No Crepúsculo
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PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO/MESTRADO
JAIME CUÉLLAR VELARDE
No Crepúsculo
Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar
na Amazônia Paraense (1964-85)
BELÉM
2012
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JAIME CUÉLLAR VELARDE
No Crepúsculo
Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar
na Amazônia Paraense (1964-85)
Exame de Qualificação da Dissertação de Mestrado apresentado à Universidade da Amazônia,
como requisito para a Conclusão do Curso de Mestrado em Comunicação, Linguagens e
Cultura.
Orientadora: Prof.ª Drª. Neusa G. de Santana Pressler
Co-Orientador: Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco
BELÉM
2012
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JAIME CUÉLLAR VELARDE
No Crepúsculo
Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar
na Amazônia Paraense (1964-85)
Data: 10 / Agosto / 2012.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Profª Drª. Neusa G. de Santana Pressler
_______________________________________________
Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco (UFPA)
Co-Orientador
_______________________________________________
Profª Drª. Ivone Xavier Amorim (UNAMA)
Examinadora
_______________________________________________
Prof. Dr. Pere Petit (UFPA)
Examinador
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RESUMO
O golpe e processo ditatorial civil-militar (1964-85) incitaram consideráveis publicações,
ciclos de debates, fóruns, conferências e pesquisas. Esta vasta produção no cenário nacional
recebeu, em 2004, uma publicação regional de memórias sobre os quarenta anos do golpe em
solo amazônico paraense, intitulada “1964. Relatos subversivos: os estudantes e o golpe no
Pará”. A temática provocou-me o interesse por conhecer mais sobre a produção regional e tal
qual foi a surpresa ao perceber raras e honrosas produções nesta seara, cujo destaque recai
sobre as pesquisas de Pere Petit, com enfoques políticos e econômicos sobre o tema em tela.
De posse destas informações, decidi investigar as memórias de sujeitos culturais sobre o golpe
e Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense sob os auspícios dos Estudos Culturais.
Compreendendo a História Oral como método de captura e interpretação de memórias, investi
na compreensão deste advento a partir de relatos de memórias de oito narradores dissidentes
ao regime. Ao estabelecer aspectos identitários dos narradores, privilegiei mapear e analisar
sentimentos aflorados daquelas narrativas orais e performáticas por compreender corpo e
linguagem como portadores de cultura. Assim, ciente das importâncias dos métodos
tradicionais para a compreensão da história, alcancei outra compreensão para os anos de
Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense pautada nas encenações de memórias marginais
à historiografia tradicional.
PALAVRAS-CHAVE: Golpe e Ditadura Civil-Militar; Amazônia Paraense; Sujeitos
Culturais; Estudos Culturais; Memórias.
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Dedico
A minha mãe, Josefina Velarde, pela formação
ética e cuidados a mim dedicados em momentos
tão frágeis de minha existência. E a meu pai,
Jaime Ottó Cuéllar Winkelmann, pelo incentivo à
leitura desde a mais tenra infância.
A meus filhos Sabina, Artur e Manuela, por me
fazerem sentir o peso da responsabilidade e fazer
brotar na pedra o germe do Amor incondicional.
A minha esposa Heliana Gabriel Velarde pelo
amor, paixão, romantismo, companheirismo e
cumplicidade.
A Pedro Galvão de Lima, Ruy Antonio Barata,
João de Jesus Paes Loureiro, Jose Seráfico de
Carvalho, Alfredo Oliveira, André Costa Nunes,
Cláudio Barradas e Dulce Rosa de Bacelar
Rocque, pela sinceridade e belas lições de
ousadia.
A memória post morten de Ronaldo Barata e
todos aqueles que derramaram suor e lágrimas
pelos ideais e convicções de um mundo mais justo.
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AGRADECIMENTOS
Ao co-orientador e amigo Dr. Agenor Sarraf Pacheco, pelos primeiros incentivos
para cursar este Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura. Também pelos
telefonemas de repreensão e estímulo para talhar em minha identidade acadêmica a dedicação
tão necessária ao fazer-se pesquisador. Pelas horas de leituras e sugestões não remuneradas,
feitas tão somente pela atitude de companheirismo. Acima de tudo, pelas críticas corajosas e
sinceras na ânsia de tornar-me um Mestre com domínio sobre conceitos e discussões. Pelos
méritos deste trabalho, muito obrigado.
À Banca de Qualificação, na figura do Dr. Gerson Albuquerque, pela sensibilidade
em instigar-me buscar a presença feminina coadjuvante na cena cultural amazônica; Dr. Pere
Petit, pela sobriedade na análise de conceitos político-econômicos; Dra. Ivone Xavier, por
apontar percursos identitários. A Dra. Neusa Pressler por conceder seu tempo e nome a este
trabalho. A todos, pela leitura atenciosa e apontamentos necessários para construir um texto
com contornos acadêmicos tão necessários para o entendimento dos anos de Ditadura Civil-
Militar (1964-85) sem, contudo, cair na sisudez e monotonia.
A todos os professores do Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e
Cultura: Dra. Amarílis Tapiassu, por ensinar-me a ser mais humilde e menos arrogante; Dr.
Paulo Nunes, por fazer-me perceber o texto para além das narrativas falocêntricas; Dra.
Cenira Sampaio e Dra. Analaura Corradi, por ambas ensinarem sobre os meios adequados
para estabelecer a comunicação; Dr. Erasmo Borges, pelos favorecimentos em perceber os
sentidos nos textos e contextos. Pelo estímulo às leituras necessárias para realizar uma escrita
acadêmica voltada para a interdisciplinaridade e pelas contribuições para a tessitura final
desta dissertação, muito obrigado.
Especialmente, pelo academicismo competente, agradeço à Dra. Socorro Cardoso,
pelas lições metodológicas nos percursos da pesquisa e escrita; Dra. Mariza Mokarzel, por
instigar afloramentos de sensibilidades na interpretação da arte; Dra. Ivania Neves, pelos
aspectos não ditos e interstícios dos discursos; Dra. Ivone Xavier e Dr. Agenor Sarraf, pelas
contribuições diretas para a pesquisa e escrita desta dissertação nas indicações de leituras
sobre identidades e domínio da pesquisa. Pelos méritos deste trabalho, muito obrigado.
A todos os colegas de classe agradeço pelas discussões e afloramentos de
perspicácias em temas de parco domínio. Especialmente a Welton Diego, Hellen Monarcha,
Marcos Valério e Orlando Simões, por contribuir incisivamente para a construção de minha
identidade com elementos mais transitivos com questões sensíveis, tirar proveito do estar
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conectado com a imediatez cibernética, mais crítico com o chão social de sujeitos outrora
invisibilizados e, principalmente, mais peirciano nas análises semióticas. E, como não poderia
deixar de ser, a Valdir Ribeiro, por ouvir e guardar desabafos, ansiedades e pequenezas de
espírito no final das aulas.
Aos porta-vozes da cultura amazônica, em versos e prosas, Nilson Chaves e Juracy
Siqueira, pelas informações tão prestimosas e necessárias para compreender o âmbito cultural
paraense nos anos de censura ditatorial. Pela atenção, cordialidade e empenho em ajudar-me a
mapear a tênue relação entre censura-cultura naqueles tempos, muito obrigado.
Aos (mais que) amigos Ivonete Dias da Silva e Carlos Alberto Pompeu Costa. Pelo
suporte para os primeiros passos desta caminhada iniciada em 2001. Pela acolhida em vossos
lares, carinhos de vossos familiares, conselhos de ordem pessoal/profissional. Pelo estímulo
emocional nas horas de fragilidades, muito obrigado.
Ao colega de ofício, Marivaldo Soeiro, pela decisiva influência em pesquisar a
temática da Ditadura Civil-Militar. Foi por ti, meu caro, que percebi a desgastante e
gratificante prática da pesquisa solitária junto a arquivos empoeirados. Pelo estímulo e pela
amizade, muito obrigado.
A aluna e amiga Lorena Alves, pelas transcrições das entrevistas para que este texto
pudesse ser gestado, por ouvir atentamente as divagações teóricas e pela disponibilidade em
ajudar-me a correr contra o tempo. Sem tua paciente ajuda não seria possível obter méritos
nas análises das memórias pesquisadas. Por tudo, muito obrigado.
Aos colegas de trabalho Filipe da Silva Santos, Gean Silva Costa e Jesanias
Calderaro, pela incomensurável dedicação nas horas de reflexão de escrita, impressão,
encadernação dos textos provisórios e versão final desta dissertação. Este trabalho não teria
êxitos sem a bem humorada ajuda de todos. Por tudo isto, muito obrigado.
Aos funcionários – ou verdinhos – do Programa, pela sóbria dedicação, bom humor e
disciplina no exercício de suas funções para que as aulas transcorressem sem problemas e a
produção do conhecimento fluísse em sala sem transtornos.
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Vivi ativamente e meus cabelos brancos demonstram isso; tenho coisas
importantes que fiz e vivi para poder recordar; as risadas que dei ficaram
gravadas nos sulcos profundos do meu rosto. Compreendi a importância da
liberdade que o envelhecimento traz ganhando assim o direito, como mulher,
inclusive, de ter opinião e até de estar errada.
(Dulce Rosa de Bacelar Rocque).
Sonho
Pervagam
pela minha mente
tênues ideias
do tempo
ido e vivido
- fugaz memória
do que fora (quem sabe?)
sem jamais ter sido.
(José Seráfico de Carvalho).
