No coracao da africa misteriosa ana maria magalhaes e isabel al

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Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada

NO CORAÇÃO DA ÁFRICA MISTERIOSA

Caminho

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Viagens no Tempo

Viajar pelo interior da África em busca das riquezas e dos grandes mistérios ocultos nafloresta virgem foi um sonho que demorou séculos a realizar.

Os europeus encaravam "o coração da África misteriosa" com verdadeiro terror. Osprimeiros que se atreveram a fazer explorações foram portugueses que, ainda no tempo dosDescobrimentos, descobriram dentro de si a vocação de navegadores terrestres.

Nesta história, a máquina do tempo leva as personagens e os leitores a acompanhar asperipécias da travessia efectuada por Serpa Pinto, que partiu das costas do Oceano Atlântico e,sempre a pé, alcançou as costas do Oceano Índico.

Volumes publicados na Colecção Viagens no Tempo1. Uma Viagem ao Tempo dos Castelos (7ª edição)2. Uma Visita à Corte do Rei D. Dinis (7ª edição)3. O Ano da Peste Negra (6ª edição)4. Uma Ilha de Sonho (4ª edição)5. A Terra Será Redonda? (4ª edição)6. Um Cheirinho de Canela (3ª edição)7. O Dia do Terramoto (4ª edição)8. Mistérios da Flandres (2ª edição)9. O Sabor da Liberdade (2ª edição)10. Brasil! Brasil! (2ª edição)11. Um Trono para Dois Irmãos (2ª edição)12. Mataram o Rei! (2ª edição)13. Tufão nos Mares da China14. No Coração da África Misteriosa

Próximo volume:A Magia da Terceira Caverna

VIAGENS NO TEMPOAna Maria MagalhãesIsabel AlçadaEditorial CaminhoImpressão e acabamento:óptima TipográficaData de impressão: Setembro de 1998www.editorial-caminho.pt

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Aos queridissimos Inêz e TomásÀ memória dos portugueses que se embrenharam no interior da África misteriosa

arriscando a vida pelo desejo de saber

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Para fazer este livro foi preciso estudar muito. A pesquisa prolongou-se vários meses, e nósencantadas, porque as aventuras dos navegadores terrestres são de pasmar.

Entusiasmámo-nos sobretudo com os relatos dos três famosos exploradores: Roberto Ivens,Hermenegildo Capelo e Serpa Pinto. Não sabÍamos era qual deles escolher...

No dia 10 de Dezembro de 1997 interrompemos a leitura a meio da tarde para uma pausa e umcafezinho, mas falámos o tempo todo de Serpa Pinto e da fantásfica viagem que o levou das costas dooceano Atlântico às costas do oceano índico, por terra, a pé, único europeu da caravana quechefiava, enfrentando todo o tipo de perigos sem nunca perder a coragem.

Seduzidas pelo seu diário, mais pessoal e expressivo que o dos outros dois, tÍnhamo-nosintegrado na expedição sem dar por isso! Ficou então decidido: a máquina do tempo conduziria Ana,João e Orlando ao encontro do explorador que agora tratávamos familiarmente por Alexandre. Sófaltava seleccionar os factos reais que havÍamos de incluir na nossa história. Lemos e relemos odiário quase a ponto de o sabermos de cor. Vimo-nos forçadas a encurtar algumas distâncias e aalterar algumas sequências de acontecimentos, mas utilizámos narrativas, descrições, reflexões e porvezes até palavras do próprio Serpa Pinto.

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capítulo 1O tesouro perdido Orlando desenrolara vários mapas em cima da mesa da sala de jantar e

observava-os através de uma lupa grossa e potentíssima que lhe permitia ver com clareza ospormenores mais ínfimos. A tarefa absorvia-o completamente e, portanto, demorou a ouvir os toquesinsistentes da campainha. Só quando o som se tornou contínuo Lhe rompeu os pensamentos e atingiu azona do cérebro que capta sinais sonoros.

O efeito foi tão violento como uma pancada. Irritado, largou a lupa e dirigiu-se à porta da ruadisposto a fazer má cara aos intrusos e a correr com eles, mas quando viu diante de si as caras muitoqueridas da Ana e do João, desfez-se em sorrisos e abraçou-os efusivamente.

— Que boa surpresa! Ainda bem que aparecem, estava cheio de saudades! — Nós também!— Viemos desejar-lhe Bom Ano...

— Bom ano? — perguntou ele atarantado. — Porquê? Os dois irmãos largaram à gargalhada.— Porque hoje é o dia 1 de Janeiro.— Aposto que passou a meia-noite fechado no seu laboratório a estudar imenso.O velho cientista abanou a cabeça, risonho e satisfeito.— Por acaso estava a trabalhar, mas fora do laboratório. Nem me lembrei da passagem do

ano. Agora que falam nisso, acho que ouvi uns estalidos, foguetes com certeza...— E qual era o trabalho? Está à beira de uma nova descoberta científica? — Sim e não. Se

querem saber, estou na pista de um tesouro perdido — declarou Orlando, compondo uma expressãodivertida, quase malandra, que os fez duvidar.

— Humm... Resolveu começar o ano a gozar à nossa custa? — Não, não. O que vos digo épura verdade. Venham comigo.

Assim que entraram na sala de jantar os dois irmãos soltaram um ah! > de espanto, e comrazão, pois o rebuliço era total! Havia pirâmides de livros no chão e em cima das cadeiras, imensosmapas antigos e modernos sobre o tampo da mesa, com açucareiros, bules e chávenas de chá asegurar as pontas.

Havia também uma travessa de loiça cheia de papéis amarelados e rolos de documentosenfiados no fruteiro.

Orlando, que parecia achar toda aquela confusão absolutamente natural, pegou numa lupa echamou-os.

— Olhem! O que eu procuro deve estar ali.Eles inclinaram-se a observar a zona do mapa de África que a lupa ampliava mas não

reconheceram nada do que viam.— Mo-no-mo-ta-pa — leu o João separando bem as sílabas. — Monomotapa. Nunca ouvi

falar em tal sítio.— Nem eu. E como também não sabemos o que procurar, estamos em branco. Tem que se

explicar melhor.— Bom, eu já vos disse que persigo um tesouro...— Pois — interrompeu o João. — Mas essa palavra na sua boca pode ter vários significados.

Ora confesse lá, anda louco à procura de um tesouro a sério ou quer imenso encontrar meia dúzia deesquisitices que só interessam a sábios e pessoas do género? Orlando soltou uma das suas

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inconfundíveis gargalhadas roucas.— Vocês são impagáveis! E eu adoro-vos por serem assim francos — exclamou, sempre com

o mesmo brilhozinho de entusiasmo a iluminar-lhe os olhos azuis. — Ando à procura de peças deouro maciço e marfim. Serve? Em resposta, obteve alguns assobios de aprovação seguidos deinterrogatório: — São muitas peças? — E onde é que estão? — É fácil encontrá-las? — Se forpreciso escavar, conte connosco. Trabalhamos de graça — disse o João na brincadeira. — Mas claroque no fim esperamos ser maciçamente recompensados...

A sugestão levou Ana a perguntar: — As peças desaparecidas não têm dono? Orlando passoua mão pela careca e sentou-se no único sofá livre, fingindo-se desnorteado: — Tss... Tss! Parem deme bombardear com perguntas, que estou a ficar zonzo! — Se ficasse zonzo com tanta facilidade, nãoera cientista.

— Conte-nos tudo, vá! — Está bem, está bem... Instalem-se aí no tapete e oiçam.Não precisou de repetir a ordem. Sentados de pernas cruzadas e cabeça erguida, fitaram-no

avidamente. E ele, com a satisfação própria de quem partilha um saber raro, começou usandoexpressões de conto de fadas: — Em tempos que já lá vão; havia um reino muito rico e poderoso nointerior da África. Não se sabia ao certo onde ficava porque a floresta densa e perigosa escondia oscaminhos, mas sabia-se que nesse reino existiam minas de ouro e que os homens caçavam elefantes,pois reuniam grandes quantidades de marfim. O chefe conseguira impor-se aos povos vizinhos eformar um verdadeiro império, o império do Monomotapa (1).

— Ah! — Que giro! — Bom, acontece que as riquezas provocam o mesmo tipo de sentimentose levantam o mesmo tipo de problemas em todas as épocas. Quem as tem vive em sobressalto commedo de ser roubado e procura maneiras de se proteger, a si, à família, aos tesouros... Ora aimaginação humana é semelhante em toda a parte do mundo; portanto, digam lá onde viveria a cortede Monomotapa? — Num castelo — responderam em coro.

— Exacto. Quando mouros e cristãos erguiam muralhas e torreões aqui na nossa terra, osmonomotapas faziam o mesmo no meio da floresta africana. As ruínas dessas grandes casas de pedraainda lá estão.

— E depois? — O resto da história também é parecido. O império de Monomotapa manteve-se durante vários séculos, houve períodos de paz e períodos de guerra, revoltas contra o rei econflitos entre as famílias mais poderosas. Mas o que eu e os meus colegas temos andado ainvestigar é um acontecimento especialíssimo...

Os olhos azuis faiscaram e a cara mudou de expressão. Agora parecia prestes a entrar emconfidências ou a abordar mexeriquices sobre a vida pessoal de um amigo.

*(1) Na parte final deste livro, p. 175, encontra-se um resumo mais completo da História deMonomotapa.

— Descobrimos que um rei Monomotapa, a quem a lei permitia ter várias mulheres e que játinha três, resolveu pedir a filha de um chefe inimigo em casamento. Na altura declarou que estavapreocupado, não desejava mais conflitos e assim garantia uma paz longa. Mas diz-se que a verdadeera outra, que terá sido influenciado pela fama da rapariga, fama de ser lindíssima, de ter uma vozfantástica e de saber dançar melhor do que ninguém.

— Cá por mim estou a gostar do romance, só não percebo onde entra o tesouro.— Lá estás tu com as impaciências do costume! Não interrompas o Orlando, deixa-o acabar.— Pronto, pronto! Continue.

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— Os mensageiros partiram carregados de presentes. Levavam jóias para a noiva, lembrançasespecialmente preparadas para agradar aos irmãos, tios, primos, e ferramentas de ouro e de marfimpara o pai da noiva.

— Ferramentas de ouro? Isso não devia dar o menor jeito para trabalhar! — Claro que não!Mas essas ferramentas não serviam para trabalhar, eram apenas enfeites. No Monomotapa o rei usavacomo símbolos de poder pequenas enxadas e pequenas lanças de ouro e marfim. Para amansar ofuturo sogro, enviou-lhe uma colecção completa, e ainda encomendou aos artistas da corte outrosobjectos preciosos.

— Nesse caso o pedido de casamento foi aceite, não? — Provavelmente teria sido, mas osmensageiros nunca chegaram ao seu destino.

— Perderam-se? — Não. Desapareceram sem deixar rasto. Ainda hoje não se sabe o queaconteceu à caravana.

— Não me parece mistério nenhum — disse o João. — Está-se mesmo a ver que decidiramfugir e ficar com as coisas.

— Enganas-te. Os mensageiros tinham sido escolhidos entre os homens da maior confiança dorei e todos deixaram na corte mulheres e filhos. Mesmo que dois ou três se sentissem tentados alargar tudo e a fugir com o tesouro, era pouco provável que todos concordassem em atraiçoar o rei eesquecer a própria família. Alem disso, foram procurados por montes e vales e nunca se encontrou omínimo vestígio nem deles nem da carga que transportavam.

— Que estranho! — É estranhíssimo, de facto. A notícia correu de boca em boca,desencadeou buscas, perseguições, mas não apareceu nada, e acabou por dar origem a duas lendas. Aprimeira dizia que os espíritos dos antepassados não queriam aquela união entre os dois povos epara a evitar precipitaram a caravana num abismo sem fim. A segunda dá outra versão. Conta que ofeiticeiro da tribo estava apaixonado pela rapariga e para impedir que ela casasse com outrotransformou os mensageiros em árvores.

— E roubou o tesouro? — Não. Enterrou-o debaixo do tronco que correspondia ao corpo dochefe da caravana.

Orlando calou-se e eles, sugestionados pelo relato, permaneceram em silêncio, entregues auma espécie de sonho tão saboroso como inquietante. Imaginavam os corpos a adquirirem formavegetal, a pele enrugando-se para ficar castanha e dura, braços, mãos e dedos esticando-se eretorcendo-se até se imobilizarem convertidos em ramos, o último grito abafado para sempre numsussurro de folhagem...

e o feiticeiro de volta das suas árvores a escolher a maior, a mais velha, a mais forte paraenterrar ouro e marfim bem no centro da raiz...

— A história é giríssima — disse o João -, mas parece-me demasiado fantástica para levarcientistas a fazerem pesquisas.

— O teu comentário tem lógica porque estás a baralhar lendas com factos. Nós não vamosprocurar abismos nem árvores humanas. Queremos é recuperar peças que têm valor porque são deouro e de marfim e porque têm vários séculos. São peças únicas, obras de arte. Se conseguirmosachá-las, tornam-se estrelas...

— Humm? — Estrelas de um museu. Vão atrair multidões, televisões, revistas, jornais,fotógrafos, um êxito mundial. Há muito que não há descobertas capazes de provocar tal alvoroço!Ergueu-se, voltou a pegar na lupa e chamou-os de novo para junto da mesa.

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— As investigações têm-se desenvolvido por etapas. Primeiro fizemos cálculos sobre opercurso da caravana. Como sabemos de onde é que eles partiram e para onde se dirigiam,delimitámos a zona provável do desaparecimento. É essa que tem um círculo vermelho no mapa.

— A seguir recolhemos as tais lendas, que pouco adiantaram, porque abismos há vários,sobretudo nos rios cheios de rápidos e cataratas. Quanto a árvores, são aos milhares, pois trata-se defloresta...

— E então? — Passámos à fase seguinte. Não ficaram documentos escritos do império deMonomotapa. Mas há relatos de viajantes que passaram por aquela zona alguns séculos depois de oimpério se ter extinguido.

Esses viajantes contactaram com descendentes do rei e de outras pessoas e foram registandonos seus diários o que ouviam contar. Nós pensámos que valia a pena ler todas as folhas quechegaram aos nossos dias e andámos a arrebanhar material pelas bibliotecas. Trabalhámos imenso erealmente valeu a pena, porque no meio de cartas e bilhetes sem grande interesse apareceu parte dodiário de um viajante que nos deu uma pista.

Apontou-lhes então uma folha de papel quase a desfazer-se, escrita em letra miúda e com tintaacastanhada.

— Está áí, vêem? Só se consegue decifrar uma parte do texto, mas o homem diz que encontrouuma pequena ferramenta de ouro à beira de um rio. E nós sabemos qual é.

Agora eram os olhos da Ana e do João que soltavam faíscas.— Nesse caso podem ir lá procurar o resto! — Já fomos! Tomámos logo o primeiro avião.Levámos connosco materiais sofisticadíssimos para tentar localizar o sítio exacto onde passou

este viajante, e tivemos que desistir.— Porquê? — Porque todas as conclusões apontavam para onde actualmente há uma cidade.

Não podíamos destruir as casas para escavar por baixo e também não quisemos divulgar o resultadodas nossas pesquisas porque sabemos que as pessoas perdem a cabeça por tesouros. Receámos quealguém derrubasse paredes à toa.

— Há uma coisa que não estou a perceber, Orlando.Por que é que não se metem na máquina do tempo e vão ver o que aconteceu realmente à

caravana? — Também já nos fartámos de fazer essa viagem sem qualquer êxito, porque asinformações que temos não são rigorosas. Quem se desloca no espaço tem de saber para onde vai, olocal, caso contrário não chega lá. E quem viaja no tempo tem de saber para quando vai, a data,senão perde-se. Sem onde nem quando, temos andado à deriva. Mas creio que durante esta benditanoite de passagem do ano resolvi a questão.

— Como? — Tanto li, tanto rebusquei na papelada, que achei uma página coberta dedesenhos. Julgo que pertence ao mesmo diário.

Retirou da travessa de loiça mais um pedaço de papel a desfazer-se e exibiu-o com orgulho:— Não fala em tesouros, mas cá para mim o desenho do penedo em forma de leão é um mapa paraassinalar o local onde o homem achou a ferramenta. E está assinado aí no canto. A letra da assinaturaé igualzinha à do texto anterior. Ora vejam.

— Tomás, 1878 — leu Ana em voz alta. — Quem seria? — Não faço ideia o mais certo, noentanto, é tratar-se de um pombeiro.

— que é isso? Caçador de pombos? — O , — Não. Os pombeiros eram uns tipos muitoespeciais e muito corajosos. Os únicos africanos que faziam longos percursos pelo interior do mato.

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Conheciam os habitantes daqui e dali, conheciam os caminhos e habituavam-se desde muito novos aenfrentar perigos terríveis. Dormiam ao relento se fosse preciso e pouco se ralavam de seremapanhados por um temporal. Mas o mais importante de tudo era saberem lidar com os animaisferozes. A experiência permitia-lhes sentir a aproximação de uma fera pelo cheiro, pelas vibraçõesdo solo ou até devido a um simples estalido de árvores na floresta.

Assim podiam evitar encontros desagradáveis ou então caçar. E, como vocês calculam, paracaçar leões, elefantes, rinocerontes, é preciso muito sangue-frio e uma pontaria extraordinária.

— Mas por que é que os pombeiros andavam no mato de um lado para o outro? — Parafazerem comércio. Trabalhavam por conta própria ou aceitavam prestar serviços a quem lhespagasse bem. Os portugueses que nesta altura viviam em África contratavam muitos pombeiros parairem às terras do interior buscar marFim e outras coisas. Este Tomás deve ter sido um deles.

— Acha? — Claro. Para saber escrever na nossa língua, é porque teve contacto comportugueses. Além disso há o nome. Talvez fosse filho de um português e de uma africana, não sei.

— Que será que ele fez à ferramenta de ouro? — Se a encontrou num momento muito especialem que estava aflito e pediu ajuda aos espíritos dos antepassados, guardou-a com certeza, porquepassou a considerá-la objecto sagrado.

Agora se topou com a ferramenta por acaso, talvez a tenha vendido por bom preço.— É pena que o diário não esteja completo — suspirou o João, que de repente entendeu por

que motivo os cientistas dão valor a coisas que não interessam a mais ninguém.Aquele Tomás despertava uma curiosidade aguda e apetecia-lhe imenso saber se era um

homem velho ou novo, até que ponto conhecia os segredos da floresta, se alguma vez lutara com ferase tinha cicatrizes de que se orgulhar. Mas acima de tudo, nem ele percebia porquê, apetecia-lheperguntar pela ferramenta, se dera mais valor ao ouro ou ao objecto em si.

Vendeu-o? Passou a usá-lo ao pescoço como talismã para ter sorte aos negócios? Ana tambémse mostrava seduzida por aquela personagem que irrompera do passado cheia de força e cheia demistério.

— Adorava conhecer o Tomás.Sempre mais atrevido, o irmão pegou-lhe logo na palavra e propôs: — Ó Orlando, podíamos

começar o ano com uma viagenzita bem agradável. Metíamo-nos na máquina do tempo, e zás!Mergulhávamos de cabeça na data indicada pelo diário, procurávamos o local certo e talvezconseguíssemos encontrar o nosso amigo pombeiro. Mas se ele já lá não estiver, podemos pelomenos escavar à volta do pedregulho em forma de leão. Com sorte, ainda achamos o resto do tesouroperdido! — Era isso mesmo que eu estava a pensar fazer antes de vocês chegarem.

— Então de que é que estamos à espera? — Só preciso de avisar os outros cientistas.Orlando tentou estabelecer comunicação através de todo o tipo de maquinaria. Usou

computadores, telefones, faxes, e nada, ninguém lhe respondeu. Quanto muito ouvia a voz dos amigosno gravador a desejar Boas-Festas e a pedir deixe a sua mensagem.

— Pelos vistos andaram todos na farra e agora estão a dormir.— Melhor. Deixe-lhes o recado e vamos só nós.A proposta não parecia desagradar a Orlando: — De facto, não há nenhum inconveniente.

Damos lá um salto e se por acaso descobrirmos alguma coisa faço uma bela surpresa aos meuscolegas de trabalho.

Na sua cara redonda de velho estampara-se uma expressão de rapaz que gosta de fazer

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partidas.— Ora vamos lá para o laboratório. E não me deixem esquecer o detector de metais!

capítulo 2Um mergulho com mais de cem anos Quem viaja no tempo sabe por experiência própria que o

mergulho noutra época é sempre estonteante. Quando a máquina se imobilizou ficaram um bompedaço em silêncio, atordoados e com a sensação de que o mundo inteiro lhes vibrava por baixo dospés.

— Safa! Desta vez parece que viemos depressa de mais. Estou completamente tonto.— Também eu — disse a Ana, erguendo-se a custo. — E esta roupa sufoca-me. Por que é que

me vestiu assim? Não dá o menor jeito para caminhar na floresta.— Não fui eu, foi a máquina. Este novo modelo é muito mais sofisticado do que os anteriores.

Logo que se carrega nos botões que indicam a data e o local para onde se vai, todos os ocupantesficam vestidos de acordo com a época. Foi o que nos aconteceu. A nossa fatiota correspondeexactamente à moda usada pelos viajantes europeus que vinham a África no século XIX.

— Tinham péssimo gosto — queixou-se a Ana, incomodada com o peso do vestido. —Vinham para uma terra quente com mangas compridas e saias até aos pés, que horror! — Naqueletempo era impensável as senhoras usarem saias curtas — disse Orlando.

— Está bem, mas por que é que não enfiavam umas calças? — Uma mulher vestida de homemseria um escândalo tão grande como a saia curta! — Só há escândalo se houver alguém para ver, eaqui estamos sozinhos. Deixem-me mudar de roupa senão morro de calor.

— Nem penses. Vocês já sabem quais são as regras. Quando viajamos no tempo temos quenos adaptar e não fazer ondas.

Neste momento, de facto, estamos sozinhos, mas pode aparecer alguém.— Há assim tantos viajantes europeus no mato. — perguntou João, numa tentativa de ajudar a

irmã.— Há poucos. Mulheres então há pouquíssimas, mas nada nos garante que não encontremos

um grupo. E também temos que considerar os habitantes da zona, os africanos, que estão habituados aver os homens brancos de uma determinada maneira.

Não podemos aparecer de outra. Já vos disse mil vezes que é proibido alterar a História.— A gente sabe, Orlando, mas desta vez julgámos que tinha resolvido esquecer a lei.— Porquê? — Porque viemos buscar um tesouro que pertence ao Monomotapa...— Lá estás tu com as tuas fantasias! Não me ouviste explicar que o império do Monomotapa

se desmantelou há séculos? Que já não existe? — Ouvi. Mas não há descendentes? — Descendentesdirectos, que eu saiba não. Nós viemos em busca de um tesouro que não pertence a ninguém porquese perdeu — acrescentou Orlando quase zangado. — Sou cientista, não sou ladrão! — Desculpe,Orlando. Às vezes digo a primeira parvoíce que me vem à cabeça.

— Deixa lá, esquece. Estas discussões tolas devem ser efeitos secundários da viagem super-rápida que acabámos de fazer. Se já se sentem ambientados, o melhor é sairmos da máquina.Precisamos de ar fresco.

Assim que desembarcaram foram envolvidos por uma onda de calor forte, estimulante, capaz

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de duplicar energias. E os olhos inundaram-se de cores explosivas, mil tons de verde luminoso,outros tantos de verde baço, céu azul firme e um Sol que parecia brilhar por vontade própria.

— Que tal? — perguntou Orlando.— Lindo! Bandos de pássaros chilreavam esvoaçando por entre as árvores, mais além as

águas do rio davam sinal de si no cantarolar alegre de quem possui rápidos e cataratas.João, ansioso por encontrar uma superfície que lhe reflectisse a imagem para verificar se as

botas de cano até ao joelho, o colete cheio de bolsinhos e o chapéu rijo lhe assentavam bem, fezmenção de tomar o caminho do rio.

— Espera — pediu Orlando. — Deixa-me arrumar a máquina do tempo.Pegou no comando à distância e carregou nos botõezinhos certos para fazer deslizar a porta,

que se fechou suavemente e sem ruído. Depois accionou o mecanismo electrónico que tornou oconjunto invisível.

— Pronto! Já apagámos os vestígios da nossa origem, podemos fazer-nos passar porexploradores de outro tempo que ninguém desconfiará. Só duas peças nos podem trair...

— Quais? — O comando à distância, que guardo aqui neste bolso do colete. E o detector demetais. Mas como só tenciono usá-lo com total segurança, não há problema. Vamos lá então procuraro pedregulho que aqui nos trouxe...

O rio era largo, corria entre margens de floresta espessa e estava coberto de uma quantidadeinacreditável de plantas aquáticas. Troncos finos, folhas grandes e pequenas, entrelaçadas,sobrepostas, formavam um autêntico manto vegetal.

— Que espectáculo! — Será que podíamos andar em cima dessas verduras sem ir ao fundo?— Nem pensar! Convém, aliás, que não se cheguem muito por causa dos crocodilos.

O alerta fê-los suspender a marcha a uma distância prudente, e puseram-se ambos à coca. Defacto, por entre as plantas circulavam vários pares de olhos frios e traiçoeiros. João agarrou-se aocano da espingarda que transportava ao ombro e apalpou o invólucro das balas numa interrogaçãomuda.

Serviriam para furar carapaças tão rijas? Ia perguntar ao Orlando, mas naquele momento odetector de metais emitiu um zumbido e precipitaram-se os três sobre o montículo de terra quejulgaram responsável pelo chamamento.

Cavando a várias mãos, ficaram com as unhas cheias de terra e formigas a entrar pelasmangas, mas só encontraram um espigão de ferro cheio de ferrugem. Orlando pegou-lhe, mirou-o enão se mostrou tão desiludido como seria de esperar.

— Tem piada! Isto é usado pelas mulheres de uma tribo que vive mais a norte, as mulheres deCabango. Serve para fazer penteados e para coçar a cabeça.

A face vermelha e suada exibia a satisfação típica do homem para quem o saber e a ciênciaestão acima de tudo.

— Deve haver muitas preciosidades deste género, mas não podemos trabalhar ao acaso.Temos que procurar o rochedo em forma de leão que vimos desenhado no diário do pombeiroTomás.

Pelos meus cálculos, basta seguir ao longo da margem do rio e nem teremos que andar muito.— E os crocodilos? O rio está cheio de crocodilos! — É natural, Ana. Estão na terra deles.

Quem vem a África não pode entrar em pânico por causa dos animais ferozes. Deve, isso sim, tercuidado. Neste caso, por exemplo, não vamos caminhar em cima do lodo, seguimos o curso do rio um

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pouco afastados da linha de água.João, como de costume, fazia-se forte: — Anda daí, não sejas medricas.Avançaram então em fila indiana, atentos aos sons da floresta e, por que não confessar?,

atentos também às batidas do coração.O terreno era ondulado, coberto de verdura, mas curiosamente não apresentava sinais de

rocha; só algumas pedras arredondadas emergiam do lodo e eram com certeza muito escorregadias.— Será que nos enganámos no local? — Não — respondeu o Orlando, que ia na frente e já se

apercebera de um pequeno pormenor pouco agradável -, houve, foi um erro na orientação dodesenho...

— O que é que isso quer dizer? Ele parou e coçou a cabeça entre risonho e atrapalhado.— Quer dizer que o desenho em forma de leão está diante dos nossos olhos mas na outra

margem. Ora vejam.Desviou-se, afastou uns arbustos e mostrou-Lhes um pedregulho enorme cujo formato

lembrava o focinho e a juba do rei dos animais.— E agora? — Das duas, uma. Ou desistimos ou atravessamos o rio.— Como? — De jangada, numa canoa...— Mas não temos nada disso! — E eu cá por mim acho perigosíssimo — confessou a Ana. —

O melhor é voltarmos para trás e usar a máquina.— Isso é impossível. Já vos expliquei que o novo modelo só realiza as tarefas para que foi

programado. Faz viagens longas e difíceis, não dá saltinhos da margem direita para a margemesquerda. Portanto, decidam lá. Querem acompanhar-me nesta mini-expedição? Ou tencionam recuarde cada vez que apareça uma dificuldadezinha? — Zinha... zinha... não será — resmungou a Ana.

— Eu por mim atravessava o rio, mas sem canoa...— Isso arranja-se.— Onde? — Alguns povos desta região têm por hábito esconder as canoas em lagos interiores

que comunicam com o rio. Enfiam-nos por baixo da vegetação aquática. Vamos procurar, venham!Seguiram, ainda hesitantes, e hesitantes continuavam quando se muniram de ramos secos paravasculharem por entre os tufos de plantas verdes que cobriam um pequeno lago situado logo adiante.

De facto, lá estava um tronco escavado por dentro, uma piroga de tamanho razoável e comdois remos arrumados no fundo.

— Então? Tentamos a grande travessia? Ana baixou a cabeça e permaneceu muda. Quanto aJoão, dividia-se, pois também ele sentia retorcidelas no estômago, mas por outro lado a atracção doperigo tornava-se forte. Além disso, o enorme pedregulho que talvez ocultasse uma fortuna chamava-o de longe com insistência.

— Claro que vamos consigo — declarou, enchendo o peito de ar. — Se o Orlando nosconvida é porque não acha perigoso.

Dito isto, saltou para dentro da canoa e pegou num remo.— Ih! É enorme! Parece uma vara.— E é. Não serve para remar sentado.— Em pé não sei se me consigo equilibrar.— Consegues. Vai lá para trás que eu fico à frente. E tu, Ana, senta-te ao meio.A canoa oscilou ligeiramente quando tomaram posição.Esperaram que estabilizasse para dar o primeiro impulso. No momento do arranque todos sem

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excepção tinham os olhos arregalados num misto de alegria e pavor.A embarcação, sendo frágil, era bastante fácil de manejar.Tomaram o canal que ligava ao rio e depois foi só orientarem-se de acordo com a corrente. O

formato bicudo da piroga permitia que cortasse as águas com uma certa velocidade. Afinal as plantasaquáticas não constituíam obstáculo e os enormes crocodilos que flutuavam também à mercê dacorrente não pareciam particularmente interessados nem na canoa nem nos seus ocupantes. Em todo ocaso, Ana manteve-se hirta e com as mãos no colo, porque não se atrevia a pousá-las no rebordo demadeira.

Depressa, depressa, pensava em silêncio. Vamos depressa para o lado de lá.Mesmo sem querer, os olhos fugiam-lhe para as carapaças verdes e rugosas que se

deslocavam entre as plantas, provocando um ou outro plof inquietante. Quanto aos remadores,tinham-se concentrado ao máximo na tarefa difícil de remar e manter o equilíbrio. Por isso é quedemoraram a aperceber-se de que o facto de sentirem as solas húmidas tinha um significadotremendo...

— O barco está a meter água! — gritou Ana num sufoco. — Socorro!

capítulo 3Esse rio dos crocodilos! Os remadores ficaram sem pinga de sangue, e a primeira reacção foi

acelerarem os movimentos na esperança de atingirem a margem antes que a canoa se afundasse, maso nervoso impedia-os de manejar as varas ao mesmo ritmo.

— Cuidado! Cuidado! — gritava a Ana, desesperada com os balanços que os impulsosdesencontrados imprimiam à maldita piroga. — Se continuam a remar assim viramo-nos! Evitavaagora olhar para o rio, com medo de que a agitação e a gritaria tivessem despertado a curiosidadedos jacarés.

Cravara os olhos na nuca do Orlando e repetia ora em voz alta ora em voz baixa: — Cuidado!Cuidado! Um crocodilo enorme, certamente atraído pela presença de convivas barulhentos, irrompeua nadar na direcção da canoa e outros seguiram-lhe o exemplo.

Não era possível avaliar quantos devido às plantas aquáticas.— Urlando — chamou o João num tom sumido -, a água já me chega aos tornozelos...Ana desatou a chorar, tapando a cara com as mãos.— Acalmem-se — ordenou o cientista, que recuperara o autodomínio. — Não falta muito para

atingirmos terra firme e dá tempo para lá chegarmos sem incidentes. A fenda por onde está a entrarágua é pequena e estreita.

— Como é que sabe? — Por dedução. Se fosse larga não tínhamos chegado aqui.Agora calem-se, está bem? Se continuam nessa berraria é que nos viramos mesmo.Os dois irmãos acatariam a ordem da melhor vontade se não estivessem já rodeados de

crocodilos. Assim era difícil controlarem-se. Reconhecendo no entanto que Orlando tinha razão,esforçaram-se por ignorar a abominável companhia, mas depressa se aperceberam de que emsituações extremas é preferível enfrentar o perigo e avaliar a gravidade da ameaça.

Fazendo das tripas coração, passearam a vista em redor.Havia bastantes crocodilos, uns maiores, outros mais pequenos.

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Deslizavam à volta deles de forma pachorrenta e de boca fechada. Seria só para ver? Outencionariam comer? Esbugalhados de terror, procuraram adivinhar as suas intenções, mas quem éque entende seres de olhar frio e carapaça dura? A aflição sufocava-os. E ainda por cima no fundo dacanoa a água subia, devagarinho, mas subia...

Ana desatou a atirar chapadas de água pela borda fora, sem grande resultado. As mãosrecolhiam pouca quantidade e tremia tanto que uma chapada para fora equivalia a duas para dentro.

— Usa as botas — lembrou o irmão. — Servem de balde.Ela descalçou-se e então sim, conseguiu reduzir ligeiramente o nível da água.— Estamos quase... estamos quase...O pior é que no outro lado, descansando pacatamente no lodo, havia vários parentes dos

terríficos nadadores que os acompanhavam.— Preparem-se — disse Orlando, que pelo menos na aparência se mantinha sereno. —

Preparem-se porque quando vararmos em terra convém saltarmos com rapidez e corrermos para omato.

E tal qual um avô pachola que fizesse recomendações aos netos no final de uma viagem emautocarro ou comboio, acrescentou: — Não te esqueças das botas, Ana. E tu, João, não largues aespingarda.

Orientou a canoa para o sítio que lhe pareceu mais livre e incentivou: — Força, João. Remapara ali. Força! A margem aproximava-se cada vez mais e o susto crescia, porque saltar em terrasignificava ter que fintar uma ou duas famílias de jacarés.

O embate no lodo foi violento. Assim que a piroga encalhou, voaram como loucos e ó pernaspara que te quero! Enbrenharam-se pelo matagal sem darem tempo aos répteis de decidirem sequeriam ou não devorá-los.

Ana corria de saia arregaçada, com as botas suspensas à volta do pescoço, presas pelosatacadores. Mais leve do que os companheiros, passou-lhes à frente. Todos deixavam atrás de si umrasto de pegadas sonoras, pois a cada avanço na lama correspondia um schoft..., e arfavam de línguade fora. Só pararam quando lhes pareceu que tinham atingido território seguro. Abateram-se entãosobre a erva, exaustos, mais pelo medo do que pelo trabalho dos músculos.

Nas três cabeças misturavam-se em remoinho as imagens do que acontecera e as imagens doque podia ter acontecido. E a mistura era aterrorizante! Estendidos ao comprido, braços e pernasabandonados como se não lhes pertencessem, olhavam o céu através da copa das árvores, incapazesde dizer se estava limpo ou coberto de nuvens. Uma experiência tão forte demora a encaixar!Permaneceram imóveis e apáticos durante um bom pedaço, mas a pouco e pouco lá foramrecuperando o fôlego. A certa altura perceberam que o espírito lhes balançava entre sentimentoscontraditórios. Ora estremeciam ainda em transe ora lhes vinha à boca um delicioso, saboroso,inconfundível sabor a vitória.

— Arriscámos e ganhámos — murmurou o João, dando voz ao que todos pensavam. — Quemnão arrisca não petisca.

Ana sorriu, abanou a cabeça num movimento afirmativo e foi a primeira a levantar-se. Ovestido ficara num estado lastimável, as botas estavam encharcadas e as mãos sujas permitiam-lheimaginar o aspecto que teriam a cara e o cabelo.

No entanto, contemplava-se encantada, porque as manchas, os rasgões e as esfoladelas outracoisa não eram senão a prova palpável de que enfrentara o perigo e vencera. Assim os receios

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mirravam, encoLhiam, escondiam-se no fundo do coração.— Se escapámos desta, havemos de escapar de outras — declarou alto e bom som. — Vejam

lá se arrebitam, que temos mais que fazer.Os companheiros acolheram com agrado a reviravolta de ânimo e levantaram-se também,

rindo e comentando a travessia: — Eh! pá, tinham cada bocarra...— Nem quero pensar que vamos fazer o caminho inverso...— Não se preocupem — disse o Orlando. — Agora procuramos o tesouro conforme estava

combinado.— E depois? — Depois o melhor é marchar rio acima. Pode ser que haja por aí uma daquelas

pontes feitas de madeira e de corda para voltarmos ao lado de lá sem os crocodilos à perna. Mas senão houver, podemos sempre ir até à povoação mais próxima e pedir que nos transportem numacanoa em boas condições. Esta zona é habitada, acabaremos por encontrar alguém que nos ajude.

