impactadas pelo projeto de extração de urânio e fosfato em Santa Quitéria e Itatira, está se tornado difícil porque as minerado-ras não admitem e não reconhecem o espaço das populações que ali vivem.

Nas veredas das comunidades, entre uma e outra parada, con-versando e fazendo reuniões com meninos/as, jovens, homens e mulheres nascidos daquela terra, compreendemos que camponês e camponesa é aquele e aquela que cuida da terra, da água, conhece os segredos da natureza, alia o seu trabalho ao seu sustento, inven-ta com criatividade suas tecnologias, tem cultura e vida próprias. É o mundo ecológico da preservação, como verseja seu Chico Paiva, da comunidade Riacho das Pedras: “o cidadão educado/ que começar pesquisando/ arranja boa semente/ e vai logo semeando/ em nada ele vacila/ e a natureza tranquila/ nessa hora despertando”.

As famílias produzem seu próprio alimento a partir dos frutos da terra. O bolo, a tapioca, o cuscuz, o mungunzá, a buchada e a pa-nelada, entre tanto outros, constroem e fortalecem a relação com a terra e o principio camponês de independência, quebrando a ideia de que, para comer, é necessário comprar. O/a camponês/a planta e faz a vida seguir em frente com seus costumes e modos de ser e viver feliz.

Por sua experiência e sabedoria popular, as pessoas da terra sa-bem ler o que a natureza precisa para continuar viva. É, por exem-plo, a percepção, pelos sinais do cotidiano, de quando irá chover, a partir do canto da ciricora, ou quando irá fazer sol, porque a cauã também cantou; é saber qual a terra boa para plantar o quê, que nambu dorme de 10h ás 14h, qual o tempo de reprodução dos ani-mais da caatinga, que há animais que só saem na noite e que, por isso, existem os caçadores noturnos que sabem a hora do peba e do tatu comer.

Os/as camponeses/as sabem, por excelência, que ninguém tem condições de viver sozinho e, por isso, sempre vivem em comunida-des que resistem e mantém sua cultura viva, reproduzindo e reno-vando os valores camponeses do trabalho comunitário, da troca de serviços, da religiosidade popular, da solidariedade em momentos difíceis e da alegre celebração dos momentos festivos. Seu Chico Paiva e seu Raimundo, em conversa, nos dizem que, apesar das di-ficuldades de anos de seca como as de 1958, 1970 e 1983, gostam de viver no local onde nasceram. “O que nos ameaça aqui é a seca e a mina de Itataia”, comenta seu Chico.

Casa de Sementes na comunidade Riacho das Pedras

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Nos últimos anos, os camponeses/as das comunidades impacta-das vêm descobrindo que a vida no campo pode ser ainda melhor com o processo de construção de sua própria autonomia e susten-tabilidade a partir do acesso a terra e a água. As famílias também vêm potencializando estes recursos com as opções de criar animais adaptados ao clima, organizar áreas de pasto ou armazenamento de forragem, captar água de chuvas nas cisternas para consumo humano e, ao mesmo tempo, nas cisternas que armazenam água para produzir, usar plantas medicinais, diversificar a produção atra-vés do consórcio de plantas ou da agroflorestação, combater o uso de agrotóxicos pela produção de inseticidas naturais, organizar se-mentes crioulas guardadas por cada família ou na casa de sementes comunitária, produzir de hortaliças e frutas nos quintais produtivos, beneficiar a produção e comercializar os produtos tendo em vista a geração de renda.

Podemos afirmar, então, que as comunidades estão construindo um projeto camponês no semiárido ao redor da Mina de Itataia. Este projeto, porém, corre o risco de ser interrompido pela exploração dos minérios e consumido pelo grande capital. A ideia de “desen-volvimento” que está sendo imposta pela Mina irá poluir as águas, a terra e o ar, destruir a sociobiodiversidade, explorar o trabalho hu-mano, esgotar as riquezas da caatinga, desvalorizar e prejudicar a produção de alimentos das famílias e tirar o sossego camponês com os ruídos de máquinas e transportes pesados nas estradas ou pelo bombardeio na própria Mina, entre outras consequências que só o tempo poderá nos mostrar.

Seu Nonato, do Assentamento Morrinhos, sintetiza muito bem tudo isso: “em vez da mina era pra o governo inventar outras coisas que pudessem nos ajudar a viver ainda melhor aqui, como água a von-tade pra todo mundo”.

Seminário sobre o pesente que temos em Caetité e o Futuro de Santa Quitéria e Itatira

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