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SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS 10
NARRADORES E NARRATIVAS 26
I PARTE – “DAÍ PARA FRENTE TUDO FOI CORRERIA E
ATROPELO. OS SOLDADOS ENTRARAM QUEBRANDO TUDO”. 34
1.1 Pedro Galvão de Lima 35
1.2 Ruy Antonio Barata 41
1.3 João de Jesus Paes Loureiro 49
1.4 José da Silva Seráfico de Assis Carvalho 57
II PARTE – “NÃO ME PRENDERAM, NÃO APANHEI E NÃO MUDEI
DE IDEIA”. 65
2.1 Alfredo Oliveira 66
2.2 André Avelino da Costa Nunes 72
2.3 Cláudio de Souza Barradas 83
2.4 Dulce Rosa de Bacelar Rocque 92
III PARTE – TÁTICAS E SENTIMENTOS DE RESISTÊNCIAS 102
CONSIDERAÇÕES FINAIS 145
DESCRIÇÃO DAS FONTES 151
Entrevistas
Pedro Galvão de Lima
Ruy Antonio Barata
João de Jesus Paes Loureiro
José da Silva Seráfico de Assis Carvalho
Alfredo Oliveira
Cláudio de Souza Barradas
Dulce Rosa de Bacelar Rocque
151
Jornais 151
Referências 152
Sites eletrônicos 155
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A feitura desta investigação está inserida ao rol de minhas necessidades políticas a
partir da particular experiência de ler “1964. Relatos subversivos: os estudantes e o Golpe
Civil-Militar no Pará”. Era um lançamento inovador para compreender a história da ditadura
no Pará sob a perspectiva das memórias de um grupo de estudantes à altura do Golpe Civil-
Militar. O texto bem escrito de Pedro Galvão naquela edição foi, provavelmente, o que mais
vincou meus juízos de valor.
Após aquela leitura minhas posturas políticas acerca da ditadura militar foram
abruptamente modificadas. Passei a frequentar fóruns de discussões via internet, com a
presença de inúmeros personagens que se afirmavam ali como protagonistas e antagonistas do
Golpe Civil-Militar e de todo o processo ditatorial. Busquei obras especializadas em sebos e
bibliotecas que pudessem nutrir minhas inquietações políticas e acadêmicas. Sem perceber, já
havia sido fisgado pela temática e a saída, mesmo que não a desejasse, já me era impossível.
Naquela ocasião, outras produções lançadas ao mercado editorial no mesmo ano
traziam à tona a temática da Ditadura Civil-Militar em esfera nacional. Dentre os principais,
destaco os trabalhos de Kushnir (2004), Fico (2004), Reis (2004), Motta (2004) e Ridenti
(2004). Por ser um ano emblemático para a temática ditatorial por conta dos 40 anos de Golpe
Civil-Militar, estas produções semearam perspicácias para pesquisas enviesadas com o
mesmo teor. Assim me percebi convidado a pesquisar mais sobre a seara. Entretanto, entre
todas aquelas obras faltava produções que melhor contemplassem a realidade amazônica.
Elio Gaspari, com dupla edição intitulada “A ditadura escancarada” e “A ditadura
envergonhada”, ambas em 2002, davam subsídio para compreender aquela época dentro de
novas perspectivas para alem do enquadramento meramente político ou econômico. Seu olhar
se direcionava para analises envolvendo sentimentos, em especial o uso intransigente da
violência e vergonha latente daqueles que perpetraram abusos de poder, respectivamente.
“O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004)”, lançado também em
2004, e organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta, trouxe
talvez o maior fôlego para a pesquisa sub judice dos Estudos Culturais. As análises lançaram
mão de fontes pouco usuais para a tradição historiográfica, tais como de charges, músicas,
depoimentos, jornais. As várias possibilidades de encenar a memória (REIS: 2004) e as
múltiplas temporalidades na escrita sobre o tema da Ditadura Civil-Militar (DELGADO:
2004), caíram como luvas para encarnar o propósito deste trabalho.
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Marcelo Ridenti, um dos autores de “O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois
(1964-2004)”, em 1993, havia lançado “O fantasma da revolução brasileira”, em alusão às
derrotas acumuladas pelas esquerdas brasileiras. Desde as músicas de protesto capitaneadas
por Chico Buarque e Caetano Veloso, até a Guerrilha do Araguaia, com as inúmeras mortes
no interior do Brasil, o autor discorreu sobre acertos, avanços e retrocessos da luta engajada
contra a Ditadura Civil-Militar. Entretanto, era o ano de lançamento daquele trabalho era
1993. A ditadura havia capitulado recentemente (1985), com eleições diretas para presidente
somente em 1989. Ou seja, sua pesquisa estava impregnada por ranços imediatistas que
exigiam mais pressa nas mudanças sociais e políticas do país. Este trabalho deve ser situado
no tempo-espaço para ser analisado.
Ao iniciar a pesquisa debrucei-me sobre a literatura especializada na Amazônia
Paraense. Somente naquele momento percebi o quanto a temática da Ditadura Militar em
nossa região ainda carece de maiores investimentos acadêmicos. Em honrosa exceção figura
“Chão de Promessas”, de Pere Petit (2003). É a principal obra sobre as trajetórias em
confronto com lutas pela terra, redemocratização e rumos políticos da Amazônia nos tempos
de exceção. Sua análise recai sobre os principais eventos governamentais causadores de
mudanças no quadro econômico, político e social da região desde os tempos do boom da
borracha até a Nova República (1995).
Outro trabalho é a dissertação de mestrado de Tony Leão da Costa intitulada “Música
do norte: intelectuais, artistas populares, tradição e modernidade na formação da “MPB” no
Pará (anos 1960 e 1970)”, produzida no do Programa de Mestrado em História Social da
Amazônia, da Universidade Federal do Pará, em 2008. A pesquisa tangencia a temática
ditatorial de modo bastante engenhoso. Sob o artifício de compreender os percursos da música
produzida no período naquela década, Costa mergulha em censuras, decretos e artifícios
institucionais autoritários. Tem também o mérito de recorrer à História Oral enquanto método
interpretativo nas humanidades inovando na produção sobre a ditadura militar na Amazônia
Paraense ao apresentar vozes de “intelectuais” e “artistas musicais” antes marginalizados pela
produção historiográfica.
Carlos Eduardo dos Santos e Santos, Mestre em História pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará, em 2011, com
o trabalho intitulado “Do Ponto de Vista da Caserna: Memórias do Cotidiano e Experiências
de Militares da Aeronáutica em Belém Durante o Regime Militar (1964-1985)”, também
adentra no rol de produções sobre a temática ditatorial. O trabalho prestigia atores sociais que,
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ao longo do processo de arbitrariedades, foram os únicos a falar: os próprios militares. Por
outro lado, tem o mérito de recorrer aos contemporâneos do período em tela.
Raquel Cunha, em Trabalho de Conclusão de Curso, enveredou por temática bastante
parecida com esta Dissertação. Com o título “Um olhar à cidade de Belém sob o Golpe de
1964: paisagens e memórias de estudantes e artistas”, de 2008, cinco personagens da época do
Golpe Civil-Militar foram entrevistados com enfoque antropológico. As pistas daquela
pesquisa apontaram para caminhos que busquei desvendar. Por exemplo, Paes Loureiro e o
padre teatrólogo Cláudio Barradas, entrevistados daquele trabalho, também estão aqui. Ainda
carrega o mérito de ser o primeiro trabalho a prestigiar a narrativa feminina naqueles tempos:
a professora Violeta Loureiro, na época do Golpe Civil-Militar era namorada do professor
Paes Loureiro.
De posse destas leituras, senti a necessidade de visibilizar experiências de outros
sujeitos capazes de produzir maior entendimento acerca do cotidiano conflituoso vivenciado
nos tempos de exceção na Amazônia Paraense. Optei em dar ouvidos aos testemunhos de
“sujeitos culturais” como porta-vozes daquele período. Este esboço foi produzido com o
auxílio de análises em jornais, revistas, livros, vídeos e entrevistas cujo cerne era os tempos
de exceção provocados pelo golpe e consequente Ditadura Civil-Militar iniciada em 1964.
Neste sentido, “1964. Relatos subversivos”, por ser uma produção gestada a partir
das memórias de seus autores, foi a obra seminal para a pesquisa e, consequentemente, para a
urdidura desta escrita. Justamente por tratar-se de um livro de narrativas experimentadas em
tempos traumáticos, cujo cerne eram os jovens estudantes à época do Golpe Civil-Militar,
notei ser um belo mote para iniciar a escrita.
A partir disto, decidi que o rol de entrevistados para a feitura desta dissertação seria
composta por aqueles memorialistas. Assim o fiz por tratar-se de um ato de justiça com minha
própria consciência, em especial por lembrar que inúmeras passagens daquelas memórias me
levam às lágrimas sempre que folheava/folheio suas páginas. Pelo falecimento de um,
impossibilidade de comunicação e distância de residências de outros, novos narradores foram
incorporados. Abandonei a ideia de utilizar somente os memorialistas de “1964. Relatos
subversivos”. Desta forma, ficaram oito narradores para compor a argumentação a seguir. São
eles: Cláudio Barradas, José Seráfico de Carvalho, André Costa Nunes, Dulce Rosa, Pedro
Galvão de Lima, Alfredo Oliveira, Paes Loureiro e Ruy Antonio Barata.
Esse aspecto talvez já antecipe o teor desta dissertação juntamente com o título – No
Crepúsculo: Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense
(1964-85). O incipiente mergulho no conjunto de documentos orais e escritos permitiu-me
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acionar zonas de sensibilidades adormecidas e despertar o desejo de luta contra atitudes e
posturas tidas como desprezíveis na condição humana. A temática da Ditadura Militar no
Brasil e, especialmente, na Amazônia Paraense, fez-me compreender o quão são caros os
estudos de temas sobre as lutas em torno do poder, liberdade, direitos humanos. Aqui reside a
contribuição desta dissertação para compreender as teias do Golpe Civil-Militar na Amazônia
Paraense.
No objetivo central desta dissertação surgiram três pontos específicos intimamente
imbricados. São nós górdios, cujos desates são imprescindíveis para os contornos finais deste
trabalho. Chegaram a estar nas previsões do projeto inicial da pesquisa, mas alguns foram
abandonados pela insuficiência de informações, outros se fortaleceram ao longo da trajetória
de leituras e pesquisa de campo. Adiante os detalharei.
Primeiro, é extremamente necessário reconhecer a impossibilidade de analisar o
cotidiano conflituoso da Amazônia Paraense sem antes selecionar pessoas representativas da
cultura paraense – denominados de “sujeitos culturais”, como adiante explanarei melhor sobre
esta categoria.
Após seleção criteriosa dos entrevistados, foi possível analisar as experiências
narradas por estes sujeitos culturais e, como consequência, desnudar o seu cotidiano em
relação ao regime à época do Golpe Civil-Militar. Junto a isso, mapeei o conjunto de
linguagens por eles construídas para lidar com os mecanismos de censura/opressão.