Mais descontraídos, encaminharam-se para a formação rochosa que lhes servira de meta. Àmedida que se aproximavam apercebiam-se de um pormenor engraçado; o penedo não se limitava asugerir cabeça e juba de leão, parecia um leão completo que ali se tivesse deitado a descansar e quedevido a algum estranho feitiço se imobilizara para sempre transformado em pedra. Não faltavam aspatas encolhidas, as garras, a cauda.

O detector de metais começou a vibrar ainda dentro do bolso do Orlando, e eles, claro,excitadíssimos: — Vai ver que acertámos em cheio! — Adoro leões de pedra! Os momentos que seseguiram foram uma perfeita loucura! Cada zumbido levava-os a atirarem-se ao chão e aescarafuncharem à doida em busca de metais ocultos. De vez em quando berravam Achei! , mas porentre os torrões removidos só apareciam ninharias, bocados de cobre e ferro que nem se percebiapara que serviam.

Apesar das desilusões sucessivas, recusavam-se a desistir, e a escavação desvairadaprolongou-se até ao pôr do Sol. Não foi, no entanto, a falta de luz que os alertou para a hora tardia,foi o estômago. Não tinham comido nada durante todo o dia e a fome impunha-se.

— Estou sem forças — queixou-se o João. — Preciso absolutamente de mastigar seja o quefor.

Olhou em volta à procura de frutos, que não havia.Os caules não Lhe pareceram comestíveis e as folhas , embora lindas, verdes, aveludadas,

também não. Virou-se então para o Orlando, que coçava a careca com ar contrariado.— Já é tardíssimo — murmurou visivelmente aborrecido. — Foi um disparate não prestarmos

atenção às horas.A noite insinuava-se, não tardaria a escurecer.— O que é que fazemos? — Uma fogueira.— Hã? Ele abriu os braços num gesto de impotência: — Lamento imenso mas não acho

aconselhável caminhadas nocturnas. Temos que ficar aqui a dormir ao relento. Acendemos umafogueira para afugentar os animais e podemos combinar turnos de vigia.

A ideia sorriu-Lhes. Acampar é sempre divertido, a temperatura morna tornava-seconvidativa, e por trás do arvoredo a Lua ainda pálida prometia elevar-se nos céus e oferecer umanoite esplendorosa. Confiavam nas labaredas para evitar visitas incómodas, e se houvesse azar láestariam as espingardas.

— Cá por mim, tudo bem. Só queria era comer alguma coisa.

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— Não me parece que haja plantas comestíveis nas imediaçöes.A única hipótese é ir à caça, portanto fazemos o seguinte — propôs o Orlando. — Reunimos

achas naquele terreno mais limpo, acendemos um bom lume e vocês instalam-se. Eu vou ali maisabaixo e ponho-me à coca de espingarda em punho. É natural que apareçam zebras, ou gazelas, ouanimais do género que procurem esta zona do rio para beber. A margem é baixa, deve serfrequentada.

— E se aparece um leopardo ou um búfalo? — Nesse caso tento passar despercebido e voltopara trás. Há uma regra que devemos respeitar, sabem? Nunca nos metermos com feras se elas não semeterem connosco.

— Que regra inteligente! — Como sou inteligentíssimo e vocês também, temos que organizarum acampamento excepcional, coisa de génios, hã? A conversa brincalhona de Orlando animou-os.

— Então vamos a isso! Por precaução limparam ainda melhor o terreno escolhido,encaixaram troncos e folhas secas numa pilha jeitosa e chegaram-lhe fogo. As chamas irromperam,provocando aquele estralejar que sempre transmite conforto, e eles instalaram-se de pernas cruzadas.Sabia-lhes tão bem a pausa que nem se afligiram por ver Orlando afastar-se e desaparecer a caminhodo rio. Pelo sim, pelo não, colocaram a espingarda a jeito.

João tirou as botas, arrumou-as de forma a servirem-lhe de almofada e, deitando-se de barrigapara o ar, soltou um suspiro de descontracção e prazer. A irmã preferiu continuar sentada.

Ia espevitando o lume com um pauzinho e deixava correr o pensamento sem se fixar emnenhuma ideia concreta.

Anoitecera, o luar ainda despontava, derramando uma luz suave. Sons abafados, estalidosténues, o resfolegar de seres invisíveis, criavam a ilusão de que a própria floresta respirava. O fumo,que se desprendia da madeira em pequenas espirais, tinha um cheiro forte, agradável. Fechou osolhos, inspirou fundo para saborear o aroma da lenha queimada e por instantes abandonou-se àdeliciosa sensação de que fazìa parte do ambiente, pertencia à floresta. Quando voltou a erguer aspálpebras julgou ver o tronco de uma árvore a enrugar-se, a franzir-se, tomando forma de cara.

"Que disparate!", pensou. "A fraqueza deu-me volta ao miolo." Não conseguia no entantoafastar os olhos do tronco.

A casca retomara o aspecto normal e ela relaxou."Estou com visöes..." Mas a uma segunda olhadela o fenómeno repetiu-se. Movimentos subtis

na casca rugosa formavam olhos, nariz e boca. Depois desaparecia tudo e o tronco ficava liso.— João! — chamou em surdina. — Anda cá.Convencido de que a irmã estava com medo, João soergueu-se e perguntou-lhe, assumindo

ares de protector: — Algum problema? — Não sei. Chega-te ao pé de mim para me dizeres se vês omesmo que eu ou se é miragem.

A proposta enigmática funcionou como íman.— Mostra! Ana passou-lhe o braço à volta dos ombros e puxou-o para si de modo a ficarem

com as cabeças juntas.— Repara naquele tronco de árvore e diz-me se tem alguma coisa de especial.A luz da Lua tornara-se mais intensa e a floresta vibrava numa sinfonia de murmúrios,

guinchos agudos e graves, um rumor indefinido, entrecortado pelo quebrar de ramos secos.— Parece que tem cara de gente — sussurrou o João espantadíssimo.Uma brisa tépida agitou a folhagem e desceu sobre eles, roçando o cabelo, acariciando a pele.

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Os ruídos longínquos criavam uma atmosfera de encantamento... Incapazes de raciocinar com clareza,levantaram-se e avançaram sempre muito juntos na direcção da árvore misteriosa. Iam devagar,devagarinho, quase sem sentirem o chão debaixo dos pés! De súbito, porém, estacaram atordoados,sem perceberem se o que tinham pela frente era sonho ou realidade.

Desfizera-se a ilusão, mas daquele sítio parecia-lhes que o tronco escapava às leis da florestae formava grupo à parte com outras árvores, quinze árvores muito próximas e todas iguais.

A lenda da caravana enfeitiçada atravessou-lhes o espírito, brusca e fulminante como um raio.No mesmo impulso precipitaram-se para a árvore mais grossa, a maior, a mais velha, e enterraram osdedos junto às raízes que emergiam do solo, a esgravatar num verdadeiro frenesim.

Quando o tacto lhes anunciou um objecto frio, iam desmaiando, e então quando por entre aterra solta julgaram vislumbrar reflexos dourados, quase estoiraram de alegria.

— O tesouro, Ana! O tesouro...

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capítulo 4Reviravoltas da sorte Orlando foi encontrá-los completamente transtornados e com as mãos

feridas. Tinham feito várias covas por entre os nódulos da raiz, e sobre um monte de folhasalinhavam-se dois machados minúsculos com a pá de ouro e o cabo de marfim, outro maiorzinho ecoberto de figuras gravadas à lâmina, uma pequena lança de cobre trabalhado, quatro objectos quepareciam cachimbos de ouro maciço. Havia também um colar e algumas contas soltas.

O assombro fê-lo largar a gazela que trazia aos ombros, ainda quente. E, tal e qual um miúdofascinado por brinquedos novos, ajoelhou-se a remexer nas peças.

— Meu Deus! Nem acredito...Prolongou-se o delírio até de madrugada, e seria impossível dizer qual dos três se mostrava

mais entusiasmado.Por muito que revolvessem e escarafunchassem em redor das árvores, não acharam mais nada.Mas aquela descoberta chegava e sobrava para os pôr ao rubro.Radiantes da vida, levaram o tesouro para o acampamento improvisado e passaram horas

inesquecíveis ora contemplando as ferramentas preciosas ora conversando sobre feitiços efeiticeiros. Não se cansavam de contar e recontar como tinham sido atraídos por uma visãoinexplicável, uma autêntica miragem, mais extraordinária ainda por ser comum aos dois.

— Foi incrível, Orlando. A casca franziu-se, engelhou-se, e parecia mesmo uma cara aflitaque quer gritar e não pode! — Acha que a tal lenda pode ser verdadeira? — Acredita em feitiçarias?Ele não lhes disse que sim nem que não. Nada na sua atitude faria suspeitar que duvidasse do relatofantástico, pelo contrário. Incentivou-os, pediu pormenores e até lhes confessou que ele próprio jápassara por experiências esquisitas, género transmissão de pensamentos e sonhos repetidos trêsnoites seguidas que se tornavam realidade.

— Às vezes acontecem coisas inexplicáveis — concordava.Exultantes de felicidade, não se sentiam nem cansados nem com sono. Esfolaram a gazela e

chamuscaram-na numa euforia selvagem. À falta de sal, esfregaram a carne com umas ervinhasaromáticas que o Orlando garantiu serem apropriadas e, depois de bem assada directamente nasbrasas, cada um pegou no seu naco e vá de lhe ferrar o dente! Comeram como nunca tinham comidona vida, a sorver pingos de gordura, a deixar escorrer o sangue pelos cantos da boca e a mastigarvorazmente, alarvemente.

João acabou por rugir à maneira de um cão ou de um leão em pleno repasto. Riam, atacavamde novo, engoliam bocados quase inteiros. De vez em quando procuravam o olhar uns dos outrospara melhor reviverem cada minuto, e o peito dilatava-se-lhes de alegria. Só muito tarde sentiramaquele cansaço bom que chega depois da festa, músculos amolecendo, longos bocejos saborosos.

Orlando preparou a fogueira para que o lume não se extinguisse enquanto repousavam eestendeu-se ao lado.

Pelo sim, pelo não, pediu à Ana que se acomodasse de forma a cobrir o tesouro com as saias.João voltou a usar as botas para apoiar a cabeça; desta vez, porém, deitou-se de barriga para baixo.Antes de adormecer constatou que cheiravam imenso a couro.

"Rima com tesouro...", pensou antes de adormecer.Já o Sol ia alto quando uma infernal guincharia de macacos os veio arrancar ao sono profundo

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em que todos tinham mergulhado. Atarantados, sentaram-se de repelão, não reconhecendo deimediato o sítio onde se encontravam. Mas no minuto seguinte já se debruçavam a admirar as peças,e acharam-nas ainda mais bonitas do que na véspera.

— São realmente lindíssimas! — Isto parece um sonho.Remexeram, voltaram a remexer, fizeram-nas tilintar uma e outra vez, até que Orlando decidiu

pôr fim ao êxtase contemplativo.— Vamos lá a guardar as coisas para nos irmos embora.João pegou nas machadinhas e propôs: — Eu levo algumas, está bem? — Pode ser.

Distribuem-se pelos dois casacos.A arrumação demorou, porque o feitio de cada peça exigia que escolhessem o bolso certo.— A ponta da lança vai romper o pano.— Então dá cá — disse Orlando. — Os meus bolsos são maiores.Retirou para fora o detector de metais e o comando que abria a porta da Máquina do Tempo e

fez novos arranjos.— Pronto, assim ficou tudo bem acondicionado.Antes de partirem quiseram dar uma última vista de olhos ao local das escavações. Era pouco

provável que houvesse mais peças enterradas, mas nunca se sabe.Lá no alto o Sol brilhava louro e bem disposto, avivando as cores. Sob os efeitos de uma

luminosidade tão directa e franca, tornava-se difícil acreditar nas magias da noite anterior.— Tem piada, hoje os troncos das árvores parecem-me normalíssimos.O irmão, que fora o primeiro a chegar perto, concordou: — A mim também. E nem sequer

consigo perceber onde é que estão aquelas árvores que escapavam à lei da floresta.— Não estão em lado nenhum — disse Orlando com um leve sorriso. — Nada escapa às leis

da floresta.Eles estranharam o comentário e fitaram-no, interrogativos.— Vocês com certeza não acreditam que os troncos possam ter cara de gente, pois não? —

Ah... mas nós vimos — gaguejaram.— Não viram. Tiveram uma ilusão de óptica muito natural.Lembrem-se de que tinham passado por uma experiência terrível e estavam de estômago

vazio. Além disso, a lenda que vos contei influenciou-vos com certeza. Fome, medo e sonhos formamum conjunto explosivo que pode provocar as reacções mais extraordinárias.

O luar também ajuda.— Humm... concordo, mas somos dois — insistiu o João.— É verdade. Dois irmãos, que ouviram as mesmas histórias quando eram pequenos, leram os

mesmos livros , viram as mesmas imagens de animais falantes, árvores falantes... Não admira quetivessem a mesma ilusão.

— E aquele grupo à parte de quinze...Orlando riu com vontade: — Quando uma pessoa quer confirmar um sonho ou uma suspeita,

arranja sempre maneiras subtis de o fazer. Vocês contaram quinze árvores porque era esse o númeromágico que tinham na cabeça. Mas se olharem em volta, podem verificar que há muitas mais. Sãoárvores da mesma espécie.

— Ontem o Orlando não falava assim.— Pois não, filhos. Um cientista também tem direito a gozar prazeres irracionais, e foi o que

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eu fiz ontem. Entreguei-me gostosamente à maluqueira de conversas semifantasmagóricas.Sabe bem, descontrai, mas esse tipo de raciocínios só se aguenta de madrugada. Em pleno dia

as coisas mudam de figura.— No entanto, não pode negar que encontrámos o tesouro.— Pois não.— Então como é que explica...— Explico lindamente. Tínhamos uma pista e seguimos as indicações, o que é um

procedimento perfeitamente científico.Depois houve um acaso, uma feliz coincidência, como tantas vezes acontece por exemplo nos

laboratórios. A ciência também avança graças a acasos oportunos, coincidências felizes.Vagamente desconsolados, sem saber se aceitavam ou não aqueles argumentos, vasculharam

as covas feitas na véspera, mas sem grande convicção. Acabaram até por virar costas, seduzidos poruma família de macacos engraçadíssimos que desceu das árvores e se instalou a uma distânciaprudente. Os filhotes observavam-nos com os olhinhos pretos a luzir e os adultos coçavam-se, napose de quem aguarda que as crianças se cansem de uma novidade. João tentou aproximar-se, maseles recuaram logo, aos saltos e aos guinchos. Alguns penduraram-se nos ramos das árvores eficaram para ali a balouçar de cauda pendente.

— Está quieto — pediu a Ana. — Não te mexas a ver se eles se aproximam outra vez.Imobilizaram-se ambos, hirtos como estátuas e perdidos de riso. Um dos macaquinhos mais

pequenos arriscou de imediato uma aproximação. Os lábios arreganhados deixavam à mostra dentesamarelos e um bom pedaço de gengiva.

"Guinch... Guinch..." Enquanto eles se entretinham com a bicharada, Orlando aplicava-se atentar escavar atrás de um nódulo onde o detector anunciava existências metálicas. Mas a terra ali eramuito dura e não cedia às investidas do polegar gordinho e das unhas rentes. Lembrou-se então daponta de ferro que descobrira logo à chegada, o espigão que servia de enfeite e de pente às mulheresde Cabango.

"Pois a mim vai servir de enxada..." Procurou nos bolsos e, como não acertou à primeira,esvaziou-os um por um.

"Onde é que eu meti o raio do espigão, hã? Tê-lo-ei perdido nas andanças nocturnas?" Lançade cobre, cachimbos de ouro e o comando da Máquina do Tempo repousavam lado a lado num tufode verdura. Do bolso mais pequeno saiu um lenço, vários papeluchos amarrotados, e por baixo láestava a pequena ponta de ferro que procurava.

Satisfeito, ajoelhou-se e esfuracou em volta da raiz. O bico metálico abria caminho na terracompacta e já raspava em qualquer coisa de outra natureza, pois fazia tzzap....

Concentrado na sua tarefa, nem sentiu os passos da Ana e do João, que se abeiraram dele embicos de pés e lhe fizeram uma surpresa. No momento em que voltou a cabeça para declarartriunfante "Mais um colar!", viu um macaquinho infernal saltar dos braços do João, precipitar-sesobre o tufo de verdura e fugir rapidamente aos guinchos levando consigo um cachimbo de ouro e ocomando da Máquina do Tempo! O berro que lhe saiu da garganta provocou grande alarido entre amacacada, que se escapuliu soltando gritos estridentes.

Os dois irmãos fitaram Orlando em pânico, e pior ficaram quando ele abanou a cabeça numanegativa estarrecedora.

— Sem o comando não podemos entrar na Máquina do Tempo — declarou consternado. —

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Estamos perdidos.— O que é que quer dizer com isso? Nunca mais podemos voltar à nossa época? — Não, Ana.

Calma aí, não tornes as coisas piores do que elas são. Ficámos sem o nosso meio de transporte.— Mas porquê? — atalhou o João. — Não há uns botões, umas teclas, umas células

fotoeléctricas para abrir a porta? — Já vos disse várias vezes, esta máquina é muito recente, muitomoderna. Está tudo programado para funcionar de uma determinada maneira e não de outras. Osconstrutores quiseram que não houvesse lugar a improvisos, portanto ou accionamos o comando àdistância ou nada feito.

— As modernices às vezes só atrapalham.— Pois é.— E agora? Antes de lhes explicar o que se seguia, inspirou fundo.— Não ficamos nem pior nem melhor do que os europeus que vieram desvendar o interior da

África misteriosa de há cem anos. Estamos vivos e de saúde, temos armas, algumas munições, evamos fazer uma travessia perigosa.

— Mas vamos para onde? — Para Moçambique. Junto às praias do oceano Índico há umasbrechas no tempo, uma espécie de canais invisíveis que dão passagem de uns séculos para os outros.A nossa associação tem aparelhos que registam tudo o que se passa nesses locais. Se nos colocarmosna mira , somos detectados pelo cientista de serviço, e pronto. Sugam-nos! A explicação serenou-osum pouco.

— Estamos muito longe de Moçambique? — Para vos falar com franqueza, não faço a mínimaideia.

E já agora ficam a saber tudo. Não temos bússola para nos orientarmos.— Então como é que pensa encontrar o caminho certo? — Vou fazer cálculos pela observação

do Sol, procurar uma aldeia, tentar pedir informações como fizeram muitos aventureiros que por ummotivo ou por outro perderam os instrumentos trazidos da Europa.

— Nunca morreu nenhum? — Morreram imensos, mas também se salvaram muitos.— Quais? — Os mais resistentes, mais corajosos, que tiveram mais sorte e mais confiança no

destino. Gente como nós, entendem?

capítulo 5O navegador terrestre A longa marcha de horas e horas debaixo de um Sol escaldante que os

fazia suar por todos os poros, mais a fome que só conseguiam enganar bebendo água do rio, foi umverdadeiro tormento. Evitavam queixar-se para não desanimar os outros, mas a certa altura João nãoresistiu.

— Nós para aqui a dar à pata e se calhar os macacos todos contentes a viajar na nossamáquina! A ideia de uma família de macacos deslocando-se pelos corredores do Tempo com todo oconforto moderno era cómica, fê-los rir e descontrair.

— Reparem que a vegetação mudou. Há muito mais palmeiras e árvores de campo. Ou eu meengano muito ou estamos perto de uma povoação...

Ouvindo aquilo, Ana e João exultaram e queriam desatar a correr, mas Orlando impediu-os:— Esperem! Não nos convém desperdiçar energias, e além disso temos que combinar o que dizer

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quando encontrarmos pessoas.Lembrem-se de que estamos em grande desvantagem. Se desconfiam de nós, podem matar-nos.Detivera-se à sombra de uma copa larga e espessa a tomar fôlego, e enxugava o suor com o

velho lenço amarrotado.— O Orlando não disse que nesta época andavam por aqui alguns viajantes brancos? —

Disse. Mas como deves calcular não vinham fazer turismo.Eram comerciantes, missionários ou cientistas.— Então nem precisamos de mentir, dizemos que é cientista.— Humm... os cientistas vinham sozinhos ou em grupo, mas nunca com jovens atrás e muito

menos raparigas. Isso provocaria suspeitas.— Comerciantes? — Também não. Os comerciantes deslocavam-se com grandes caravanas,

muitos carregadores, alguns animais de carga e carga para trocar. O melhor é eu dizer que soumissionário e vocês meus sobrinhos. Isso não causará estranheza.

A conversa foi interrompida por um som que Lhes pareceu realmente divinal: — Tambores!Tambores! O ritmo surdo e cadenciado de mãos alternando sobre uma pele esticada não permitiadúvidas. Ali perto havia seres humanos, alguém com quem falar, alguém a quem pedir comida, genteda terra, para quem aquela terra misteriosa não tinha segredos.

— Aleluia! — exclamou Ana, assumindo já o papel de sobrinha de missionário. — Aleluia! Apovoação não ficava longe, mas antes de lá chegarem foram interceptados por um grupo de homensque lhes barrou o caminho. Eram todos altos, fortes, e estavam armados. Os que vinham à frentetraziam espingardas, os outros transportavam escudos de pele e lanças.

O ar altivo e a atitude guerreira pareciam indicar tratar-se de uma patrulha.Orlando saudou-os compondo uma expressão de simpatia e respeito, mas os dois irmãos

captaram perfeitamente no franzir da boca aquilo a que se chama um sorriso amarelo.— Temos bronca.— Calma, não mostrem medo, que é pior.As tentativas de comunicação fracassaram porque Orlando não sabia a língua local e os gestos

que esboçou não foram reconhecidos ou não surtiram o efeito desejado.O chefe da patrulha, que trazia na cabeça uma enorme cabeleira feita com juba de leão,

começava a ficar irritado, sacudia pernas e braços, e os companheiros imitavam-no, fazendo tilintaras pulseiras de marfim, latão e cobre que todos usavam nos pulsos e à volta dos joelhos. Discutiamentre si dizendo palavras que aos ouvidos de Ana pareciam qualquer coisa como "Muizi e Cu-Tigja".Também repetiram várias vezes "Cicota, Cicota".

Como a situação se estava a pôr feia, ela resolveu arriscar tudo por tudo e, aproveitando umsegundo de pausa, esboçou o mais lindo sorriso de que foi capaz e pronunciou docemente: — Cicota.

Orlando ficou verde, João ficou roxo, mas os guerreiros, após um momento de estupefacção,riram, riram , atirando a cabeça para trás em gargalhadas sem fim.

— Vais ver que na língua deles essa palavra é anedota...— Eles ainda agora não estavam a contar anedotas, o mais certo é ser um palavrão...— Temos sorte. Acharam-te graça! Fosse lá o que fosse, aquele estratagema de Ana resultou.

O ambiente tornou-se quase amistoso, e num esbracejar óbvio os guerreiros fizeram-lhes sinal paraque os seguissem.

Percorreram um trilho longo e estreito através de uma mata de árvores frondosas, e

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finalmente, ao cair da tarde, chegaram à povoação (*). As casas eram arredondadas, feitas de cana ecobertas de palha. Só tinham porta e havia vários quintais onde cresciam plantas de tabaco e cana-de-açúcar. *Esta povoação chamava-se Itufa.

Logo que penetraram no recinto, viram-se rodeados por mulheres e crianças. Os maispequenos riam, tocavam-lhes, fugiam, voltavam, numa provocação brincalhona. Eles riam também,embora ainda não estivessem certos do que os esperava.

Num gesto instintivo, João passou a mão pelos bolsos onde transportava as peças de ouro,mas Orlando deu-Lhe uma cotovelada recomendando entredentes: — Nunca chames a atenção paraaquilo que queres esconder...

Conduziram-nos a uma das casas, talvez a maior, onde foram recebidos por um velho decabelos grisalhos que falava e se movia como as pessoas que estão habituadas a mandar e a serobedecidas. Diante dele até o chefe guerreiro mudou de atitude.

Conversaram durante um bom bocado, e eles com a sensação de estarem a ser julgados e aaguardar a sentença. De início mantiveram-se cabisbaixos, e foi uma pena não terem continuadoassim, pois quando a Ana levantou a cabeça deparou com centenas de aranhas enormes, achatadas enegras descendo pelas paredes num caminhar vagaroso. Espavorida, soltou um grito e agarrou-se aoirmão, o que mais uma vez provocou grande risota.

— Vamo-nos embora daqui! — choramingou ela.— Odeio aranhas...A cara do chefe exprimia bondade e compreensão.Ele próprio os encaminhou para o exterior, e já no terreiro deu uma ordem que não

entenderam. Pouco depois viram chegar um rapazola que decerto não pertencia à tribo, pois vestia demaneira diferente, usava calças e camisa de pano.

— Quem será este? — perguntou o João em voz alta.O rapaz sorriu e apresentou-se em português: — Chamo-me Pepeca.A alegria que sentiram foi indescritível! Saudaram-no efusivamente, soltando exclamações de

regozijo alternadas com perguntas em cadeia a que não era possível responder, e abraçaram-se unsaos outros, saudando-se também entre si com pancadinhas nas costas.

— Que sorte! Que sorte! Aquelas manifestações divertiram a população. Homens, mulheres ecrianças formaram um círculo risonho em volta deles. A certa altura ouviu-se uma bela vozmasculina cantarolar os sons que eles não se cansavam de repetir: "Que sorte! Que sorte!...", e entãofoi gargalhada geral.

Mas a voz insistiu em arrancar variações àquelas sonoridades desconhecidas: "ooo... ooorte!"Outras vozes se lhe juntaram de imediato num cântico profundo, magnífico, que provocava arrepios.Pouco depois a aldeia em peso cantava e dançava numa impressionante explosão de vitalidade,harmonia, beleza. As crianças participavam movendo o corpo e dominando os músculos como setivessem nascido ensinadas. Vibrava o chão, agitavam-se as copas das árvores numa imensa festaespontânea, calorosa. E eles no meio do círculo atrapalhadíssimos, com a sensibilidade à flor dapele, esforçando-se por reprimir lágrimas de espanto e comoção.

E o cântico prosseguia: "Sorte... sorte..." Só bastante mais tarde vieram as explicações, quenão podiam ser mais agradáveis. Pepeca fazia parte da caravana que acompanhava um viajanteportuguês.

— Como é que ele se chama? — perguntou Orlando, já de olhinhos a luzir.

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— Serpa Pinto. Alexandre Serpa Pinto.Ao ouvir aquele nome o velho cientista esfregou as mãos de contente: — Eu não vos disse que

era preciso confiar no destino? Pois bem, o destino arranjou-nos a melhor das companhias. Eh! Eh! Apartir daqui integramo-nos na expedição de Serpa Pinto! — Conhece-o? — Pessoalmente, não. Massei que é um viajante especialíssimo. Veio de Portugal para estudar zonas do interior de África eresolveu fazer a travessia completa.

Desembarcou em Angola e já se fartou de andar para chegar aqui.— É verdade — confirmou Pepeca.— Ele quer passar do oceano Atlântico ao oceano Índico sempre por terra. É uma espécie de

"navegador terrestre".— E acha que nos aceita no grupo, assim, sem mais nem menos? — Claro que aceita —

respondeu Pepeca. — Até lhe vai fazer bem, porque tem andado muito doente. Falar com pessoas daterra dele ajuda a matar saudades e desanuvia a cabeça.

Conversavam enquanto comiam os petiscos cedidos pelo chefe, uma panela de leite coalhadoe uma cesta com farinha de milho.

Embora lhes soubesse bem a pausa, não convinha que se demorassem, pois não tardaria a sernoite.

Antes de abandonarem a aldeia Pepeca foi recolher as galinhas que tinha vindo comprar eOrlando despediu-se do chefe oferecendo-lhe a pele da gazela caçada na véspera.

Puseram-se então a caminho, sempre em amena tagarelice. Ana voltou-se uma ou duas vezespara guardar na retina a imagem da aldeia aconchegada no mato de onde levava boas recordações.

— Temos que andar muito? — perguntou o irmão.— Não. É já aí acima, perto das lagoas.O acampamento de Serpa Pinto ficava no alto de uma colina e era simplicíssimo: fogueira ao

meio, barracas de troncos e folhas à volta. Havia bastante movimento porque a caravana incluíaimensos carregadores, pombeiros, moleques, alguns dos quais tinham trazido as mulheres.

Àquela hora circulavam ocupando-se com os afazeres normais de fim de dia e não repararamque Pepeca vinha acompanhado.

Mas os cães, logo que pressentiram a aproximação de estranhos, puseram-se a ladrarfreneticamente, e as mascotes do grupo, uma cabra e um papagaio, associaram-se berrando "Mééé..."e "Olá! Olá!".

A chinfrineira atraiu as atenções e Pepeca anunciou então alegremente: — Trago visitas!Trago visitas portuguesas! O explorador, que estava sentado junto da fogueira, ergueu-se de imediatopara se certificar de que era verdade.

Assim que lhes pôs a vista em cima, a cara iluminou-se-lhe e abriu-lhes os braços.— Meu Deus, nem acredito... parece impossível...Na face muito pálida desenharam-se rosetas vermelhas e os olhos cintilaram como carvões em

brasa. Era evidente que ardia em febre.— Sente-se, por favor — disse Orlando. — Não queremos de maneira nenhuma incomodá-lo.— Incomodar? Que ideia! É uma alegria encontrar compatriotas do outro lado do mundo!

Venham, venham aqui para ao pé do lume e contem-me o que vos trouxe de tão longe, o que vosaconteceu...

Uma leve tremura percorreu-lhe o corpo e obrigou-o a sentar— se de novo meio reclinado

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sobre uma pilha de mantas.— Desculpem, sim? É que estas malditas febres não me largam há meses. Tomo doses cada

vez mais fortes de quinino, melhoro pouco tempo depois caio doente , , um inferno. Hoje sinto-me defacto muito mal. Mas não falemos de mim, falemos de vocês! Ana deixou aos companheiros a tarefaingrata de inventarem um chorrilho de aldrabices e foi colocar-se de esguelha, para poder observaraquele homem sem se tornar notada. Talvez fosse do cansaço ou das experiências excitantes que sesucediam a um ritmo louco desde que atravessara o rio dos crocodilos, ou talvez nada disso tivesseinfluência no que lhe estava a acontecer agora, mas a verdade é que se sentia fortemente atraída poraquele aventureiro alto, magro e bonitão. Pouco se ralava que fosse mais velho, e como nãotencionava fazer confidências a ninguém, entregou-se ao prazer de o contemplar.

O cabelo comprido caído sobre o pescoço ficava-Lhe lindamente, a barba por fazer dava-lheuma graça toda especial, e até a palidez contribuía para o tornar mais apetecível. No entanto, o quemais a fascinava era o olhar, um olhar vivo, brilhante, magnético! Naquele momento falava comOrlando, mas, sentindo-se observado, voltou-se para ela e sorriu. Depois fez aquilo que se podechamar um elogio em diagonal, pois, em vez de se Lhe dirigir directamente, interpelou o João: —Sabes que a tua irmã é muito bonita? Ana corou de prazer e sorriu também, mas logo a seguir ficouembaraçadíssima, pois julgou vislumbrar na cara do irmão um lampejo de troça. As bochechaspassaram de vermelho a escarlate e o embaraço agravou-se porque continuavam todos a olhar paraela. Gostaria de dizer uma graça ou puxar qualquer assunto que desviasse as atenções. Como não lheocorreu nada, ergueu-se e sacudiu a saia.

— Posso dar uma volta pelo acampamento? — perguntou, esforçando-se ao máximo por falarcom naturalidade.

— Podes, claro. Talvez até fosse boa ideia dares uma olhadela na cabana que mandei arranjarpara vocês dormirem. É aquela ali, mesmo ao pé da minha. Queres ir lá ver se está tudo em ordem?— Sim, sim, com certeza.

Antes que o irmão se lembrasse de a seguir a dizer piadas parvas, quase correu para o localindicado. Ia na intenção de se encafuar rapidamente na cabana para sozinha, sem testemunhas, poderrecuperar o sangue-frio.

Mas o percurso, embora curto, foi altamente perturbante por causa dos homens da caravanacom quem se cruzou.

Lançavam-lhe olhares de esguelha que ela não conseguia interpretar. Seria má vontade?Irritação por pensarem que a chegada de visitas implicava mais trabalho? O desconforto fê-ladesejar apagar-se, passar despercebida.

Num reflexo automático, moderou o passo e tornou-se leve.Quando se aproximou da cabana que lhes estava destinada já ia em bicos de pés, deslizando

como uma sombra. Ouvindo vozes no interior, deteve-se e ficou à escuta. A conversa envolvia váriaspessoas. Seriam quatro? Cinco? Gente de mais para preparar uma simples cabana. E falavam baixo,quase em surdina. Porquê? "Há qualquer coisa que não bate certo..." Pouco depois viu-os sair um porum, cinco homens adultos e dois rapazes. Se pudesse escondia-se mas , , como não tinha onde, deu-lhes as boas noites. Ao contrário do que esperava, não se mostraram particularmente incomodadoscom a sua presença, nem sequer surpreendidos. Cumprimentaram-na também com acenos de cabeça edisseram frases curtas em português, frases do género "tudo pronto, cabana livre". E ela estática, comum meio sorriso, a ponderar: "Se calhar viram-me através de alguma frincha e pouco se ralaram

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porque calculam que não sei línguas africanas... Ou então talvez seja tudo fantasia minha, não sei!"Após uns quantos acenos os homens afastaram-se e os rapazes foram atrás, mas adiante viraram acabeça e envolveram-na num olhar que muito claramente transmitia pena. Ana estremeceu, assuspeitas transformaram-se em medo e já nem entrou na cabana, disparou veloz para junto dafogueira, onde chegou a arfar.

— O que é que te aconteceu? — perguntou o João, admirado. — Vens a fugir de algum bicho?— Não... não é nada.

Apetecia-lhe imenso falar com o irmão e com o Orlando em particular, pô-los ao corrente dassuas inquietações, mas pareceu-Lhe que seria pouco delicado chamá-los de parte e desatarem aoscochichos. Além disso, não tinha nada de concreto para lhes dizer, e portanto preferiu calar-se. Devez em quando observava as pessoas em volta da fogueira, mais os vultos que se deslocavam peloacampamento, tentando convencer-se de que tudo não passava de imaginação. Mas por muito que seesforçasse, os maus pressentimentos não deixavam de a atormentar. Só se distraiu quando chegou ocurandeiro que Serpa Pinto mandara chamar a outra aldeia, por lhe terem garantido que sabia tratarfebres como mais ninguém. Foi Pepeca quem fez as apresentações e explicou os sintomas da doença.O curandeiro ouviu, ouviu, e depois tirou um cordão que trazia ao pescoço cheio de caroços de frutacortados ao meio. Aproximou-se de Alexandre, andou de roda dele sem lhe tocar, murmurou umasérie de palavras mágicas e atirou os caroços ao ar. Uns caíram no chão virados para cima, outrosvirados para baixo, o que, segundo souberam pela tradução de Pepeca, lhe permitiu fazer odiagnóstico.

— Este homem diz que o senhor tem febre porque os espíritos dos seus antepassados nãoestão contentes e resolveram persegui-lo. Se Lhes der um presente, eles vão-se embora e a doençadesaparece.

Todos fingiram acreditar e o curandeiro recebeu como pagamento um saquinho de pólvora.Quando partiu, o doente lamentou-se: — Que pena! Tinha imensa esperança que houvesse por aíalguém capaz de me ajudar com remédios locais.

Afinal nada feito! Vou mas é preparar a injecção de quinino, porque tomado pela boca já nãome faz nada.

A febre devia ter subido imenso; estava lívido e com péssimo aspecto.— Vá-se deitar — recomendou Orlando. — Uma noite bem dormida reforça o tratamento. E

nós vamos também, que estamos cansadíssimos.Recolheram num silêncio entrecortado por longos bocejos.Pouco depois Orlando ressonava e o João adormecera, mas a Ana, que não se libertara por

completo da inquietação, revolveu-se na esteira durante muito tempo. A certa altura pareceu-lheouvir gemidos de dor na barraca ao lado e resolveu ir dar uma olhadela. Alexandre suava em bica eremexia-se de olhos fechados a dizer frases desconexas: — São cobras... — balbuciava. — Cobras eratos.

Ela ainda olhou em volta, toda arrepiada, mas não havia ali dentro bichos de espécienenhuma.

"Está a delirar" pensou. "Coitado!" E chegando-se à cabeceira abanou-o suavemente.— Alexandre! Ele arregalou os olhos mas não deu mostras de a ver e tornou a mergulhar num

sono convulsivo.Ana procurou então qualquer coisa para o arrefecer, talvez papéis que abanaria junto à cara.

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Mas encontrou melhor do que isso.Uma bacia com água, "que bom!" Encharcou a ponta da saia e passou-lha pela testa

escaldante. Verificando que dava resultado, repetiu a operação várias vezes. A pouco e pouco odoente foi acalmando. Já não falava em ratos nem em cobras e a respiração tornava-se regular.

Contente por lhe ter proporcionado um certo alívio, divertiu-se a imaginar que era enfermeira,uma enfermeira supercompetente e super-responsável.

"Fico de vela toda a noite", decidiu. "Não posso abandoná-lo." Acomodou-se conforme pôde,convencida de que aguentava firme. Puro engano. A escuridão, o cansaço, o relaxamento dosmúsculos, tiveram o efeito que seria de esperar. Daí a pouco dormia a sono solto. Nem se apercebeuda restolhada no acampamento, nem ela nem os companheiros. João ainda entreabriu as pálpebras,alertado por um ruído próximo, mas como o que lhe passou diante dos olhos foi um elefante brancominúsculo a voar, achou que era sonho e voltou-se para o outro lado. Antes não o tivesse feito...

Antes de o Sol romper, àquela hora em que o céu se tinge de um azul-claro muito suave e asplantas começam a ganhar vida, ouviu-se um grito prolongado, um grito aflitivo que acordou toda agente: — Ladrões! Ladrões! Das barracas saíram várias caras ensonadas. João precipitou-se para oterreiro, quase chocando com um dos africanos que pertencia à caravana e que berrava como louco:— Fomos roubados! Fomos roubados! Mas onde estavam os gatunos? O acampamento encontrava-sedeserto e a numerosa caravana reduzia-se agora a três homens, três rapazes e duas mulheres. Os cãesfarejavam à toa, a cabra soltava balidos sem fim e o papagaio insistia em chamar: "Caiumbuca...Caiumbuca..." Mas também esse pombeiro tinha desaparecido.

capítulo 6A carabina d'el-Rei A verdade, a terrível verdade, fez-se ouvir pela boca de um Pepeca

completamente transtornado: — Os ladrões não vieram de fora, senhor. Foram os nossoscarregadores e os nossos pombeiros que roubaram tudo o que havia no acampamento. Fugiramdurante a noite, só ficámos nós...

Fez-se silêncio. Um silêncio pesadíssimo. Ninguém encontrava palavras capazes de consolaro chefe da expedição, porque não há nada mais triste do que ser traído pelas pessoas em quem seconfiou.

Para estupefacção geral, Serpa Pinto largou à gargalhada: — Ha! Ha! Ha! E riu tanto, tanto,que pensaram ter-lhe faltado o juízo.

— A febre subiu-lhe à cabeça — cochicharam a Ana e o João. — Se o Orlando contava comele para nos ajudar, estamos bem arranjados... Enlouqueceu.

Felizmente enganavam-se. O explorador não perdera o tino; fora, isso sim, atacado por umriso nervoso, como às vezes acontece em momentos de desespero. Logo que recuperou oautodomínio, virou-se para os que lhe tinham permanecido fiéis e agradeceu com profunda comoção:— É preciso que vocês sejam realmente muito fortes, muito corajosos, muito meus amigos paraquererem continuar ao meu lado na miséria em que ficámos...

Enfraquecido pela doença e pelo desgosto, sentou-se encostado a uma árvore.— Deve ter sido tudo muito bem combinado — disse um negro chamado Augusto. — Se

calhar puseram plantas do sono na comida e por isso é que a gente não ouviu barulho.

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— Talvez tenhas razão... — E os cães não deram sinal porque conheciam os ladrões...— Pois foi...Ana ainda esteve para falar nas suas desconfianças e maus pressentimentos, mas não o fez por

recear que julgassem estar a armar-se em espertinha.— Quer que vá atrás dos fugitivos? — propôs Augusto num repente.— Não. Quero é que vás dar uma volta a ver o que sobrou.Ao ouvirem aquela ordem, Orlando e João sentiram um baque no peito.— Os casacos! — exclamaram em coro. — os nossos casacos! Correram que nem setas para a

cabana onde tinham dormido.Pouco depois voltavam a arrastar os pés. Ana não precisou de lhes perguntar nada para saber

tudo.— Os casacos ficaram — disse o irmão quase a chorar. — Mas de bolsos vazios...E, enfiando os dedos nas diversas algibeiras exteriores e interiores, virou-as do avesso. Se

ele estava triste, Orlando era a perfeita imagem do desconsolo.— Traziam objectos de valor? — comentou Alexandre.— Moedas?— Sim, algumas — disse o João. — E um livro de missa, uma bússola...Como ele embalara a inventar mentiras inúteis, Orlando cortou-lhe a palavra.— O mais grave foi que levaram as nossas armas e as munições.Augusto não trazia melhores notícias.— Os malandros fizeram limpeza geral. Está tudo vazio menos a barraca do senhor.Alexandre ergueu-se e sem perder a calma pediu que acendessem um bom lume.— Vou passar revista às minhas coisas e volto já.Encaminhou-se para a cabana naquele passo largo de quem sente tonturas mas faz questão de

não perder o equilíbrio.Ana ficou a vê-lo ir, interrogando-se: por que motivo teriam saqueado tudo menos o abrigo do

chefe? Por respeito, por medo? No fundo, no fundo, gostaria de pensar que fora ela a protegê-lo."Eu estava a dormir sentada mas os tipos não sabiam. Talvez tenham dado uma espreitadela

antes de entrar e, vendo-me assim, afastaram-se pé ante pé com medo de que eu me pusesse aosgritos..." A ideia era deliciosa. Retomou-a vezes sem conta, imaginando-se de novo à cabeceira dodoente nas longas horas de vigília. E compunha a história, chegando até a inventar diálogos entre osladrões no momento da fuga, diálogos no género: "A mulher que está a tratar do chefe pode dar oalerta e estragar os nossos planos... ou então pegar na arma e dar-nos um tiro..." Muito quieta, deolhar perdido no horizonte e sorriso aparvalhado, lembrava uma estátua de pedra. Mas se o corpoestava hirto, a cabeça fervilhava, saboreando devaneios...

Os outros interpretaram aquele alheamento como sintoma de desespero, e portanto ninguém aincomodou.

Orlando e João, demasiado infelizes com a perda do tesouro, preferiram nem falar no assunto.Mais tarde, quando ficassem a sós, haviam de usar palavras gordas, fortes, sonantes, para selamentarem em coro e insultarem os gatunos. Por agora extravasavam a raiva acarretando lenha paraa fogueira.

Alexandre regressou daí a pouco carregando uma bonita espingarda de cano curto.— De facto, não tocaram nos meus objectos pessoais.

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A papelada, as caixas com instrumentos, a muda de roupa que ainda me sobra, as peles deleopardo que me servem de colchão, o cobertor, está tudo intacto. E felizmente tinha guardado ao péda cama esta carabina que o rei D. Luís me ofereceu na véspera de eu zarpar de Lisboa — explicoucom um longo suspiro. — Também ficou outra espingarda.

— E munições? — perguntou Orlando a medo.— Levaram quase tudo. Só tenho trinta e cinco balas de aço para a carabina e vinte e cinco

cartuchos para a espingarda.— Dá sessenta tiros — disse logo Pepeca, que adorava exibir a sua habilidade para fazer

contas de cabeça.Orlando e Alexandre trocaram um olhar de entendimento e depois sentaram-se lado a lado,

fingindo-se absorvidos pela dança das labaredas. Era praticamente impossível sobreviverem apenascom sessenta balas. Se fossem atacados, depressa se esgotavam, deixando-os então completamentedesprotegidos. E se queriam comer tinham que recorrer à caça. Ora a viagem ainda era longa e haviadoze bocas para alimentar.

— Se ao menos tivessem deixado as peças de algodão que eu trazia na bagagem, podíamosmandar os homens à aldeia trocarem-nas por comida. Sempre aguentávamos mais uns dias semmorrer de fome — lamentou Alexandre entre dentes, para que mais ninguém ouvisse senão Orlando.— Assim, francamente, não sei o que fazer. Há algum peixe nas lagoas, mas pouco.

Dito isto, calou-se e caiu num profundo abatimento. Pousara a carabina nos joelhos e afagava-a com a ponta dos dedos.

— A carabina d'el-rei, a carabina d'el-rei — murmurou distraidamente.De súbito atirou-se ao ar como se tivesse levado uma chicotada e correu para a barraca

repetindo: — O estojo! O estojo da carabina! Lembrara-se de que o estojo da carabina incluía umaparelho para fazer balas.

Nunca o tinha utilizado porque não precisara, mas agora seria a salvação caso houvessepólvora, fulminantes e chumbo.

— Tenho a impressão de que no estojo da carabina, além da maquineta, vêm fulminantes. Oradeixa cá ver...

Levantou as peles que cobriam o leito e retirou uma malinha de couro rectangular que lheservia de almofada. Assim que abriu a tampa, estremeceu de alegria.

— Cá está! A máquina de fazer balas e os fulminantes. Falta a pólvora...Precipitou-se então sobre a caixa de instrumentos científicos.— Creio que usei duas embalagens de pólvora para segurar os instrumentos e impedir que

balançassem.Vendo as latas, exultou: — Só me falta chumbo e sei onde posso ir buscá-lo! Largou tudo, saiu

a correr, atravessou o acampamento e embrenhou-se sozinho no mato em direcção às lagoas.— A rede de pesca! A rede de pesca tem chumbos a toda a volta.Quase sufocava quando deitou a mão a uma enorme rede que na véspera deixara a secar à

beira da água.Apalpou os chumbos um por um e repetiu em frenesim: — Estamos salvos! Estamos salvos!

Colheu a enorme rede, enrolou-a muito bem enrolada e transportou-a às costas para o acampamento.Assim que chegou perto da fogueira atirou o fardo ao chão e anunciou feliz da vida: — Acho queresolvi o nosso maior problema! O entusiasmo devolvera-lhe as forças e parecia outro homem

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quando explicou ao grupo reunido à sua volta que um pequeno objecto, incluído no estojo dacarabina mais para enfeitar do que para outra coisa, lhes ia salvar a vida: — É uma maquinetasimples. E temos tudo o que é preciso para fabricar balas, centenas de balas! Salvamo-nos a nós esalvamos a expedição! Ria, tão contente que o riso se tornava contagioso.

Bem mais satisfeitos, puderam então pensar nos passos seguintes. Pepeca, que tinha oestômago a dar horas, propôs-se ir até à lagoa preparar armadilhas para tentar caçar patos sem gastarmunições, e a proposta foi aceite.

Augusto ofereceu-se para ir com ele e trazer água para todos beberem. Alexandre aprovou.— Só falta escolher um mensageiro para ir contar ao rei Lobossi o que nos aconteceu.

capítulo 7O elefante branco— Esse rei é o chefe simpático que nos recebeu naquela povoação onde encontrámos o

Pepeca?— Não, não. O rei Lobossi é o grande senhor desta zona (*). *O rei Lobossi dominava a

região de Barotze, que actualmente corresponde a uma zona entre Angola, Zâmbia, Botswana eZimbabwe. Neste reino falavam-se três línguas: ganguela, luína e sezuto, que era língua elegante dacorte. Vive em Lialui rodeado pela corte. Os chefes das aldeias que ficam no seu território dependemdele. E nós também — acrescentou. — Só estamos aqui porque nos autorizou.

— Nesse caso vai ajudar-nos.Alexandre torceu o nariz: — Talvez sim, talvez não. Quando eu cheguei, os nossos contactos

foram amistosos mas houve intrigas, e se querem que vos diga não sei se neste momento ele é meuamigo ou meu inimigo. De qualquer forma tenho que o informar da situação e pedir que me cedagente para prosseguir viagem. Mando-lhe o Moero, que sabe mal português mas fala perfeitamente astrês línguas locais. Assim o rei não pode empatar a conversa fingindo que não entendeu o recado.

— É muito longe? — perguntou o João com uma certa voz que a irmã bem lhe conhecia.— Não, porquê?— Porque eu adorava contactar com um rei africano, ver a corte, ver a cidade. Ó Alexandre,

deixe-me ser o mensageiro número dois! Deixe-me ir com o Moero!— Se o Orlando concordar, por mim não vejo inconveniente.Para desespero da Ana, Orlando não se opôs e o irmão partiu mesmo, delirante e sem

qualquer receio. Ela dispensou-se de antever desgraças mas ficou acabrunhada.— Que é que tens? estás aborrecida? — Perguntou Alexandre.— Não, estou a pensar... Se há hipótese de o Lobossi ser inimigo terá sido boa ideia... mandar

lá o João?— Não te preocupes. Lobossi é um homem inteligente, prudente. Recebeu-me e aceitou-me

como representante do rei de Portugal, portanto não vai agora atacar sem motivo!— Porquê?— Porque teria medo de que os portugueses se vingassem.— Mas há por aqui perto mais portugueses?— Não. Os mais próximos estão em Angola, ou então do outro lado, em Moçambique. E não

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há nenhum exército pronto a pegar em armas para vingar a minha morte, mas o Lobossi não sabe isso.Portanto, se acreditou nas intrigas, e deseja livrar-se de mim, saberá fazer as coisas de modo aparecer acidente...

Quanto aos mensageiros, recebê-los-á publicamente e de braços abertos.— Ah! Pouco convencida, maldisse o feitio impulsivo e aventureiro do irmão, "Que rapaz

impossível!" Enquanto Ana remoía zangas, João deliciava-se por viver experiências novas. Fizeratodo o caminho de nariz no ar à procura de frutas ou bagas comestíveis, que não encontrou. Masapesar da fome sentia-se feliz. E então quando entrou em Lialui ficou encantado, pois a cena quetinha pela frente era espectacular! No meio de uma enorme praça estava o rei Lobossi sentado numacadeira de espaldar alto. Vestia roupas coloridas e tinha um chapéu com penas de avestruz.

Na mão direita agitava um pedaço de madeira ao qual estavam presas muitas crinas de cavalo.Falava solenemente para mais de mil pessoas que o escutavam sentadas no chão em semicírculo.

Junto do rei havia outros homens, talvez conselheiros, instalados em cadeiras mais baixas. Umescravo protegia a cabeça do soberano com um guarda-sol.

— Que pinta! — murmurou entredentes.Moero acolhera-se à sombra de uma árvore para ali esperar que a reunião acabasse, mas a

chegada de forasteiros não passou despercebida. Lobossi suspendeu o discurso e olhou-os cominsistência durante alguns segundos. Logo que reconheceu no mensageiro um elemento da caravana deSerpa Pinto, chamou-os para junto de si e quis saber ao que vinham.

À medida que ouvia a história, fazia gestos e soltava exclamações que João tentavadesesperadamente interpretar. A curiosidade fê-lo chegar-se à cadeira real de sobrancelhas erguidas,olhos arregalados, músculos tensos. A atitude interrogativa divertiu o rei, que lhe deu pancadinhas naface e depois chamou: — Catiba! Um homem que estava sentado na primeira fila levantou-se.

Era uma figura imponente, um mulato alto, bem constituído e com uns estranhos olhos clarosde expressão solene e poderosa como os dos leões. Ao contrário do rei, não usava roupa de pano,usava peles seguras por um cinto enfeitado com amuletos e trazia outros tantos ao pescoço.Aproximou-se caminhando com elegância e traduziu a conversa num português correctíssimo.

"É intérprete", pensou João, "mas que intérprete de classe!" — Lobossi está indignado com afeia acção dos carregadores e convida Serpa Pinto a vir instalar-se aqui na cidade. O rei recebê-lo-ácom todas as honras na sua própria casa...

A maneira de falar, a pose, os gestos, tudo contribuía para impressionar. João não conseguiadesfitá-lo e mesmo sem querer mirava-o de alto a baixo. De repente, porém, a vista imobilizou-se-lhe num dos amuletos que o homem trazia ao pescoço. Era um elefante em miniatura talhado em ossoou marfim por mão de artista.

"Eu já vi este elefante", pensou. "Mas onde?" Por muitas voltas que desse à cabeça nãoconseguia lembrar-se. Curiosamente a imagem provocou-lhe uma impressão de mal-estar, umdesconforto interior , uma insegurança tremenda. Ainda lhe ocorreu que o homem usasse amuletoscom várias funções, uns para atrair e outros para afastar perigos.

"Se calhar este elefante foi preparado por um feiticeiro e tem poderes mágicos para proteger apessoa que o traz ao pescoço. Provoca agonias a quem se aproxima, dá vómitos...

O estômago vazio e a força da imaginação uniram-se para o fazer ver tudo a andar à roda. Láia o rei a grande velocidade, e os mil súbditos, conselheiros, intérpretes, tudo a girar para baixo epara cima como um carrossel.

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Pobre João! Ainda mais confuso, aflito com o líquido amargo que lhe invadira a garganta,soltou um gemido e caiu redondo aos pés de Catiba. A última coisa que viu antes de perder ossentidos foi o pequeno elefante branco a balouçar-se diante dos olhos. Num relance, julgou percebertudo...

Quando recuperou a consciência, tinha a irmã de um lado e o Orlando do outro,preocupadíssimos com o seu estado de saúde.

Assim que ele pestanejou e se moveu nas peles de leopardo que lhe serviam de cama,inclinaram-se ambos e chamaram baixinho: — João! João, acorda! E davam-lhe bofetadas ligeiraspara mais depressa o arrancarem daquela prostração.

— Vá, faz um esforço!— Olha para nós! Ele ensaiou um movimento para se levantar e descaiu logo outra vez, ainda

tonto, cheio de dores de cabeça e com uma azia horrorosa a queimar-lhe o estômago.— Aúi... sinto-me tão mal...Era um queixume mas a irmã alegrou-se porque ansiava ouvi-lo falar.— Não te aflijas — disse, inclinando-se ainda mais para lhe dar um beijo. — Tu sempre

resististe melhor à doença do que eu, portanto vais arrebitar enquanto o diabo esfrega um olho.— Bebe este caldo de pato cozido, vai-te fazer bem.Orlando estendia-lhe uma das tigelas que tinham escapado ao saque, e o cheiro bom do

líquido quente fez-lhe crescer água na boca. Levou a tigela aos lábios e sorveu gulosamente quasetudo de uma vez. Só parou para respirar.

— Hum... adoro caldo de pato cozido! Ana riu-se e vieram-lhe as lágrimas aos olhos.Conforme previra, não tardou que ele arrebitasse. Reclinado nas peles e já de olhar muito

vivo, perguntou: — Onde é que estamos? — No acampamento. Trouxeram-te de padiola.— Quando chegaste, apanhei cá um susto!...— Julgaste que vinha morto? — perguntou ele divertidíssimo.— Não! Vinha apenas desmaiado porque me aconteceu uma coisa incrível! — O quê? —

Encontrei o ladrão.— Qual ladrão? — O que nos roubou o tesouro.— Que disparate! — A sério! Pertence à corte do Lobossi.Cheio de paciência, Orlando tentou vencê-lo pela lógica: — A pessoa que nos roubou

pertencia era à caravana de Serpa Pinto, e a estas horas deve estar a milhas.— Engana-se redondamente! — insistiu o João, excitadíssimo.— Na noite do assalto eu ouvi um barulho aqui dentro da barraca e acordei estremunhado.

Sabe o que é que eu vi? Um pequeno elefante branco a voar...A irmã pôs-lhe imediatamente a mão na testa para ver se tinha febre e o Orlando reclamou: —

Oh! João! — Escutem — disse ele cada vez mais agitado. — Eu na altura não liguei, pensei quefosse um sonho. Mas não era sonho nenhum, era o amuleto que o ladrão trazia ao pescoço. E quandocheguei ao pé de Lobossi, o tipo estava lá. Sei que era o mesmo por causa do elefante.

— Olha lá, já te passou pela cabeça que pode haver dois elefantes iguais? O argumento eradifícil de rebater, e portanto calou-se, mas alguma coisa no seu íntimo lhe garantia que ele é queestava certo, que não se enganara e que o elefante era o mesmo. Mas sem provas não valia a penadiscutir.

— Não penses mais nisso — sugeriu a irmã, que não o queria ver triste. — Bebe mais caldo

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para ganhares forças, porque vais precisar delas. Partimos amanhã de manhã para bem longe!Explicou-lhe então que Serpa Pinto recusara o convite do rei e pedira autorização para seguirviagem, pois estava determinado a chegar ao Índico desse lá por onde desse. Mesmo sem caravananão queria desistir.

— Parece que o rei não ficou lá muito contente, mas acabou por aceitar e até empresta canoaspara descermos o rio Zambeze. Também mandou remadores para nos levarem parte do caminho.Depois seguimos sozinhos, mas não faz mal, porque lá na corte deram informações sobre ummissionário francês que anda aí na floresta com a família e parece que tem uma caravana enorme.

Vamos ter com ele, pode ser que nos ceda gente, e mercadorias.João estendeu-lhe o braço a pedir ajuda para se levantar e a irmã amparou-o.— Preciso de ar fresco. Vamos lá para fora.Caía a tarde e a presença dos remadores enviados por Lobossi dera uma certa animação ao

acampamento. Tinham trazido carne de vaca e batata doce, que assavam cantarolando em volta dolume. Aproximaram-se do grupo para confraternizar, mas quando um dos remadores se virou paraeles e sorriu, João quase desmaiou outra vez. Era o intérprete, o Catiba, o homem do elefante branco.

"Macacos me mordam se eu não descubro a verdade! ,E se ele for o ladrão, devolve otesouro. Se não for a bem, é a mal!"

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capítulo 8Tantas dúvidas! A partida desencadeou grande algazarra na floresta porque as canoas eram

enormes. Os homens que as tinham trazido chegaram exaustos e foi necessário ir à aldeia chamaroutros para ajudarem a transportá-las até ao rio. Vieram imensos, trouxeram cordas, e apesar deserem fortes suaram em bica e demoraram a organizar-se para erguer aqueles troncos escavados pordentro, pesadíssimos, que mediam pelo menos dez metros de comprido! No puxa daqui, levantadacolá estalavam risos, discussões, um alvoroço.

Completamente recuperado, João queria meter-se ao barulho, só que os grupos estavamformados e ele não tinha a mesma altura de ombros, portanto era impossível. Aplicou-se então notransporte de armas e bagagens, não só para gastar energias mas também para circular à vontadeentre os carregadores e remadores, mantendo sob vigilância o homem do elefante branco.

"És o ladrão? Ou não és o ladrão?", remoía, mirando-o de soslaio na esperança desurpreender uma atitude, um olhar, um gesto que confirmasse as suspeitas. Mas para seu desesperoCatiba comportava-se da forma mais natural deste mundo e até se mostrava encantado com aperspectiva da viagem.

"Quem rouba não costuma ir atrás das pessoas que roubou, sobretudo se ficaram de bolsosvazios", ponderava o João num silêncio atento. "Mas pode ter vindo porque o rei o obrigou..." Estepensamento trouxe-lhe novas dúvidas ao espírito. Que cargo desempenharia aquele indivíduo nacorte? "Tem muita classe, move-se com orgulho, fala várias línguas e na reunião estava sentado naprimeira fila... Será remador? Não acredito." Logo a seguir, porém, viu-se obrigado a outrasconjecturas porque Catiba declarara alto e bom som que lhe competia ser ele a conduzir aembarcação onde viajasse Serpa Pinto.

Se calhar é costume os homens mais importantes da corte aprenderem a remar para poderemdirigir a piroga do rei. E foi enviado porque o Serpa Pinto é uma visita ilustre...

Catiba tomara lugar na proa. Muito direito, de vara em punho, parecia uma estátua, a estátuade um guerreiro famoso, ou de um príncipe.

Sentindo-se confuso, João chegou-se à irmã. Queria expor-lhe mais uma vez as suasdesconfianças. Mesmo que não acreditasse, era um desabafo. Mas afinal ela também estava desobreaviso, porque ouvira Catiba informar o explorador de que o rei autorizava a viagem mas nãoassumia qualquer responsabilidade em caso de acidente.

— O Alexandre não devia ir ali, é perigoso — disse-lhe ao ouvido — Porquê? Em vez deresponder, puxou-lhe o braço e afastaram-se a conversar baixinho. Ninguém lhes ligou, até porqueum incidente inesperado veio mobilizar as atenções gerais. A cabrinha Cora recusou-seterminantemente a embarcar. De patas fincadas no chão, marrava em quem se aproximasse soltandobalidos de pavor: "Mééé..." De início os homens acharam graça à teimosia do bicho, mas, como arecusa se prolongou e os balidos se tornaram lancinantes, os sorrisos transformaram-se em caretas eperpassou um sussurro negativo.

— O que é que estão a dizer? — perguntou a Ana.— Os homens da aldeia acham que os animais têm poderes de adivinhação. Dizem que a

cabra não quer ir porque pressente perigo... perigo de morte — explicou Pepeca.— Que disparate! — Eu também acho — disse o rapaz encolhendo os ombros -, mas cada

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povo tem as suas manias...Apesar de se recusarem a aceitar superstições, Ana e João ficaram ainda mais tensos.— Onde estará o Orlando? O velho cientista instalara-se a bordo, muito bem encaixado entre

as poucas malas que restavam, armadilhas para patos, redes de pesca, azagaias e outras tralhassobrantes.

Satisfeitíssimo, acenou-lhes e recomendou: — É melhor irem noutra canoa, porque aqui nãohá espaço suficiente.

Não puderam portanto consultá-lo como desejavam, e também não puderam conversar maisentre si porque Pepeca se sentou ao pé deles.

Pouco depois as pirogas deslizavam pela superfície das águas tão suavemente como patinsgigantes sobre gelo. Os homens da aldeia juntaram-se na margem a dizer adeus e entoaram umacanção de despedida que não se percebia bem se era alegre ou triste. Logo adiante deixaram de osver porque o rio fazia uma curva, mas a cantilena acompanhou-os dançando nas malhas do vento. Jáiam bem longe e Ana continuava a ouvi-los, ou a julgar ouvi-los, por entre sopros e assobios que Lhefaziam eriçar o cabelo. Evitava pensar em desgraças; em todo o caso, nem ela nem o irmãodesfitavam a canoa do explorador.

Alexandre viajava sentado, de cabelos ao vento e com o papagaio ao ombro. Aconchegara aspoucas armas e munições de que dispunha junto à perna direita e cobrira-as com peles de leopardo.Pusera a caixa dos instrumentos científicos ao colo.

O casaco, ligeiramente tufado sobre o estômago, protegia o diário.Ao recordar a cena em que o vira preparar aquele esconderijo, Ana corou um pouco. Nessa

manhã, antes de partirem, ela e o irmão tinham ido procurá-lo à tenda. Ele estava de calças e botasmas em tronco nu, e acabara de atar ao corpo um caderno bem grosso usando faixas de lã.

— É o meu diário — explicara. — Escrevi aqui tudo o que aconteceu desde que parti deAngola há mais de um ano.

Registei todas as medições de terras, rios, montanhas e vales que hão-de dar a conhecer aomundo esta zona de África. Também fiz descrições e desenhos das paisagens, plantas, animais que fuiencontrando pelo caminho. E dos povos com quem contactei.

Se eu morrer, talvez o meu diário morra comigo, mas se chegar ao fim da viagem levoinformações fantásticas para deixar toda a gente de boca aberta.

Antes de enfiar a camisa ainda deu duas pancadinhas no caderno amarrado ao estômago.— Só me roubam isto passando por cima do meu cadáver.Ana ajudara-o a colocar os botões de punho e reviveu a cena com gosto."Sempre achei uma estupidez as pessoas apaixonarem-se por homens mais velhos e afinal

também sou uma estúpida! Mas quem é que resiste a um aventureiro giríssimo? Ninguém." Com umsuspiro, acomodou-se.

"Não é bem uma paixão, é uma semipaixão. E não há problema porque ele não sabe, nemsonha." Ou sonharia? O devaneio serviu para desanuviar aflições.

Agora sentia-se mais calma.Tinham atravessado uma zona de planície imensa e nua; enveredaram depois a navegar por

entre montanhas cobertas de vegetação, sempre sem novidade. Mas a certa altura o vento ganhouforça e passou a soprar de través, pondo em perigo o equilíbrio das canoas. Então Alexandre deuordem aos remadores para se dirigirem a uma enseada da areia branca e finíssima.

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Quando saíram em terra foram surpreendidos por um fenómeno curioso: a areia, muito seca erija, ao ser pisada pelas botas de couro emitia uns ruídos ténues que faziam lembrar gemidos decrianças.

— Que horror! Esta areia parece que está viva!— E não quer ser pisada...Caminhar assim provocou-lhes arrepios. Preferiram Portanto ir descansar e comer na orla da

mata, onde um tapete de verdura os separava da terra falante. O calor, o cansaço da viagem, a roupaempapada em suor, tudo contribuiu para que se afundassem numa espécie de sonolência preguiçosa.Apesar das nuvens de mosquitos, deixaram-se ficar estendidos na erva um bom pedaço. De repente,porém, Catiba ergueu-se e, apontando para uma outra enseada bastante mais abaixo, anunciou: —Leões! De facto lá estavam, dois leões machos, com as suas belas jubas douradas. Deslocavam-se deforma pachorrenta, como quem passeia. A visão provocou reacções antagónicas no grupo. Unsencolheram-se estarrecidos de medo, outros vibraram na excitação própria dos caçadores.

Alexandre ergueu-se, fascinado com a imponência dos animais, e Catiba disse comgabarolice: — Não há maior emoção do que matar uma fera. Eu comecei ainda em criança porque omeu tio era um ás. Foi ele que me transmitiu o dom da pontaria.

— Cá por mim odeio caçadas — interrompeu Ana num fio de voz.— Acho uma brutalidade inútil, um perigo.— O perigo dá prazer — disse Catiba.Repuxou os amuletos que trazia ao pescoço e mostrou-lhe três garras penduradas num fio.— Pertenciam a feras bem maiores do que aquelas. E nem sequer usei armas de fogo, só

azagaias.O sorriso de orgulho irritou-a.— E o que é que ganhou em matar? — Ganhei as peles, que valem imenso. Ganhei este troféu,

e sobretudo ganhei fama. Tu és mulher, não podes perceber. Mas um homem verdadeiramentehomem, diante das feras, é sempre atacado por uma espécie de febre mental, a febre da caça...

Alexandre escutava-o, visivelmente tentado, e no seu olhar havia um brilho que levou Orlandoa tomar a palavra: — Eu sei, eu sei — contemporizou -, enfrentar animais selvagens é um desafioexcitante, mas neste caso parece-me uma loucura ir gastar munições.

— Um tiro ou dois, também pouca diferença faz — respondeu Alexandre. — Afinal já andono mato há mais de um ano, e quanto a animais ferozes estou a zero. Hei-de atravessar a África semmatar um leão? Ana intrometeu-se, usando argumentos que considerou imbatíveis: — Ó Alexandre, jápensou que pode pôr em risco a sua expedição? — Não vejo como.

— Basta que lhe aconteça alguma coisa e acabou-se. Se ficar gravemente ferido, não temosmaneira de o trazer. E se morrer...

— Eh! Quem fala em morrer — atalhou Catiba. — Eu tenho muita experiência e acompanho-o.O senhor não quer levar um troféu ao seu rei? Pois não há troféu que se compare a garras de leão...

A vaidade pessoal sobrepôs-se ao bom senso.— Está decidido — declarou Alexandre num tom que não admitia réplicas. — Nós vamos de

canoa até abaixo, saltamos um pouco antes do sítio onde estão os leões e pronto! Vai ser uma caçada-relâmpago.

— Se não houver inconveniente, gostava de ir consigo — pediu Orlando. — A caça não é aminha especialidade, mas tenho pontaria que chegue, sobretudo para evitar acidentes...

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Carregara na última palavra, o que levou os dois irmãos a concluir ser uma proposta comsegundas intenções.

Mas se queria forçar Alexandre a desistir, não conseguiu.— Muito bem, venha. Eu levo a carabina, fique você com a espingarda.Antes de partirem, Orlando endereçou-lhes uma piscadela de olho que significava: "Não se

preocupem, hã? Sei o que estou a fazer." Eles dispensaram comentários, limitaram-se a procurar umsítio à beira do rio de onde pudessem assistir a tudo. Para isso foram obrigados a caminhar de novosobre areia rangente.

Aquele "nhaím, nhaím..." pôs-lhes os nervos em franja! A canoa já lá ia e eles, de coraçãoapertado, olhavam alternadamente para os homens e para os leões. De súbito Ana cravou os dedos nobraço do irmão e balbuciou estarrecida: — O estômago...

— Hã? Ela engoliu em seco e passeou a vista pelos remadores enviados por Lobossi quetambém tinham ficado em terra. Algum deles saberia português? O melhor era acautelar-se, portantofalou-lhe ao ouvido: — Repara nas peles do Catiba. Fazem um fole em cima do estômago, como ocasaco do Serpa Pinto. Ele também leva ali alguma coisa escondida.

Num relance o João pôde confirmar que era verdade e perguntou por sua vez: — Será umrevólver? Um pequeno revólver para tiros traiçoeiros?

capítulo 9A grande caçada Os caçadores saltaram em terra o mais silenciosamente possível. Imóveis,

de armas em punho, tentaram perceber qual a reacção das feras. Os leões, que acabavam de beberágua, foram-se afastando vagarosos, quase com ar de enfado, e subiram uns montículos rodeados devegetação, onde estacaram como se quisessem apenas aproveitar a frescura da sombra.

Orlando passou a mão pela careca, que escorria gotas de suor, e abanou-se com o chapéu.— Está cá uma calorina...À frente dele avançavam Catiba e Alexandre, num passo furtivo, ambos de narinas

arreganhadas, farejando à maneira dos cães quando perseguem a presa. Vibravam de excitaçãocontida. E Orlando, apesar dos propósitos que formulara, não conseguia manter a cabeça fria nemsobrepor a racionalidade ao instinto. Mesmo sem querer, ia-se deixando contagiar pelo entusiasmofrenético dos companheiros.

Já não era o cientista cheio de autodomínio, nem o estudioso da Natureza, nem o falsomissionário, nem o protector de Alexandre que ali caminhava. Era um velho feito "jovem caçador",em ânsias por sucesso no momento da estreia, desejando loucamente ser ele a provocar o primeirosangue...

A perseguição continuou em ritmo lento. Os leões andavam, paravam, voltavam a andar, nemfugiam nem atacavam. Adiante embrenharam-se num maciço de arbustos.

Catiba fez-Lhes então um sinal inequívoco: chegara a hora do confronto.Alexandre avançou resoluto e sem mostrar medo, embora soubesse muito bem que o desfecho

podia ser trágico. Espreitou por entre as ramagens e, vendo a cabeça de um dos animais a jeito,preparou a carabina. Ao apontar, sentiu um tremor convulso percorrendo-lhe todos os membros,lembrou-se de que estava fraco e debilitado pela febre, receou que o pulso Lhe tremesse no momento

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de puxar o gatilho. Mas fora longe de mais, não podia vacilar. Um esforço de vontade ajudou-o acontrolar-se; apontou de novo ao alvo e disparou, estremecendo de surpresa com o seu próprio tiro.O estrondo repetiu-se imediatamente, porque Orlando não resistira a disparar também, e levantou-seuma nuvem de fumo que lhes toldou a vista.

Catiba riu baixinho, afastou as folhagens e aventuraram-se os três para o lado de lá.No chão poeirento jazia o corpo inerte do rei das florestas africanas. Bastara uma bala no

crânio para Lhe ceifar a vida.Embriagados com o êxito, procuraram as pegadas do outro leão, que se desenhavam muito

nítidas, deixando um rasto fácil de seguir.Sempre em fila indiana, enfronharam-se na mata. As árvores que por ali cresciam eram

enormes, verdadeiros gigantes cujos ramos entrelaçados ocultavam o Sol.Pairava um estranho silêncio, apenas quebrado por alguns pios ténues que sugeriam a

existência de pássaros invisíveis.O calor tornara-se sufocante, atmosfera densa, enigmática.Noutras circunstâncias talvez dessem meia volta e fugissem a sete pés. Mas, obcecados como

estavam, nem lhes ocorreu.— Deve andar perto... Atenção, hã? Mais à frente havia uma clareira arenosa onde as pegadas

se destacavam ainda melhor, o que os levou a acelerar o passo.— Deve estar perto...Um rugido cavernoso e potente encheu o ar e prolongou-se em ondas de som, um som terrífico

que lhes electrizou a pele e arrepiou os cabelos.— Para as árvores! — ordenou Catiba. — Depressa! Fora o primeiro a ver que vinha lá não

uma fera mas sim um bando completo! Lépidos que nem coelhos, amarinharam pelo tronco maispróximo. Orlando não percebeu como realizou aquela proeza, mas a verdade é que se empoleiroubem alto com arma e tudo! "E agora? E agora?", interrogava-se. "Como é que saímos daqui?" Osleões rosnavam enfurecidos e deitavam as patas ao tronco, fazendo menção de subir.