Segundo, feita a seleção dos sujeitos culturais a terem suas memórias analisadas,
pude interpretar o imaginário por eles produzido nas interfaces e tensões com o imaginário
hegemônico no contexto da ditadura na Amazônia Paraense.1 Ou seja, é preciso considerar a
heterogeneidade dos sujeitos selecionados para então perceber as tensões se construindo por
motivações diferenciadas para cada um deles. Implica afirmar as tensões, seu lugar social e
situações vividas com sensibilidades diferenciadas. Desta forma, é mister captar as estratégias
e diferentes mecanismos de silenciamentos, opressão, censura implementados pelo poder
militar na região amazônica para situar no tempo-espaço os sujeitos pesquisados.
A metodologia da História Oral foi privilegiada para explorar as narrativas
produzidas no corpo-a-corpo da pesquisa. Assim constatei censuras, perseguições políticas e
prisões como responsáveis por criar outras perspectivas para as inúmeras paisagens da capital
paraense. Paisagens que hoje remetem a um passado doloroso para Paes Loureiro, Pedro
Galvão de Lima e José Seráfico de Carvalho. Paralelamente, o poder público – corroborado
1 Sobre estudos do imaginário social no campo histórico, há uma significativa bibliografia. Entre eles é válido
citar: (PANTLAGEAN, 1993; BACZKO, 1985).
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por setores da academia responsável pela produção/discussão do conhecimento – das décadas
posteriores ao Golpe Civil-Militar construiu significados turísticos ou com enfoque histórico
sem ênfase para o período ditatorial que assolou o Brasil por 20 anos.
Exemplo visível desse processo está na ressignificação de alguns patrimônios que
compõem o chamado Complexo Feliz Lusitânia. Especialmente o espaço hoje chamado “Casa
das Onze Janelas” que abriga o “Boteco das Onze” e um espaço de Exposição Permanente de
Arte Modernista Amazônica.2 Em 1964, aquele lugar foi a Quinta Companhia de Guardas
com reuniões do CMA (Comando Militar da Amazônia), além de calabouço para aprisionar e
deixar incomunicáveis os jovens estudantes acusados de “subversão”. O mesmo espaço foi
cenário das angústias do então Deputado Estadual Benedito Monteiro, comunista convicto,
local de prisão e torturas mentais. 3
Ou seja, junto aos mecanismos de opressão e censura do período da ditadura estão o
esquecimento e a negligência historiográfica causada pelo próprio poder público. No corpo
desta dissertação tangenciarei os meandros desta relação, articulando Ditadura Civil-Militar e
memórias. Com isso, pretende contribuir para que se fortaleçam as estratégias de divulgação
de memórias de dor para que o passado não se repita. A esse respeito é necessário mencionar
Beatriz Sarlo, quando debruçada sobre as memórias do holocausto, assinala: “Nunca se pode
saber tudo, nem nunca podemos nos resignar a um saber parcial e ao mesmo tempo inevitável
(como o de toda prática) e inimigo da memória” (1997, p. 42).
Com a História Oral, apreendi memórias sobre a temática da ditadura militar na
Amazônia Paraense, daí os caminhos da pesquisa tornaram-se menos herméticos. Como
vislumbrei acima, essa metodologia não é apenas uma técnica de entrevistas preocupada com
informações dadas pelos depoentes. É também o campo de significações de lembranças,
silêncios ou esquecimentos gestados no momento da entrevista.
2 A Quinta Companhia de Guardas funcionava onde hoje abriga a Casa das 11 Janelas e compõe o Complexo
Turístico Feliz Lusitânia. A Casa foi construída no século 18 como residência de Domingos da Costa Bacelar,
proprietário de engenho de açúcar. Em 1768, a casa foi adquirida pelo governo do Grão-Pará para abrigar o
Hospital Real. O projeto de adaptação é do arquiteto bolonhês José Antônio Landi. O hospital funcionou até
1870 e depois a casa passou a ter várias funções militares. Em 2001, o Governo do Estado do Pará assinou com o
Exército Brasileiro um convênio, alienando os terrenos da Casa das Onze Janelas e do Forte do Presépio em
favor do Estado. A Casa, como todo espaço inserido no processo histórico, serviu a diversas finalidade e funções
no decorrer dos tempos. Assim, ao refletir as atitudes do Poder Público sobre tal Patrimônio há clareza da
multiplicidade das dimensões que o mesmo assume na paisagem urbana e nas relações sociopolíticas nas quais
se insere. Apesar disto, penso como dever do Estado criar mecanismos de informação para que a sociedade fique
à par das historicidades e significados da paisagem e patrimônios que lhe pertencem. Inspirado em:
http://migre.me/6ab8U, acessado em 10.09.11 – às 15h22.
3 Ver Monteiro (1993). Na obra “Transtempo”, Monteiro argumenta sobre dúvidas, perguntas e incertezas
gestadas a partir de um completo desconhecimento do que acontecia durante o tempo que estava incomunicável
na prisão. Dedica inclusive um capítulo sobre esta temática pp. 64-70.
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Tratei de por em prática ensinamentos da sabedoria dos que usam há largo tempo
essa metodologia, assim como o bom senso do saber ouvir. Destaco Alessandro Portelli
(1993; 1996; 1997a; 1997b; 2010), Paul Thompson (2002) e Alistair Thomson (1997, 2001)
como intelectuais desta vertente teórico-metodológica, conforme assinala Khoury (2010),
utilizados neste texto dissertativo. E por instigação dessas leituras, fiz a seguinte opção
metodológica: o esquema de perguntas produzido para cada entrevistado acabou não sendo
executado conforme o planejamento inicial; foi a partir da fala dos entrevistados que surgiam
as novas perguntas, sendo que em vários momentos limitei-me a sorrir, franzir a testa,
balançar a cabeça... Sempre sugerindo para o entrevistado seguir a narrativa sem sentir-se
preso a uma camisa de forças de um roteiro pré-estabelecido.
Quando foi possível uma segunda entrevista o depoente era rememorado dos pontos
tocados na entrevista anterior. Alguns aspectos que me interessavam maior aprofundamento
eram colocados no início da conversa para manter-me fiel ao ritmo do primeiro encontro.
Pretendi com isso não quebrar o ritmo das narrativas.
Pela experiência de pesquisa, acompanhamento, alerta e numerosas contribuições de
meu co-orientador, e boa dose de sensibilidade, acredito que esta técnica foi sumamente
produtiva para esta tecedura.
Para desenhar reflexões e provocar os trechos pinçados das entrevistas, jornais,
autores, a opção recaiu sobre a teoria interpretativa dos Estudos Culturais, em especial autores
como Stuart Hall (2003, 2006), Dennys Cuche (2002), Edouard Glissant (2005), Homi
Bhabha (2007), além das pesquisas produzidas por Pacheco (2009; 2009b; 2011) sobre a
Amazônia Marajoara em conexões com esta teoria interpretativa. Somando-se a estes,
Michael de Certeau (1997), contribuiu decisivamente na construção de significados das
práticas dos sujeitos pesquisados.
Ainda por sugestão dos Estudos Culturais, a pesquisa caminhou abstendo-se
propositadamente dos tradicionais manuais de História Política do Pará. Tal opção, longe de
negligenciar a importância de tais compêndios, pretendeu narrar experiências de outros
agentes históricos como forma de obter perspectivas inéditas acerca do cotidiano amazônico à
época do Golpe Civil-Militar.
O uso da História Oral está nesta dissertação não só por questões metodológicas, mas
por fazer emergir memórias há muito em “zonas de silêncio”.4 Logo, a escolha da História
4 Expressão arquitetada por Pacheco (2010) a partir da audição de relatos de mulheres marcadas em suas
infâncias por abusos sexuais que, por vergonha, autopreservação, luta por sustento, não denunciaram seus
algozes. Por essa razão, as memórias dessas experiências dolorosas não eram compartilhadas. A impossibilidade
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Oral é uma opção política para justiça historiográfica ao propor sujeitos outrora sequer
mencionados pela escrita acadêmica. Há, contudo, uma necessária observação acerca da
relação entre sujeitos e zonas de silêncio. Os personagens contemplados nesta dissertação não
se submeteram à penumbra da escrita histórica por decisão própria. Se a produção acadêmica
não os vinculou à construção de astúcias de resistências durante o processo ditatorial, isso se
deve tão somente ao tradicionalismo historiográfico de não perceber novos sujeitos nas tramas
históricas. No caso dos atores aqui pesquisados são evidentes as estacas fincadas pelos
próprios para delimitar seus raios de ação. Produziram seguidamente ao longo dos anos
ditatoriais por meio de peças teatrais, músicas, poemas, artigos, cartas, panfletos, reuniões,
artigos e ações de repúdio aos autoritarismos. As táticas de sublevação os marcavam ainda
mais como subversivos e, portanto, construíram suas identidades sem que isso fosse
necessariamente algo a ser escondido. Afinal, como cheguei até eles se não fosse pelos
estardalhaços produzidos naqueles tempos?
Metodologicamente, esta escrita dissertativa, respondendo aos anseios deste
Mestrado multidisciplinar em Comunicação, Linguagens e Cultura, opções analíticas foram
construídas junto com a orientação, mas sempre permitindo a circulação de conceitos e
discussões cujos focos estavam para além das orientações sob a esteira dos Estudos Culturais.
Alargar os horizontes desta urdidura sem posturas monolíticas foi a tônica do trabalho.
Doravante, apresento as categorias construídas a partir desta postura. Estarão no corpo da
escrita sempre de modo relacional.
A categoria identidade, por exemplo, receberá o debate a partir de Hall (2003, 2006)
e Cuche (2002). Isso porque ambos discutem variadas possibilidades de compreensão do
fazer-se e trajetórias de homens e mulheres na contemporaneidade; e ao longo da pesquisa
constatei que sujeitos contíguos ao Golpe Civil-Militar fizeram questão de forjar elementos
constitutivos de suas identidades, ao mesmo tempo, sujeitos externos atribuíram elementos
outros para representar essas identidades. Isso ocorre porque esses agentes históricos operam
suas identidades sociais de acordo com suas atuações artísticas ou profissionais, mas sem
olvidar outros papéis construídos em igrejas, famílias, esquinas, cafés, círculos de amizade,
etc..
de retransmissão desses saberes a outras gerações ou a outros grupos sociais dá-se pelo simples fato de que
existem mecanismos de silenciamento e coerção por parte de grupos hegemônicos. Então, tais memórias são
produtos de relações de poder entre sujeitos que mediram força em algum tempo e lugar. Não estão,
necessariamente, no esquecimento. Esperam o momento oportuno para emergir, fazer-se ouvir e revelar-se ao
palco de ações protagonistas de histórias interditas, mas vividas. Como? Simplesmente permitindo-se narrar o
que viveram.
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Diante deste quadro, para Hall e Cuche o conceito de identidade é controverso,
antagônico, movediço, efêmero, flexível, móvel... Adjetivos necessários para dar conta do
multifacetado universo de significações que constituem o estar no mundo dos sujeitos
culturais valorizados pela investigação. Cuche (2002), ao abordar as relações e diferenças
entre identidade e cultura, diz que:
Não se pode pura e simplesmente confundir as noções de cultura e de
identidade cultural ainda que as duas tenham uma grande ligação. Em última
instância, a cultura pode existir sem consciência de identidade, ao passo que
as estratégias de identidade podem manipular e até modificar uma cultura
que não terá então quase nada em comum com o que ela era anteriormente.
A cultura depende em grande parte de processos inconscientes. A identidade
remete a uma norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em
oposições simbólicas. (Cuche, 2002, p. 176).
Assim, para Cuche (2002) as categorias existem separadamente, mas estão
vinculadas. Isso me instigou a pensar cultura e identidade amazônicas como fenômenos em
constante dinamismo. As identidades amazônicas, em especial a dos sujeitos culturais aqui
pesquisados, estão carregadas de “oposições simbólicas” que, por sua vez, causam “processos
inconscientes” junto à cultura da região. Assim como há oposição, a categoria produz laços de
pertencimento. Ao instigar esta reflexão, o texto de Cuche se fez também imprescindível para
colaborar e corroborar aspectos da discussão que pretendo travar.
Isso foi materializado nesta dissertação com a narrativa do teatrólogo Cláudio
Barradas (que hoje exerce funções de sacerdócio – é padre da Paróquia Cristo Ressuscitado,
no bairro da Marambaia, em Belém). As atividades de teatrólogo e padre teatrólogo Cláudio
Barradas, pela dicotomia em si destes papeis, provocam em Barradas identidades movediças.
Forçando-o a assumir papeis nem sempre acionados automaticamente, como se fossem uma
máquina programável. Por exemplo, o próprio Cláudio Barradas ao narrar sobre o fato de ser
chamado de “contraditório” por um repórter da RBA (Rede Brasil Amazônica de Televisão),
contou o seguinte episódio:
(...) O cabra veio me entrevistar e me pergunta: “Camisinha?” Aí eu falo
assim: “Queres a resposta do padre ou do ser humano? Se for do ser humano
eu digo: Usa. Se for do padre eu digo: Não”. Porque o padre é só soldado
raso, soldado não pensa, só obedece. Aí o cara disse: “Tu és contraditório”.
Eu disse: “É. Sou. Mas contraditória é a vida” (Cláudio Barradas, entrevista
em 13 e 23 de maio de 2011).
A fala de Barradas retoma Hall (2006) a respeito das contradições envolvendo a
categoria identidade, em especial o “jogo das identidades”. Significa dizer que Barradas, ao
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sugerir o uso de preservativos no momento da relação sexual, assume papel de cidadão
consciente e preocupado com os riscos em contrair doenças ou evitar gravidez, caso não haja
prevenção e cuidados com o corpo. E, ao migrar sua postura para o papel de Padre da Igreja
Católica Apostólica Romana, tem ciência que esta instituição não autoriza práticas sexuais
fora do matrimônio, cuja finalidade não seja a reprodução; sendo assim, não cabe a
preocupação com prevenção de gravidez ou doenças, portanto o uso de preservativo é
cabalmente proibido. Neste sentido, o “jogo das identidades” descrito pelas reflexões de Hall
(2006) é encenado conscientemente por Barradas. O perfeito controle e aquiescência das suas
identidades permitem imersões e emersões sempre que lhe é conveniente. A movimentação
das identidades do padre-cidadão frente às vivências cotidianas é negociável e sempre
relacional.
Claudio Barradas fora selecionado para esta dissertação pela sua atuação junto ao
teatro no período pesquisado. Ou seja, trata-se de um sujeito com forte influência cênica. Com
a entrevista, revelava-se um sujeito em trânsitos identitários que, indubitavelmente, estarão no
cerne das análises desta pesquisa.
Para Hall (2003), a identidade está pontilhada por uma íntima relação com a cultura
popular. Como discuto e percebo os sujeitos culturais em permanente contato com a
construção da “cultura popular” na Amazônia Paraense, notei dificuldades para iniciar essa
discussão. Hall também já advertia sobre tal dificuldade ao afirmar: “tenho quase tanta
dificuldade com “popular” quanto tenho com “cultura”. Quando colocamos os dois termos
juntos, as dificuldades podem se tornar tremendas” (Hall, 2003, p. 231).
Ao assumir o poder em 1964, os militares provocaram no Pará – como em todo o
Brasil – um palco de intervenções na cultura popular para controlar o imaginário da
população. Essa atitude de controlar corações e mentes por parte de governos despóticos,
aliás, é facilmente constatada em outros momentos da história recente do Brasil.5 No caso
paraense, censores passaram a compor um cotidiano de fiscalização e controle de teatrólogos,
músicos, poetas. Esses censores, sob o argumento da ordem, moral e bons costumes não
permitiam a publicação ou veiculação de ideias subversivas ao regime. Hall, mesmo
analisando relações entre cultura e poder na Europa, contribui para reflexões em terras
amazônicas.
5 Ver a fundação e objetivos do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939, no governo
golpista de Getúlio Vargas. A Fundação Getúlio Vargas, em seu Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea, traz importantes dados acerca das metodologias utilizadas pelo governos varguista para atingir
seus objetivos populistas juntos às massas. Disponível em http://migre.me/90WZG - acessado em 12 de abril de
2012, às 15h22min.
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De um jeito ou de outro, o “povo” é frequentemente o objeto da “reforma”:
geralmente para seu próprio bem, é lógico – “e na melhor das intenções”.
Atualmente, compreendemos a luta e a resistência bem melhor do que a
reforma e a transformação (Hall, 2003, p. 232).
Esse enunciado acima permite refletir sobre o fato de que o papel dos censores,
respondendo a um projeto de poder dos governos militares, tinha a nítida intenção de “um
longo processo de ‘moralização’ das classes trabalhadoras, de ‘desmoralização’ dos pobres e
de ‘reeducação’ do povo” (Idem, p. 232). Ora, sob o discurso de “reeducação do povo”
estavam os interesses governamentais de silenciar sujeitos tidos como subversivos.
Isso, claro, não implica numa passividade por parte do povo diante de tal projeto de
poder. Afinal de contas, para Hall (Ibidem) a cultura “é o terreno sobre qual as transformações
são operadas” (Ibidem, p. 232). O teatrólogo Cláudio Barradas, ao narrar um exemplo da
forma como lidava com a censura, com risos e tom de sarcasmo, narra o seguinte:
Aí, depois nós viemos, uma peça política, um texto muito bom: “A ameaça”.
Passa-se no final na Cabanagem. Um sargento muito doido que anda pelo
interior caçando cabano. Aí chega a uma barraca onde só tem uma velha e a
filha dela. Ele insiste que elas esconderam cabano. Massacram a velha,
massacram a menina. No final eles matam a moça. Aí fica só a velha, a
moça... Eu faço a velha ficar cantando “liberdade, liberdade, abre as asas
sobre nós”. Um espetáculo lindo. Tá, tá, tá... (Claudio Barradas, entrevista
em maio de 2011).
O padre teatrólogo narra o episódio com enorme satisfação, euforia e,
principalmente, sarcasmo para denunciar sua sagacidade, de um lado; e falta de percepção das
ironias tramadas, da parte dos censores que o acompanhavam. Ao narrar especificamente este
fato, Barradas dá ênfase à liberdade sendo mostrada como resultado do embate cultural e
político entre o público massacrado e os sargentos muito doidos que massacravam jovens
meninas. É uma metáfora, sem dúvidas, para denunciar a situação vivida naquele momento no
Brasil. Sobre esta questão levantada pelo padre teatrólogo, Hall (2003) já advertia sobre esse
palco de conflitos e sobre o fato de que classes sociais e poder dominante estão imbricados
pela relação mútua nas lutas culturais. Fenômeno das lutas, aliás, que em momento algum
deixou de movimentar-se no período pesquisado.
Não existe um estrato “autêntico”, autônomo e isolado de cultura da classe
trabalhadora. A maioria das formas de recreação popular mais imediatas, por
exemplo, estão saturadas de imperialismo popular. Poderíamos esperar outra
coisa? (Hall, 2003, p. 234).
29
Ao articular Hall com a narrativa de Barradas, observo como lançou mão de seu
instrumento cultural – o teatro – para lidar com os mecanismos da censura. Os duplos
sentidos, os jogos com as palavras nas peças são apenas um exemplo de táticas de resistência.
Pelas entrevistas concedidas, descobri que além de usar peças para “dar recados” ao regime
ou ao público, Barradas também inseria palavras de baixo calão para escamotear suas
verdadeiras intenções políticas. Quando o censor ouvia tais palavras se concentrava nelas e
deixava passar as demais – justamente o que interessava aos interesses políticos de Barradas.
Criou táticas múltiplas para burlar a opressão.
Diante das táticas de resistência tão comuns em todos os sujeitos culturais desta
pesquisa, Michael de Certeau (1997) foi imprescindível para dar conta dessa análise. Por meio
de bilhetes, anotações em pés de páginas, palavrões em cenas teatrais, duplos sentidos em
versos e trovas, os dissidentes ao regime ditatorial conseguiram imprimir críticas à postura
ditatorial. Estes sujeitos, de certa forma sentindo-se agredidos pelo estado de censura e
violência, resistiam e criaram táticas algumas vezes sutis, outras vezes atabalhoadas,
consciente ou inconscientes. Surtindo efeitos – ou não – junto a outros grupos, os sujeitos
culturais conseguiram criar brechas dentro do regime de exceção. O fato é que diversas táticas
de resistência foram urdidas e postas em prática. Estarão do início ao fim desta dissertação e
Certeau é o teórico que melhor se adéqua para sustentar essas reflexões.