— Eles trepam? — perguntou Alexandre.— A este tronco não conseguem, é muito a pique. Passe-me a espingarda, estou em melhor

posição para os alvejar.— Mas nós não temos munições para os alvejar a todos. Se matarmos alguns os outros não

ficam mais assanhados?— Talvez sim, talvez não. Dê cá a arma e logo se vê o que acontece.Orlando, que se encontrava escarranchado num dos ramos superiores, sentiu a madeira estalar

debaixo de si e ficou sem pinga de sangue. O mais leve movimento podia transformar-se emcatástrofe!

— Eu não posso ajudar, senão isto parte-se e caio lá em baixo.— Então fique quieto! Fique quieto...Catiba já engatilhara a arma mas ainda não escolhera a vítima.— Então?— Calma. Se não podemos desperdiçar munições, só disparo quando tiver a certeza de que

acerto.Entrelaçou bem as pernas à volta do ramo que o suportava.Levou a coronha ao ombro e ficou imóvel uns segundos.

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Olhando-o, dir-se-ia que fazia parte da árvore. De repente soou um estampido e uma das ferasabateu-se no solo. Fora morte instantânea! No minuto seguinte os outros leões puseram-se emdebandada e sumiram-se por entre o arvoredo.

Orlando nem queria crer no que os seus olhos viam! — Por que é que fugiram? Você acertouno líder? No chefe? — Talvez, não sei. E também pouco importa. Eles correram para o interior,vamos correr nós para o exterior, para a margem, para a beira-rio... Precisamos de alcançar ascanoas antes que o bando mude de ideias! Escorregara para o chão enquanto falava e chamou: —Venham! Não há tempo a perder.

— Tem a certeza de que os leões não estão por aí escondidos à nossa espera? — Quemcostuma fazer emboscadas são os homens, não são os animais — respondeu Catiba com um sorrisomeio trocista. — Mas ainda que sobre por aí algum, não há outra solução. Vêm ou ficam? Alexandredesceu rapidamente; quanto ao Orlando, viu-se e desejou-se para abandonar o poleiro.

"Parece que o medo ajuda a subir mas não funciona muito bem nas descidas", concluiu aosentir de novo o chão debaixo dos pés.

***

Ana e João espiavam o rio na maior ansiedade. Tinham ouvido disparos havia imenso tempo enunca mais aparecia ninguém.

Porquê? Sabiam ambos como é perigoso atingir uma fera e não a matar. Também já tinhamvisto filmes em que as fêmeas se atiram como loucas sobre os caçadores que se atreveram aincomodar as crias. E às vezes o bando inteiro resolve dar uma ajuda.

— Para que é que o Orlando se meteu nisto? — lamentavam impacientes.Passara-lhes pela cabeça várias vezes que, no caso de Catiba ser realmente um capanga

enviado para eliminar Serpa Pinto sem deixar vestígios, conseguira arrastá-lo para o sítio ideal.Simulava um acidente de caça e pronto! Sendo assim, talvez o tiroteio não tivesse nada a ver

com os leões... Mas essa ideia afligia-os de mais, e preferiram portanto pô-la de parte.— Olha lá, aquele rugido pavoroso foi antes ou depois dos tiros? — Já te disse vinte vezes

que não sei.— Parece-me que foi salteado, tiro-rugido-tiro".— E o que é que isso adianta? — Muito! Se voltaram a disparar é porque estavam VIVos,

caso contrário...— Cala-te, João! Não me enerves mais do que eu já estou.Os homens também começavam a ficar inquietos. Ora conversavam entre si ora se remetiam

ao silêncio fitando o local onde as canoas permaneciam amarradas e vazias. Pepeca, esse, não abriaa boca. Já devia ter feito quilómetros a andar para trás e para diante em linha recta, em diagonal, emcírculos. Foi ele quem deu sinal berrando a plenos pulmões: — Vêm além! Escusado será dizer quese puseram todos aos pulos e aos gritos de alegria: — Eh! Eh! — Hurrah! A areia associava-serangendo a compasso, e os seus "nhains... nhains..." já não assustavam ninguém. Era mais uma vozpara o coro de boas-vindas! Dentro da canoa viajavam três sorrisos vitoriosos. Orlando acenava-lhes com o chapéu, Serpa Pinto com a carabina e Catiba com o remo que, de vez em quando, retiravada água.

A certa altura abriu as goelas e entoou uma canção que os companheiros desconheciam, o que

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não os impediu de cantarem também até chegarem à margem. E então foi uma loucura de abraços,festejos, chuva de perguntas, torrentes de respostas.

Os dois irmãos penduraram-se ao pescoço do velho e rodopiaram felizes da vida.— Conte-nos tudo! Para surpresa de ambos, Orlando desatou numa alegre gabarolice. Falava

do perigo que tinham corrido e do tamanho dos leões, completando cada frase com um elogio à suaprópria agilidade, coragem e pontaria. Só faltava mesmo dizer "sou o maior".

— Sinto-me vinte anos mais novo! Ou trinta! E dava largas à satisfação com belasgargalhadas roucas.

Euforia semelhante atacara Serpa Pinto.— O leão era enorme — explicava abrindo os braços. — Acho que nunca vi uma fera assim.

Se o meu tiro falhasse, garanto que não estávamos aqui, porque aqueles dentes nos estraçalhavamenquanto o diabo esfrega um olho. Mas não falhei! — acrescentou, francamente orgulhoso. — Abati-o à primeira, hã? Com um só tiro! — Isso é o que ele julga — confidenciou Orlando entredentes.

— Porque tenho quase a certeza de que quem matou o leão fui eu...— A minha alma está parva. — exclamou o João. — Nunca vi o Orlando assim, parece outra

pessoa! — Pelos vistos o efeito das caçadas africanas é radical! Nem os cérebros mais apuradosresistem — brincou a Ana. — Já o conheço há tanto tempo e nunca o vi gabar-se de nada.

Os olhos azuis cintilaram e a cara abriu-se num amplo sorriso: — Vocês têm mais razão doque pensam. Caçar animais selvagens é uma espécie de vertigem. E compreende-se porquê.

Já pensaram que durante séculos e séculos: os homens tiveram que caçar para sobreviver? Aexcitação do desafio e o sabor da vitória devem ter ficado gravadas nas nossas células. Mesmo quemnunca pensou em caçadas, se lhe surge uma oportunidade descobre instintos ocultos dentro de si e,em vez de ter pena do animal morto, sente-se um herói...

As atitudes de Serpa Pinto confirmavam plenamente aquela teoria. Limpava a arma comindisfarçável vaidade e continuava a gabar-se! — Nem eu próprio sabia que atirava tão bem! Catibaassumira a pose do grande mestre que se diverte quando aprendizes resolvem armar em bons. Nãoresistiu no entanto a lembrar que a grande caçada tivera uma segunda parte. E descreveu comvivacidade o episódio final, eles empoleirados na árvore, o bando enfurecido, o tiro certeiro que oslivrara da morte. Falara alternadamente em português e na língua local.

Nem por um momento Ana e João duvidaram do que ouviam. Mas a reacção dos africanos foioutra.

— Onde está a pele dos animais? — perguntou Pepeca levemente trocista. — Os caçadoresnão costumam regressar de mãos vazias...

Abanara as mãos num gesto elucidativo. Os remadores perceberam, puseram-se no gozo, enão houve argumentos capazes de os convencer de que tudo aquilo era verdade.

— Provas! Queremos provas!— Não havia condições para esfolarmos os animais. Só pude arrancar duas garras ao que

ficou perto do rio e de fugida!— As garras não servem.— Já as trazia penduradas ao pescoço, arrancou-as para nos enganar — galhofaram.— Se não acreditam, paciência! Catiba encolheu os ombros e entregou as garras a Serpa

Pinto.— O senhor é que matou o leão a quem pertenciam estas garras. Leve-as como troféu ao seu

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rei.A atitude simpática perturbou a Ana e o João. Seria injusto pensarem mal daquele homem?

Entreolharam-se embaraçados. "Às vezes é preciso desconfiar de quem se faz muito amável..."— Pois é. Temos de tirar a prova dos nove e é isso mesmo que vou fazer. Olha só...Num impulso inesperado João abraçou Catiba, cingindo-o com força.— Eu acredito em si, Catiba! E quero dar-lhe os parabéns porque não é qualquer um que

afugenta bandos de leões enraivecidos. Parabéns! Parabéns! Brindava-o com grandes palmadas nascostas e o outro não teve remédio senão agradecer. Logo que pôde esquivou-se aos apertos, que nãolhe convinham. Mas João já sabia o que queria.

— O tipo traz realmente qualquer coisa escondida em cima do estômago — confidencioupouco depois à irmã.

— Achas que é uma pistola? — Não sei.João passou o resto do dia muito pensativo. Abordou Orlando, que não só não se mostrou

impressionado como ainda defendeu Catiba! — Ele é que nos salvou, já te esqueceste?— Mas o Orlando não estava desconfiado? Não foi à caça para proteger o Alexandre?— O Alexandre sabe defender-se, e se eu estava desconfiado já não estou. Deixa o homem em

paz.— E a bolsa oculta sobre o estômago?— Ora, a bolsa! Se calhar é costume transportarem assim objectos pessoais. Pára de inventar

maluqueiras e não armes confusão, hã? Eu vou dormir uma sesta.Não valia a pena insistir, e calculou que se falasse a Serpa Pinto obtinha as mesmas respostas.

O explorador, aliás, estava indisponível. Dera ordem para acamparem ali mesmo e entregara-se comvolúpia a observações astronómicas. Sentado numa canoa, ia retirando aparelhómetros da caixa paraver, calcular, medir, registar, enfim, alheara-se do mundo.

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capítulo 10Um plano arriscadíssimo Ana aceitara o convite de Pepeca para irem pescar. Enfiados noutra

canoa vigiavam as redes. E o resto do pessoal dividira-se, uns a preparar terreno na orla da mata,outros a acarretar lenha, a montar armadilhas.

Entregue a si próprio, João pensava, pensava..."Que hei-de fazer?" Podia perguntar-lhe pura e simplesmente: "Olhe lá, o que é que você leva

aí escondido em cima do estômago?" Se fosse apenas uma bolsa com objectos pessoais, ele comcerteza nem ligava à má-criação e talvez até lhos mostrasse.

Mas se fosse a tal pistola, o tipo podia reagir mal e precipitar os acontecimentos.Se calhar armou em protector na caçada porque o Orlando estava lá e eram dois contra um. E

continua a fingir-se muito amigo porque o rei exigiu o crime perfeito.Indeciso, voltava a interrogar-se: "Que hei-de fazer?" Arrancar-lhe a bolsa pela força estava

fora de questão. Na luta com um homem muito mais alto e muito mais forte, saíria derrotado. Alémdisso, ignorava qual fosse o papel dos remadores.

"Talvez não saibam nada, mas podem ter vindo para ajudar." A voz de Orlando ressoava-Lheaos ouvidos: "Não armes confusão... não armes confusão..." Depois de muito pensar e repensar,imaginou um plano que lhe pareceu infalível. Para o executar precisava da ajuda da irmã, portantojuntou-se-lhe e soube ser cuidadoso para evitar orelhas indiscretas. Ela ouviu-o, fez perguntas,hesitou, porque era de facto um plano arriscadíssimo. Mas por fim acedeu: — Está bem, eu ajudo.

— Olha que não podes fraquejar.— Oh! João! — Pronto, pronto. Desculpa! Caía a tarde, uma tarde linda, luminosa, de cores

instáveis, com o azul forte do céu a empalidecer e o azul suave do rio a transformar-se num espelho.Milhares de pássaros e de insectos entoavam a melodia da floresta. Eles, porém, nada viam e nadaouviam, obcecados com o plano, o terrível plano que lhes monopolizava a atenção. Só o olfacto teveartes para os arrancar ao devaneio problemático: — Que cheirinho é este? Na fogueira ardiampedaços de madeira exótica cujo perfume adocicado se misturava com o aroma das perdizes e dospeixes assados na brasa.

— Estou com fome! Aproximaram-se do lume com água a crescer-lhes na boca mas a visãodos alimentos desconsolou-os. Carne e peixe... Ah! quem lhes dera uma dose de batatas fritas, ovosestrelados, arroz de manteiga! As saudades de uma refeição normal foram tantas que até suspirarampor sopa de legumes e salada de alface.

Por azar, a mistura de cheiros atraiu também nuvens de moscas infernais que zumbiam edavam picadelas dolorosas.

— Ai! — Que mosca estúpida! João agitava-se às palmádas em si próprio.— Estou a ficar cheio de buböes vermelhos! Os movimentos bruscos fizeram escorregar do

bolso a tesoura que surripiara da caixa dos instrumentos de Serpa Pinto.Escondeu-a rapidamente e olhou em volta para se assegurar de que ninguém tinha reparado.

Vendo toda a gente entretida a comer e a conversar, descansou."Ai!" lamentou-se de novo, agora para aliviar a tensão interior, "quem me dera que o tempo

passasse mais depressa..." Por uma noite não se justificava construírem cabanas, portanto dormiriamao relento. Depois do jantar, cada um escolheu uma cama no tufo de ervas mais convidativo. Pepeca

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ficara encarregado de se manter acordado durante o primeiro turno de vigilância.— Quando vires que não podes mais, chamas outro e deitas-te — ordenara Serpa Pinto

entregando-lhe a espingarda.A ordem vinha mesmo a calhar para os planos de João! Instalou-se, fingiu adormecer mas

aguentou firme até que o silêncio desceu sobre o acampamento. Certificou-se de que todos dormiam esó então rastejou para junto da sentinela.

— Vai deSCansar. Agora fico eu de vigia.— Não, ainda é cedo...Recusa bastante frouxa, pois cabeceava mole e sonolento.— Já cumpriste a tua missão, agora deixa-me cumprir a minha — insistiu João, gozando com

o trocadilho. — Dá cá a arma e vai descansar, vai! Não teve que esperar muito para que Pepecamergulhasse no mais profundo dos sonos.

"É agora ou nunca", pensou no momento em que fez o sinal para chamar a irmã. "Força!" Anasoergueu-se e descalçou as botas. Antes de avançar ainda deitou uma olhadela ao percurso que teriaque fazer para se aproximar do poiso onde repousava Catiba. Haveria cobras, aranhas, bichezarasteira? Só de pensar nisso arrepiava-se.

Mas numa zona de areias rangentes era indispensável caminhar descalça."Prometi, está prometido. Nunca faltei a um compromisso." João erguera-se também e

aguardava de espingarda a jeito, pronto a disparar se fosse preciso. Já olhara mil vezes para a outraarma de fogo, a carabina que Serpa Pinto arrumara junto de si.

"Se alguém tentar deitar-lhe a mão, disparo!" Quando a irmã passou por ele, fitou-a comintensidade para transmitir coragem e estendeu-lhe a tesoura. Através de gestos e caretas procuroulembrar-Lhe que o facto de serem os únicos acordados era uma grande vantagem. Ela acenou que sime lá foi deslizando, vulto silencioso na madrugada.

"Vou conseguir. Tenho a certeza de que não o acordo..." Catiba roncava de papo para o ar nolimite do acampamento.

Ana debruçou-se sobre ele retendo a respiração, entreabriu a túnica de peles com a ponta dosdedos, e zap... zap... cortou os fios que prendiam a bolsa. Depois pegou-lhe de mansinho e ia aretirar-se quando ele inspirou fundo. Teria despertado? Não. Virou-se de lado e continuou a dormir.

Nervosíssima, de coração aos pulos e a cabeça a andar à roda, correu como louca para juntodo irmão. Na pressa de chegar, nem viu onde pisava, e foi assim que assentou o pé direito numabrasa escondida por debaixo das cinzas.

— Aüi! O berro estentórico acordou toda a gente; João sem querer premiu o gatilho e deu umtiro no escuro; Serpa pinto, julgando que estavam a ser atacados, deu outro. gerou-se a maior dasconfusöes! Ana continuava a estar agarrada ao pé.

Orlando tentou socorrê-la: — Foste mordida? Queimaste-te? — Não... sim! Agarre aquiloantes que seja tarde! Saltitava cheia de dores a apontar para uma pequena trouxa caída no chão. Eleagarrou-a sem perceber o que se passava.

— Uma bolsa de pano? Abriu-a e, perante o olhar atónito do grupo que se juntara em volta,começou a retirar pequenas peças de ouro e de marfim! — O tesouro! — bradou João em desvario.— O tesouro! As chamas punham reflexos nas arestas douradas, os homens pasmavam.

— Onde é que vocês foram buscar isso? — perguntou Serpa Pinto com assombro.— Ali.

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João apontara acusadoramente na direcção de Catiba, mas onde é que ele estava? Por muitoque procurassem, não o encontraram em parte nenhuma. Desaparecera sem deixar rasto.

capítulo 11Tambores ao longe Já o Sol ia alto e continuavam a repisar na mesma história. De início

ninguém os entendeu, porque ora falavam do assalto nocturno e das possíveis ciladas de Lobossi oratraziam à conversa lendas, feiticeiros e caravanas perdidas.

Mas a pouco e pouco lá foram acalmando e puderam explicar-se.Quem se viu e desejou foi Pepeca, obrigado a servir de intérprete duplo.Os remadores exigiram saber o que se passava, mas depois de tudo esclarecido tiveram que

dar informaçöes a respeito de Catiba, e ele a traduzir para português.— Estou a ficar confuso — queixou-se. — Não podem falar todos ao mesmo tempo.— Quero que me digam quem é este Catiba — declarou Serpa Pinto peremptório.— Ninguém o conhece muito bem.— Mentira! — disse João. — Eu vi-o na corte.— Sim, mas não pertence àquele povo, só aparece de visita.É um comerciante muito estimado porque tem feito bons negócios para o rei e para os

conselheiros, mas não se sabe ao certo de onde vem nem para onde vai. Às vezes chega com gente emercadorias valiosas, outras vezes não. Agora parece que estava só de passagem.

— De passagem com desvio pelo nosso acampamento — ironizou Orlando. — E eu que merecusei a acreditar no João! Serpa Pinto abanou a cabeça tristemente.

— Já percebo por que é que os meus carregadores e os meus pombeiros roubaram tudo efugiram. Este maldito Catiba devia conhecer alguns, virou-os contra mim e acenou-lhes com lucrosfáceis. Está-se mesmo a ver o que aconteceu. Ele próprio dirigiu o assalto, guardou as melhorespeças e deu-lhes o resto.

— Ou então enviou-os em campanha comercial a um reino vizinho. Por este processo nãoadmira que faça fortuna em pouco tempo.

— Há uma coisa que continua a baralhar-me. Se tinha o que queria, por que é que veio atrásde nós? — Talvez viesse na mira das armas e da aparelhagem científica. Como circula no mato, deveconhecer outros exploradores que por aí andam e a quem tencionava vender os meus instrumentos.

— Não me parece — disse o Orlando. — Arriscava muito para obter pouco.— Então qual é a sua ideia? Em vez de responder, Orlando virou-se para Pepeca e pediu-lhe:

— Pergunta lá aos remadores se foi o rei Lobossi quem mandou o Catiba acompanhar-nos.— Não. Isso já eu perguntei. O rei até insistiu para que ficasse na corte, mas ele recusou,

disse que tinha negócios a tratar e queria partir com os brancos. Discutiram e foi preciso dar umpresente ao rei para obter autorização.

— Humm... então enganei-me. Tinha pensado que pudesse ser ladrão por conta própria eagente secreto ao serviço de Lobossi. Trazia o tesouro ao peito para não o confiar a ninguém eseguia-nos porque o rei o mandara provocar o tal acidente. Mas se não foi o rei que o en viou, aminha teoria está errada e o mistério permanece.

— Um mistério difícil de decifrar. Que será que ele queria? "Que ele queria ou que ele quer",

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pensou Orlando "bastante apreensivo. "Um homem como o Catiba não desiste às primeiras..."Preferiu no entanto disfarçar a inquietação: — Ana, verifica lá se recuperámos tudo.

— Recuperámos, sim.Os machadinhos, a lança de cobre, os objectos parecidos com cachimbos, os colares e as

contas de ouro soltas alinhavam-se em cima da manta.— Não falta nada.— Então guarda as peças na bolsa, que é melhor.Ao pegar no saco que arrebatara a Catiba, sentiu um alto, uma ponta rija.— Ainda há qualquer coisa aqui dentro.E retirou uma pequena ferramenta de ouro maciço que espantou sobretudo o Orlando e o João.— Essa não fomos nós que encontrámos! — Então era dele! — Não vale a pena afligirem-se,

porque se calhar também não lhe pertencia. Pode tê-la roubado noutro sítio — lembrou Serpa Pinto.— E ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, não é? Os remadores bem perguntaram

o que diziam, mas Pepeca recusou-se a traduzir: — Nada de importante, estou cansado. Não sei.Eles ficaram aborrecidos e voltaram costas. Quando pouco depois se fizeram ao rio, iam

amuados, e quando a corrente mudou transformando-se num tumulto aquático que tornava anavegação perigosíssima, o amuo virou fúria. Remaram, remaram, remaram, com grande perícia mastambém com a força da raiva.

Conduziram as canoas pela zona dos rápidos de uma forma alucinante. As enbarcaçöessaltavam os desníveis do leito do rio, fintavam as róchas que emergiam, evitavam sabiamente oconfronto com os hipopótamos resfolegantes, e seguiam, seguiam, não se desviando sequer quandolhes apareceu pela frente o desnível de um metro! À queda brusca sucedeu-se uma zona mais calma.Então, orientaram as canoas para a margem.

— Recusam-se a continuar — disse Pepeca -, garantem que o rei só lhes encomendou serviçoaté aqui.

Não houve argumentos, nem promessas, nem ofertas que os fizessem mudar de ideias.Receberam o pagamento a que tinham direito e partiram por terra a cantar em coro, deixando paratrás um grupo desolado.

— Sem remadores, temos que ir a pé. Como não conhecemos a região, e os mapas havemos deser nós um dia a fazê-los, resta-nos usar a bússola e confiar que Deus nos encaminhará para oacampamento do missionário francês em Lexuma! Antes de partirem, Serpa Pinto e Orlando fizeramcálculos para determinar o melhor itinerário.

— Creio que Lexuma ainda fica bem longe, temos de andar imenso.— Por isso é melhor irmos devagar.Serpa Pinto encabeçou o cortejo tristonho. Primeiro percorreram uma zona de vegetação

espessa, onde emergiam pedregulhos negros e avermelhados. Depois atravessaram uma planíciemonótona e infindável onde só cresciam arbustos e plantas rasteiras. A fome e o cansaço tornavam-nos indiferentes a tudo. Não acharam a menor graça às manadas de zebras, búfalos, girafas eantílopes que pastavam aos milhares, nem sequer comentaram a miragem que os fez ver aquelabicharada toda de patas para o ar.

A situação pouco agradável em que se encontravam agravou-se, porque as nuvens espessas enegras que pairavam ao longe se foram aproximando, fecharam-se umas sobre as outras e tanto secomprimiram que estalou a borrasca! Das entranhas carregadas de electricidade explodiram torrentes

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de água e torrentes de fogo. Chuva, vento rijo, raios medonhos que se separavam em várias faíscas.— Deitem-se! — ordenou o Orlando. — Espalmem-se no chão! Obedeceram-lhe todos

prontamente. Ensopados até aos ossos, transidos de frio e de medo, assistiram durante uma horaàquele espectáculo horrendo. E quando julgaram que o temporal ia acalmar, ainda viram uma faíscalouca cair em cheio sobre um penedo e esmigalhá-lo com fragor! Mal refeitos do susto, ergueram acabeça cheios de medo de serem fulminados também.

— Calma, tenham calma que isto já passa. As tempestades tropicais são violentíssimas maspassageiras... Calma! De facto, pouco depois o vento girou. Soprava agora noutra direcção e limpavao céu com rajadas muito barulhentas mas inofensivas.

Serpa Pinto foi o primeiro a erguer-se; o resto do grupo imitou-o. Ninguém se queixava,apesar de a disposição ser péssima. Encharcados, enlameados, enfraquecidos pela fome, não podiamsentir-se pior. Ana, coitada, tinha o pé a latejar e dores por causa da queimadura da véspera. E opapagaio, com as penas coladas ao corpo, metia dó. No entanto, era preciso continuar.

Retomaram a marcha carregando o desânimo de quem não sabe ao certo para onde vai nemquanto falta para lá chegar. Terminada a savana, voltaram a penetrar na floresta, sempre cabisbaixose em silêncio. A certa altura, porém, ouviram um ruído longínquo semelhante ao das ondas do mar.

— As cataratas — exclamaram Serpa Pinto e Orlando a uma só voz. — As grandes cataratasdo rio Zambeze! E riam aliviados.

— Se as indicaçöes que tenho estão certas, já não falta muito para chegarmos ao sítio ondeestá o francês! Alexandre imobilizara-se com a bússola na palma da mão e fitava o mostrador devidro.

— Para que lado é que ficam as tais cataratas? — perguntou o João, impaciente e irritadoporque o som ecoando em todas as direcçöes não lhe permitia orientar-se.

— Para ali, venham! Seguiram-no a abrir caminho através da floresta cada vez mais espessa emisteriosa. O clamor longínquo da catarata ia-se tornando próximo, martelava-lhes o espírito, atraía-os, incentivando-os a avançar.

"Não posso mais!", pensavam. "Não aguento mais!" Embora os espíritos fraquejassem e oscorpos pedissem descanso, continuaram a andar, como se as pernas tivessem adquirido vida própria.

Arrastavam-se pesadamente quando por fim avistaram o abismo gigantesco onde seprecipitam as águas do rio Zambeze.

Impressionados, detiveram-se. As águas bramiam num ronco contínuo e ensurdecedor,projectando los e rolos de espuma branca por entre paredöes descomunais de rocha negra! —Cuidado! — advertiu Orlando. — Não se cheguem à beira do precipício! Todos lhe obedecerammenos Alexandre, que resolveu ir espreitar além do limite da segurança.

— Você está louco? Olhe que se cair lá em baixo nem a alma se lhe aproveita! Ele voltoupara trás, resmungando.

— Esta maldita catarata é tão monstruosa que nem se deixa ver! — Daqui vê-a perfeitamente!— insistiu Orlando.

— Só se for para ficar com uma ideia geral do panorama. Mas eu não vim a África paraapreciar as paisagens, vim em missão científica. Jurei que media esta catarata, e vou medi-la dê lápor onde der! — Como? — perguntou a Ana estarrecida.

— Com os meus aparelhos.Abriu a caixa, retirou o que precisava e voltou a chegar-se à beirinha das rochas. Depois

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chamou os homens da caravana e deu-lhes uma ordem que os dois irmãos não entenderam. Daí a nadaassistiam a uma cena inacreditável! Serpa Pinto suspendeu-se no vazio, preso apenas por umas tirasde pano que os homens seguravam na outra ponta a muito custo.

— Vai cair, vai cair — choramingou a Ana, tapando os olhos com as mãos. — Faça qualquercoisa, Orlando! As mediçöes demoraram uma eternidade, porque os homens tremiam de fraqueza ede medo. As tiras de pano oscilaram várias vezes e ameaçavam rasgar-se, pondo em perigo oequilíbrio precário do explorador. Mas ele não desistiu.

— É doido! — dizia o João. — Doido varrido! À censura somava-se no entanto respeito eadmiração.

— Nem sequer ganha nada com isto! — Ganha um conhecimento — respondeu Orlando, quetambém estava comovido. — Este Serpa Pinto é um tipo dos diabos! Quando ele deu a tarefa porfinda, respiraram todos de alívio.

— Tem setenta e cinco metros de profundidade — anunciou Alexandre triunfante. — E quemdisser o contrário mente! Ainda fez uns registos escritos, arrumou tudo na sua preciosa caixa e sóentão confessou: — Sinto-me extenuado e febril. Não sei se consigo andar muito mais.

Orlando aproveitou para impor o bom senso: — Vamos procurar uma clareira agradável eenxuta. Amanhã continuaremos a viagem.

Acabaram por passar a noite numas palhotas abandonadas e semidesfeitas que encontraramadiante. Mas o cansaço excessivo impediu-os de conciliar o sono, e ainda por cima Pepeca teve atriste ideia de se pôr a falar em escorpiöes e cobras venenosas: — Se tirarem as botas, não voltem acalçá-las sem ver se têm bichos. As cobras gostam do quentinho e às vezes enfiam-se lá dentro adormir.

— Cobras venenosas? — Venenosíssimas! — disse Alexandre, falando de horrores comnaturalidade. — Algumas até têm efeito imediato. Se a pessoa for picada numa mão, tem de cortarimediatamente o braço à altura do cotovelo ou morre em poucos minutos! Ana encolheu-seespavorida.

— Se mudassem de assunto, hã? O nervoso feminino geralmente tem um efeito péssimo,porque leva os homens a divertirem-se arreliando... Em vez de atender o pedido, Alexandredescreveu-lhe serpentes verdes, serpentes esbranquiçadas e a sinistra mamba africana, cujo venenoparalisa e mata por asfixia. De nada serviu à Ana tapar os ouvidos, porque os companheiroscontinuaram a atazaná-la: — Dizem que a picada dos escorpiöes é mortal, mas não é verdade —continuava Alexandre, divertido com o próprio relato. — Aqui há meses fui mordido por umescorpião enorme, fiquei com o braço numa miséria, tive dores pavorosas, mas não morri! Joãopegou num pequeno galho seco e atirou-o para o colo da irmã.

— Olha aí um escorpião...— Aüü! Soltara um autêntico uivo; respondeu-lhe um coro de gargalhadas, mas no momento

seguinte calaram-se todos em pânico.— O que é isto? — Pschiu! Deixem-me ouvir! O som que ondulava no escuro era seco, surdo

e entremeado de pausas como num diálogo. "Tum... Tum... Tum...", ressoava da esquerda. "Tum...Tum...", respondiam da direita.

— Tambores — concluíram. — Estão a conversar à distância.O batuque intensificou-se, ganhou outro ritmo, como se o diálogo passasse a discussão. E os

homens da caravana a mostrarem-se bastante assustados.

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— Sabem o que se passa? — perguntou Serpa Pinto. — Sabem decifrar a linguagem dostambores? Pepeca engoliu em seco e encolheu os ombros: — Não consigo perceber tudo mas achoque estão a falar de nós.

— O que é que eles dizem? — Só entendi três mensagens...— Quais? — Se não me engano, os tambores falaram em... a...estrangeiros, inimigos e... tesouro.

capítulo 12Atrás da paliçada Conforme seria de prever, ninguém pregou olho. Assim que clareou,

pegaram nas trouxas e rumaram ao acampamento do missionário francês. O batuque cessara mastinham a desagradável sensação de serem observados, vigiados, controlados à distância. Caminhandopé ante pé, esforçavam-se por captar o mínimo sinal que indicasse a aproximação de estranhos.

Qualquer rumor da floresta lhes apertava o coração a pontos de sufocar, e já quase desejavamo ataque, pois terminaria o inferno da espera.

— Prefiro a luta! — suspirava o João. — Por que será que não atacam? — Talvez estejamlonge.

— Ou aguardem ordens.— De quem? — Quais? — O Catiba é uma delas. Não me parece que seja homem para virar

costas ao adversário sem reagir. Quando se viu desmascarado, eclipsou-se porque o João e oAlexandre se puseram aos tiros e ele não tinha armas. Mas pode ter-nos seguido por atalhos.Lembrem-se de que sabia para onde vínhamos, que conhece o mato, que tem amigos por toda a parte.

E que este tesouro é valiosíssimo...— Os remadores viram-no — lembrou Serpa Pinto. — Também podem ter ido contar ao rei

Lobossi e ser ele quem nos manda perseguir.— Acha que dava tempo? — Acho. Os tambores permitem comunicar depressa e bem para

muito longe.Conversando aliviavam um pouco a tensão, mas bastou falarem em tambores para se

remeterem ao silêncio. De orelha alerta, sondavam a atmosfera. Mais batuques? Não.— Pararam de tocar há bastante tempo.— Falta saber porquê...Sempre em fila indiana, palmilharam a floresta a corta-mato, subiram uns morros suaves e

logo depois abriu-se-lhes diante dos olhos um pequeno vale coberto de erva grossa onde pastavamcalmamente bois e cavalos e onde alguém erguera forte paliçada a fim de proteger um acampamento.

— O francês! — exclamaram em uníssono.A visão devolvera-Lhes toda a energia, e o desejo de se abrigarem atrás daquela barreira

protectora acrescentou-Lhes asas aos pés. Alcançaram as estacas de madeira num ápice e nempediram licença, foram logo entrando.

Lá dentro havia uma palhota de colmo, uma enorme tenda de campanha e carroções comcobertura de pano. Não descortinaram vivalma mas a fogueira acesa, as enormes facas de mato eoutros utensílios espalhados pelo chão permitiam concluir que as pessoas não andavam longe.

— Ó da casa! — guinchou o papagaio esvoaçando directo para a tenda de campanha. — Ó da

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casa! As badanas agitaram-se e apareceu então uma mulher baixa, gordinha, de avental e toucabranca, que após um instante de hesitação se dirigiu a eles de braços abertos e com um largo sorrisode boas-vindas: — Ainda bem que chegaram, estávamos à vossa espera há tanto tempo! Eu sou aCristina, chamem-me Cristina! Beijou-os, abraçou-os, voltou a beijá-los, como uma avó carinhosa ouuma velha tia simpática radiante com a visita de sobrinhos muito queridos.

O alarido atraiu um mulato, também velho, também gorducho e simpaticíssimo, que estava napalhota.

— Este é o Camutombo, o melhor cozinheiro do sertão! Apresentações feitas, pediu aCamutombo que tratasse dos homens da caravana de Serpa Pinto: — Devem estar cansados e cheiosde fome. Dá-lhes tudo o que precisarem! Depois, sempre com a mesma alegre desenvoltura,introduziu-os na barraca de campanha.

Confusos, atarantados, julgaram sonhar quando viram na sua frente uma mesa posta comtoalha, pratos de loiça, talheres, uma terrina de sopa fumegante e pão, um enorme pão tostado epronto a dividir-se em fatias.

O espanto redobrou no momento em que as badanas laterais se agitaram para dar passagem auma linda rapariga que devia ter os seus dezoito anos. Vestia um fato azul-escuro até aos pés comavental por cima e usava touca sobre os cabelos loiros, sedosos, muito bem penteados.

— A minha sobrinha Elisa.Os homens tinham reagido fortemente àquela presença fresca e agradável. Quanto à Ana, ficou

irritadíssima, sobretudo porque percebeu que Serpa Pinto retinha a mão da rapariga entre as suasmuito mais tempo do que o necessário para a cumprimentar.

"O estúpido, nunca me ligou nenhuma a mim e agora derrete-se todo com esta sonsa!",resmungava, esquecendo que Elisa era mais velha, já uma mulher.

Atormentada pelos ciúmes, instalou-se à mesa e aceitou a fatia de pão que lhe estendiam.O sabor caseiro da côdea dura e do miolo mole que há muito não experimentava, associado

aos sabores ácidos que a atormentavam, teve um efeito arrasador, e os olhos encheram-se-lhe delágrimas. Apressou-se a enxugá-las com as costas da mão, pois não queria despertar pena e muitomenos queria que Lhe fizessem perguntas. No entanto, a cortina de água teimava em assomar,desfocando-lhe a visão. As pessoas e as coisas ondulavam, e ela sentia-se a viver um absurdo. Aindahá pouco fugiam de mil perigos através da floresta e agora estavam ali a comer e a tomar cháconversando pacatamente? Que viagem louca! Ao contrário da irmã, João adaptara-se de imediato aoambiente acolhedor e aproveitava aquela pausa com gosto.

Serviu-se, gabou a comida, distribuiu sorrisos amenos como se conhecesse aqueles francesesde longa data e fosse visita habitual do acampamento. E cumpriu as ordens de Orlando, que lherecomendara: — Não assustes as senhoras, hã? É melhor esperar que chegue o missionário parafalarmos na história dos batuques. Ele é o chefe desta caravana, dirá o que havemos de fazer.

O missionário chegou pouco depois de se terem sentado à mesa. Era um homem alto, moreno,jovial, de longas barbas e olhar bondoso. Chamava-se Francisco Coillart e pertencia à igrejaprotestante; por isso é que, sendo padre, podia ter mulher. Casara com Cristina e andavam no mato hávários anos.

A sobrinha acompanhava-os.Antes de abordar a questão que os afligia, Serpa Pinto fez algumas perguntas de circunstância

para preparar o terreno: — Afinal como é que souberam da nossa vinda? — Estiveram aí uns homens

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da corte de Lobossi, eles é que trouxeram a notícia, disseram que vocês foram assaltados, ficaramsem nada e vinham ao nosso encontro pedir apoio.

— Pois — gaguejou Serpa Pinto embaraçado. — Nós, a...O missionário e a mulher cortaram-lhe a palavra: — Não se preocupe! Vocês podem contar

connosco seja para o que for.— A caravana é pequena — informou Cristina. — Temos o cozinheiro, um guia, quatro

ajudantes. Trazemos algumas mercadorias para moeda de troca, e quanto a transporte contamos comos carroções e os animais que viram na pastagem, bois e cavalos. Mas teremos o maior prazer empartilhar tudo convosco.

— Podíamos seguir viagem todos juntos — sugeriu Elisa timidamente.— Que óptima ideia! Querem vir connosco? — perguntou o missionário. — Um grupo grande

resiste melhor, defende-se melhor.Serpa Pinto e Orlando cruzaram um olhar de entendimento.— Por falar em defesa...— Sim? — É que temos um problema complicado a resolver.— Então digam qual é. Já sabem que, na medida das nossas possibilidades, estamos à

disposição.Orlando pediu a palavra e foi ele quem explicou tudo o que lhes acontecera, sem ocultar os

enormes riscos que corriam.Os franceses escutaram-no primeiro com espanto, depois cheios de inquietação.— Não queremos de maneira nenhuma envolvê-los numa história que não vos diz respeito —

disse Orlando por fim. — Se assim o entenderem, vamo-nos embora imediatamente.— Nem pensar! — exclamou o casal a uma só voz.— Ficam aqui a passar a noite — determinou o missionário. — Somos mais, eu também tenho

armas, a paliçada sempre nos protege um pouco, e olhem, seja o que Deus quiser! Ficou portantoassente que, em caso de ataque, o enfrentariam juntos. Reuniram os homens, deram instruções,trouxeram os animais para dentro da paliçada, reforçaram a porta e os cantos mais vulneráveis comtroncos de madeira.

Como todas essas actividades eram desenvolvidas em equipa e sob o olhar atento de Cristina,que de vez em quando propunha um intervalo, oferecia chá, refrescos, vinhos, e pouco a poucoforam-se descontraindo e a ideia do ataque diluiu-se. A calma do missionário também ajudou, porquea serenidade comunica-se.

Assim, quando à noite recolheram para descansar, sentiam-se relativamente confiantes.Orlando fez questão de ficar a pé com os homens destacados para a vigilância nocturna, e sossegou-os: — Saímos da floresta, talvez nos tenham perdido o rasto. E na pior das hipóteses talvez desistamquando perceberem que estamos protegidos, que o grupo é maior, temos mais armas...

Puro engano! Pouco passaria da meia-noite quando Pepeca se ergueu de supetão a apontarpara a orla da floresta: — Vêm ali! Vêm ali! Os homens, que cabeceavam em volta da fogueira,ergueram-se também, ainda com esperança de que fosse rebate falso. Mas viram com horror centenasde pontos luminosos em movimento.

Logo a seguir um grito de guerra varou o espaço: — Iú... Iú... Iú! Pelas encostas dos morrosque rodeavam o vale desciam homens de tochas em punho; incentivando-se uns aos outros compalavras de ordem e novos gritos de guerra.

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Atrás da paliçada, foi o pânico total! Homens e mulheres pegaram em armas, dispuseram-seem círculo e desataram aos tiros contra aquela multidão ululante que se aproximava.

"Pum! Pum! Pum!" As balas mantinham os inimigos a uma certa distância, que não os impediade bombardearem o acampamento com achas ardentes.

Um dos projécteis acertou na palhota e o colmo seco incendiou-se. Chamas cada vez maisaltas engoliram a cobertura, depois as paredes, propagando-se à árvore vizinha num imenso clarãode vorador.

Ana encolheu-se, aterrada. Os dedos trémulos não lhe obedeciam, portanto não conseguiapremir o gatilho e chorava desabaladamente. Ainda por cima viu Cristina e Elisa largarem as armas eenfiarem-se na barraca que as labaredas consumiam.

— Vão morrer queimadas — repetia por entre soluços convulsivos. — E nós se calhartambém.

Choviam azagaias dentro e fora do acampamento. Os atacantes fechavam o cerco e ganhavamterreno.

— Iú... Iú... Iú..." Serpa Pinto lutava como quem está disposto a vender cara a vida. João,agarrado à espingarda, perdera as estribeiras.

Tentava desesperadamente acertar nos homens que se aproximavam ou nos que ainda vinhamlongE gritando ¦¦vitória¦¦ sempre que lhe parecia ter derrubado alguém.

Quanto ao missionário, largara tudo para ir arrancar a mulher e a sobrinha ao braseiroinfernal.

— Vocês estão loucas? Estão loucas? Reapareceram ambas de cabelos chamuscados, emdesvario.

Elisa trazia uma pequena caixa de remédios e Cristina abraçava-se à sua preciosa lata de chá!— Fujam! Fujam daí! — Para onde? — perguntou-lhe a mulher, olhando em volta esgazeada. — Istovai arder tudo! Projécteis incandescentes tinham atingido os ramos da paliçada, que se transformaranum anel de fogo. Relinchavam os animais em ânsias, gritos de dor indicavam que havia feridos etalvez mortos de um lado e do outro.

O cozinheiro tombou por terra com uma azagaia cravada na testa e Orlando tombou também,gravemente ferido num braço.

Mas ninguém lhe pôde valer porque o combate estava no auge.— Não parem! — berrava Serpa Pinto. — Não parem! Pepeca batia-se como um leão

raivoso. De súbito percebeu que acabava de disparar a última bala e ficou em transe.— Há ali outra carabina! — gritou-lhe o João. — Vai buscá-la! Rápido! Ele não hesitou,

correu a apanhá-la, pegou na cartucheira que estava ao pé, carregou-a e atirou sobre um grupo deinimigos que se preparava para o assalto final. A violência da explosão surpreendeu toda a gente. Nomomento seguinte a vozearia dos assaltantes mudou de tom, viraram costas, fugiram para as colinas edesapareceram na floresta! — Não abandonem o posto! — ordenou Serpa Pinto. — Isto pode seruma táctica, podem ter ido buscar reforços!

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capítulo 13O rescaldo da luta A noite prolongou-se num tormento de incertezas. Ninguém percebia por

que motivo os assaltantes se tinham posto em fuga quando até estavam em vantagem, e portantomantiveram-se alerta, perscrutando os morros em redor do vale. Mas as horas foram passando e nãoacontecia mais nada.

Enquanto os homens vigiavam, prontos a retomar o combate se fosse preciso, a mulher domissionário chamou a sobrinha para atenderem os feridos. Tarefa espinhosa, pois no escuro e semgrandes recursos pouco podiam fazer. Arrastaram-nos para junto dos carroções e tentaram estancar osangue com tiras de pano rasgado da própria roupa. Um dos homens da caravana de Serpa Pinto caíraao pé da fogueira com uma lança espetada nas costas. Ana aproximou-se, tocou-lhe, e ao perceberque estava morto recuou abafando um grito: — Isto é um pesadelo! É um pesadelo! As chamas tinhamconsumido boa parte da paliçada e a casinha de colmo e duas árvores que havia no interior doacampamento.

Dançavam ainda aqui e além quase a extinguirem-se. Os clarões dispersos criavam umaatmosfera fantasmagórica.

— João! João! — chamou sem lhe sair a voz. — Onde estás? Passeou o olhar desvairadopelas cabeças alinhadas em círculo, e todas se assemelhavam à do irmão.

— João, onde é que te meteste? — gritou por fim.Uma das figuras recortadas a negro virou-se e acenou-Lhe: — Aqui! Não te aflijas! Correu a

certificar-se de que o encontrava vivo e sem uma beliscadura.— Não te aflijas, que o pior já passou — repetiu o João. — Se os pusemos em fuga uma vez,

pomos segunda. Mas se calhar já nem voltam.Falava pausadamente e com uma expressão que a irmã não lhe conhecia, a expressão grave e

solene de um homem feito.Abraçou-o, e como geralmente acontece em momentos de desespero, o contacto físico

reconfortou ambos.— Sabes do Orlando? O velho cientista encontrava-se entre os feridos. De olhos cerrados e

meio inconsciente, gemia baixinho. Ana sentou-se ao pé dele com as lágrimas a escorrerem pela caraabaixo num pranto silencioso.

— Foi atingido no braço esquerdo — disse a Elisa em surdina.— Ajuda-me a tirar-lhe a camisa.Quando desabotoou os primeiros botões, deu com a bolsa de pano que ele fizera questão de

transportar e sentiu uma tristeza raivosa, uma indignação profunda.— Malditos tesouros, malditas riquezas! E soluçava em seco.— O que é que esta porcaria vale em comparação com a vida? Somos tão estúpidos! Elisa,

ocupada a lavar a ferida, só fez um reparo: — Esperemos que não infecte...A luz do Sol rompia no horizonte, dourada, rosada, a prometer um dia lindo. Uma brisa morna

agitava as copas das árvores, cantavam os pássaros na floresta, cantou o galo no acampamento.Aquela alegria pacífica, em contraste com o espectáculo que lhes oferecia o vale onde tinhamtombado vários homens, abalou-os profundamente! — Ainda haverá perigo? — perguntou o senhorCoillart desolado. — Acha que voltam? Serpa Pinto pousou a carabina, estendeu uma última

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olhadela de militar até à orla da floresta e depois pousou a carabina.— Não. Se recuaram durante a noite, parece-me pouco provável que voltem à luz do dia.Pepeca continuava agarrado à espingarda salvadora com unhas e dentes. Enfiara a cartucheira

no ombro e aguardava instruções atarantadíssimo.— Usaste essa arma? — Usei. A que me emprestaram ficou sem balas, por isso fui buscar a

que sobrava. Havia esta e tinha cartuchos, foi uma sorte.O missionário afagou a barba e abanou a cabeça pensativo.— Algum problema? — inquiriu Serpa Pinto.— Não. Mas parece-me que já sei por que é que os atacantes fugiram. Essa espingarda foi-me

oferecida por um caçador de elefantes e as balas são de nitroglicerina. Quando atingem o alvo,provocam uma explosão...

— Ah! — exclamou Serpa Pinto. — Então foi isso...Nenhum deles tencionava ir mais longe com as explicações, mas João, curioso como sempre,

exigiu que o esclarecessem. E bastou um gesto para ele também entender tudo. Entre os cadáveresque jaziam fora da paliçada havia um corpo totalmente desfeito. Fora atingido, explodira por dentro,desmembrara-se.

— Quando viram um companheiro explodir, devem ter pensado que possuíamos um feitiçonovo, imbatível — concluiu o missionário, fazendo apelo à sua longa experiência no mato. — Poraqui há gente que tem muito mais medo de feitiços do que de balas, portanto o mais certo é nãovoltarem.

Apesar do alívio que aquelas palavras ofereciam, ninguém se sentia com disposição paramanifestar regozijo. O encontro fora brutal; tantas mortes, que tristeza! Coillart chamou os seushomens, mandou buscar pás e indicou o local onde queria que abrissem as sepulturas.

— Temos que dar uma volta pelo campo a ver se há sobreviventes.Serpa Pinto acompanhou-o e João, após algumas hesitações, decidiu: "Se eles têm coragem

para esta ronda, eu também tenho." Fazendo das tripas coração, seguiu-os. Não encontraram nenhumhomem com vida entre os que estavam próximos do acampamento; mas pareceu-lhes ouvir gemidosvindos de trás das moitas que cresciam na colina fronteira. Serpa Pinto estugou o passo e Joãoavançou também, tipo cão fiel. Assim que contornaram as plantas viram três corpos num charco desangue.

Quando se aproximaram, tiveram uma surpresa.— Catiba! A personagem misteriosa que ninguém sabia de onde vinha nem para onde ia, que

os tinha roubado, seguido e possivelmente desencadeado o ataque, estava ali por terra. Respiravacom dificuldade, tinha o braço esquerdo esfacelado e retesava os músculos numa tentativa de resistirà dor. Quando eles se aproximaram, julgou que iam matá-lo. Não lhe sobravam forças para fugir nempara se defender. No entanto, não desviou a vista nem se encolheu. Nos seus olhos de leão perpassouum estranho lampejo, um último desafio, como se lhes dissesse: "Matem-me se quiserem, não tenhomedo!" A figura impressionava, desconcertava. João, que ainda havia poucas horas não hesitaria emlhe dar um tiro, só pensava agora em socorrê-lo, impedir que morresse. Sentiu, portanto, uma enormesatisfação quando Serpa Pinto disse que só um cobarde mataria um homem ferido e desarmado.

— A partir deste momento, considera-te prisioneiro — declarou antes de se inclinar e pedir:— Ajuda-me, João, temos que fazer um garrote para estancar a hemorragia do braço.

O missionário já lá vinha, acompanhado por homens das duas caravanas. Enterraram os dois

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mortos ali mesmo, e depois de uma breve oração levaram Catiba para o acampamento.Durante vários dias tudo girou à roda dos doentes. Quem ia à caça procurava sobretudo

animais pequenos porque eles precisavam de carne tenra. A fogueira nunca mais se apagou porqueera necessário ter sempre água fervida à disposição. E as conversas não variavam de assunto,melhoras, pioras, tratamentos, outros casos do género que acabaram bem.

As mulheres pouco ou nada dormiam. Vigiando o sono agitado de quem tinha febre e pediaágua, enxugando testas encharcadas em suor, segurando carinhosamente a mão dos que pareciam estarna iminência de partir para o outro mundo, já não distinguiam amigos de inimigos.

Contra todas as expectativas, o primeiro a recuperar foi o velho Camutombo. Uma certamanhã encontraram-no a remexer nas panelas numa agitação risonha e absolutamente inesperada.

Tinha ainda um pano à volta da cabeça e proclamava aos quatro ventos: — Enganei a morte!Os pratos que preparou para o almoço estavam divinais.

Pior sorte tiveram Orlando e Catiba, pois os braços infectaram e incharam, provocando doresagudas e grandes febrões. Apesar de um corte se dever à força metálica da azagaia e o outro serefeito de bala, em nada se distinguiam, latejavam ambos escorrendo o mesmo pus esverdeado, comoferimentos gémeos.

Ana e João revezavam-se com a família do missionário para os atender noite e dia. SerpaPinto não pôde colaborar porque adoeceu também. Uma crise de malária atirou-o para o leito queElisa lhe preparou dentro de um carroção, privando-se a si própria de lençóis e almofada. Farta deconviver apenas com os tios e com os velhotes da caravana, desvanecia-se a tratar daquele homemnovo, bonito e atraente que ali caíra do céu. Se alguém perguntava "Precisas de ajuda?" respondiainvariavelmente que não.

A tia andava inquieta, e sem fazer alarde controlava o par.Todos os pretextos lhe serviam para entrar e sair do carroção.Ao escurecer obrigava Elisa a ir descansar e substituía-a.Estes cuidados sobrecarregaram Ana e João. Uma noite em que tinham ficado os dois de

serviço na barraca de campanha, apanharam um susto tremendo porque Orlando começou a revirar osolhos e a perder a cor. Abanaram-no, chamaram-no, mas ele não dava acordo de si. Lívido, de olhoscerrados e boca entreaberta, parecia ter a vida por um fio.

— Vai buscar o missionário! Depressa! O irmão zarpou que nem uma seta e pouco depoisvoltava com o senhor Coillart também aflitíssimo. Traziam a caixa dos remédios, mas com aatrapalhação deixavam cair tudo e iam partindo dois frascos.

— Despachem-se, se não ele morre! — implorou a Ana. — Por favor! Finalmenteconseguiram preparar uma injecção e aplicar-lha.

— Isto costuma ter um efeito bastante rápido...— Jura? — perguntou a Ana sem desfitar o velho amigo. — Não está a tentar animar-nos? —

Não. É impossível garantir-te que funcione, portanto digo-te o que costuma suceder.Para a impaciência angustiada dos dois irmãos, a reacção foi lenta. Mas de facto uma leve

coloração ia tingindo as bochechas redondas. As pálpebras agitavam-se; de súbito abriu os olhos eesboçou um leve sorriso.

— Orlando! Ele apertou-lhes a mão em resposta.— Não fale — pediu o missionário. — Mas faça-me sinal a dizer se se sente melhor.Vendo Orlando acenar que sim, respiraram de alívio. Em todo o caso, o senhor Coillart ficou

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um bom pedaço ao pé deles.Ofereceu-se até para os substituir, mas não Tinha saído havia instantes e eles preparavam-se

para dormitar quando Catiba se remexeu. Estava acordado, assistira a tudo em silêncio e fitava-oscom aquele olhar desconcertante e enigmático que lembrava um leão meditativo.

— Acha que valeu a pena? — perguntou-Lhe Ana de chofre. — Tanto sofrimento por causa dotesouro que nos queria roubar? — O tesouro pertence-me — disse Catiba imperturbável. — Por issovocês é que têm a culpa, vocês é que me roubaram a mim.

capítulo 14As revelações de Catiba Mudos de espanto, receberam pela boca de Catiba as mais

assombrosas revelações: — Sou descendente de Monomotapa — afirmou com o invariável orgulhodos príncipes. — Cresci a ouvir falar nas grandes casas de pedra, nas minas de ouro, nas imensasriquezas dos antepassados. A minha mãe e a minha avó contavam histórias sobre os chefes, asintrigas da corte, a arte dos feiticeiros.

Mas a história que mais adoravam era a da caravana que se perdeu sem deixar rasto.Martelaram-me o juízo desde criança contando e recontando as peripécias que levaram o rei a pedira filha de um chefe inimigo em casamento. Descreviam com grande minúcia os presentes preparadospara a noiva e para a família da noiva, jóias, ferramentas de ouro maciço, de ouro e marfim. E eu deboca aberta, maravilhado, curioso, cobiçoso.

Cheguei a sonhar com as peças que julgava desaparecidas para sempre num abismo, segundoversão da minha mãe, por artes mágicas, na opinião da minha avó. Acontece que me fiz homem, fuirepensando o que ouvira e jurei a mim próprio que havia de ser eu a desvendar o mistério.

Suava em bica, tinha os olhos brilhantes e arfava, cansado de tanto falar. Mas embalara aexplicar-se e a expressão dos ouvintes era um incentivo irresistível. Soergueu-se apoiado noscotovelos, pediu água, bebeu de um trago e continuou: — Fiz e refiz o percurso da caravana. Passeirios, subi árvores, escavei em todos os locais a que se referia a história. Não desvendei o segredoporque ignoro o que aconteceu aos mensageiros; mas encontrei a primeira peça junto de um penedoque tem forma de leão. Ora sobre este assunto já vocês sabem alguma coisa, não é verdade? Ana eJoão entreolharam-se indecisos. Seria aconselhável fazerem confidências àquele estranho que aindahá pouco era inimigo? Na dúvida, viraram-se para Orlando.

Ele, porém, mantinha-se de olhos fechados. Uma leve tremura nas pálpebras fê-los desconfiarde que estava à escuta fingindo dormir, mas se assim fosse, lá teria as suas razões.

— Só encontrou uma peça? — perguntou o João propositadamente com cara de parvo.Catiba descaiu nas almofadas e inspirou fundo.— Só. Como tinha assuntos urgentes a tratar guardei-a muito bem guardada, e para mais

facilmente reencontrar o local tomei notas no meu diário e até fiz um desenho.— Tomás! — exclamaram atónitos. — Você é o Tomás! — Como é que sabem? — perguntou

ele igualmente surpreendido.— Por causa do diário — respondeu João de imediato. — Perdeu-o, não é verdade? — Sim.— Pois fomos nós que o encontrámos.— Onde? — Na floresta — mentiu a Ana.

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Fez-se silêncio. Um silêncio que demorou a quebrar devido ao número de questões emsuspenso.

— A... por que é que mudou de nome? — Não mudei. O meu pai era português, baptizou-me edeu-me o nome dele. Mas a minha mãe entendeu que devia escolher para mim um nome africano. Porisso sou Tomás e sou Catiba, uso um ou outro conforme os casos.

— Ah! — Vocês roubaram-me — queixou-se após um momento de pausa.— Isso não é verdade! — atalhou logo o João. — Tenha santa paciência mas não roubámos

ninguém. Achámos o diário, seguimos as indicações, e como muito bem sabe junto ao tal penedo nãohá mais nada. Foi por puro acaso que encontrámos as outras peças na floresta.

— São minhas — insistiu ele. — Se eram dos meus antepassados, pertencem-me.O argumento perturbou-os. Teria razão? Não teria? Procuraram de novo o apoio de Orlando,

mas ele continuava inabordável.— Se lhe pertencem ou não, podemos discutir depois.— Depois de quê? — De nos explicar como é que soube onde estávamos para nos roubar.Catiba virou a cara para o lado oposto e respirou fundo, talvez pensando também ele, "Digo?

Não digo?".Acabou por ceder.— Quando voltei ao local do penedo vi que tinham andado por ali a fazer escavações. Fiquei

furioso e fui à aldeia mais próxima para saber se tinha sido gente de lá. Disseram-me que não, masfalaram-me nuns brancos que a patrulha encontrara vindos daquela zona...

Um flash instantâneo devolveu-lhes a imagem do grupo guerreiro que lhes barrara o caminho.Recordaram o chefe com a sua fantástica cabeleira de juba de leão, o medo que sentiram e a palavramágica que os livrara de apuros. João esteve quase a perguntar: "O que quer dizer Cicota?", mas,lembrando a reacção do grupo, receou que fosse alguma asneira forte, e como a última coisa quequeria era ofendê-lo ou cortar-lhe o discurso, calou-se.

— Se o problema era connosco, escusava de ter convencido os homens da caravana de SerpaPinto a roubarem-lhe tudo.

— Isso é outra história...— É mesmo? — duvidaram.Ele voltou a tomar fôlego. Os olhos coruscavam, decerto a febre subia, mas a conversa estava

ao rubro, era impossível adiá-la.— Se eu tivesse ido ter convosco para pedir delicadamente que me dessem o tesouro, vocês

davam? Os dois irmãos cruzaram um olhar rápido, depois encolheram os ombros.— Possivelmente não.— Pronto, aí têm. Para o obter era necessário engendrar um plano. Então dirigi-me à corte do

rei Lobossi, onde me estimam e respeitam. Não falei a ninguém no assunto porque não estavadisposto a partilhar o tesouro, mas fui apalpando terreno e tudo se conseguiu mais facilmente do queeu pensava.

Serpa Pinto tem muitos inimigos entre os conselheiros de Lobossi, sabiam? Acenaram quesim.

— Também tem amigos, pessoas que o apreciam e defendem.— E o rei? — Humm... há muitas intrigas; Lobossi ora se deixa influenciar por uns ora por

outros.

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— Foi ele quem mandou limpar o acampamento? — Não. Combinei tudo com um conselheiroque tinha contactos entre os pombeiros. Alguns estavam fartos da viagem, queriam ir-se embora, masreceavam que Serpa Pinto não lhes pagasse senão no fim. Portanto aceitaram bem a ideia do roubopela calada da noite e misturaram plantas do sono na comida que serviram ao jantar. Penso que nãotencionavam roubar tudo, mas na altura entusiasmaram-se. Eu acompanhei-os. Tinha prevenido quesó me interessava rebuscar na barraca das visitas, e como vocês nem traziam bagagem foi fácilconvencê-los.

— E Lobossi? — insistiu João — Sabia do assalto? — Não faço ideia. O conselheiro é muitopróximo, um homem importante. Pode ter-lhe dito ou não. De qualquer forma eu não lhe contei. Sófalámos no assunto quando tu e o Moero chegaram à corte para se queixarem e eu servi de intérprete.

— Há um pormenor que nos tem feito muita confusão. Se você já tinha o que queria, por que éque veio atrás de nós? Catiba deitou a cabeça para trás e fechou os olhos um instante. O peito subia edescia a um ritmo desigual, como quando se acabou de correr muito e se está cansadíssimo. Noentanto, logo que se sentiu capaz, retomou o discurso: — Não podia imaginar que vocês seorientavam pelo meu diário. E como vi que também havia terra remexida à volta das árvores daclareira, pensei que tivessem informações sobre o tesouro mais completas do que as minhas. Entãodecidi segui-los, a ver se iam escavar noutro local. Na noite em que me tiraram a bolsa vi-meobrigado a fugir, mas não desisti.

Calou-se, agora completamente exausto. Mas a Ana não resistiu a fazer-lhe uma últimapergunta: — Acha que foi justo o ataque horroroso contra este acampamento? Ainda por cima contrapessoas que não tinham nada a ver com o tesouro? — As coisas não são assim tão simples, Ana...

Fez um esforço para erguer o tronco mas não conseguiu. Ardia em febre e teve que falardeitado, a intervalos, ofegante.

— O tesouro pertence-me e eu estava disposto a fazer o que fosse preciso para o obter. Massó por mim, talvez tivesse tentado resolver tudo numa emboscada. Acontece que os remadores viramas riquezas, contaram ao rei e alguém, não sei quem, espalhou a notícia através dos tambores. Eusegui-vos por atalhos e quando cheguei perto já havia várias tribos em pé de guerra. Não fui eu quempreparou o ataque. Limitei-me a participar.

Completamente arrasado, cerrou as pálpebras e não disse mais nada.Na manhã seguinte estava muito pior e Orlando também, pois as injecções do senhor Coillart

tinham efeito rápido nos dois sentidos. Toda a gente se afligiu imenso e, não sabendo o que fazer,cirandavam de volta da barraca de campanha com caldos, água fervida, boa vontade. A situaçãoprolongou-se por três dias, e eles em desespero. Já viam o caso malparado quando lhes chegouauxílio providencial na pessoa de um inglês.

Apareceu à noitinha e apresentou-se de forma cordial, delicada.— Chamo-me Benjamin e estou a caminho de Moçambique. Soube que têm doentes a precisar

de assistência e resolvi passar por aqui a ver se posso ser útil. Sou médico e botânico, cheguei aÁfrica há dois anos para estudar plantas curativas.

— Graças a Deus! — exclamou Cristina enxugando as lágrimas.— Graças a Deus! Mas não se movia, nem ela nem os outros, porque a surpresa os deixara

pregados ao chão. Tinham rodeado o visitante e examinavam-no da cabeça aos pés como sereceassem que fosse miragem e estivesse prestes a evaporar-se.

Benjamin sorria, compreensivo. Devia ter os seus vinte e oito ou trinta anos e era a figura

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típica de um inglês, muito loiro, com olhos muito azuis. Usava uma camisola grossa de tela; ocolarinho desapertado e as mangas arregaçadas expunham o peito forte, os braços musculosos e apele queimada pelo sol africano. As calças de pano grosseiro estavam seguras por um cinto de courode onde pendia uma estupenda faca de mato.

Quanto aos sapatos, encontravam-se em mísero estado e as costuras em ziguezague pelo ladode fora indicavam que se vira obrigado a remendá-los ele mesmo.

— Então, não me levam aos doentes? Conduziram-no primeiro à barraca de campanha, depoisjunto de Serpa Pinto. Ele observou os três com a maior atenção mas não se atreveu, ou não quis, fazerdiagnóstico nem incutir esperanças.

— Vamos lá a ver... assim que os meus companheiros chegarem, aplico os remédios e depoisé necessário aguardar...

Só então explicou que viajava na companhia de outro inglês que se dedicava ao estudo dosanimais, um zoólogo. Possuíam três carroções e tinham conseguido contratar homens para formaremuma pequena caravana.

— Como é que soube dos nossos doentes? — Aqui no mato as notícias correm mais depressado que as pessoas! Quem primeiro reagiu ao tratamento do médico inglês foi Orlando. Deixou de terdores, a febre baixou e a ferida começou a secar. Pôde então levantar-se, embora pálido eenfraquecido. Ana e João aguardavam ansiosamente uma oportunidade para ficarem a sós com ele epoderem contar-lhe as revelações de Catiba. Mas ele já sabia tudo porque ouvira a conversa.

— Não me sentia com forças para poder falar, por isso fingi que dormia. E até foi bom, poistive tempo de pensar no assunto.

— Vai entregar-Lhe o tesouro? — Não.— Então acha que não lhe pertence? Orlando abanou a cabeça sem dizer que sim nem que não.— Conforme ele próprio disse, as coisas nunca são assim tão simples. Ora pensem lá. O reino

de Monomotapa desmembrou-se há imenso tempo. Os chefes tinham várias mulheres e portantomuitos filhos e netos... Se seguirmos a lógica dos herdeiros, então não é só ele que tem direito aotesouro, são todos os descendentes do último rei.

— Lá isso é verdade.— Se a lógica for outra, se pensarmos que quem se deu ao trabalho de seguir o rasto da

caravana até encontrar as peças é que tem direito a ficar com elas, então está o assunto resolvido.Cada um guarda o que achou, ele fica com a ferramenta de ouro maciço e nós com o resto.

A argumentação de Orlando fazia sentido e agradava-lhes bastante.— Quer dizer que já decidiu? — Já decidi várias coisas. E uma delas é que nos vamos

embora com os ingleses. Preciso urgentemente de voltar à nossa época para me tratar como deve ser.Já que os ingleses seguem para Moçambique, nós aproveitamos a boleia. Falei com o Benjamin e eleaceitou levar-nos.

— Avisou o Coillart e o Serpa Pinto? — Claro. O Serpa Pinto até ficou com imensa pena denão se sentir com forças para ir connosco. Mas o médico também achou que é mais prudente ele ficarcom o Coillart até se recompor.

Depois seguem juntos para a África do Sul.— E o Catiba? Catiba fora operado ao braço, pois o médico constatara que a bala se alojara

fundo no músculo e por isso é que não havia melhoras.— Ainda vai demorar a pôr-se em pé. Mas não se preocupem. Os Coillart são excelentes

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pessoas, tratam dele até que esteja bom.— E depois? O Serpa Pinto disse que ele ficava prisioneiro.— Isso foi a reacção impulsiva de um militar a seguir ao combate. Também já lhe contei a

história toda e o próprio Serpa Pinto me disse que, não havendo perigo de entrarem em confronto, oque deseja é vê-lo pelas costas. Lembrem-se de que o Alexandre não veio para aqui em campanhamilitar, veio em missão científica.

Estava pois tudo resolvido, só faltava despedirem-se. Mas a separação não foi fácil. Tinhamvivido juntos emoções demasiado fortes, custava dizer adeus.

João e Pepeca, orgulhosos da coragem demonstrada em combate, ficaram embaraçadíssimosquando perceberam que os olhos se lhes enchiam de lágrimas. Augusto apertou-os nos braços, muitocomovido. Moero declamou todas as frases que sabia em português, mesmo as que não vinham nadaa propósito: "Até à vista... Está calor... Tenho fome... Gosto de ti...

Saudades... Bom dia... Somos amigos...", e por aí fora, sempre com um sorriso amplo,expressivo, amigável. O cozinheiro ofereceu-lhes vários petiscos para comerem pelo caminho, amulher do missionário cobriu-os de beijos, entre Orlando e o senhor Coillart houve várias sessões depancadaria nas costas.

Catiba não pudera levantar-se, e portanto foram eles à barraca de campanha. Apertaram asmãos e encararam-se bem de frente, profundamente, sem trocarem palavra.

De novo cá fora, recomeçaram as manifestações de afecto, para grande espanto dos ingleses,pouco acostumados a mostrar sentimentos.

Serpa Pinto viera assistir à partida. Estava pálido e febril como no primeiro dia, e os olhosescuros brilhavam da mesma forma viva e intensa que impressionava as mulheres.

Elisa não o largava, aproveitando todos os pretextos para o amparar. Foi então que a Anaresolveu pôr em prática o seu plano secreto. Antes de subir para o carroção avançou para eleresoluta, abraçou-o com força e pregou-lhe dois valentíssimos beijos, o primeiro na bochecha e osegundo, a fingir que se atrapalhara, na boca.

"Este já ninguém me tira!", pensou com um arzinho de triunfo.Últimos acenos, mais uma e outra mirada em suspenso para gravar na memória o rosto dos

companheiros daquela aventura, promessas soltas de se voltarem a encontrar, embora não soubessemquando nem onde. E depois o arranque final. Ana e Orlando tomaram lugar na enorme carroça que osingleses emprestaram e que o João exigiu conduzir. Tomara as rédeas, inclinado para a frente, ebastou ouvir o grito do Dr. Benjamin incentivando os bois a iniciarem a marcha para dar um gritoidêntico, satisfeito e à vontade no seu novo papel: — Eh! Eh! Eh! Conforme seria de prever, aviagem até Moçambique foi tremenda! Numa frágil carroça, sem grandes certezas quanto ao caminho,desprotegidos perante os obstáculos que tanto podiam assumir a grandiosidade das montanhas comoa mesquinhez de uma valeta escorregadia ou de uma pedra traiçoeira capaz de desconjuntar a roda,sofreram muito. E não sofreram menos com as tempestades súbitas, o calor abrasador, a fome, asede, as visitas indesejadas, quer se apresentassem com a envergadura colossal dos elefantes quercom a envergadura mínima igualmente aterradora da mosca Tsé-tsé.

Quando finalmente avistaram o Índico sentiam-se pessoas diferentes, e foram invadidos porum contentamento infinito! A riqueza, claro, tinha a sua importância. Quem é que não gosta deregressar com ouro na bagagem? Mas era sobretudo a proeza a empolgá-los, a fantástica proeza deterem cumprido aquilo a que se poderia chamar missão impossível.

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Instalaram-se num morro de terra vermelha com vista para o mar e aguardaram sem pressa queo cientista de serviço os localizasse através dos corredores do tempo.

Estava um dia magnífico, de atmosfera quente aligeirada pela brisa marítima, as cores aorubro, verde muito verde, azul muito azul, sob aquele Sol que parecia brilhar por vontade própria. Láem baixo, na praia deserta, ondinhas suaves deslizavam sobre a areia branca e fina, num vaivémpreguiçoso.

Entretidos a ver desaparecer fileiras de pegadas impressas na areia, não se aperceberam logode que o ritmo das águas tinha efeito sobre eles. Mas o ondular contínuo ia apagando também alembrança dos maus momentos, sem estragar as recordações positivas. Desaparecia o medo, ficava avibração intensa, o orgulho por terem vencido tantos perigos.

Esbatia-se o cansaço, o sofrimento, a ansiedade, mas redobrava o prazer de possuíremimagens novas, experiências diferentes para recordar.

Quando chegou a hora de regressarem à sua época, sugados pela avançada tecnologia dostempos modernos, levavam a África misteriosa enraizada para sempre no coração.

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PosfácioAntes dos Descobrimentos Portugueses a África era um continente muito misterioso. Ninguém,

nem mesmo os africanos, lhe conhecia o contorno completo, pois cada povo circulava numa zonalimitada que incLuía apenas a sua terra e a dos vizinhos. Quanto aos europeus, frequentavamunicamente os portos do Norte de África na costa do Mediterrâneo e alguns outros, poucos, para suldo estreito de Gibraltar.

Os árabes dominavam uma faixa de terra no Norte de África e as suas caravanas por vezesembrenhavam-se no interior a fim de comerciarem ouro. Mas só conheciam rotas que levavam aTombuctu.

Os portos da costa oriental da África (banhada pelo oceano Índico) eram frequentados porcomerciantes árabes e foram visitados por navios chineses cerca de cinquenta anos antes da viagemde Vasco da Gama. No entanto, essas viagens não contribuiram para que a África se tornasseconhecida, pois não se fizeram mapas nem se trocaram informações. Os chineses não sabiam queexistia o oceano Atlântico. Quanto aos europeus, sabiam da existência do oceano Índico masignoravam praticamente tudo o que Lhe dizia respeito.

Fazer mapas com certo realismo, só mesmo da faixa norte, porque o resto do continentepermanecia uma incógnita. Qual a dimensão? Qual o formato? Haveria passagem do Atlântico para oÍndico? E o clima? E as plantas? E os animais? As viagens realizadas pelos navegadores portuguesesao longo do século xv é que forneceram aos cartógrafos os elementos necessários para desenharem ocontorno do continente africano.

Permitiram também localizar alguns rios, identificar climas, elementos da flora e da fauna. E,naturalmente, proporcionaram contactos com os habitantes das várias zonas.

Os descobrimentos portuguesesO contorno da costa de África foi sendo desenhado com rigor à medida que os navegadores

portugueses iam avançando na descoberta de rotas marítimas. As principais etapas dessa fantásticaaventura que revolucionou o conhecimento do mundo podem inscrever-se no mapa juntamente com asdatas e os nomes dos navegadores.

A exploração do interior do continente africano A África oferecia barreiras quaseintransponíveis para os europeus: desertos, florestas virgens, povos hostis à presença de estranhos,animais selvagens de grande porte como leões, elefantes, búfalos, crocodilos, rinocerontes,hipopótamos, grande variedade de répteis venenosíssimos, um clima terrível e as terríveis febres,para as quais não se conhecia tratamento.