Outras duas categorias de análise estão presentes neste texto para discutir as
memórias em tempos de censura. Ambas foram cunhadas no decorrer das leituras e
investigação de campo. Obviamente, ao final da dissertação poderão ser questionadas, pois
foram gestadas sob o calor da empiria da pesquisa, mas certamente apresentam contribuição
para o debate sobre a ditadura em solo amazônico. São elas, sujeitos culturais e memórias de
dor.
Sujeitos culturais é a categoria utilizada para denominar agentes contemporâneos ao
Golpe Civil-Militar que de alguma forma criaram táticas de resistência ao regime.
Inicialmente, esse termo não estava prescrito no projeto de pesquisa ou nas sugestões da
orientação. Esses sujeitos, inicialmente, eram denominados como intelectuais que interferiram
no processo político e cultural da ditadura, cumprindo o papel de dissidentes ao regime. No
entanto, a cada momento em que as entrevistas iniciavam e a expressão era mencionada
rapidamente era rechaçada pelos entrevistados.
Assim ocorreu com os entrevistados Paes Loureiro, Pedro Galvão de Lima e Cláudio
Barradas. Entendi essa recusa como um problema a tornar-se perigoso para o êxito do
30
trabalho. Seria difícil sustentar uma categoria de análise em que os sujeitos sociais
sinceramente não se reconheciam nela ou, por modéstia, alegavam não se reconhecer.
Com inspirações em Marilena Chauí a partir de uma conferência (que inspirou a
publicação de um texto entre jan./abr. de 1995) na USP para os funcionários públicos da
cidade de São Paulo, em dezembro de 1994. Naquele ano, Chauí atuava na gestão municipal e
estava envolta na mudança de mentalidade dos servidores para a invenção de uma nova
cultura política. Queria criar ações que permitissem aos funcionários públicos de São Paulo se
notar como servidores da sociedade, detentores de poder, intervenção e atitudes que, ao serem
postas em prática, estariam beneficiando a população paulistana. Não era isto que acontecia
na postura desses servidores. Agiam como detentores do estado e, portanto, livres de
quaisquer tipos de fiscalização.
Ora, a proposta de Chauí para os funcionários públicos de São Paulo se aproximava
da maneira que eu concebia os sujeitos da pesquisa no contexto amazônico. Daí veio a
inspiração para compreender os entrevistados selecionados para esta pesquisa como sujeitos
que punham suas artes, engajamentos, posturas ideológicas e táticas a serviço de um bem
coletivo.
Portanto, neste texto, sujeitos culturais são todos aqueles que de alguma forma
utilizaram o teatro, a poesia, a trova, a música, a literatura, o discurso político, ou quaisquer
outras linguagens possíveis de estarem a serviço da sociedade, numa atitude fundada não na
subserviência, mas na doação e postura de igualdade entre os cidadãos. E por agirem às
margens do poder ditatorial urdindo táticas diversas para burlar a ditadura, foram tachados de
subversivos, perigosos, comunistas, perigosos, vermelhos.6 Obviamente, com o passar das
últimas quatro décadas, sofreram transformações em suas identidades. Naquela altura, eram
estudantes recém-formados ou formandos, cuja perspectiva de futuro estava atravessada pelas
ações ditatoriais do novo regime. Cada um ruminou o passado conforme o repertório
particular e hoje são atores sociais bem diferentes daquilo que foram um dia.
Ao retomar o diálogo com os sujeitos da pesquisa houve ainda a rechaça à categoria
analítica denominada intelectual. Todos foram enfáticos em afirmar-se como “profissionais”
nas áreas em que atuam no mercado de trabalho. A postura diante do termo sujeitos culturais
foi de maior aceitabilidade quando eu comentava a maior abrangência desta nomenclatura.
Assim, optei pelo uso desta expressão por ter sido testada e aprovada na fase das entrevistas.
6 Preocupados com os sentidos que o esquecimento sobre os difíceis tempos de ditadura militar na Amazônia
Paraense poderiam produzir na atualidade, alguns sujeitos culturais, registraram em livros de memórias
publicados, percepções das experiências do passado pelos óculos do presente. Entre essas publicações, destacam-
se LOUREIRO (2011); NETTO (2003); OLIVEIRA (2010); SERÁFICO (2007, 2010).
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As memórias de dor é outra categoria cunhada a partir do calor das entrevistas.
Todos, sem exceção, mesmo com sorrisos ou queixos erguidos pelo orgulho como lidaram
com os tempos de autoritarismos, em vários momentos elevaram o tom da voz, cruzaram os
braços, franziram as testas, enrubesceram os rostos. Performances que denunciavam de
alguma maneira as memórias dolorosas por terem vivenciado momentos de medo, tensão,
raiva. Por enquanto, alguns exemplos: em 1964, durante os primeiros dias do Golpe Civil-
Militar, Paes Loureiro foi preso, torturado física e psicologicamente, transferido para prisão
no Rio de Janeiro sob risco de ser “suicidado” pelo DOPS (Delegacia de Ordem Política e
Social), que, como diz o nome, teoricamente teria única função de estabelecer e manter a
ordem, no entanto agia como instrumento de coerção e violência do Estado contra os
opositores do regime.
Na narrativa de Loureiro, há um expresso de ressentimento para com o regime e toda
a repercussão que isso causou à sua trajetória como poeta. O mesmo ocorre com as narrativas
do então teatrólogo Cláudio Barradas e de Pedro Galvão, formado no curso de Direito no
mesmo ano de 1964. Ambos trazem inscritas em suas trajetórias de vida as marcas nada
indeléveis das perseguições da ditadura em terras amazônicas. O primeiro foi várias vezes
censurado em suas peças, chegando a sofrer perseguição no ambiente de trabalho passando
dias sem que colega algum lhe dirigisse a palavra. O segundo foi preso sem nenhuma
alegação para sua prisão. Aflito pela falta de acusação formal, foi libertado pelo fato de
pertencer à reserva do Exército. Em 2004, passados 40 anos de sua prisão, Pedro Galvão foi
responsável direto pela seleção de depoentes e organização de textos para um livro intitulado
“1964: Relatos Subversivos – os estudantes e o Golpe Civil-Militar no Pará”. A ideia e
materialização do livro em si já demonstram um passado ainda presente na vida deste sujeito,
provavelmente com marcas de um ressentimento recalcado, como já dizia Nietsche
(ANSART, 2004).
Quanto ao problema inicial construído para esta pesquisa de mestrado, surgiram
questões para balizar a investigação. São elas: Como os tempos de censura foram
experenciados e interpretados pelos sujeitos culturais dissidentes ao governo militar? De que
maneira as múltiplas memórias e fazeres sociais se ressignificaram com as práticas dos grupos
dominantes? Quais foram/são as linguagens utilizadas pelos sujeitos sociais que
compartilhavam (ou não) dos tempos de silêncio?
Diante dessa problemática que iluminou a pesquisa de campo e o diálogo com o
campo teórico-metodológico, o texto dissertativo está dividido em três partes. Na I Parte,
intitulada “DAÍ PARA FRENTE TUDO FOI CORRERIA E ATROPELO. OS
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SOLDADOS ENTRARAM QUEBRANDO TUDO”, apresento Pedro Galvão de Lima,
Ruy Antonio Barata, João de Jesus Paes Loureiro e José da Silva Seráfico de Assis Carvalho.
Compõem esta etapa da escrita por serem aqueles sujeitos que vivenciaram – e narraram – a
nevrálgica experiência do cárcere. Seja na Quinta Companhia de Guardas ou no 2º Batalhão
da Polícia Militar, na Rua Gaspar Viana ou em São Paulo, caso de Ruy Antonio Barata, ou no
Rio de Janeiro, caso de Paes Loureiro. Os primeiros dias do abril de 1964 foram repletos de
prisões como medidas temerosas de resistência à “revolução” em curso.
Em geral, as detenções não passaram de 59 dias, prazo teoricamente “legal” para
aprisionar sem apresentar justificativas cabíveis. Nos primeiros dias daquele abril, as prisões
tinham caráter preventivo contra eventuais perigos comunistas que pudessem estar rondando a
capital paraense. E o foco era o movimento estudantil universitário. Assim se justifica a
invasão da UAP e consequente prisão de muitos daqueles estudantes.
Neste momento, apresento também as razões que me motivaram a optar pelos
sujeitos culturais elencados, suas trajetórias de vida, interpretações das experiências
compartilhadas em contato com os tempos de exceção. Cada um destes ocupava um lugar
social específico à época do Golpe Civil-Militar e, por ocasião da Ditadura Civil-Militar
instituída, tiveram suas trajetórias de vida borradas pela experiência dolorosa da prisão.
Assim, as narrativas acionam memórias de experiências a partir das perseguições e prisões
consideradas como divisores de águas para o fazer social de cada um.
Para os sujeitos culturais Pedro Galvão, Seráfico de Carvalho, Paes Loureiro e Ruy
Antonio Barata, o ponto de partida das memórias sobre os tempos de Ditadura Militar na
Amazônia Paraense, além das detenções, estão centrados em duas fatídicas experiências. A
primeira, em 30 de março de 1964, no desbaratamento do I SLARDES (I Seminário Latino
Americano de Reforma do Ensino Superior), na Faculdade de Odontologia, na Praça Batista
Campos. Na ocasião, um grupo de jovens armados de porretes e a Polícia Militar invadiram e
causaram uma briga generalizada provocando o desfecho precoce do evento.
A segunda experiência comum a todos os memorialistas deu-se dois dias depois, na
noite de 1º de abril. Com o Golpe civil-militar já assegurado no Rio de Janeiro e, em Belém,
Orlando Ramagem (General do CMA – Comando Militar da Amazônia) subsidiado pelo
Coronel Jarbas Passarinho, também assegurava o êxito da empreitada golpista em terras
amazônicas. Nesta mesma noite, a UAP (União Acadêmica Paraense) foi invadida pelas
Forças Armadas. Desta vez, todos os estudantes foram agredidos e detidos. Nesta investida do
Exército o estudante de Direito José Seráfico de Carvalho levou uma bofetada do Coronel
José Lopes de Oliveira – vulgo “Peixe-Agulha”, apelido dado em homenagem ao nariz
33
adunco. Esta última violência que chegou às vias de descontrole do uso da força não escapou
incólume aos registros da memória.