Durante vários séculos os cartógrafos deixaram em branco o interior do continente africano,porque não faziam a mínima ideia de como eram aquelas terras. Às vezes preenchiam esses espaçoscom ilustrações fantasiosas só para enfeitar.

Pouca gente sabe que os primeiros exploradores europeus a arriscar a pele para desvendar ossegredos que se escondiam atrás desses tremendos obstáculos também foram portugueses.

Alguns partiram em missão oficial, outros por iniciativa própria, movidos pela curiosidade,

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na intenção de comerciar ou de espalhar a fé cristã. Muitos terão morrido ou desaparecido, porquenunca mais se ouviu falar deles. Houve, no entanto, quem regressasse trazendo informações preciosassobre a terra e as gentes.

Os navegadores terrestres portugueses: viagens de exploração nos séculos xv e xvi No tempodo Infante D. Henrique 6 Heitor Homem e Diogo Lopes de Almeida, dois rapazes que tinham entre 15e 17 anos, foram deixados sozinhos numa enseada ao sul do cabo Bojador para trazerem notíciassobre o interior daquela zona. Por lá andaram a cavalo e certamente bastante assustados, durantenove longos dias.

Os navegadores que os tinham lançado em terra eram comandados por Afonso Baldaia.Aguardavam nas barcas, já convencidos de que os rapazes tinham morrido. Quando os viramregressar, que grande festa! Festa merecida, pois foram os dois primeiros europeus a embrenharem-se por terras de África a sul do cabo Bojador.

João Fernandes desembarcou na zona chamada Rio do Ouro, e como sabia falar árabe dispôs-se a explorar o deserto do Sara. Por lá andou durante sete intermináveis meses, convivendo com osmouros em boa harmonia. Terminada a missão, voltou à costa e aguardou a passagem das caravelas.Quando viu ao longe os seus compatriotas pôs-se a gritar e a acenar.

De início ninguém o reconheceu, porque estava muito modificado. O sol queimara-Lhe a pele,tinha deixado crescer a barba e vestia à maneira dos caravaneiros do deserto. Mas por fim viram dequem se tratava e recolheram-no com grandes manifestações de alegria. Em terra, porém, houvemanifestações de tristeza, porque João Fernandes fizera amigos entre os mouros, que choravam desaudades! 6 Diogo Gomes subiu o rio Gâmbia até Cantor, povoação ribeirinha onde se faziacomércio de ouro. Aí recolheu muitas informações importantes e estabeleceu laços de amizade comBatimansa, senhor da região da Gâmbia. No regresso fez o relato da sua viagem a um comerciantealemão, Martin Behaim (Martinho da Boémia), que veio a ser famoso como astrónomo e comoconstrutor do primeiro globo terrestre que se conhece.

Este alemão também escreveu um livro baseado na viagem de Diogo Gomes.No reinado de D. João II O rei D. João II organizou várias expedições ao interior da África.

Os portugueses ao seu serviço contratavam guias locais e realizaram viagens notáveis pelo sertão,estabelecendo laços de amizade e acordos de comércio com os chefes dos povos que encontravam.Estas expedições abriram a porta aos missionários cristãos.

4-1486 — João Afonso de Aveiro visitou o Benim, estabelecendo tão boas relações com o reique anos depois os artistas do Benim representavam imagens de soldados portugueses nas suasesculturas de marfim.

Duarte Pacheco Pereira e Mestre José Vizinho visitaram o Benim. Exploraram cerca de 600km pelo interior.

5 Diogo Cão subiu o rio Congo ou Zaire até às cataratas de lelala. Estabeleceu boas relaçõesde amizade com o rei do Congo. Trouxe consigo embaixadores para conhecerem Portugal. Entre osembaixadores veio um príncipe chamado Caçuta, que foi baptizado com o nome de João da Silva,sendo os padrinhos o rei D. João II e a rainha Dona Leonor.

7-1488 — Pêro da Covilhã e Afonso Paiva desceram juntos o mar Vermelho. Afonso Paivapercorreu parte da costa oriental da África mas morreu sem regressar a Portugal. Pêro da Covilhãatingiu a Etiópia e lá ficou a viver na corte do Negus, rei cristão identificado com o lendário PresteJoão das Índias.

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8 Gil Vaz e Vicente Anes visitaram o imperador do Mali.10 Pêro de Évora e Gonçalo Eanes subiram o rio Senegal, visitaram o Tuculor e atingiram

finalmente a misteriosa cidade de Tombuctu, centro do comércio do ouro.Pêro de Évora, Mem Rodrigues e Pêro de Astoniga visitaram o rei dos Fulas e foram também

a Tombuctu.11 Rui de Sousa e os famosos pilotos Pêro de Alenquer e Pêro Escobar visitaram o Congo

com tripla intenção: cristianizar, divulgar os costumes europeus e recolher informações sobre ascaracterísticas do rio Zaire. Os pilotos permaneceram no Congo uma temporada para fazerem aexploração do rio. O rei do Congo converteu-se ao cristianismo e adoptou o nome de Afonso.

15 Oito portugueses, entre os quais Rodrigo Rabelo, João Colaço e Pêro Reinel, voltaram aoMali, estabelecendo boas relações com o chefe Madi Mansa.

No reinado de D. Manuel I 1 Sancho Tovar efectuou o reconhecimento da região de Sofala esoube que o ouro ali vendido vinha do reino de Monomotapa.

23 António Saldanha subiu a Montanha da Mesa no cabo da Boa Esperança.1-1514 António Fernandes visitou o misterioso reino de Mono-motapa, bem no interior de

África.2 Simão da Silva subiu o rio Congo ou Zaire em missão de estudo.10 Gregório da Quadra subiu o rio Congo ou Zaire na intenção de atingir o lago onde, segundo

a tradição, se localizava a nascente. Não conseguiu lá chegar.Esta foi a primeira de várias expedições que se foram realizando ao longo de um século em

busca da nascente do Zaire. Os exploradores não a conseguiam encontrar porque o rio ofereciamuitos obstáculos e era muito mais extenso do que imaginavam.

Manuel Pacheco e Baltazar de Castro visitaram o rei Ngola, que pedira para se converter aocristianismo.

Uma embaixada portuguesa, que incluiu o padre Francisco Álvares, visitou a Etiópia. Estepadre veio a escrever um livro com informações completíssimas sobre a Etiópia. A partir desta datapassou a existir um relacionamento regular entre os dois países.

O Reino do Monomotapa No interior do continente africano a zona entre os rios Zambeze,Limpopo e Save era riquíssima em minas de ferro, cobre e ouro. Os povos que ali habitavamaprenderam desde muito cedo a extrair os metais, que utilizavam para fabricar armas e objectosdiversos destinados a si próprios ou ao comércio com povos vizinhos. As riquezas acumuladas e anecessidade de se protegerem da cobiça dos inimigos contribuíram certamente para aguçar o engenhodos construtores, que ergueram grandes edifícios em pedra, com muralhas e torreões, semelhantes acastelos, onde viviam os chefes e se guardavam as riquezas. Essas construções tinham o nome dezimbabwe, que significa precisamente casa de pedra.

Ninguém sabe ao certo em que data foram construídas nem se pode determinar com exactídãoo início do império do grande Zimbabwe. As opiniões dos historiadores variam, mas de qualquerforma os estudos científicos apontam para tempos bem recuados, por volta do século x, portanto emplena Idade Média, tempo dos castelos na Europa.

As construções, de linhas arredondadas, não incluíam qualquer argamassa a ligar os blocos depedra. No interior das muralhas erguia-se uma torre cilíndrica e havia espaço para habitações empedra e para cabanas. Não existem construções semelhantes em nenhuma outra zona de África.

Actualmente é junto ao lago Vitória que se pode admirar maior número de vestígios do grande

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Zimbabwe.O Monomotapa No século xv um dos chefes do império do grande Zimbabwe conseguiu

impor-se a todos os outros e conquista terras para sul e para a costa, abrangendo assim vastas zonasdo actual Moçambique.

A palavra Monomotapa vem de Muene, que significa chefe e de Mutapa, nome desse chefedominador.

Na Europa nunca ninguém tinha ouvido falar deste império nem das suas riquezas. Mas,quando Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia (1498), fez paragens na costaoriental da África; soube que se comerciava muito ouro em Sofala e que esse ouro vinha das terrasdo interior.

A partir de então é que se foram espalhando notícias a respeito do tal reino misterioso queficava longe da costa, o império do Monomotapa.

D. Manuel I tratou de enviar homens da sua confiança com a missão de obterem o máximo deinformações possíveis sobre o assunto. O primeiro foi Sancho Tovar, que seguiu na armada de PedroÁlvares Cabral (1500). Desembarcou em Sofala e, sem se afastar muito da costa, conseguiu saber osuficiente para no regresso entusiasmar o rei a procurar contactos directos com os povos daquelaregião.

Em 1502 Vasco da Gama fez uma segunda viagem à Índia.Recebera ordem para ancorar em Sofala e cumpriu. Desta vez, porém, com resultados pouco

animadores, pois quase não havia ouro à venda. D. Manuel I, no entanto, não desanimou. Quandoescolheu D. Francisco de Almeida para primeiro vice-rei da Índia, encarregou-o de mandar construiruma fortaleza em África, no porto de Sofala. Isto permite concluir que o rei continuava interessadoem ser parceiro do Monomotapa no comércio do ouro. Quem se encarregou da construção foi PedroAnhaia.

O primeiro europeu no reino do Monomotapa D. Manuel I não enviou nenhuma expedição aoreino do Monomotapa porque naquela época não tinha mãos a medir! Só para a Índia partiam cercade mil e duzentos homens por ano, e havia ainda que cuidar das ilhas atlânticas, dos postos decomércio na costa da África, das viagens ao Brasil, à China, das embaixadas ao papa, ao xá daPérsia... Isto para não falar nos exércitos que era preciso manter no Norte de África para defender asfortalezas portuguesas dos ataques dos mouros. E tudo com pouco mais de um milhão de habitantes!No entanto, o rei sonhava com o ouro do Monomotapa... E tomou uma medida, frequente na época,que consistia em comutar a pena de morte a um condenado para o lançar em África.

Escolheu António Fernandes, carpinteiro de naus, natural de Braga. O tempo viria a mostrarque escolheu muito bem! António Fernandes desembarcou na costa de Moçambique e partiu para ointerior sozinho, provavelmente com uma arma e algumas munições. Precisou com certeza de muitacoragem, pois os obstáculos que teria de vencer eram aterradores. ûnico europeu no meio deafricanos, sem falar nenhuma língua local, habituado a outro clima, desconhecendo os perigos demato, ignorando qual a melhor maneira de se defender, ignorando também os hábitos e os costumesdas populações, o mais certo era morrer ou ser morto na primeira curva. Mas não foi assim.

Este homem possuía uma extraordinária resistência física e grandes qualidades pessoais, poisnão basta resistir à natureza para sobreviver em condições tão adversas. Foi necessariamente muitohabilidoso nas relações com os outros, e o factor sorte também terá ajudado.

António Fernandes viajou pelas terras do interior, visitou imensas povoações, contactou com

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mais de vinte chefes locais e foi o primeiro europeu a ser recebido no reino do Monomotapa.Entendeu-se tão bem com o rei que pôde visitar as minas de ouro, habitualmente vedadas a

estranhos. Por toda a parte fez amigos, e ficou em África durante 20 anos. Não pôde escrever sobreas suas aventuras porque era analfabeto. No entanto, as notícias do Monomotapa chegaram a Lisboa,pois ele contou tudo o que viu e ouviu a dois portugueses que prestavam serviço em Sofala: GasparVeloso, como feitor, e João Vaz de Almada, como capitão. Estes se encarregaram do relato escrito.

Nos anos seguintes houve lutas entre os portugueses e os mouros do Índico, que já antes deVasco da Gama comerciavam ouro por aquelas paragens.

Apesar dos conflitos, os portugueses conseguiram fundar entrepostos de comércio em váriasterras que pertenciam ao império do Monomotapa: Massapa, Masekesa, Arouva, Chevide, Chipondo,Dioa, Carangua; Quicina, Macarara, Botara. Alguns comerciantes portugueses instalaram-se parasempre, escolheram mulheres africanas e constituíram família.

Quanto às tentativas de conquista do Monomotapa, que também as houve, fracassaram sempre.O reino do Monomotapa desmembrou-se devido a lutas entre africanos nos finais do século

xvII.Os navegadores terrestres portugueses: viagens de exploração entre os séculos xv e XVIIINo reinado de D. João III Gaspar da Veiga subiu parte do rio Zambeze.Os portugueses construíram uma fortaleza em Sena (Moçambique), na margem do rio

Zambeze.Os portugueses construíram uma fortaleza em Tete (Moçambique), na margem do rio Zambeze.Cristóvão da Gama (filho de Vasco da Gama) foi à Etiópia com um exército para ajudar o

Negus na luta contra os turcos.Morreu nesta missão.Miguel Castanhoso fez a descrição do lago Tana, onde nasce o Nilo Azul, afluente do rio

Nilo.Lourenço Marques explorou os rios Limpopo e Umbeluzi.No reinado de D. Sebastião 0O Padre Gonçalo da Silveira atingiu o reino de Monomotapa

com a intenção de espalhar a religião cristã.Encontrou lá a viver um comerciante português chamado António Caiado, que Lhe serviu de

intérprete. Paulo Dias de Novais, acompanhado por uma missão de jesuítas, visitou o rei de Angola.Embrenhou-se para o interior de Luanda.

João de Barros estabeleceu os limites aproximados do reino da Etiópia.Uma expedição militar comandada por Francisco Barreto e Vasco Fernandes Homem tentou

conquistar as minas do Monomotapa. Não conseguiu.Paulo Dias de Novais voltou a Angola com o posto de Capitão e Governador. Fundou a

povoação de São Paulo de Luanda. A partir desta data efectuaram-se várias expedições pelo interiorde Angola e pelo rio Quanza.

Os portugueses fixaram-se na zona de Benguela e fizeram explorações pelo Sul de Angola.No reinado do Cardeal D. Henrique 9 As expedições portuguesas ao interior de Angola

encontraram oposição por parte dos habitantes de diferentes zonas e estalaram conflitos armados.Na época em que Portugal esteve unido à Espanha (1580-1640) 6 O padre Frei João dos

Santos viajou durante 11 anos por Moçambique e escreveu um livro chamado Etiópia Oriental, cominformações sobre a terra, os povos, a fauna, a flora.

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O comerciante português Duarte Lopes, que se tinha instalado no Congo em 1578, foi a Roma.Aí conheceu Filippo Pigafetta, e ditou-lhe informações sobre África — a terra, os rios, os animais,as plantas, o clima, os vários povos, as várias línguas, etc. Publicaram um livro que representougrande progresso no conhecimento de terras do interior de África.

O vice-rei da Índia enviou uma expedição militar, comandada por Diogo Simões Madeira,para auxiliar os homens do Monomotapa, que andavam em luta com súbditos revoltados e tinhampedido ajuda.

O comandante construiu um forte na margem do Zambeze, em Chicova. E efectuou oreconhecimento dos rápidos de Cabora Bassa.

O governador portugués de Angola, Manuel Pereira Forjaz, incumbiu o soldado BaltazarRebelo de Aragão de abrir caminho pelo interior de Angola até ao Monomotapa. Tinha a intenção deem seguida romper até Moçambique.

Baltazar fez parte do percurso, mas, tendo sido atacado por um rei local, viu-se obrigado ainterromper a viagem e a voltar para trás.

Gaspar Bocarro fez várias viagens de reconhecimento pelo interior de Moçambique.Manuel Cerveira Pereira fundou Benguela. Passou a haver dois governadores portugueses em

Angola, um em Luanda e outro em Benguela. Ambos organizaram expedições pelo interior.8 Um grupo de jesuítas, entre os quais Pêro Pais, visitou a nascente do Nilo Azul.3 Diogo Simões Madeira organizou expedições ao lago Niassa.8 O padre Baltazar Teles fez o primeiro mapa com a representação da nascente do Nilo Azul.9 Os portugueses organizaram expedições militares à zona do rio Cuango, no interior de

Angola. Estalaram conflitos com a rainha Jinga.8 Os portugueses instalados em Angola atingiram a nascente do rio Cunene, que confundiram

com o Zambeze.No reinado de D. João IV 4 Sisnando Dias Baião, mestiço e capitão de Sena e Rios, foi

enviado como comandante de uma expedição de auxílio a um rei do interior e atingiu a região daMatabelelândia. Ali encontrou à venda produtos vindos do outro lado, da costa de Angola. Tinhapenetrado 1500 km em linha recta a partir de Moçambique.

8 O padre António Gomes fez uma descrição do Sudoeste africano.7 Manuel Barreto descreveu a mesma zona.3 Os portugueses assinaram a paz com os povos de Angola e estabeleceram postos de

comércio nas margens do Cuango.Todas as viagens pelo interior de África partiam ora da costa ocidental ora da costa oriental.

Mas os exploradores dos séculos xvi, XVII e XVIIi não se atreveram a fazer a travessia completa,das costas do oceano Atlântico às costas do oceano Índico, por terra. Houve algumas tentativas,sempre fracassadas, não só devido aos obstáculos naturais, mas também porque ninguém sabia qual averdadeira largura da África.

Pensavam que fosse mais estreita do que a realidade é; portanto, a meio caminhodesanimavam.

No entanto, essas tentativas permitiram que se fosse preenchendo o mapa de África em váriasregiões.

Até meados do século XVII praticamente todas as informações sobre o interior africano foramobtidas por viajantes portugueses. Em 1652 os holandeses instalaram-se na zona do cabo da Boa

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Esperança e começaram a explorar o interior, na ideia de atingirem as minas do Monomotapa.A partir do século XVIII, além dos portugueses e holandeses começaram a aparecer viajantes

de outros países europeus.No reinado de D. João V D. Luís da Cunha, embaixador português em Paris, procurou

cartógrafos franceses, que na altura elaboravam mapas com grande rigor científico, e com eleselaborou um projecto de travessia de África. Queria organizar uma Companhia de Comércio à qualcompetiria efectuar expedições para desbravar o caminho entre Angola e Moçambique.

As viagens não chegaram a efectuar-se, mas os estudos prévios obrigaram a desenhar commaior rigor o mapa do interior de África, e tornou-se mais claro o que se conhecia e o que não seconhecia.

No reinado de D. José I 4 Foi nomeado Governador de Angola D. António Álvares da Cunha,sobrinho de D. Luís da Cunha. Este quis pôr em prática o projecto da travessia elaborado pelo tio.Mas não pôde fazê-lo porque o rei Jaga Caçanje não autorizava os portugueses a penetrarem nos seusterritórios. Só autorizava que frequentassem a feira de Caçange para comprar e vender produtos.

5 O governador de Angola organizou uma expedição científica destinada ao reconhecimentode parte do interior de Angola.

Escolheu dois homens cujas competências se completavam: Manuel Correia Leitão, sargento esertanejo, que conhecia várias línguas locais, e António Francisco Grisante, que era piloto e sabiautilizar instrumentos científicos para registar a localização exacta de acidentes naturais e povoações.

A expedição atingiu a corte do rei Jaga Caçange. Os portugueses não se atreveram aatravessar o rio Cubango, porque seriam punidos com a morte. Mas recolheram muitas informaçõesorais que permitiram avaliar, já com certo realismo, quais as verdadeiras dificuldades da travessiaentre Angola e Moçambique.

Depois desta viagem tornou-se evidente que seria arriscadíssimo forçar a entrada no reino deCaçange, por vários motivos: — o rei não autorizava; — o clima era doentio para os europeus; — adistância a percorrer era desencorajadora.

Seria portanto necessário tentar outro caminho.Cresce o interesse pela África No século XVII registaram-se avanços significativos no

domínio das ciências em vários países da Europa. Avanços que permitiram, por exemplo, determinarqual a verdadeira dimensão da Terra. Os cientistas ansiavam por desvendar todos os segredos dasregiões mais inacessíveis do globo. A partir de meados do século organizaram-se múltiplasexpedições ao interior da Ásia, da América, da África, em que participavam zoólogos, botânicos,geógrafos, matemáticos, equipados com instrumentos para fazerem observações e registos o maisrigorosamente possível. Em certos casos levavam com eles desenhadores para desenharem aspaisagens, pessoas, povoações, animais e plantas, porque ainda não havia máquinas fotográficas. Noregresso preparavam textos ilustrados para poderem divulgar os novos conhecimentos obtidos. Deuma maneira geral, os exploradores eram financiados pelos governos dos respectivos países, a queminteressava saber onde existiriam riquezas naturais.

Portugal havia muito que enviava expedições ao interior do continente africano, mas no séculoXViII começou a ser ultrapassado porque não acompanhara o desenvolvimento científico.

Em meados do século xvII os portugueses que viviam em África ou que ali se deslocavameram sem dúvida homens de grande coragem, gente aventureira e destemida, mas a maioria não tinhapreparação científica e, portanto, não podia competir com os exploradores estrangeiros que passaram

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a cruzar o sertão. Isto veio a ter as consequências que seria de esperar: à medida que os estrangeirosiam fazendo explorações e divulgando as suas descobertas, apagavam o contributo português para oconhecimento do interior de África.

Esqueceram-se as viagens anteriores, e as que se realizaram a seguir ficaram em segundoplano até se varrerem quase por completo da memória, o que é injusto, pois os portuguesescontinuaram em África e fizeram uma série considerável de expedições.

Os portugueses em África no século xvIII No século XVIIi os portugueses tinham fundadoalgumas povoações em África e mantinham uma rede bastante simples de funcionários, a quemcompetia sobretudo assegurar o comércio dos produtos africanos e cobrar impostos às tribos que sesubmetiam às autoridades portuguesas, geralmente a troco de protecção. Além do governador eramenviados para África funcionários civis e militares em comissão de serviço, alguns padres paramissionar e degredados (homens que tinham cometido crimes ou infringido leis e em vez de prisãocumpriam a pena em África).

Espalhados por Angola e Moçambique viviam ainda os sertanejos, portugueses que na suamaioria tinham partido por iniciativa própria na intenção de comerciar. Instalavam-se onde melhorLhes convinha, estabeleciam relações com os habitantes locais e adaptavam-se aos costumes daterra. O facto de morarem sozinhos entre estranhos e longe das autoridades portugueses obrigava-os aencontrar formas de conduta muito pessoais para sobreviverem, mas também os habituava à totalindependência. Os sertanejos comportavam-se como entendiam e faziam os seus negócios semprestar contas a ninguém.

Funcionários, militares ou sertanejos raramente levavam as mulheres para África, porque ascondições de vida eram muito duras, o clima difícil de suportar e as febres um tormento.

Muitos viveram com mulheres africanas e delas tiveram filhos que baptizaram e educaram nareligião cristã.

Um governador dinâmico 4 O governador de Angola era agora Francisco Inocêncio de SousaCoutinho, um homem dinâmico que decidiu fundar novas povoações com dupla intenção: por umlado, queria fixar os sertanejos para poder controlar as suas actividades e o seu comportamento; poroutro, tencionava atrair famílias portuguesas que quisessem dedicar-se à agricultura.

Fundou Alva Nova (mais tarde Sá da Bandeira e hoje Lubango), Quilengues, o Bié e oBailundo. Mas as coisas não correram como ele desejava. As famílias dispostas a emigrar preferiamir para as terras mais amenas do Brasil. Poucos foram os colonos que aceitaram o desafio. Quantoaos sertanejos, não estavam interessados em mudar de vida. Tanto este governador como os seguintestiveram problemas sempre que tentaram forçar os sertanejos a submeterem-se às autoridades. Elestinham uma relação próxima com os africanos e, sentindo-se pressionados, convenciam-nos a pegarem armas e a revoltarem-se. Isto levou os governadores a usarem outra táctica: passaram a pedirapoio aos sertanejos para as expedições científicas, e então os resultados foram excelentes. Ossertanejos possuíam ampla experiência de mato, havia muito que organizavam caravanas, e de umamaneira geral colaboraram.

As caravanas dos sertanejos Os sertanejos circulavam pelo interior a fim de negociarem, masnão circulavam sozinhos: iam com uma caravana da qual faziam parte pombeiros, carregadores,escravos.

Os pombeiros eram comerciantes africanos habituados a percorrer longas distâncias, queconheciam muito bem os caminhos através do mato e tinham contactos amistosos com chefes das mais

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diversas tribos. Faziam os seus próprios negócios ou trabalhavam para os sertanejos.Os carregadores eram africanos contratados para transportar mercadorias. Os escravos

pertenciam aos chefes locais, que os alugavam para irem na caravana, ou aos pombeiros, ou aossertanejos.

As caravanas dos sertanejos de Angola partiam de vários locais: Luanda, Caçange, PungoAndongo, Benguela, Caconda, Bié.

O Bié veio a ganhar muita importância por ser um planalto de clima mais fresco e por ondecorrem os rios Cuanza, Cunene, Cubango, usados como vias de comunicação. Além disso, o Biéservia de fronteira entre vários povos. Os sertanejos souberam estabelecer boas relações com essespovos, sobretudo com os Bienos e com os Bailundos.

Zonas do interior de África frequentadas por sertanejos É difícil imaginar uma caravana, poischegavam a integrar cinco mil pessoas! Iam a pé, os carregadores e os escravos levavam asmercadorias à cabeça, no meio dos homens seguiam mulheres africanas e crianças de várias idades.A viagem demorava imenso tempo porque grande parte do percurso não tinha caminhos e a toda ahora surgiam imprevistos.

As mercadorias que funcionavam como moeda de troca eram tecidos, missangas e búzios, queos portugueses trocavam por marfim, cera, cobre, borracha e escravos.

Em certas zonas do interior os chefes das tribos não autorizavam a entrada de brancos; porisso os sertanejos não podiam lá ir. Enviavam então as caravanas chefiadas pelos seus pombeiros deconfiança. Mas de uma maneira geral os sertanejos não paravam quietos, aventuravam-se por sítiosmal conhecidos ou mesmo desconhecidos. Alguns, sentindo a necessidade de relatar as experiênciasmais fortes, escre veram diários em que incluiram registos sobre os locais visitados, mas sem rigorcientífico por falta de preparação. De qualquer forma, esses textos e os testemunhos que transmitiramao vivo foram muito úteis aos militares e aos naturalistas.

João Pilarte da Silva e José dos Santos partiram de Benguela e fizeram uma dificílima viagemde reconhecimento pelo interior em plena época das chuvas.

Passaram todo o tipo de privações, incluindo fome, e as dificuldades aumentaram porque umsoba (chefe) Lhes barrou o caminho. Mesmo assim continuaram, e trouxeram informações preciosassobre o território entre Benguela e o cabo Negro.

No reinado de Dona Maria Ii 3 O naturalista Joaquim José da Silva visitou Cabinda e garantiuque lá existiam minas de petróleo. Também estudou o rio Cuanza, onde recolheu espécies aquáticas.

4 O barão de Moçâmedes, entretanto nomeado governador de Angola, continuou a acção deSousa Coutinho e constituiu uma junta de cientistas e técnicos para organizarem expediçõescientíficas.

Dessa junta faziam parte o tenente António José Valente (organizador das expedições), otenente-coronel Pinheiro Furtado, engenheiro cartógrafo, e José Joaquim da Silva, naturalista. Estegrupo organizou várias expedições ao sul de Benguela com a colaboração de sertanejos.

As expedições atingiram o médio Cunene, mas não conseguiram localizar a foz porque o riodesaparece nas areias antes de chegar ao mar. Ocorreu então aos exploradores que talvez o rio nãodesaguasse no Atlântico e sim no índico, o que significaria haver uma via fluvial para atravessar aÁfrica. O mistério da foz do Cunene só foi esclarecido no século seguinte.

4 Em Moçambique o matemático José Galvão da Silva chefiou uma missão científica às terrasdo interior para recolher espécies vegetais e animais. Levou consigo um desenhador e um botânico.

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5 Gregório José Mendes e o piloto Manuel Pires da Cruz partiram de Benguela e atingiram asterras do Bumbo, bem no interior, onde nunca ninguém tinha visto um branco. Gostaram imenso daregião por ter clima muito suave e plantas muito bonitas. No regresso a Benguela propuseram aoGovernador que chamasse colonos portugueses para fundarem povoações no Bumbo.

8 José Galvão da Silva, que continuava em Moçambique, viajou para o interior para ir à feirade Manica em busca de amostras de minerais.

0 O tenente-coronel Pinheiro Furtado elaborou a primeira carta geográfica de Angola,preenchendo as zonas percorridas pelos portugueses com os nomes dos rios e assinalando osacidentes naturais.

3 As caravanas do Bié atingiram a zona do alto Zambeze, próximo da nascente do rioZambeze. O chefe da caravana era o sertanejo José da Assunção Melo, que, a pedido dasautoridades, descreveu a sua viagem num relatório.

Apesar do atraso, verifica-se, portanto, que em Portugal também se tomaram algumasiniciativas de carácter científico.

Já se tinham criado, por exemplo, dois jardins botânicos destinados ao cultivo e ao estudo deplantas de várias partes do mundo — o Jardim Botânico da Ajuda, em Lisboa, e o Jardim Botânicoda Universidade de Coimbra. Os responsáveis organizavam expedições sempre que possível,enviando naturalistas em busca de espécies raras que depois eram estudadas, classificadas edivulgadas em publicações próprias.

3 Naturalistas portugueses que estavam em Angola enviaram para o Real Gabinete da Ajuda,na Real Fragata Minerva, os seguintes produtos: 1 jacaré, 20 espécies de conchas, petróleo negro,almagre, goma, gesso, pirite, oito amostras de espécies de feijão, enxofre, amostras de madeira,produtos para tinturaria, objectos de artesanato.

8 O Dr. Álvares Maciel, degredado para Angola por motivos políticos (tinha tomado partenum movimento para a independência do Brasil), tornou-se sertanejo naturalista.

Veio a ser nomeado para dirigir uma prospecção de minas de ferro em Ilamba. Morreu em1804 devido ao clima.

8 O Dr. Lacerda e Almeida partiu para a primeira expedição preparada em Lisboa combastante rigor científico. Levava consigo instrumentos de precisão como, por exemplo, cronómetros,um teodolito, um óculo, uma bússola, barras magnéticas, um sextante, um telescópio, um globoceleste. O objectivo da viagem era descobrir um caminho terrestre entre Moçambique e Angola.

Quando chegou a Tete instalou-se e começou por ganhar a confiança dos povos locais.Ensinou-Lhes a fabricar coisas úteis, como sabão e açúcar, e tentou aprender a língua que falavam.Só passado algum tempo procurou obter informações a respeito dos caminhos que devia percorrerpara chegar a Angola, mas ninguém Lhe soube responder. Por sorte apareceu em Tete uma caravanaenviada pelo poderoso Muatiânvua, imperador da Lunda, um território do interior de África. Essacaravana tinha como missão averiguar se de facto havia brancos em Moçambique, para propornegócios. O Dr. Lacerda e Almeida conversou longamente com o chefe e ficou a saber que entre Tetee a Lunda havia ainda um outro reino chamado Cazembe, governado pelo Muata Cazembe, que algunsanos antes iniciara comércio com os brancos de Moçambique e já recebera um sertanejo português,Manuel Caetano Pereira. Para chegar a Angola teria, portanto, que atravessar primeiro o Cazembe,depois a Lunda. A partir daí o chefe da caravana nada sabia.

Lacerda e Almeida partiu cheio de entusiasmo e muito optimista, pois a conversa traduzida

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pelos intérpretes deixava margem à imaginação, e ele convenceu-se de que uns certos cursos de águade que Lhe tinham falado eram com certeza um rio por onde seria possível navegar até Angola. Acerteza era tão forte que Lhe deu nome — Rio do Cazembe -, mas tal rio não existia senão na suacabeça...

A viagem de Lacerda e Almeida foi afinal um tormento. Houve carregadores que oabandonaram, teve febres, passou fome.

Quando chegou ao Cazembe encontrava-se doentíssimo. O Muata Cazembe, que era um reijusto e humano, acolheu-o com amizade, instalou-o com o máximo conforto possível e ordenou aoscurandeiros que o tratassem. Eles não puderam, no entanto, salvar-Lhe a vida. O explorador deixouum diário com registos de alto nível científico e um pedido: queria que o padre Francisco João Pintoo substituísse na chefia da expedição.

Como nem o padre nem os outros companheiros se sentiram com forças para prosseguir,voltaram para trás. Ainda não chegara a hora de ligar Angola a Moçambique por terra, mas a viagemnão foi inútil. O Dr. Lacerda e Almeida tornara-se tão simpático e estimado que os representantes dorei de Portugal () ; foram sempre bem recebidos no Cazembe. Quanto ao diário e aos registoscientíficos, têm uma história curiosa: chegaram a Lisboa na altura em que os exércitos de Napoleãoinvadiram Portugal e a corte fugiu para o Brasil. No meio da barafunda ninguém ligou muito àquelespapéis, que alguém enfiou na gaveta de um ministro. Cinquenta anos depois, já a corte regressara, umoutro ministro abriu a gaveta, leu os papéis, ficou encantado e publicou o diário completo. O texto eos registos tinham tanta qualidade que os ingleses fizeram uma tradução e a publicaram em Londres,onde obteve imenso sucesso.

*(1) Os povos do interior de África chamavam Muene Puto ao rei de Portugal.A primeira travessia de África: uma proeza de dois africanos Em 1800 os portugueses já

tinham efectuado uma série de viagens pelo interior, partindo ora de Angola ora de Moçambique. Deum lado tinham atingido o Caçange, do outro o Cazembe. Para a travessia completa seria necessáriopercorrer o reino da Lunda, onde nunca tinham circulado homens brancos.

2 Francisco Honorato da Costa, que era a autoridade portuguesa no Caçange, propôs aogoverno de Angola organizar uma expedição destinada a encontrar o caminho terrestre paraMoçambique. O governador gostou da ideia e deu todo o apoio que Lhe foi pedido.

Então Honorato da Costa chamou dois pombeiros que viviam entre os portugueses e tinhammesmo adoptado os nomes de Pedro João Baptista e Amaro José e desafiou-os a tentarem a viagem.

Eles aceitaram o desafio. Como receavam que na Lunda Lhes barrassem o caminho,combinaram dizer que precisavam de ir ao Cazembe buscar as coisas deixadas pelo falecido Dr.Lacerda e Almeida para as entregarem a um irmão.

Na verdade não existia irmão nenhum, mas serviam-se do nome respeitado para abrir portas.Honorato da Costa deu aos pombeiros um diário e pediu-Lhes que registassem por escrito tudo o quevissem de invulgar.

Pedro João Baptista e Amaro José foram, de facto, os primeiros homens a atravessar a ÁfricaAustral de Angola a Moçambique. Viajaram pelo vasto reino da Lunda, interdito aos brancos,viveram na corte de Muatiãnvua. Assinalaram no diário a existência de rios, montanhas, salinas,minas de cobre, com tanta perfeição que ainda hoje se podem localizar. Não tinham preparaçãocientífica para desenhar mapas e fazer oútras observações mais minuciosas; no entanto, deixaram umrelato muito claro com indicações fáceis de seguir. Nalguns dias o único registo foi: "Não vimos

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raridade de qualidade." Mas, sendo africanos, é de supor que nesses mesmos dias tenham visto muitacoisa que seria novidade para os europeus... O Muatiânvua enviou-os para Cazembe com um guia euma mensagem dizendo que os acolhessem amistosamente e os conduzissem a Tete, porque eramrepresentantes do Muene Puto, ou seja, do rei de Portugal. No Cazembe também foram muito bemrecebidos, e como iam vestidos à europeia consideraram-nos embaixadores de prestígio. Ali ficaramretidos durante quatro anos, devido a uma guerra que estalara nas imediações. Só em 1811, oito anose três meses depois da partida, chegaram a Tete! O governador português ficou encantado com aproeza e ofereceu-se para Lhes proporcionar o regresso a Angola por mar, que era mais rápido emais cómodo. Eles, porém, recusaram. Conforme ficou escrito em documentos da época, não semostravam nem cansados nem com medo, e preferiram regressar a pé pelo mesmo caminho.Demoraram quatro anos a chegar a casa. A recepção em Angola foi entusiástica, e o governadorentendeu que devia mandá-los à presença da família real portuguesa, que se encontrava no Brasil. Láembarcaram então para o Rio de Janeiro, onde receberam boas recompensas. O diário foi publicadoem 1843 e, dois anos mais tarde, traduzido para inglês. Todos os geógrafos portugueses eestrangeiros que nesta época desenharam mapas tiveram em conta os registos de Pedro João Baptistae Amaro José, porque eram as únicas fontes de informação sobre o império da Lunda.

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Um diário escrito com pólvora

Mensageiros do Cazembe chegaram a Tete para convidarem os portugueses a estabeleceremum circuito comercial permanente.

O governador Vasconcelos Cyrne ficou satisfeito com o projecto e organizou logo umaexpedição para ir até ao Cazembe tratar do assunto. Entregou a chefia a Correia Monteiro e mandouPedroso Gamito como segundo comandante.

Partiram quatrocentas e vinte pessoas: os dois comandantes, uma pequena força militar, umintérprete, muitos carregadores.

Esta expedição não percorreu caminhos desconhecidos, nem era esse o objectivo.Limitou-se a seguir o itinerário do Dr. Lacerda e Almeida.No entanto, acabou por ser importantíssima do ponto de vista científico graças às qualidades

do segundo comandante. Gamito conhecia o mato como um sertanejo, tinha uma curiosidadeinsaciável e uma extraordinária intuição para seleccionar o essencial.

Elaborou um diário digno de qualquer explorador científico.Registou vários tipos de fenómenos naturais , desenhou os rios e os acidentes geográficos das

margens, recolheu tradições orais de diversas tribos, estudou o modo de construção das suas casas eanalisou em pormenor a organização familiar, social e política. Também se debruçou sobre asreligiões, os métodos utilizados para contar o tempo, a música, as línguas! E na intenção de facilitara vida a futuros exploradores, relatou os episódios mais marcantes da viagem, recheando o texto deconselhos práticos e indicações realmente preciosas.

A ânsia de comunicar era tanta que, faltando-Lhe a tinta, passou a escrever com uma mistelafeita de água e pólvora. Os seus textos são o melhor resultado desta expedição, que, em termoscomerciais, fracassou.

No século xx o olhar dos Europeus concentra-se em África No princípio do século xxconhecia-se a forma e a dimensão da Terra, tinham-se identificado todas as espécies de fenómenosnaturais — eclipses, tremores de terra, maremotos, auroras boreais, etc. — e recolhido milhares deamostras minerais e vegetais e inúmeros exemplares de animais. Estavam descobertas as costas detodos os continentes mas, apesar das viagens de exploração realizadas anteriormente, faltava aindareconhecer uma boa parte do interior da África, da Ásia, da Austrália e da América.

Fundaram-se então em vários países europeus as Sociedades de Geografia, que, entre outrasactividades, se dedicaram a organizar novas viagens de exploração. Divulgaram-se depois osresultados com grande entusiasmo e a maior solenidade. Havia conferências abertas ao público,publicavam-se livros e artigos em jornais e revistas científicas.

Além de satisfazer a curiosidade, estas viagens contribuíam para que os governos atingissemoutros objectivos que não tinham a ver com o conhecimento de zonas remotas mas sim com aapropriação de terras e de riquezas. Para perceber melhor o que se passou é necessário entender oseguinte: No princípio do século XIX os europeus ainda não tinham evoluído o suficiente paraperceber que culturas diferentes da sua também tinham valor. Só pessoas muito inteligentes, muitoespeciais, de grande sensibilidade e grande abertura de espírito, compreendiam que os povos deÁfrica, os índios da América, os aborígenes da Austrália, tinham encontrado uma maneira própria de

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se adaptarem ao ambiente, de resolverem problemas, de darem largas à imaginação. Melhor seria,portanto, estudar e respeitar essas culturas do que destruí-las ou transformá-las à força.

A maioria da população europeia, cientistas incluídos, considerava que esses povos viviamde maneira selvagem e primitiva. Sendo assim, tinham a obrigação de os civilizar.

Para isso justificava-se que ocupassem a terra, dominassem as gentes e se apropriassem dasriquezas. Ou seja, para civilizar era indispensável colonizar.

Esta prática de colonizar já era velha. Os portugueses tinham colonizado o Brasil, osespanhóis o resto da América do Sul e a América Central, os ingleses e os franceses a América doNorte, etc. Mas no século XIX, além da prática, surgiram teorias para defenderem o colonialismo e aideia de que os europeus tinham uma missão a cumprir no resto do mundo, uma missão civilizadora.

É interessante saber que as civilizações orientais, como a indiana, a chinesa, a japonesa, tãoou mais complexas do que a europeia, que também possuíam escrita, literatura, monumentosgrandiosos, etc., eram encaradas pelos europeus sobretudo como exóticas; não Lhes atribuíam valorsemelhante ao da civilização europeia. Admitia-se até a possibilidade de os indianos, os chineses, osjaponeses, abandonarem a sua religião, os seus costumes e tradições para seguirem o figurinoeuropeu, considerado muito superior.

Ora no século XIX o esforço de civilizar, colonizar, vai concentrar-se em África, porque ascolónias da América já se tinham tornado países independentes (caso dos Estados Unidos em 1776)ou lutavam para o conseguir e a pouco e pouco iam conseguindo (caso da Argentina em 1816, doChile em 1818, do México e da Venezuela em 1821, do Brasil em 1822...) Novas realidades, novosideais A colonização sistemática do continente africano está interligada com a revolução industrial ea necessidade de obter grandes quantidades de matérias-primas, com a abolição da escravatura, coma descoberta de um medicamento revolucionário — o quinino.

A revolução industrial aconteceu porque se inventaram máquinas para fazer o trabalho doshomens e se descobriram novas fontes de energia para pôr essas máquinas a funcionar.

Surgiram assim fábricas, primeiro em Inglaterra e depois noutros países da Europa, e a vidamodificou-se imenso.

Um dos aspectos mais visíveis da mudança foi sobrar mão-de-obra e faltarem matérias-primas. Uma máquina de fazer tecidos, por exemplo, só precisava de um trabalhador, consumia muitoalgodão e fabricava metros e metros de pano em pouco tempo.

Esta realidade levou os ingleses a tornarem-se ferozes defensores da abolição da escravatura.Claro que entre os ingleses havia gente sincera e preocupada com os direitos humanos, mas muitosaderiram sobretudo porque os escravos já não faziam falta para trabalhar; o que fazia falta eramhomens livres que comprassem tecidos ou outros produtos saídos das fábricas.

O ideal propagou-se e a escravatura foi abolida, primeiro em Inglaterra e depois, a pouco epouco, no resto do mundo.

A primazia levou a Inglaterra a assumir o papel de "país fiscalizador" do tráfego de escravos.Enviava navios para patrulharem os oceanos Atlântico e Índico, a fim de evitar que setransportassem escravos para a América, e passou a enviar também colunas militares para impediremos traficantes de actuarem em África. Enquanto fiscalizavam iam-se instalando e colonizando...

Nesta época um medicamento novo chamado quinino tornou mais fácil a sobrevivência doseuropeus em terras africanas porque permitia tratar a malária (ou paludismo), febres terríveistransmitidas pela picada de um mosquito.

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O escritor português João de Barros, que viveu no século xvi deixou um texto elucidativosobre o paludismo.

"Dir-se-ia que nas entradas desta grande África que nós navegamos pôs Deus um anjo comuma espada de fogo de mortais febres que nos impede de poder penetrar no interior".

Só veio a ser possível vencer a espada febril no século XIX, com o quinino! Na primeirametade do século XIX já se encontravam instalados em África colonos europeus de váriasnacionalidades: portugueses, ingleses, holandeses, franceses, alemães. No entanto, eram poucos enão havia fronteiras muito nítidas entre os territórios que ocupavam, até porque não era fácil traçá-las. Os pântanos, os rios com rápidos e cascatas, os desertos e sobretudo as florestas impenetráveisserviam de barreira.

Na segunda metade do século XIX intensificaram-se as viagens de exploração científicafinanciadas pelos governos com o objectivo de marcar posição e justificar o direito de colonizar azona.

Portugal, que de facto fora o primeiro país europeu a instalar-se em África, viu-seultrapassado e não reagiu, também porque passou tempos muito problemáticos: os exércitos deNapoleão invadiram o país; a corte fugiu para o Brasil; no regresso estalaram as lutas liberais;terminadas as lutas, seguiu-se um período de agitação política. E como de África não vinham aindagrandes riquezas, surgiram até duas correntes de opinião. Um grupo defendia que o melhor a fazercom as colónias era vendê-las à Inglaterra ou a qualquer país que estivesse disposto a pagar. Outrogrupo reclamava, lembrando as ligações históricas que tornavam as colónias "jóias da coroa". Nãopodiam nem deviam ser abandonadas. O governo tinha a obrigação de investir em África e deenfrentar a competição estrangeira, que se estava a tornar ameaçadora.

O esboço das colónias europeias em África Em meados do século XIX os europeus quedisputavam a metade sul da África distribuíam-se da seguinte maneira: Portugueses nas costas deAngola e de Moçambique, ocupando também alguns pontos dispersos no interior. Os ingleses tinhamfundado a colónia do Cabo, na ponta sul (em 1814), e iam empurrando para norte os holandeses oubóeres. Os bóeres partiram do Sul, fixaram-se na região do Natal, mas em 1843 foram desalojadospelos ingleses e seguiram para o Transvaal, que em 1850 declararam Estado bóer independente.

A par da chegada de colonos, fizeram-se algumas expedições científicas.Entretanto, Richard Burton e John Speke tinham descoberto o lago Tanganica e o lago Vitória.Pela mesma época triunfaram em Portugal as ideias a favor das colónias africanas. O ministro

Sá da Bandeira mandou fundar povoações em Angola e organizou expedições ao interior de Angola eMoçambique, mas os resultados destas viagens foram mal divulgados.

O lago Ngami, por exemplo, cuja descoberta os historiadores atribuem a Livingstone em1849, tinha sido afinal visitado e estudado dois anos antes pelo major Coimbra.

As mais importantes, e que vieram a tornar-se mundialmente conhecidas, foram realizadaspelo missionário britânico David Livingstone. Entre 1841 e 1873 realizou três longas viagens pelointerior do continente africano. Subiu rios, atravessou desertos, florestas e lagos, esteve em muitossítios onde nunca tinham circulado brancos, efectuou registos científicos, divulgou o resultado dassuas investigações e tornou-se famoso.

Outras viagens de exploração no interior do continente africano

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Fernando da Costa Leal, governador de Moçâmedes, efectuou uma expedição ao rio Cunene edescobriu, finalmente, o mistério da foz. As águas desapareciam por baixo da areia antes dechegarem ao mar. Assim se esclareceu um velho enigma geográfico.

O padre Santa Rita Montanha e o tenente Sousa Teixeira foram enviados ao Estado bóer a fimde descobrirem caminhos livres da mosca tsé-tsé. Tiveram que atravessar o reino hostil deManecusa, que proibia a entrada de estrangeiros no seu território. Diplomaticamente obtiveram asautorizações necessárias, atingiram o Estado bóer e estabeleceram contactos amistosos.

Depois desta viagem surgiram os primeiros planos para um caminho-de-ferro entre Angola eMoçambique.

A partilha de África Apesar das múltiplas expedições, a verdade é que em 1875 os artigos daEnciclopédia Britânica referentes à África austral ainda começavam todos com frases do género:"Calcula-se que..., Tanto quanto é possível saber..." Em 1876 o rei Leopoldo II da Bélgica convocouuma conferência geográfica para Bruxelas e convidou a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Áustria, aHungria e a Rússia. Portugal não foi convidado.

O objectivo desta conferência era debater questões científicas e humanitárias, mas no fundo oque Leopoldo II pretendia era organizar a partilha do continente africano entre as potênciaseuropeias.

Os países participantes criaram então a Associação Internacional Africana, que se propunhadefender a religião cristã, promover a civilização dos povos e abolir definitivamente a escravaturaonde ainda fosse praticada.

Após a conferência, Leopoldo II enviou uma expedição à bacia do rio Zaire, comandada pelojornalista americano Henry Morland Stanley, que já anteriormente por lá andara, em busca deLivingstone quando este tinha sido dado como desaparecido.

O governo francês enviou Brazza à região do Congo. O governo alemão também enviouexpedições. Quanto aos ingleses, com o apoio dos colonos do Cabo, ocuparam a Bechuanalândia,entre o rio Zambeze e o Estado bóer.

Entre 1876 e 1884 a África austral tornou-se um campo de rivalidades para as potênciaseuropeias, que disputaram a posse da terra ignorando a presença portuguesa.

Foi então que Portugal organizou a primeira grande expedição científica paga pelo governo epela recém-criada Sociedade de Geografia de Lisboa. Para chefiar esta missão foram escolhidosRoberto Ivens, Hermenegildo Capelo e Alexandre Serpa Pinto.

Partiram de Angola, onde podiam contar com o apoio das autoridades locais e de um famososertanejo português que ali se instalara havia alguns anos, Silva Porto.

A expedição acabou por dar origem a duas viagens porque os chefes se desentenderam.Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo exploraram terras do interior de Angola até laca.Serpa Pinto efectuou a travessia completa, do oceano Atlântico ao oceano Índico.

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Quem era Silva Porto?António Francisco Ferreira da Silva nasceu no Porto a 24 de Agosto de 1817. A terra de

origem somou-se-Lhe ao nome, e por isso passou à História como Silva Porto. Quando tinha apenasdoze anos partiu para o Rio de Janeiro para trabalhar como caixeiro numa loja, onde viria a sofrerbastante porque os patrões o trataram muito mal. Logo que pôde fugiu para a Baía, e aí viveu doisanos. Embarcou depois rumo à África, mas só se instalou definitivamente em Angola quando já erahomem feito.

Embrenhou-se no sertão, fez amizade com os sobas mais importantes e percorreu muitas zonasdo interior nunca antes visitadas por europeus. Tinha por hábito anotar num diário todos osacontecimentos do dia, incluindo aventuras, rotas percorridas, produtos comerciados, contactos, etc.Esse diário, que dedicou aos seus conterrâneos portuenses, tornou-se um autêntico roteiro sobre asvias de comunicação mais favoráveis no interior de Angola.

Em 1845, com 28 anos e uma larga experiência acumulada, decidiu fixar-se definitivamente.Construiu uma casa na Bemposta, arredores de Benguela, e outra no Bié, a que deu o nome de

Belmonte (1). Com esses dois pontos de apoio estabeleceu uma rede comercial que abrangia acidade de Benguela, no litoral, e várias povoações do interior. Contratava pombeiros e carregadorespara formar caravanas que ele próprio acompanhava sempre que podia.

Rapidamente se tornou o mais estimado e mais famoso dos sertanejos. *(1) Belmonte veio adar origem à cidade de Silva Porto, que hoje se chama Cuito.

Belmonte, a casa de Silva Porto no Bié A descrição da casa de Silva Porto no Bié, foi feitapor Serpa Pinto quando por lá passou. As suas palavras permitem um diálogo à distância, pois asentrelinhas dão a conhecer sentimentos e pensamentos destes homens que viveram noutra época.

A povoação de Belmonte está situada sobre a parte mais elevada de um outeiro cuja vertentenorte desce suavemente até ao rio Cuíto. A posição é muito bonita e forte como ponto estratégico.Tem dentro um laranjal onde as laranjeiras estão sempre em fruto e flor. O laranjal é cercado poruma sebe de roseiras que atingem os três metros de altura e estão sempre floridas. Sicómoros[grandes árvores africanas] refrescam as ruas e rodeiam a povoação defendida por uma fortepaliçada de madeira., Em 1853 Silva Porto organizou uma expedição a pedido das autoridadesportuguesas. A intenção era, mais uma vez, ligar Angola a Moçambique por terra, e ele própriocomandou o grupo. A viagem não correu bem e ele teve que ficar a meio do caminho. Por um acasodo destino cruzou-se com o explorador inglês Livingstone, que andava pelo Zambeze. Livingstonedesejava apresentar-se na Europa como o primeiro branco a visitar aquelas zonas e ficou furibundoquando viu Silva Porto. No entanto, disfarçou, fingiu-se amistoso e sugeriu-Lhe que desenhasse nummapa a posição geográfica do Bié e as rotas que percorrera para chegar até ali. Silva Porto não tinhapreparação científica para desenhar mapas e disse-o francamente. Então Livingstone exultou. Deregresso a Inglaterra não pôde deixar de referir a existência daquele indivíduo, mas para evitarqualquer sombra na sua proeza declarou que Silva Porto era mulato e traficante de escravos! Assim,Livingstone aparece nos livros de História de todos os países do mundo como o primeiro europeuque teve coragem e energia para percorrer o perigoso e misterioso interior do continente africano.

De Silva Porto ninguém fala, nem dos muitos outros portugueses que já por lá tinham andadoao longo de trezentos anos! Silva Porto continuou a fazer viagens difíceis, perigosas, complicadas.

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Encontrou-se com exploradores estrangeiros de outros países, fartou-se de escrever para Lisboa apedir ao governo que enviasse cientistas portugueses, oferecendo-se para os guiar, para ajudar ecolaborar em tudo o que precisassem. Tinha consciência das suas limitações e não queria quePortugal ficasse atrás dos outros países. Ninguém Lhe deu ouvidos senão muito mais tarde, em 1878,quando se organizou a expedição de Capelo, Ivens e Serpa Pinto. Conforme prometera, Silva Portoacolheu-os calorosamente e prestou ajuda incondicional.

No fim da vida o famoso sertanejo teve imensos desgostos. A povoação de Belmonte ardeu etodos os bens que acumulara com esforço e trabalho ficaram reduzidos a cinzas. Velho, empobrecidoe doente, reagiu muito mal quando em 1890 recebeu a notícia do ultimato inglês (*). A ideia de quePortugal ia retirar-se das terras entre Angola e Moçambique para as ceder à Inglaterra funcionoucomo uma espécie de golpe final.

Indignado e desiludido, enrolou-se na bandeira portuguesa, sentou-se em cima de um barril depólvora e pegou-Lhe fogo.

O fim trágico impressionou toda a gente, e então sim, o país uniu-se para Lhe prestar umaúltima homenagem.

Foi publicamente elogiado e organizaram-se no Porto cerimónias fúnebres com grandesolenidade.

*Os episódios ligados ao ultimato inglês foram relatados no livro Mataram o Rei, nº 12 destacolecção.

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De Benguela às terras de laca

A primeira expedição de Capelo e Ivens — 1877No final do século xIx um dos mistérios mais intrigantes do interior do continente africano era

o curso dos rios. Sabia-se onde nasciam uns, onde desaguavam outros, mas de poucos se conhecia opercurso completo. A respeito do Zaire, por exemplo, levantaram-se questões diversas. Onde seria anascente? Os afluentes comunicariam com os do Zambeze? E com os grandes lagos? Mas haviaoutros problemas. O curso de água que determinadas tribos chamavam rio Lualaba seria afinal umbraço do Zaire? E o rio Cunene seria navegável? Qual o percurso exacto do rio Cubango? E do rioCuanza? Em 1877 o decreto-lei que aprovou a primeira grande expedição científica portuguesa aointerior do continente africano estabeleceu o seguinte:

— A missão ficava a cargo de Roberto Ivens, Hermenegildo Capelo e Alexandre Serpa Pinto.— Disponibilizava-se uma verba de trinta contos de réis para cobrir as despesas.— Os exploradores deviam subir o rio Cubango, averiguar se existia ligação com o rio Zaire.

Deviam também procurar as nascentes do Zambeze e do Cunene e, se fosse possível, fazerem olevantamento das bacias hidrográficas do Cuanza e do Cuango. — Os exploradores teriam toda aliberdade para escoLher o itinerário e mudar de rumo sempre que o entendessem.

— Deviam também estabelecer boas relações com os povos do interior de Angola, estreitarlaços com os régulos e combater os traficantes que clandestinamente continuavam a comerciarescravos. (Portugal abolira o tráfico de escravos em 1815 e decretara a extinção da escravatura emtodos os territórios portugueses em 1869.)

— Competia aos exploradores realizar observações magnéticas, termométricas (temperaturas)e hipsométricas (humidades e chuvas), fazer o cálculo das marchas diárias e das distânciaspercorridas, recolher dados sobre o clima das várias regiões, estudar os usos e costumes dos povos,a organização política das diferentes tribos e as religiões locais. — Para que as informaçõespudessem depois ser trabaLhadas e sistematizadas, era indispensável manter um diário sempreactualizado com registos escritos, desenhos e esboços (nesta época já havia máquinas fotográficas,mas ainda não era possível fazer fotografias no mato).

— Sempre que possível, os exploradores deviam recolher amostras de espécies minerais,vegetais e animais, peças de artesanato, etc. A listagem é elucidativa: pedia-se muito aosexploradores porque não se tinha a noção clara das imensas díficuldades que enfrentariam.

Torna-se evidente a falta de especialização das ciências e das tarefas. Os exploradores tinhamque ser em simultâneo geógrafos, topógrafos, zoólogos, botânicos, antropólogos, diplomatas,comerciantes, escritores, jornalistas, desenhadores, etc.! Os preparativos para a viagem A maiorparte dos instrumentos necessários a uma missão deste tipo não se fabricava em Portugal. Por isso foinecessário ir fazer compras a Paris e a Londres. Quem tratou do assunto foram Hermenegildo Capeloe Serpa Pinto.

É curioso saber que nessas cidades tão desenvolvidas não havia à venda aquilo de queprecisavam. Na época o costume era encomendar aos fabricantes e esperar pela encomenda. Assimprocederam.

Também é engraçado saber que os exploradores portugueses visitaram em Paris umexplorador francês que tinha viajado pela Abissínía e aperfeiçoara um aparelho chamado teodolito.

Esse senhor recebeu-os muito bem, encorajou-os e cedeu-Lhes o seu invento.

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Um mês depois a bagagem estava completa e foi exposta em Lisboa para ser admirada pelopúblico. Os fotógrafos profissionais tiraram imensas fotografias.

Ao todo levavam dezessete malas e baús, um serviço de mesa com pratos, talheres, chávenas,copos, bules de chá e café, um toucador com os apetrechos para se lavarem, fazerem a barba,cortarem o cabelo, uma tenda de campanha, um barco de borracha marca Mackintosh, etc. Apesar daurgência em partir, os exploradores fizeram questão de que todas as peças ostentassem uma placaidentificativa que dizia: Expedição Portuguesa ao Interior d'África Austral em 1877.

A bagagem evidencia que no fim do século XIX os europeus tinham dificuldades em conceberum mundo diferente do seu, pois grande parte dos objectos incluídos só serviam para atrapalhar! Aprimeira etapa Os três exploradores partiram de Lisboa em dois navios diferentes e juntaram-se emLuanda. Como não conseguiram contratar carregadores, tentaram no Ambriz e em Cabinda. Aíencontraram o explorador Stanley, que acabara de descer o rio Zaire ao serviço do rei Leopoldo IIda Bélgica. Consideraram então que não valia a pena fazerem o mesmo percurso e decidiram mudaro rumo. Foram para Benguela, no Sul de Angola, onde Silva Porto os recebeu de braços abertos.Deu-Lhes todo o apoio e aconselhou que se dirigissem ao Bié, onde seria mais fácil contratarempessoal para a caravana.

O caminho era longo e obrigou a várias paragens. Em Caconda tiveram a agradável surpresade encontrar outro português muito especial, o naturalista José de Anchieta, que se instalara no matohavia onze anos para estudar as plantas e os animais africanos. Entenderam-se lindamente. Ficarampor lá algum tempo. Capelo e Ivens aproveitaram para estudar os búfalos, antílopes, crocodilos, avese outros animais.

Quanto a Serpa Pinto, deslocou-se ao Huambo a fim de tentar arranjar carregadores. Com eleseguiram dez africanos que já vinham de Benguela, e dois elementos que o vão acompanhar até aofim: o mulato Veríssimo e o jovem Pepeca.

A ruptura entre os exploradores data deste momento: Capelo e Ivens enviaram mensageiros aoHuambo para informar Serpa Pinto de que em vez de se Lhe juntarem, conforme estava combinado,seguiam para o Bié. Ele que fosse lá ter.

Serpa Pinto levou muito a mal o abandono. No seu diário queixa-se amargamente doscompanheiros, porque sozinho e sem comitiva se sentia em perigo.

Quando voltaram a encontrar-se no Bié, o ambiente azedara e não conseguiram chegar aacordo sobre o itinerário seguinte.

Capelo e Ivens fizeram questão de estudar os rios Cuango, Zaire e Zambeze, de acordo com oprevisto. Serpa Pinto entendeu que era melhor atravessar a África de costa a costa.

Então separaram-se.A segunda etapa Capelo e Ivens utilizaram todos os instrumentos e fizeram um trabalho

verdadeiramente científico enquanto percorriam os vários rios da região, que são muitos: Cuanza,Cuango, Cassai, Lualaba, Cubango, Cuíto e Cuando.

Estudaram, por exemplo, a direcção da corrente, a velocidade das águas, as característicasdas margens, a largura e profundidade de cada rio. E não foi nada fácil, porque tiveram que andar àsvoltas por caminhos cheios de obstáculos e florestas quase impenetráveis. Sofreram os efeitos docalor, adoeceram com febres, passaram fome. Para agravar a situação, muitos dos carregadoresfugiram e eles não tiveram outro remédio senão deitar ao rio parte das malas trazidas de Paris eLondres.

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No seu diário está escrito: "O europeu civilizado, que nunca sofreu fome ou sede, dificilmentepode avaliar quanto o estômago é exigente em tais situações e faz do homem um simples animalabsorvido na ideia de o encher." A terceira etapa A expedição, apesar de desfalcada, atingiu apovoação de Caçange. Ali souberam informações sobre o império lunda, situado mais no interior.Tentaram ir até lá, mas os chefes locais não autorizaram. Dirigiram-se então para norte, ecaminharam até ao rio Lucala, onde se localizam as cataratas do Duque de Bragança, local ondeexistia uma fortaleza construída por portugueses. O governador acolheu-os durante alguns dias.

Assim que recuperaram forças, prosseguiram viagem.Atravessaram as terras dos Jingas e rumaram à laca.A ponta final seria terrível! Floresta virgem sem trilhos, nem caminhos, nem pontos de

referência. Completamente perdidos, chegaram a andar trinta horas sem parar em busca de água. Osafricanos também não conheciam a zona e tinham medo daquele ambiente estranho. E com mais medoficaram quando atravessaram um pântano...

Finalmente atingiram o rio Cuango, nas terras de laca.A paisagem mudou mas os problemas agravaram-se, pois a floresta dera lugar a um ermo

assustador onde não havia sombra que os protegesse do sol escaldante.Não se sentindo capazes de continuar, deram início à viagem de regresso para Luanda.

Tinham caminhado durante 600 dias! De volta a Portugal, publicaram um livro a que deram o títuloDe Benguela às Terras de laca. Dedicaram-no ao naturalista José de Anchieta e incluíram textos,quadros de observações científicas, desenhos, etc.

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De Angola à Contracosta

A segunda expedição de Capelo e Ivens — 1884 Em 1884 Capelo e Ivens voltaram a partirjuntos para uma segunda viagem, desta vez com o objectivo de encontrar um bom caminho comercialentre Angola e Moçambique. Tencionavam também estudar as bacias hidrográficas entre o rio Zaire eo rio Zambeze — que, caso fossem navegáveis e comunicassem, seriam a estrada ideal paraembarcações e mercadorias. Deviam também estudar as regiões que continuavam em branco nosmapas, nomeadamente zonas entre o lago Bangueolo e o rio Zambeze.

Partiram do Porto Pinda, em Angola, percorreram quatro mil e quinhentas milhas a pé, àscurvas, pois não queriam cortar caminho mas sim desvendar locais desconhecidos. Sete mesesdepois chegaram a Quelimane, em Moçambique.

Voltaram a Lisboa no paquete Cabo Verde. O rei D. Luís foi esperá-los ao Terreiro do Paçocom os príncipes D. Carlos e D. Afonso, e condecorou ambos: Roberto Ivens com a comenda daTorre e Espada, Hermenegildo Capelo com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago.

Seguiram em cortejo até à Câmara Municipal e depois até à Sociedade de Geografia, sempremuito aplaudidos por populares.

Nessa noite houve iluminações públicas na cidade em sua honra.No dia 1 de Outubro os dois aventureiros fizeram uma conferência no Teatro de São Carlos,

que estava à cunha, porque a viagem despertara o maior interesse no país. A conferência repetiu-seno Porto e em Madrid.

Capelo e Ivens publicaram o relato desta segunda viagem em6, num livro com dois volumes aque deram o nome De Angola à Contracosta. Dedicaram a obra ao rei D. Luís e ao ministro PinheiroChagas.

Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens Quem era Roberto Ivens? Roberto Ivens nasceu na ilhade São Miguel, nos Açores, a 12 de Junho de 1850. Era filho de pai inglês e mãe portuguesa.

Aos 17 anos mudou-se para o continente para fazer o curso de Oficial de Marinha, queterminou em 1870. No início da sua carreira embarcou para a Índia em expedição militar.

Seguiram-se inúmeras viagens a África e à América do Sul.Fez parte da equipa que transportou os materiais da Representação Portuguesa destinados à

Exposição Mundial de Filadélfia.A partir de então foi encarregado de realizar várias expedições de carácter científico em

Angola. A ele se deve o reconhecimento da Baía dos Tigres e de parte do rio Zaire, bem como cartasgeográficas de regiões desconhecidas na Europa.

Em 1877 soube que fora nomeado para acompanhar Hermenegildo Capelo e Serpa Pinto naprimeira grande expedição científica organizada ao interior de África pelo governo português e pelaSociedade de Geografia de Lisboa.

A viagem começou bem, mas os três exploradores desentenderam-se pelo caminho esepararam-se. Serpa Pinto seguiu rumo às costas do oceano Índico. Roberto Ivens manteve-se nacompanhia de Hermenegildo Capelo. Juntos atingiram as terras de laca.

Mais tarde vieram a fazer uma segunda expedição científica entre Angola e Moçambique,também coroada de êxito.

Roberto Ivens morreu a 28 de Janeiro de 1898 no Dafundo (arredores de Lisboa).Quem era Hermenegildo Capelo? Hermenegildo Carlos de Brito Capelo nasceu no castelo de

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Palmela em 1841. O pai, Félix António Gomes Capelo, era major do exército. A mãe chamava-seGuilhermina Amália de Brito Capelo. Tal como os irmãos mais velhos, Hermenegildo seguiu acarreira militar e dedicou-se a estudos científicos e geográficos. Terminou o curso de Oficial deMarinha em 1859.

No ano seguinte partiu para Angola numa armada comandada pelo príncipe D. Luís. (D. Luísera filho segundo. Veio a subir ao trono porque o irmão mais velho, D. Pedro V, morreu sem deixardescendentes.) Depois cumpriu diversas comissões de serviço na Guiné, Angola, Moçambique eMacau.

Em 1877 foi nomeado para a primeira grande expedição científica ao interior de Áfricaorganizada pelo governo português e pela Sociedade de Geografia de Lisboa. Os companheirosseriam Roberto Ivens e Serpa Pinto. Acontece que não se entenderam bem, e quando se encontravamno Bié decidiram separar-se. Serpa Pinto seguiu como explorador particular para o Índico. Capelo eIvens continuaram juntos e efectuaram a viagem oficial, atingindo as terras de laca. Anos depois(1884) voltaram a embrenhar-se no interior do continente africano e ligaram Angola a Moçambiquepor terra.

Juntos escreveram o relato das suas aventuras, juntos foram condecorados pelo rei, juntospassaram à História, pois quando se fala de um ocorre logo o nome do outro. Mas Roberto Ivensdesapareceu mais cedo. Hermenegildo Capelo, após a morte do amigo e companheiro, desempenhououtras missões de prestígio: embaixador de Portugal junto do Sultão de Zanzibar, que era na épocaum importante concorrente do comércio português em África, delegado do governo num congressoem Bruxelas, presidente da Comissão de Cartografia, vice-presidente do Instituto Ultramarino,ajudante-de-campo dos reis D. Luís e mais tarde D. Carlos.

Morreu em Lisboa no posto de contra-almirante a 4 de Maio de7.

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Quem era Serpa Pinto?Os paisO pai, José da Rocha Miranda de Figueiredo, era médico.Durante a guerra civil entre liberais e miguelistas tomou o partido de D. Miguel. A derrota

obrigou-o a exilar-se em Espanha, onde exerceu medicina, dando provas de grande competência ededicação durante uma terrível epidemia de cólera-morbo. Segundo consta, foi um dos poucosmédicos da época a dissecar cadáveres para melhor poder compreender e combater a doença.

Acalmados os ânimos políticos, regressou, e pouco tempo depois casava com Dona CarlotaCacilda de Serpa Pinto, que pertencia a uma família nobre de Marco de Canaveses, partidária de D.Pedro e das ideias liberais.

A infânciaAlexandre Alberto de Serpa Pinto Miranda de Figueiredo nasceu a 20 de Abril de 1846 na

Quinta das Poldras, em Cinfães. Aos dois anos partiu com os pais para o Brasil. Foi na cidade daBaía que viveu as aventuras felizes da infância: teve uma irmã, baptizada com o nome de RosaGuiomar, e um irmão, Adriano Alfredo; frequentou a escola primária, brincou e aprendeu a nadar naslindas praias brasileiras.

No regresso, o primeiro desgosto Em 1855 o pai decidiu voltar para Portugal. Tinha mandadoconstruir um belo palacete em Porto Antigo, nas margens do rio Douro, e tencionava viver aípacatamente com a muLher e os filhos. Alexandre completara nove anos, Rosa sete, Adriano seismeses.

A travessia do Atlântico decorreu sem novidade. Chegados ao Porto, como a linha docaminho-de-ferro para a Régua ainda não estava concluída, viram-se obrigados a tomar um barcorabelo.

Com eles viajavam também o padre de Rio Tinto e uma menina brasileira que Lhes foraentregue, porque vinha estudar no Porto.

Quando já se avistavam as paredes da casa nova, os barqueiros roubaram as malas, pularampara a margem e fugiram.

O barco ficou à deriva e foi arrastado pelas águas, embateu violentamente nos penedos degranito e virou-se. Seguiram-se momentos de pânico e horror! O pai debatia-se, enrolado na vela,apertando com força entre os dentes a roupa do bebé para o manter à tona. O padre de Rio Tintosegurou Rosa com a mão direita e Alexandre com a mão esquerda. A mãe, vendo os filhos entregues,nadou para terra arrastando consigo a menina brasileira.

Mas o naufrágio acabaria por ter um fim trágico, pois Rosa Guiomar morreu afogada.É curioso saber que durante anos e anos o padre de Rio Tinto contou esta história muito

desgostoso, e, embora não tivesse culpa nenhuma, justificava-se dizendo: "Pensei que devia salvar ofilho mais velho..." É pouco provável que no meio da aflição fizesse tais raciocínios. Pura esimplesmente atrapalhou-se e não conseguiu salvar os dois. Mas a justificação é um daquelespormenores insignificantes que ajudam a perceber melhor a mentalidade da época. Um filho valiamais do que uma filha, e o mais velho valia mais do que os outros.

Os estudosAlexandre teve que ir estudar para o Porto, pois na terra onde os pais se instalaram não havia

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escola. Ficou interno num colégio que pertencia à família do escritor Ramalho Ortigão.Nas férias entretinha-se com actividades muito diversas.A mãe, tristíssima com a perda da única filha, fez questão de o ensinar a desenhar e a bordar.O pai, que para ocupar os tempos livres construíra uma forja, ensinava-Lhe todos os truques

de um bom ferreiro. Assim aperfeiçoou a habilidade manual que Lhe viria a ser indispensável, maistarde, nas suas andanças pelo sertão africano.

A juventudeNaquele tempo o Colégio Militar não aceitava a inscrição de rapazes que pertencessem a

famílias míguelistas. Mas como ficara decidido que seguiria a carreira militar, resolveu-se oproblema usando apenas o apelido da mãe na altura da matrícula. Por isso passou à história comoAlexandre Serpa Pinto.

Terminados os estudos secundários, seguiu para a Universidade de Coimbra, onde deu quefalar como aluno rebelde. Expulso por indisciplina, voltou a Lisboa.

Integrou-se no Regimento de Infantaria e completou o curso de oficial na Escola do Exército.Após uma breve passagem em serviço pela ilha Terceira, nos Açores, alistou-se como voluntáriopara uma expedição militar contra o chefe Bonga, da Zambézia, em Maio de 1869. Esta expedição foium fracasso, mas Serpa Pinto bateu-se como um bravo, salvou a vida do segundo comandante daexpedição, o tenente-coronel Tavares de Almeida, e no confronto final, vendo-se obrigado a fugirpara não morrer, transportou às costas o soldado António, que o servia como impedido e seencontrava ferido e incapaz de correr.