As duas cenas, ao ser narrativizadas em diferentes tons e abordagens demonstram o
quão significativos foram os primeiros contatos dolorosos destes narradores com as prisões do
Golpe e Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense.
Na II Parte, intitulada “NÃO ME PRENDERAM, NÃO APANHEI E NÃO
MUDEI DE IDEIA”, destaco elementos que permitem conhecer as identidades dos sujeitos
que, apesar de vivenciar todas as dores do golpe e Ditadura Civil-Militar, não chegaram a
experimentar a prisão. São eles: Alfredo Oliveira, André Avelino da Costa Nunes, Cláudio de
Souza Barradas e Dulce Rosa de Bacelar Rocque. Apesar do cárcere não compor diretamente
suas experiências vividas, tais sujeitos apresentam memórias eivadas de pesarosas
recordações.
O subtítulo acima está inspirado no texto de André Costa Nunes, do livro de
memórias “1964. Relatos subversivos”. Julguei oportuna a escolha da frase para intitular a
segunda parte desta dissertação pelo fato de Nunes apresentar toda a carga negativa do que
havia sido a notícia do Golpe Civil-Militar, nos dias 1º e 02 de abril, quando ainda estava em
Santarém (PA), à serviço do Banco de Crédito da Borracha. Nunes se esforça para narrar a
fuga daquela cidade para Belém (PA). Por ser desconhecida era também perigosa para sua
integridade em dias de caça a comunistas e a capital, apesar de estar mais próxima da
vigilância ostensiva, era terreno conhecido e, portanto, com maiores facilidades de ação. O
texto foi narrado com tentativas de traços cômicos. A prosa flui facilmente da caneta de
Nunes. Os sorrisos durante a leitura acontecem em vários momentos. Por isso mesmo, pelo
esforço em transmitir uma ideia de tranquilidade, compreendi naquela escrita o medo (ou
“cagaço”, como prefere Nunes), ânsia por liberdade, sede de justiça, necessidade de expressão
política e cultural, como únicas chances para não ser preso. E foram estas também as
sensações compreendidas nas entrevistas dos outros três narradores que compõem esta parte.
Daí a escolha para tal subtítulo. Nenhum foi preso, nenhum apanhou, nenhum mudou de
ideia, mas todos estavam acorrentados ao mesmo valor simbólico do Golpe civil-militar.
Pari passu, apresento traços de suas identidades justificando-os como sujeitos
culturais. Suas escolhas políticas, com exceção do padre teatrólogo Cláudio Barradas,
recaíram sobre o Partido Comunista Brasileiro. Apesar disto, há fortes diferenças de percursos
trilhados.
Na III Parte, sob o título de TÁTICAS E SENTIMENTOS DE RESISTÊNCIAS,
dedico-me a mapear sentimentos evocados, colhidos, construídos e lembrados pelos sujeitos
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culturais ao longo do processo ditatorial. Sob a batuta metodológica e interpretativa da
História Oral, analisei os sentidos destas sensações captadas a partir das narrativas dos
entrevistados. Para que isto fosse possível, coloquei em prática uma técnica de entrevistas
com dois pressupostos básicos: primeiro, ao entrar em contato via e-mail ou telefone, já
adiantava meus interesses e situava o tema de pesquisa. Com isto, a segunda etapa da
entrevista se despia da camisa de força de um roteiro pré-estabelecido de perguntas, pois, pelo
primeiro contato, o entrevistado já sabia quais meus interesses naquela entrevista e,
concomitantemente, a memória dele já havia sido acionada para que os fatos a serem narrados
estivessem com textos previamente esboçados na memória para serem “contados”.
Com esta estratégia de captura de memórias vários sentimentos afloraram. Observei-
os a partir de testas franzidas, braços cruzados, pernas balançando, sorrisos, queixos erguidos,
peitos à frente, tom de voz alterada, corpos tesos, sisudez. De outra forma, analisei
performances e, assim, compreendi como os sentimentos presentes na memória se
materializavam por meio do corpo e língua. Mais: compreendi o golpe e Ditadura Civil-
Militar na Amazônia Paraense por um enfoque ainda não explorado pela academia regional.
Aí reside uma contribuição desta dissertação para nossa história.
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Narradores e Narrativas
Vai passar nessa avenida um samba popular / Cada paralelepípedo da
velha cidade essa noite vai se arrepiar / Ao lembrar que aqui passaram
sambas imortais / Que aqui sangraram pelos nossos pés / Que aqui
sambaram nossos ancestrais / Num tempo página infeliz da nossa história,
/ passagem desbotada na memória / Das nossas novas gerações / Dormia
a nossa pátria mãe tão distraída / sem perceber que era subtraída / Em
tenebrosas transações / Seus filhos erravam cegos pelo continente, /
levavam pedras feito penitentes / Erguendo estranhas catedrais (“Vai
Passar”, de Chico Buarque e Francis Hime, 1984)
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Os letristas Chico Buarque e Francis Hime bem tangenciaram o “tempo infeliz de
nossa história” ao mencionar a pátria subtraída de filhos por vagar cegos e errantes pelo
continente. Poeticamente, mas presos a um passado recente de censuras, exílios, autoexílios,
prisões, torturas, mortes, Buarque e Hime têm vincadas as recordações da Ditadura Civil-
Militar em suas trajetórias.
Na mesma esteira dos poetas, a expressão “longa noite” carrega a responsabilidade
de dar conta das penumbras e sofrimentos das memórias do período ditatorial que assolaram o
país desde 1964 até março de 1985. Neste momento da história brasileira, inúmeros
dissidentes políticos “desapareceram” da cena política e deixaram de ser incômodos para os
militares e civis apaniguados pelo regime. Segundo o Dossiê dos Mortos e Desaparecidos
Políticos, há 376 mortos e “desaparecidos” no Brasil, desde 1964, sendo que cabe às famílias
o ônus da prova para que o Estado se sinta obrigado a investigar e punir os responsáveis por
tais mortes e desaparecimentos.7 A legislação no Brasil ainda não avançou nesta seara por
puro descompromisso dos legisladores, mesmo com a existência de organizações não
governamentais interessadas em fazer justiça ou, pelo menos, encontrar culpados.
Os depoentes desta dissertação, ao longo das décadas de Ditadura Civil-Militar
sabiam muito pouco a respeito dos excessos e autoritarismos de seu próprio tempo. Mesmo
assim, os rumores e experiências vividas na Amazônia Paraense eram suficientes para semear
medos e angústias quando se percebiam em situações de embate diante do poder instituído.
Ao mesmo tempo, não permaneceram inertes ao sabor dos acontecimentos. Estiveram
presentes em epicentros de atividades cujos cunhos direta, ou indiretamente, tensionaram as
relações de forças com o poder instituído pelos civis e militares adeptos ao golpe e à ditadura.
Diante disto, neste momento da dissertação trago à tona atores sociais que, na
condição de contemporâneos aos tempos de Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense
imprimiram atitudes, táticas, ardilezas em confronto com o poder político.
Dentre a vasta e crescente rede de sujeitos culturais emergentes das penumbras
apresentarei os mais representativos para esta análise sobre os tempos de censura e repressão
na Amazônia Paraense. O critério para pertencer a este rol foi a produção de artimanhas de
resistências não só naqueles fatídicos dias de abril de 1964, mas o conjunto de feitos ao longo
dos vinte anos de ditadura militar, bem como os vinte e oito anos posteriores ao final deste
7 Dentre os vários organismos não governamentais responsáveis por divulgar e denunciar listas de desaparecidos
políticos, destaca-se o Centro de Documentação Eremias Delizoicov e a Comissão de Familiares dos Mortos e
Desaparecidos Políticos. O mesmo disponibiliza nomes em ordem alfabética, data dos desaparecimentos e
acompanha os processos de investigação junto ao Ministério Público Federal. Disponível em
http://migre.me/905L3 - acessado em 10 de março de 2012, às 21h.
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período. Ou seja, são agentes históricos, cujas produções artísticas e intelectuais foram
vincadas para sempre pelas experiências vividas, durante os primeiros momentos do golpe e
regime civil-militar.
Estes sujeitos foram amealhados, principalmente, por sugestão da obra de memórias
“1964. Relatos Subversivos. Os estudantes e o golpe no Pará”, lançada em 2004, em Belém.
Com somente uma edição, todo o material rapidamente se esgotou das livrarias belemenses.
Naquela altura, um dos organizadores, Pedro Galvão de Lima, pretendia deixar em evidência
os quarenta anos de golpe. A julgar pela rápida venda de toda a tiragem, o assunto revelou-se
de interesse público.
Pela condição de professor de História, a temática já provocava em mim
sensibilidades que exigiam mais conhecimentos. Seduzido e já em campo para iniciar a
pesquisa desta dissertação, iniciei a lista de possíveis entrevistados. Optei pelo rol de
narradores do livro “1964. Relatos subversivos”. Assim, André Costa Nunes, Pedro Galvão de
Lima, José Seráfico de Carvalho, João de Jesus Paes Loureiro e Ruy Antônio Barata foram
entrevistados para esta escrita. Mas como em toda pesquisa de campo, tive dificuldades em
arrebanhar os demais memorialistas de “1964. Relatos subversivos”. Por exemplo, Ronaldo
Barata faleceu em 2008; já com Roberto Cortez e Isidoro Alves não pude fazer contato em
tempo hábil, mesmo com os esforços em mapear possíveis amigos que pudessem estabelecer
pontes para chegar até os mesmos.
Apesar destes contratempos, a pesquisa me oportunizou tomar conhecimento de
outros personagens dos tempos de Ditadura Civil-Militar, todos ansiosos por emergir para a
historicidade. Então, somando aos autores de “1964. Relatos subversivos”, selecionei Dulce
Rosa de Bacelar Rocque, Cláudio Barradas e Alfredo Oliveira para compor este texto.
Pedro Galvão, apesar da agenda sempre ocupada pelo ofício de publicitário foi, como
os demais entrevistados, bastante receptivo e simpático com a causa desta dissertação.
Recebeu-me em sua agência “Galvão Publicidade” com muita cortesia. Descobri que segue
“cometendo poemas” 8. Alguns engajados e bem escritos, outros, talvez segundo modéstia,
“sem grande senso estético”. De todo modo, sua presença nesta dissertação é necessária pela
importância construída desde os tempos em que foi Presidente da União Acadêmica Paraense
(1964), militante da Ação Popular e, consequentemente, cumpria o perfil de “comunista frio e
8 Pelo contato que tive com o pensamento de Pedro Galvão de Lima, depreendi que usou várias vezes esta
expressão para externar a ideia de poemas não como apenas joguetes de palavras, em arrumações de métricas e
rimas. Mas como fatos com fortes implicações no espírito de quem os escreve e lê. Portanto, “cometer poemas” é
influir diretamente nas atitudes e posturas de vida.
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calculista”, como foi acusado em interrogatório na Quinta Companhia das Guardas, em abril
de 1964.
Ruy Antonio Barata, médico residente na cidade de São Paulo, mesmo sendo um dos
memorialistas de “1964. Relatos subversivos”, não constava inicialmente na lista pelo fato de
morar em São Paulo, região distante da Amazônia Paraense. Seu depoimento insere-se nesta
dissertação por uma feliz coincidência. Visitou sua mãe, Senhora Norma Barata, em Belém,
no mês de agosto de 2011. Como dias antes eu havia localizado seu contato, tratei de informá-
lo sobre a existência da pesquisa sobre os tempos de exceção. Respondeu-me amistosamente e
com entusiasmo da possibilidade em ajudar-me na empreitada. Pela identidade calçada da
influência do pai (Ruy Paranatinga Barata) e avô (Alarico Barata), este sujeito imprimiu sua
participação ao movimento estudantil naqueles anos ditatoriais e, consequentemente, galgou
degraus na maturidade política e engajamento maior no processo de resistências. Concedeu-
me duas horas de relatos divididas em duas ensolaradas tardes na sala da residência de sua
mãe, no bairro do Umarizal, em Belém (PA).
Quanto a João de Jesus Paes Loureiro, sua presença se justifica por ter sido o
primeiro a sentir os tentáculos da repressão antes mesmo do dia 1º de abril, de 1964. Seu livro
de poema “Tarefa”, a ser lançado nos dias posteriores, teve a edição apreendida no dia 30 de
março de 1964. Sua primeira obra de porte não teve a chance de nascer porque foi cruelmente
abortada. As marcas desta violência estão sangrando ainda hoje. Este talvez seja o fato que o
diferencie dos demais narradores. Foi o mais eloquente em demonstrar suas memórias de dor
ao trazer à baila o local da prisão em abril de 1964. Junto com as palavras ditas, Paes Loureiro
foi o que mais se manifestou com a linguagem corporal. Franzia sua testa, balançava as
pernas, cruzava e descruzava os braços. A inquietação foi a tônica da performance, deixando
entrever rancores e ressentimentos ao tangenciar cenas ainda fortes em suas lembranças, tal
qual o momento em que o instiguei a pensar na Quinta Companhia das Guardas como o
espaço de recreação e lazer que ocupa hoje em dia ao compor o Complexo Turístico Feliz
Lusitânia. Em depoimentos a emissoras de TV, mencionou seu mal estar por não haver ali
menção ao fato de aquele espaço ter sido utilizado como masmorra para aprisionar estudantes
à época do regime.
Meses após as entrevistas percebi dois elementos para compreender aquela postura.
Primeiro, sua inexperiência política no momento do Golpe Civil-Militar. Com isso, as prisões
foram bem mais duras do que, por exemplo, foram para os mais politizados José Seráfico de
Carvalho e Ruy Antonio Barata (ambos do PCB). Segundo, atualmente tem como projeto
39
político ser percebido na cena acadêmica como um militante que, apesar de tudo, é
sobrevivente daquela conjuntura.
Hoje, na condição de professor universitário e ex-secretário de Educação e Cultura
do Estado do Pará, lançou em 2011, um romance – seu primeiro trabalho que não tem a poesia
como epicentro criador – intitulado “Café Central. O tempo submerso nos espelhos”. Neste
livro traz suas recordações sobre seu cotidiano e rota de fuga quando se deparou com a
sensação de “medo de morrer” nas garras da ditadura.
O médico comunista Alfredo Oliveira, assim como Paes Loureiro, é de longe um dos
mais preocupados em não deixar adormecer as trajetórias de sujeitos resistentes aos
autoritarismos e histórias de lutas no estado do Pará. Foi elencado e entrevistado graças ao
auxílio luxuoso de André Avelino da Costa Nunes Netto. Não fosse a ajuda de Nunes Netto
ao ceder seu número de telefone fixo (não possui aparelho celular por ser avesso a algumas
facilidades da modernidade), este valioso memorialista não figuraria nesta investigação. A
importância de Alfredo Oliveira recai justamente pela imensa capacidade de iniciativa em
compor e registrar as memórias de sua vida e demais camaradas.
No livro de memórias “Cabanos & Camaradas”, lançado em 2010, Oliveira faz uma
cartografia das ações de todos os camaradas do Partido Comunista Brasileiro em terras
amazônicas, suas trajetórias de vida pessoal, número de filhos, nomes das esposas,
importâncias para as táticas de resistência frente à repressão, etc.. O depoimento foi gravado
em sua bela casa, na Avenida José Bonifácio, no bairro de São Braz, em Belém, no mês de
setembro. Na ocasião, recebi valiosos informes sobre datas, nomes, fatos e análises
particulares na perspectiva de um autodenominado ex-comunista ciente dos avanços e recuos
do PCB na Amazônia Paraense. Sua importância como informante factual é incomensurável
para esta escrita.
André Avelino da Costa Nunes Netto, o depoente que “não foi preso, não apanhou e
não mudou de ideia”, como ele próprio alardeia, tem sua narrativa em “Relatos subversivos”
como a mais distante de arremedos intelectuais. Nosso encontro para tratar desta dissertação
aconteceu nos arredores de Marituba, na região metropolitana de Belém. Ao entrevistá-lo,
compreendi o quanto é um sujeito movediço, vivo, repleto de hífens que o colocam e tiram de
identidades construídas em seu fazer histórico. Em duas tardes entrecortadas por chuva forte e
sol a pino, seus depoimentos foram descolados de cronômetros. O tempo empenhado naquela
atividade de ceder relatos pareceu ser mais prazeroso a Nunes Netto do que aos demais
depoentes.
40
Num jogo de recordações e eventuais esquecimentos, discorreu sobre seu pai, sua
vida nos seringais de Altamira (PA), sobre a juventude tranquila e como passava o tempo
pelas matas e igarapés de sua infância. Saindo dos seringais e Altamira, mostrou como era
visto na condição de estudante interiorano na capital. Com esta narrativa, deu-me pistas para
mostrar-se nos trânsitos identitários. Até que, subitamente, retomou à temática da ditadura
militar. Foi então que compreendi sua astúcia na narrativa: desejava mostrar-se como sujeito
múltiplo, com atuações em palcos e públicos diversos, mas sempre amalgamado pela dor de
“não ter sido” o típico subversivo perigoso e perseguido pelos tentáculos da repressão.
José Seráfico de Carvalho é, sem sombra de dúvidas, o primeiro sujeito a ter sofrido
violência física por parte do Golpe Civil-Militar na Amazônia Paraense. Estava presente na
reunião da UAP, no dia 1º de abril de 1964, que discutia os rumos do movimento acadêmico
quanto às decisões seguintes relacionadas ao golpe em curso. Ao ter a sede estudantil invadida
pela Polícia Militar, José Seráfico foi esbofeteado pelo coronel José de Oliveira, ou “Peixe-
Agulha”. A cena de violência explícita foi recordada em inúmeras passagens do livro “1964.
Relatos subversivos" tornando aquele momento emblemático para o Golpe Civil-Militar.
Foi um dos estudantes a ser preso na Quinta Companhia de Guardas. Sofreu
violência psicológica, ameaças e, por isso, foi citado no rol de subversivos e ameaças à
segurança nacional. Com esta pecha negativa, os amigos se distanciaram, as oportunidades de
trabalho minguaram e Belém se tornou um espaço hostil para sua estada. Diante disto, foi
aconselhado pela amedrontada família a fugir para o estado do Amazonas. Assim o fez. Uma
vez em Manaus, foi fisgado pela mais doce das prisões. Casou-se, teve filhos, fincou raízes.
Chegou a ser professor universitário na Universidade Federal do Amazonas e, posteriormente,
reitor. Hoje, uma das salas daquela instituição recebe seu nome como forma de render-lhe
homenagem pelos préstimos à Educação daquele Estado.
Entretanto, mesmo tendo fincado estacas em Manaus (AM), sua família ainda vivia
na cidade de Belém (PA). Tornou-se um homem em trânsitos constantes pelos rios Negro e
Amazonas até chegar à capital paraense. As viagens eram sempre mediadas pelo medo da
ditadura e pelo amor à família. As voltas à cidade natal eram repletas de saudades, mas a dor
se fazia presente pelas experiências evocadas à memória em cada passeio por ruas, esquinas,
praças da capital paraense. Assim, sua presença nesta dissertação se justifica pelas memórias
vinculadas ao Golpe Civil-Militar.
Claudio Barradas, desde os anos 1950 exercia as funções de autor, diretor e ator
teatral. Somente nos anos 90 ordenou-se padre. Portanto, o trato como padre teatrólogo
Cláudio Barradas na ânsia de dar conta de suas identidades mais latentes. Realizei duas
41
entrevistas com o mesmo. Ambas no mês de maio de 2011. Após muito custo para vencer a
barreira de suas desconfianças com entrevistadores, consegui sua anuência. Destilou bom
humor e picardia ao narrar sobre os tempos de enfrentamentos sutis com os censores. Em uma
conversa agradável, não houve preocupações quanto ao tempo.
Pela identidade de teatrólogo, ator e diretor, desde os anos de 1950 até os dias atuais,
foram-lhe possíveis mediações com regime militar a partir das agruras da censura, dos
pequenismos dos censores, das inúmeras e infundadas incursões burocráticas contra a arte
cênica. Mesmo não se alinhando com o pensamento de esquerda que grassava nos meios
universitários nos idos dos anos 1960, foi muitas vezes taxado de “subversivo mental” por
conta da seleção criteriosa dos textos críticos abordados nos palcos.