Durante cerca de um ano permaneceu em Moçambique. Tentou obter autorização e meios parauma exploração científica nas terras do interior. Como não conseguiu, limitou-se a pequenasincursões no mato. O encontro com o tenente Augusto de Castilho levá-lo-ia a uma longa viagem peloÍndico. Passou pelas ilhas Comores, Almirantes e Seichelles e esteve também em Goa. Mas em 1870,gravemente doente, foi enviado para Portugal. Os seus superiores consideravam que não tinha saúdee resistência física para poder prestar serviço em África! O prazer do perigo Na viagem de regressoa Portugal Serpa Pinto subiu o mar Vermelho, atravessou o mar Mediterrâneo e foi desembarcar emMarselha. Acontece que em 1870 a França e a Alemanha se tinham envolvido numa guerra sangrenta.E ele acabou por ir parar a um campo de batalha onde deparou com um oficial francês em grandesapuros. Precisava de comunicar urgentemente com os homens que se encontravam do outro lado dorio e já tinha enviado cinco mensageiros a cavalo, mas nenhum chegara ao destino porque a ponteestava ao alcance dos tiros inimigos. E nessa época os exércitos não dispunham de aparelhos paracomunicar à distância.

Alexandre ofereceu-se para levar a mensagem por sua conta e risco. O general não podiautilizar oficiais estrangeiros; no entanto, acedeu. Ele saltou então para o cavalo que Lhe ofereceram egalopou velozmente para o lado de lá. A meio da ponte o cavalo foi atingido e caiu, mas Alexandrecontinuou a pé, correndo sem parar até entregar os papéis em mão. O outro comandante francês, queacompanhara a manobra através do binóculo, abraçou-o, grato e comovido. Depois, arrancando dopeito a Legião de Honra, pregou-a na farda de Serpa Pinto.

Esta condecoração foi religiosamente guardada pela família, que a exibia com orguLho nasala de visitas.

O casamentoEm 1872, com 26 anos de idade, Alexandre casou com uma senhora de origem francesa

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chamada Angélica Gonçalves Correia de Beles. Tiveram duas filhas, mas só uma sobreviveu — aCarlota, afilhada do rei D. Carlos e da rainha Dona Amélia.

Carlota veio a ser escritora. Conforme era costume na época, assinava os seus livros com umpseudónimo, e escolheu Clarinha. Entre as obras que escreveu contam-se os seguintes títulos: CincoHoras, Cartas à Prima, Viagem de Clarinha e Memórias. Deixou também uma biografia do pai, AVida Breve e Ardente de Serpa Pinto, publicada em 1937, esta assinada com o seu nome verdadeiro.

Nas vésperas da grande travessia Em 1875 Alexandre foi destacado para a ilha da Madeira epassou uma temporada no Batalhão de Caçadores 12, do Funchal. Era um oficial de prestígio, estavacasado de fresco, tinha uma filha pequena, mas a vida pacata não o satisfazia. Continuava a sonharcom África, a África desconhecida, misteriosa, que desejava explorar. Fazia planos, conversavasobre o assunto com os parceiros de quartel, pensava, estudava. Chegou a enviar ao governo umaproposta, que se perdeu pelo caminho.

Em 1876 voltou a Lisboa e soube então que se tinha fundado a Sociedade de Geografia e quese falava em organizar uma grande expedição geográfica ao interior da África Austral. Procurouimediatamente o ministro João de Andrade Corvo e ofereceu-se para participar. Falou da suaexperiência anterior, do desejo imenso de partir, e o ministro prometeu que o chamaria caso osplanos, ainda vagos, se concretizassem.

Entretanto, foi colocado num quartel do Algarve. Antes de partir, resolveu falar de novo aoministro. Já que a expedição parecia adiada, queria ir para Moçambique como governador deQuelimane, porque o lugar estava vago. O ministro recusou e garantiu-Lhe que a expedição se fariano ano seguinte.

Sabendo que estava previsto entregar-se a chefia dessa expedição ao oficial da Marinha deGuerra Hermenegildo Capelo, pediu-Lhe uma entrevista, e encontraram-se no café Martinho.

Capelo disse logo que tencionava chamar também o companheiro e grande amigo RobertoIvens. Pela descrição da conversa, fica-se com a ideia de que não simpatizaram especialmente umcom o outro...

Depois deste encontro, Capelo seguiu para Inglaterra a bordo do couraçado Vasco da Gama eSerpa Pinto foi ocupar o seu lugar na Companhia de Caçadores 4, em Faro. Durante meses não setornou a falar da expedição. Certo dia apareceu uma notícia nos jornais dizendo que já havia trintacontos de réis para financiar a viagem e referindo nomes de outros exploradores.

Serpa Pinto pensou que o assunto estava arrumado e nunca realizaria o seu maior sonho. Mas,conforme ele próprio conta, de súbito houve uma reviravolta: "Eu estava então em Faro [...). OAlgarve é um país delicioso; reina ali uma atmosfera oriental e as copas elegantes das palmeiras quese inclinam sobre as casas em terraços fazem-nos esquecer que vivemos na Europa. Eu era ocomandante militar, o que quer dizer que afazeres poucos tinha. O convívio de uma sociedadeescolhida, os carinhos da família, os meus livros de estudo e os meus instrumentos de observaçãofaziam-me passar horas bem felizes [...]. Findara o mês de Abril e com o de Maio viera o calor [...].Eu fazia projectos para o Verão quando um dia recebo um telegrama [...) para me apresentar aoministro das Colónias. Adeus, casa, adeus chambre, adeus pantufas, adeus vida tranquila e plácidajunto dos meus; aí volto a correr mundo!" Serpa Pinto partiu com Hermenegildo Capelo para Angola.

Chegaram a Luanda a 6 de Agosto de 1877. Ali se Lhes juntou Roberto Ivens. Algum tempodepois, já no Bié, desentenderam-se e separaram-se.

Serpa Pinto seguiu sozinho com a sua caravana em busca de caminhos para a costa oriental de

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África e dois anos depois, quando já o julgavam morto, chegou a Pretória. Essa viagem, que adiantese descreve, foi uma aventura espantosa.

Regressou a Portugal via oceano índico, mar Vermelho, mar Mediterrâneo. Desembarcou emFrança, fez um percurso por terra, e quando pousou os olhos no oceano Atlântico chorou de comoção.Trouxe consigo para Lisboa alguns dos africanos que o tinham acompanhado sempre, Verissimo,Augusto, Camutombo e Pepeca (*). *Pepeca ficou a viver com a família de Serpa Pinto e quisbaptizar-se com o nome completo do explorador, incluindo apelido. Passou portanto a chamar-seAlexandre Serpa Pinto.

À chegada instalaram-se no Hotel Bragança, e foi uma loucura. Jornais de todo o mundoderam grande destaque à viagem, choveram convites para fazer colóquios e falar de África emteatros, associações, Sociedades de Geografia.

As notícias que trouxe permitiram preencher zonas do interior do continente africano queainda se encontravam em branco. E o diário escrito durante a viagem deu origem ao livro Como EuAtravessei a África (publicado em 1881 ), que tem dois volumes. O primeiro volume recebeu comosubtítulo A Carabina dEl Rei, o segundo A Família Coillart.

Outros cargos, outras viagensApós a travessia de África, Serpa Pinto passou uma temporada em Lisboa como ajudante-de-

campo do rei D. Luís: Em 1884 foi nomeado cônsul em Zanzibar, e quando o governo portuguêsorganizou nova expedição científica e comercial ao lago Niassa chamaram-no para chefiar o grupona companhia do tenente da Marinha Augusto Cardoso. Mais tarde, em 1889, Serpa Pinto chefiouainda outra expedição destinada a estudar a possibilidade de construir um caminho-de-ferro, entreQuelimane e o rio chire com prolongamento até ao lago Niassa (*).*Nesta época os inglesesexploravam intensamente zonas do interior de África com a intenção de se instalarem e dominarem asmelhores terras. Queriam colonizar uma faixa larga do Cairo (no Egipto) ao Cabo (na África do Sul).Nesta última expedição Serpa Pinto entrou em conflito com os Macololos, povo que a Inglaterradizia proteger. Este conflito veio a servir de pretexto para os ingleses imporem a Portugal o ultimatoque obrigou os portugueses a retirarem-se dos territórios entre Angola e Moçambique em 1890.

Em 1894, nomeado governador de Cabo Verde, instalou-se na cidade do Mindelo, ilha de SãoVicente. Aí tomou iniciativas diversas e importantes. Mandou fazer obras para melhorar o porto,construiu um hospital e várias escolas, tomou medidas para proteger a agricultura, realizou váriascampanhas de vacinação, etc.

Voltou definitivamente a Portugal em 1897. O rei, então D. Carlos, concedeu-Lhe o título devisconde.

Serpa Pinto morreu a 30 de Dezembro de 1900, com cinquenta e quatro anos. Ocupava o postode general e recebera várias condecorações — a Grã-Cruz de Medgie, a Torre e Espada, a Comendada Ordem de Aviz e de Santiago, a Legião de Honra, a Comenda da Rosa do Brasil.

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A grande viagem de Serpa Pinto

Como eu atravessei a ÁfricaSerpa Pinto partiu de Lisboa com Hermenegildo Capelo chegando a Luanda a 6 de Agosto.

Hospedaram-se em casa de um português que ali vivia, José Maria Prado. Tanto o dono da casacomo o governador se dispuseram a dar todo o apoio à expedição. Não conseguiram, no entanto,arranjar pessoal para formar uma caravana.

Serpa Pinto dirigiu-se ao Norte de Angola, mas também não teve sorte; ninguém queria aceitaro trabalho. A única vantagem desta deslocação foi travar conhecimento com um exploradoramericano, Stanley, que acabava de descer o Zaire.

Regressaram juntos a Luanda e entenderam-se muito bem. A viagem de Stanley levou osexploradores portugueses a alterarem os planos: não valia a pena subirem o Zaire, pois oreconhecimento estava feito. Optaram então por se dirigir a Benguela e programar outro itinerário.

Roberto Ivens, que chegara entretanto, concordou com o plano. Partiram por mar em naviosdiferentes.

"Benguela é uma bonita cidade que se estende desde a praia do Atlântico até ao sopé dasmontanhas que formam o primeiro degrau do planalto da África Tropical. É cercada de uma espessafloresta, ainda hoje povoada de feras." (Do diário de Serpa Pinto.

Em Benguela receberam toda a ajuda possível do governador, de Silva Porto e de outrosportugueses que lá viviam.

Conseguiram, finalmente, contratar 80 carregadores e prepararam-se para partir rumo àsterras do Bié. Mas na caravana reinava um profundo mal-estar. Os três exploradores não conheciamos africanos que tinham contratado nem sabiam se podiam confiar neles. Quanto aos africanos,também desconfiavam dos portugueses, sobretudo porque não percebiam o que desejavam. Se nãoeram comerciantes, por que motivo queriam embrenhar-se no sertão? Alguns desistiram e fugiram.

Só puderam partir a 12 de Novembro, e pelo que escreveram percebe-se que iamapreensivos: "No momento da partida senti uma pungente mágoa, uma indefinível saudade, uma dorprofunda (...)." A primeira etapa conduziu-os ao Dombe, onde se demoraram porque um grupo decarregadores, que ficara de se Lhes juntar, nunca mais chegava. A 4 de Dezembro seguiram paraQuilengues.

Percorreram uma encosta pedregosa, árida, difícil de subir.Alguns carregadores arrastavam-se penosamente, exaustos e com feridas nos pés. Os

exploradores também sofriam imenso, com o corpo encharcado em suor por baixo das roupaseuropeias. Só comiam uma vez por dia, a fim de pouparem os mantimentos, e bebiam água da chuvarecolhida em poças graníticas. Ao anoitecer acampavam onde encontrassem melhor piso e, se haviacaça nas imediações, abatiam animais selvagens para comerem carne fresca. Sempre que sejustificava, paravam para fazerem observações científicas, registos ou desenhos.

No dia 12 de Dezembro chegaram a Quilengues, onde se viram obrigados a uma longa pausaporque alguns carregadores não quiseram continuar. Precisaram, portanto, de contratar outros, o quesó foi possível devido à boa vontade do chefe local.

Serpa Pinto adoeceu de novo e gravemente."Lutei com violenta febre por três dias e não tenho consciência de ter passado o dia 25, dia

duplamente festivo para mim porque sendo Natal, é o aniversário da minha filha Carlota." Enquanto

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estiveram em Quilengues conviveram com militares portugueses que ali se encontravam destacados.O capitão Rosa ausentara-se por motivo de doença, mas a mulher ficara. Era uma senhora muitosimpática, e resolveu presentear os visitantes na hora da despedida. As ofertas revelam uma certafalta de sentido prático, pois a Serpa Pinto coube um serviço de chá em porcelana e uma cabrinhaque ele adoptou como mascote, dando-Lhe o nome de Cora.

Antes de partirem (a 1 de Janeiro de 1878) juntou-se ao grupo um mulato chamado VeríssimoGonçalves, que acabou por acompanhar Serpa Pinto até ao fim da expedição e depois até Lisboa.

A etapa seguinte tinha como meta o reino de Ngola. Para lá chegar subiram montanhas,acamparam na margem de ribeiros, viram de perto os mais variados tipos de animais selvagens, entreos quais, por exemplo, um enorme búfalo que de noite se introduziu no acampamento.

Chegados a Ngola, foram recebidos pelo chefe."O soba apareceu-me logo armado de dois cacetes e uma azagaia. Trajava tanga de pano e

sobre ela uma pele de leopardo. Tinha o peito nu, pendendo-lhe do pescoço um sem-número deamuletos.

Recebeu-me fora da sua barraca sob um sol abrasador e eu ofereci-Lhe um guarda-sol, favor aque ele se mostrou muito grato.

Os contactos incluíram troca de presentes e uma experiência engraçada. Havia muito que nãochovia, e nessa noite choveu violentamente. Então o soba disse ao povo que tinham sido osportugueses a resolver o problema da seca, e o ambiente tornou-se ainda mais alegre e caloroso." DeNgola seguiram para Caconda, e viram-se obrigados a atravessar a vau um rio de corrente forte evários outros ribeiros. A operação demorou porque a caravana levava alguns burros e bois, quemostraram medo da água, e foi um sarilho para os forçar à travessia.

Em Caconda foram recebidos por um mulato de nome Mateus, um rico proprietário, nomeadosargento de guerra do exército português, que Lhes apresentou José de Anchieta, um naturalista queali se instalara havia anos. Recolhia espécies, estudava-as apaixonadamente, enviava o que podiapara os museus de Lisboa, não se preocupando em acumular outras riquezas além do saber.

"Anchieta vivia nas ruínas de uma igreja. Por dentro a casa era em forma de T e toda forrada aestantes, onde havia à mistura livros, instrumentos matemáticos, máquinas fotográficas, telescópios,microscópios, retortas, pássaros de mil cores, vidros variados, louça, pão, frascos cheios de líquidosmulticolores, estojos de cirurgia, montes de plantas, medicamentos, cartucheiras, roupa, etc. Sobre amesa é impossível dizer o que há [...)." Permaneceram alguns dias em Caconda, e Serpa Pinto fezreconhecimentos nos rios e florestas em redor. Depois combinaram que ele iria ao Huambo tentarcontratar mais carregadores. Os companheiros juntar-se-Lhe-iam mais tarde.

A 8 de Fevereiro dirigiu-se ao Huambo levando consigo apenas dez homens, entre os quaisVeríssimo e Pepeca.

Demoraram vários dias a chegar ao destino e foram pernoitando em povoações que havia pelocaminho. Serpa Pinto adoeceu com altos febrões mas nem por isso desanimou. Tomou quinino e fezparte do percurso às costas de um boi sob o sol ardente.

No Huambo foi recebido cordialmente pelo filho do poderoso soba e depois pelo própriosoba. Ali aguardou a chegada dos companheiros, mas estava-Lhe reservada uma triste surpresa.

Mensageiros enviados por Capelo e Ivens trouxeram-Lhe cartas a dizer que tinham resolvidoseguir para o Bié. Pediam-Lhe que fosse lá ter. Indignado com o abandono, queixou-se amargamenteno seu diário: "Eu achava-me num país hostil, e se até ali tinha sido respeitado, fora só porque me

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julgavam a vanguarda de uma grande comitiva [...). Que seria de mim logo que se soubesse que todaa minha força consistia em dez homens?" Ainda pôs a hipótese de voltar para trás, mas depois deuma noite em claro reconsiderou.

Apesar do desespero, teve o cuidado de fazer descrições e registos minuciosos sobre as terrase as gentes do Huambo.

Quando mais tarde voltou a encontrar-se com os companheiros no Bié, esperava-o novadesilusão. Segundo conta, Capelo e Ivens declararam que tencionavam continuar sozinhos.

Davam-Lhe um terço das bagagens e um terço das mercadorias para ele prosseguir por suaconta e risco para onde entendesse, ou então, visto que se encontrava bastante doente, acompanhá-lo-iam de volta à costa de Angola, de onde poderia embarcar para Portugal.

Desgostoso e doente, seria natural que aceitasse a segunda proposta. Mas preferiu acreditarno lema que adoptara: "A sorte protege os audazes". Ficou, recompôs-se da doença instalado na casaque Silva Porto mandara construir no Bié e, apesar da fraqueza, foi efectuando interessantes registossobre a história dos habitantes da zona.

Quando se sentiu capaz, escolheu rumo para a expedição que agora teria que encabeçarsozinho. Resolveu tentar a travessia de África, procurar caminhos nunca antes palmilhados para ligaro Atlântico ao Índico por terra.

Partiu em Maio, levando consigo, além do grupo de confiança, pombeiros e carregadorescontratados nas imediações. A 14 de Julho atravessava o rio Cuanza no barco de borrachaMackintosh trazido de Londres e estabelecia contacto com novas terras, novas gentes, prestandoatenção a tudo e a todos, registando, a par de observações científicas, pormenores do quotidiano: "Acoisa que me feriu a atenção entre os Quimbandes foi o penteado das mulheres. EntranÇam o cabeloe enfeitam-no com búzios de modo a parecer um chapéu ou um capacete." "Os homens Quimbandescobrem a sua nudez com duas peles de pequenos antílopes que caem adiante e atrás de um largo cintode couro de boi. Só os sobas usam pele de leopardo." Nesta zona visitou o povo Cabango e de novose encantou com os penteados das mulheres, que usavam trancinhas e um espigão de ferro a enfeitar ocabelo, espigão esse que servia igualmente para coçar a cabeça.

A viagem prosseguiu através de florestas, rios, planícies nuas, com dias bons, dias maus,noites tranquilas, noites agitadas, debaixo de calor tórrido ou sofrendo os efeitos de violentastempestades, cruzando com animais selvagens, escapando por milagre às ferroadas de cobrasvenenosas.

Perto das terras do rei Lobossi ficou sem mantimentos e viu-se aflito. Não encontrava plantascomestíveis em parte nenhuma nem caça com que pudesse alimentar a caravana.

Resolveu então forçar a marcha na esperança de atingir uma zona habitada para pedir ajuda. Ameio caminho deparou-se-Lhe um grupo de guerreiros luínas que patrulhavam a região, comandadospor um chefe de nome Cicota.

"Estes luinas têm uma boa presença, são altos e robustos.Uma pele de antílope primorosamente curtida passada entre as pernas, presa no cinto de

couro, e um amplo capote de peles é o seu vestuário. Os três guerreiros traziam carabinas de grandecalibre de fábrica inglesa. Os outros transportavam escudos e azagaias e tinham o peito e os braçoscheios de amuletos.

"A cabeça do chefe Cicota estava coberta por uma enorme cabeleira feita de juba de leão. Osoutros traziam penachos de plumas verdadeiramente assombrosos." Os luinas conduziram-no à corte

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do rei Lobossi.Chefe Cicota No Barotze A 25 de Agosto de 1878 Serpa Pinto encontrava-se no Alto

Zambeze, na cidade de Lialui, capital do Barotze ou Lui, reino governado por Lobossi. Ardia emfebre quando foi recebido na corte.

"Lobossi era um rapaz de vinte anos, de estatura elevada.Estava sentado numa cadeira de espaldar no meio da grande praça e por trás dele um negro

fazia-Lhe sombra com um guarda-sol. Vestia casaco preto sobre uma camisa de cor e em lugar degravata trazia ao pescoço um sem-número de amuletos.

As calças eram de cor e deixavam ver as meias de fio-de-escócia muito brancas e o sapatobem lustrado. Na cabeça um chapéu ornado de penas de avestruz, na mão um pedaço de madeira comcrinas de cavalo servia-Lhe para enxotar as moscas. À sua direita, em cadeiras mais baixas, estavasentado Gambela (presidente do conselho) e mais três conselheiros.

Umas mil pessoas, sentadas no chão em semicírculo, deixavam perceber a sua hierarquia peladistância a que estavam do soberano." Serpa Pinto foi recebido com a maior simpatia, trocaram-sepresentes, fizeram-se projectos. Mas a harmonia não durou muito, porque entre os conselheiros do reisurgiram opiniões divergentes, uns a favor e outros contra o explorador português. Espalharam-seboatos, intrigas, e o ambiente tornou-se dúbio.

A fim de evitar problemas, Serpa Pinto acampou fora da cidade. Por azar as febres voltaram.O rei Lobossi, informado da doença, enviou-Lhe um curandeiro local, mas os tratamentos nãosurtiram qualquer efeito, porque o homem se limitou a fazer actos de magia utilizando caroços defruta.

A estada nos arredores de Lialui prolongou-se, não só devido à doença mas também porque orei nunca mais Lhe dava autorização para atravessar o seu território rumo ao Índico.

O assunto era debatido pelos conselheiros sem chegarem a nenhuma conclusão definitiva.Serpa Pinto não tinha acesso a essas reuniões. No entanto, o que viu e ouviu levou-o a

considerar Gambela como inimigo e um outro conselheiro, chamado Machauana, como amigo. Acerta altura convenceu-se de que Gambela aconselhara o rei a matá-lo. Para salvar a pele, recorreuao bluff Mandou dizer a Lobossi que, se Lhe acontecesse alguma coisa, o rei de Portugal mandariaum grande exército invadir o Barotze. A verdade é que o rei de Portugal não fazia a mínima ideia deonde estava Serpa Pinto, e se ele tivesse morrido o mais certo era nunca chegar a saber o queacontecera. Mas a estratégia funcionou. Na dúvida, os inimigos preferiram ser discretos, e em vez deum ataque frontal tentaram assassiná-lo à traição.

Como não foram bem sucedidos, uma noite incendiaram-Lhe o acampamento."(...] de súbito prendeu-me a atenção um sem-número de pontos luminosos que vi

atravessarem o espaço. Um grito de angústia escapou-se-me da garganta. Alguns centos de indígenascercavam o acampamento e lançavam achas ardentes sobre as barracas cobertas de erva seca. Em umminuto o incêndio tornou-se horrível. Os carregadores saíam espavoridos das barracasincandescentes. Em presença de um perigo tão terrível, aconteceu-me o que por mais de uma vez metem acontecido em iguais circunstâncias, fiquei sereno e tranquilo de espírito, pensando só em lutar evencer. Entrei na minha barraca em chamas e consegui tirar dali as malas dos instrumentos, os meuspapéis e a pólvora. Enviei Verissimo ao rei Lobossi para o avisar de que a sua gente me atacava epedi-Lhe que avisasse também Machauana.

"As azagaias ferviam em torno de nós e já havia alguns ferimentos graves. Um dos homens que

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Silva Porto me cedera tombou com uma azagaia cravada no sobrolho direito. Eram cem contra um,parecia a imagem do inferno." Este ataque terminou subitamente sem que Serpa Pinto percebesseporquê. Afinal tudo se deveu ao facto de Augusto ter pegado numa carabina destinada a caçarelefantes, cujas balas continham nitroglicerina. Quando acertou num atacante, o corpo explodiu e oscompanheiros ficaram espavoridos. Nunca tal tinham visto, pensaram que se tratava de um feitiço epuseram-se em debandada.

Lobossi apareceu no acampamento pouco depois e garantiu que nada tinha a ver com aqueleataque e que castigaria severamente os responsáveis.

Pelo sim pelo não, Serpa Pinto foi acampar mais longe.Deslocou-se para uma colina coberta de floresta e perto de uma lagoa.Os problemas, porém, não tinham acabado. Uma noite, pombeiros e carregadores da caravana

saquearam as barracas a coberto da escuridão e fugiram sem deixar rasto. Com ele ficaram apenasoito pessoas: Augusto, Veríssimo, Camutombo, Catraio, Moero, Pepeca e duas mulheres queacompanhavam os maridos. Só com uma espingarda, uma carabina e poucas balas, não tinhamqualquer hipótese de sobreviver.

Aconteceu então uma daquelas espantosas coincidências que fazem inflectir o destino: oestojo da carabina que o rei D.

Luís Lhe oferecera por acaso continha um aparelhómetro para fabricar balas. Serpa Pintoguardara também por acaso duas latas de pólvora na mala dos instrumentos a fim de evitar quechocalhassem. E nas redes de pesca que mandara colocar nas lagoas havia chumbo. Pôde assimfabricar balas para se aguentar durante o resto da viagem.

Foi por causa deste episódio que deu o subtítulo de A Carabina d'El Rei ao primeiro volumedo livro que viria a escrever.

Nos últimos dias de Setembro, Lobossi autorizou finalmente a partida, emprestou canoas paradescerem o Zambeze e cedeu remadores para conduzir as canoas até um determinado local.

Despediu-se pessoalmente de Serpa Pinto e entregou-lhe uma ponta de marfim para ele deixarao chefe da povoação onde as canoas e os remadores deviam ser substituídos.

Separaram-se como bons amigos.A caravana, agora bastante reduzida, seguiu viagem. Além dos remadores, acompanhavam-nos

um caçador de nome Jassa e um indivíduo chamado Mutiquetera, enviados por Lobossi para dizerema todos os chefes que aquele grupo tinha ordem para se dirigir a Lexuma, onde se encontrava ummissionário europeu.

Do grupo também faziam parte a cabrinha Cora e um papagaio, o Calungo, que esvoaçavasobre as canoas e elegia como poiso ideal o ombro do explorador.

Atravessaram rios cheios de crocodilos, acamparam nas margens, caçaram o mínimoindispensável para pouparem munições, viveram as mais ricas e variadas experiências nosencontros-surpresa com animais selvagens ou nas curtas estadas em povoações. Tal como semprefizera, Serpa Pinto continuou a efectuar todo o tipo de registos no seu precioso diário, que após osaque do acampamento passou a transportar preso ao corpo com faixas de tecido.

"Os Luínas e Malacas têm por hábito esconder as canoas em lagoas interiores cobertas decaniçal que comunicam com o rio por pequenos canaletes disfarçados pela vegetação [...).

"Em Itufa, pela primeira vez depois de ter deixado o Bié, vi gatos em África. Há também alimuitos cães de boa raça que empregam na caça dos antílopes (...).

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Em Itufa cederam-me uma cabana para dormir. À noite, quando me fui deitar vi que estavarodeado de aranhas enor mes, muito chatas e negras, que desciam as paredes num vagaroso caminhar;fugi de casa e fui deitar-me ao relento (...).

Uma piroga do alto Zambeze é como um patim gigante em que o remador tem de fazer todos osprodígios de equilíbrio do patinador sobre o gelo para sustentar a posição estável. Foi em taiscondiÇões que deixei Itufa e me aventurei sobre o rio, cujas ondas, levantadas por um forte vendavalde leste, ameaçavam a cada momento submergir as estreitas almadias [...).

Depois de quatro horas de viagem parei na margem esquerda.Uma areia branca e finissima, comprimida sob os passos do homem, solta vagidos como os de

uma criança, produzindo uma impressão inexplicável porque, estando muito seca, imita um fracogrito humano (...) Navegávamos havia duas horas quando vimos dois leões que, na margem direita,bebiam ágùa do rio.

Apesar de eu ter estabelecido como regra não me intrometer com feras sem a isso ser forçado,os instintos de caçador venceram a razão e mandei abicar a canoa à margem, direito aos bichos.

Preparei a carabina e, ao apontar, senti um tremor convulso percorrendo todos os membros.Lembrei-me de que estava fraco e debilitado pela febre e receei que o pulso tremesse ao dar aogatilho.

Aventurei-me num cerrado de arbustos e entre um tufo de ervas vi o corpo inerte do rei dasflorestas africanas. A bala esmigalhara-Lhe o crânio, cortara-Lhe de golpe a vida. Chamei gente enum momento a pele e as garras foram-Lhe arrancadas [...) Cheguei a Embarira pela meia-noite. Ochefe da povoação tinha-me preparado uma casa onde me recolhi cheio de febre e fadiga." SerpaPinto ansiava chegar a Lexuma, convencido de que o missionário europeu Lhe poderia valer,cedendo homens, armas e mercadorias. No entanto, não foi fácil sair de Embarira, porque o chefeexigia um pagamento em fazendas que ele não possuía. Mandou então um mensageiro a Lexumaexplicar o que se passava, e o tal missionário apressou-se a fazer-Lhe chegar às mãos as fazendas deque necessitava. A família do missionário também Lhe enviou um pão.

"Desdobrei a toalha e fiquei comovido diante de um enorme pão de trigo que tinha nas mãos.Pão! Pão que eu já não via há um ano, pão, que era para mim sempre, a cada comida em que o nãotinha, uma recordação saudosa; que era um sonho constante, em noites de fome; do qual chegueimuitas vezes a ter desejo imoderado e pelo qual compreendi que se possa cometer um crime para ohaver, quando privado dele por muito tempo." De caminho para Lexuma, Serpa Pinto conheceu doisingleses, o Dr. Benjamim Bradshaw, médico e zoólogo, e Alexandre Walsh, zoólogo, que viviamhavia alguns anos em África em missão de estudo. Estes ingleses ofereceram-Lhe uma refeiçãoestupenda e ajudaram-no a livrar-se de novos apuros decorrentes de mal-entendidos com gente dazona. Entretanto, apareceu no acampamento dos ingleses o missionário francês de Lexuma.

Chamava-se François Coillart. Acolheu Serpa Pinto com grande simpatia e também ajudou aesclarecer e resolver problemas que surgiram naquele meio tempo. Explicou que tinha de se deslocara Quisseque para receber instruções do rei Lobossi sobre os percursos que podia fazer e demorariadez ou doze dias.

Entretanto aconselhava Serpa Pinto a dirigir-se a Lexuma para se restabelecer e descansarjunto da sua família. O explorador seguiu o conselho e dirigiu-se ao acampamento, onde seencontravam Cristina, a mulher do missionário, Elise, uma sobrinha com 18 anos, e alguns africanosque os acompanhavam.

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nNum estreito vale enquadrado de montes pouco elevados cresce uma erva grossseira eraquítica. Uma bela vegetação arbórea guarnece as montanhas que enquadram o pequeno vale [...). Anorte de duas aldeias abandonadas uma forte paliçada cerca um terreno circular, onde havia umacasinha de colmo, dois wagons ou carretas de viagem e uma barraca de campanha.

Era o acampamento da família Coillart, era Lexuma, enfim."A recepção que me fez Madame Coillart foi aquela que faria a um filho, se esse filho fora eu

[...). Convidou-me a entrar na barraca de campanha, onde uma mesa coberta de fina e alva toalhasustentava um serviço modesto contendo um jantar suculento. Ao meu lado sentava-se Elise Coillart,de olhos baixos e fisionomia rubra de pudor por ver um desconhecido entrar tão de golpe na suavida. Espalhava em tor no de si esse perfume de candura que cerca e envólve a mulher formosa aos18 anos.

"Madame Coillart multiplicava-se em cuidados extremosos, e pelo fim do jantar comecei aprovar uma sensação estranha.

Aquelas damas, o jantar, o serviço, o chá, o açúcar, o pão, tudo enfim se me baralhava namente com traços mal definidos.

Não tenho consciência de ter terminado aquele jantar sei apenas que me achei só na barraca.Então um abalo violento sacudiu todo o meu corpo, um soluço toLheu-me o ar na garganta e aslágrimas saltaram (...). Chorei, chorei muito, não me envergonho de o dizer, e creio que aquelaslágrimas foram a minha salvação." Serpa Pinto ficou em Lexuma com a família Coillart aguardando oregresso do missionário.

Mais uma vez adoeceu com febres altíssimas, foi visitado e tratado pelo simpático médicoinglês, que se deslocou ao acampamento.

Logo que melhorou, preparou-se para uma incursão às grandes cataratas do rio Zambeze. Asduas senhoras encarregaram-se do farnel e viram-no partir bastante aflitas, mas não se atreveram adissuadi-lo.

O explorador e os homens que o acompanharam atravessaram pântanos, florestas densas,ribeiros. Acamparam, caçaram para comer, foram apanhados por uma violentíssima tempestadetropical.

"Era um espectáculo tremendo e horroroso. Ziguezagues de fogo cruzavam os ares em todas asdirecções e abrasavam a atmosfera. É preciso ter assistido a uma trovoada nos sertões de ÁfricaAustral para bem se fazer ideia do que seja uma tempestade medonha. [...) Foi aquela noite cruel.Ali, já ao estampido dos trovões se juntava o bramir da catarata." As grandes cataratas, que hoje têmo nome de Vitória, na altura possuíam nomes diferentes conforme as línguas locais: ,mozioatunia" echongue". Para medir a altura da queda de água, o explorador suspendeu-se no abismo preso.

Por esta altura escreveu no diário: "África oferece cada dia a cada passo tais estorvos aoviajante, tais perigos ao caminheiro, que são eles de sobra para fazer abortar a maior parte dasexpedições que tentam devassar os seus segredos." Apesar de todos os obstáculos que ainda teria deenfrentar, nesta parte final da viagem as coisas foram mais suaves porque Serpa Pinto e os seushomens seguiram na companhia da família do missionário. A gratidão pelo apoio recebido, eprovavelmente a forte atracção pela sobrinha Elise, levou-o a dar o subtítulo de A Família Coillartao segundo volume do livro que escreveu terminada a viagem.

Juntos atravessaram o deserto de Calaari e os maricaris — espécie de lagos que existem nasareias e desaparecem na estação seca, o que durante muito tempo constituiu um estranho mistério

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para os europeus. Em pleno deserto, o explorador teve o desgosto de ver morrer a mascote, acabrinha Cora, esmagada sob as rodas do carroção durante uma pavorosa tempestade.

"Nesta zona as feras eram de outra natureza...[...) Vi mais cobras venenosas do que em todo o resto da viagem. Um asqueroso e enorme

sapo veio meter se nas peles da minha cama e, ao acordar, vi-me cara a cara com tão amávelcompanheiro. Escorpiões, centopeias e os mais repugnantes insectos eram meus sócios de cama;vindo procurar junto do meu corpo o calor que tão apreciado é pelos animais de sangue frio. Épreciso um hábito constante do deserto para se poder dormir sobre umas peles na terra dura nacompanhia de tais animalejos." Serpa Pinto viajou com os Coillart até Shoshong, capital doManguato. Aí separaram-se. O missionário ficou na zona mais uma temporada e o exploradorportuguês seguiù rumo a Pretória na companhia de um fazendeiro inglês casado com uma mulherbóer, a quem pagou para que o transportasse no seu carroção.

Não foi fácil nem rápida esta última etapa. Mas depois de muitas peripécias, no dia 12 deFevereiro de 1879 entrou finalmente na cidade de Pretória, capital da colónia inglesa do TranSvaal.Acompanhavam-no os sobreviventes da sua caravana,seis homens e uma mulher.

A primeira coisa que fez ao chegar a Pretória foi enviar um telegrama para Lisboa. EmPortugal, há tanto tempo sem notícias, julgavam-no morto, e a boa-nova desencadeou verdadeirasondas de alegria. Ansiavam vê-lo chegar, mas naquela época as deslocações tinham outro ritmo.

Alexandre Serpa Pinto ficou em Pretória algumas semanas.Recebido e festejado por toda a gente, teve oportunidade de contar e recontar as suas

aventuras e de se deliciar com o espanto e a admiração que despertava. Dali seguiu para Durban,onde o cônsul de Portugal Lhe anunciou que o navio para a Europa partira nesse mesmo dia e sóhavia outro daí a um mês! Não quis esperar! tomou o primeiro navio que apareceu, o paqueteDanúbio; com destino ao mar Vermelho. Em Adém mudoú para um barco a vapor austríaco que oconduziu até Suez. Tomou então um comboio para o Cairo. Depois de visitar as pirâmides, seguiupara Alexandria, onde embarcou para a Europa.

A 9 de Junho entrava em Lisboa e era recebido de forma apoteótica. Na véspera tinhamchegado Pepeca, Veríssimo e outros companheiros africanos, mais o papagaio Calungo.

Não será fácil descrever o que todos sentiram, mas é fácil imaginar.Além de Roberto Ivens, Hermenegildo Capelo e Serpa Pinto, no final do século XIX houve

muitos outros portugueses que se embrenharam pelo interior do continente africano em missõescientíficas e comerciais. Nesta época as lutas pela partilha de África intensificaram-se e houveconflitos armados não só com os africanos que reagiam às tentativas de colonização mas tambémentre os europeus que desejavam colonizar.

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.txtDigitalização e ArranjoAmadora, 15 de dezembro de 1999

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