Em 2002 foi ordenado padre. Sua identidade de teatrólogo, contudo, permaneceu
alinhavada com este novo papel assumido por Barradas. Manteve o status de conceituado
diretor e ator, a ponto de receber uma homenagem rara para sujeitos ainda vivos: o Teatro
Universitário da Universidade Federal do Pará, em 19 de junho de 2009, recebeu o nome de
“Claudio Barradas”. Acomoda ainda a Escola de Dança formando assim um denso complexo
dedicado às artes cênicas na região. Está localizado no bairro do Umarizal, em Belém, em
espaço privilegiado da cidade. Por tudo isto e pelo discurso autorizado da Universidade
Federal do Pará, é possível inferir sobre a importância deste sujeito para o teatro amazônico
desde o início da década de 1960, atravessando a Ditadura Civil-Militar até os dias de hoje.
Dulce Rosa de Bacelar Rocque foi a última narradora a compor esta dissertação. Sua
presença tem dois vetores a serem considerados. Primeiro, o fato de ser mulher é bastante
plausível uma vez que nas escritas acadêmicas sobre os tempos de exceção (1964-85), em
especial a produção de Pere Petit (2003) e Tony Leão (2008), a narrativa feminina não é
privilegiada como fonte. Segundo, após o Golpe Civil-Militar Dulce Rosa agia por corredores
oficiais, festas, instituições, prisões, etc. para arrecadar finanças para o PCB, levar recados,
trocar informações. Sempre elegante pelas belas roupas e joias, cumpria o perfil de filha de
classe média, agindo sem levantar suspeitas e, consequentemente, sem ser taxada de
subversiva. Deste modo, foi responsável pela manutenção financeira e operacional do partido
naqueles primeiros momentos de instalação militar no Pará.
Por conta da exitosa atuação, dos préstimos à causa comunista, Dulce Rosa foi
convidada a complementar seus estudos na União Soviética. Aceitou prontamente e viajou em
1969. Após seus estudos, casou-se com um italiano comunista, constituiu família e fixou
residência na Itália até 2004. Neste período, enviando cartas a embaixadas e jornais, não se
eximiu na luta pela redemocratização do país de origem. Neste sentido, suas memórias são
42
incomensuráveis para compreender o Golpe e Ditadura Civil-Militar a partir de uma
perspectiva ainda não experimentada pela academia.
Em todos os depoentes percebi projetos pessoais para tornar públicas suas posturas
políticas desde os tempos de ditadura. Assim, particularidades, que poderiam ser um
amontoado de desconexos retalhos amiúde, forjaram uma manta com fartas e confiáveis
costuras. Contiguamente, as memórias narradas e registradas em áudio e vídeo continham
significados valiosos para compreender as experiências desses sujeitos culturais sobre ações e
reações dos governantes paraenses ao longo do Golpe Civil-Militar. Esta consciência motivou
igualmente todos a me subsidiarem na empreitada desta dissertação.
Por questões de ordem didática para os leitores, utilizei o cárcere como elemento de
distinção entre todos. Divide-os em dois grupos utilizando as prisões de Pedro Galvão de
Lima, Ruy Antonio Barata, João de Jesus Paes Loureiro e José Seráfico de Carvalho. Assim,
apresento estes narradores na I PARTE – “DAÍ PARA FRENTE TUDO FOI CORRERIA
E ATROPELO. OS SOLDADOS ENTRARAM QUEBRANDO TUDO”. A frase é de
Pedro Galvão de Lima em alusão à invasão da UAP, no dia 1º de abril de 1964. Era o
primeiro contato dos narradores com o braço forte do Estado militarizado.
Quanto a Alfredo Oliveira, André Costa Nunes, Cláudio de Souza Barradas e Dulce
Rosa de Bacelar Rocque, compõem a II PARTE – “NÃO ME PRENDERAM, NÃO
APANHAEI E NÃO MUDEI DE IDEIA”. Inspirei-me em André Costa Nunes que, ao
iniciar sua narrativa em “1964. Relatos subversivos”, assim se define pelo fato de não ter sido
alcançado pelo braço ostensivo da prisão. Portanto, neste momento apresento os narradores
que não experimentaram a prisão naquela altura dos acontecimentos. Um adendo é necessário:
Alfredo Oliveira chegou a “sofrer breves detenções”, mas nada comparado aos quatro
narradores da I Parte.
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I PARTE
IDENTIFICANDO OS NARRADORES
As dores da prisão
Só conhece a dor de ser preso, quem já foi preso!
(João de Jesus Paes Loureiro)
44
1.1 Pedro Galvão de Lima
Foi impedido de pronunciar o seu discurso, por pressão militar. Num gesto
de solidariedade, o paraninfo, Prof. Dr. Edgar Olintho Contente, recusou-se a
pronunciar o seu, o que viria a fazer somente na festa dos 25 anos de
formatura da turma. Com os caminhos profissionais bloqueados em Belém,
em janeiro de 1970 transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde, até 1983,
trabalhou em grandes agências de publicidade. Em 1983 retornou a Belém e
fundou a Galvão Propaganda. É o profissional de criação paraense mais
premiado de todos os tempos, com prêmios nos Festivais de Cannes, Nova
Iorque, Londres, no Clio Awards e no FIAP – Festival Ibero-Americano de
la Publicidad, além das premiações brasileiras, como o Profissionais do Ano,
da Rede Globo, o Prêmio Cliente e o Voto Popular, o Galo de Gramado, o
Fest Rio e o Colunistas. Foi Presidente do Clube de Criação do Rio de
Janeiro (1978/79), Conselheiro do CONAR – Conselho Nacional de Auto-
Regulamentação Publicitária (1979/82), professor da Escola Superior de
Propaganda e Marketing (1976/79). Foi eleito Publicitário do Ano em 1988 e
em 2000 pelo júri do Prêmio Colunistas Norte/Nordeste, a mais tradicional
premiação da propaganda brasileira. É o atual Presidente da ABAP –
Associação Brasileira de Agências de Publicidade, Capítulo do Pará.
Publicou em 1985 a plaquete com o poema “Velho Pedro vai para casa” e,
em 2003, o livro “Nossos Primeiros 20 Anos / Nossos Últimos 20 Anos”.
Em 2008, o livro de poemas “Bissexto”. Membro Associado da Academia
Paraense de Ciências. 9
Ao iniciar uma narrativa, o narrador ordena suas memórias de modo a encadear um
processo lógico para o tempo presente. Assim, o passado pode dar conta de criar condições
mínimas de convivência com o momento da narrativa (THOMSON, 1997). De posse deste
9 A breve biografia de Pedro Galvão foi produzida em 2004 por ocasião do lançamento do livro “1964. Relatos
subversivos: os estudantes e o golpe no Pará”. A biografia de cada autor do livro aparece logo no final de cada
narrativa.
Pedro Galvão de Lima.
Foto: Jaime Cuéllar Velarde, em 25 de maio de 2011.
45
ensinamento, entrevistei e li as memórias de Pedro Galvão, em “1964. Relatos subversivos”.
Constatei a necessidade de Galvão em deixar explícitas duas cenas ocorridas no ano de 1964,
justamente o desbaratamento do I SLARDES (Primeiro Seminário Latino Americano e
Democratização do Ensino Superior), por parte dos “lenços brancos”; e, a invasão da UAP,
por parte da Polícia Militar. Vejamos que cenas são estas.
A primeira começa com um insulto no auditório da Faculdade de Odontologia do
Pará. Junto com o insulto vieram socos, safanões, pancadas. Uma briga generalizada. Desta
forma truculenta estava encerrado o I SLARDES, sediado em Belém (PA), em 30 de março de
1964, com representantes de vários países das Américas. Aquela noite tivera início pomposo e
deveria ter honroso encerramento para a acadêmica amazônica em prol das discussões sobre a
temática do ensino superior de qualidade para o Brasil e toda a América Latina. Mas frases
gritadas a plenos pulmões, sem pudores e repletos de raiva e razão, destoavam da solenidade e
ocasião. Pelo menos na concepção política de Mickey Lobato – autor dos insultos, segundo o
trecho abaixo – e dos demais outros jovens que o seguiam com lenços brancos amarrados no
pescoço havia coerência naquela ação.
Mickey entrou berrando palavrões, interrompendo o discurso do
representante da Nicarágua, se esta miserável memória não me trai. O braço
do muchacho parou no ar, em meio a uma frase de efeito. Ele ficou
gaguejando algo como “em nombre de los pueblos latino-americanos”,
enquanto Mickey, Leonardo Lobato e outros rapazes – entre eles um garoto
de 17 anos que mais tarde passei a admirar, chamado Paulo Chaves
Fernandes – gritavam “vamos acabar com esta merda, bando de comunas
filhos da puta”. Lenços brancos no pescoço, para não serem confundidos
conosco pela PM, eles avançavam em direção à mesa onde, na posição mais
vulnerável, a mosca do alvo, eu presidia a sessão. E aí o pau quebrou
(GALVÃO, 2004, p. 21).
Naquela noite calorenta do inverno amazônico, os “lenços brancos”, como ficaram
conhecidos aqueles jovens por amarrar lenços brancos no pescoço, protagonizaram uma cena
inolvidável para a memória social dos jovens presentes naquele I SLARDES, em especial
para Galvão. Outrossim, os lenços não tinham a função de ornar, mas identificar os filhos de
fazendeiros do Marajó, conforme explica abaixo sobre o que seriam tais personagens:
Mas é bom dizer que a rapaziada da direita agiu também estimulada pelos
pais, apavorados com o fantasma do comunismo. Eram filhos de fazendeiros
do Marajó, os oligarcas de então, e suas fazendas, sem reforma agrária e sem
nada, entraram em decadência e empobrecimento, apesar ou por causa do
golpe que ajudaram a perpetrar (GALVÃO, 2004, p. 23).
46
Então, quem eram os jovens estudantes protagonistas daquela cena? De um lado,
filhos e representantes de latifundiários marajoaras, temerosos aos ideais socialistas e
pertencentes a uma direita extremada; de outro, jovens universitários seduzidos por
sonhos/utopias de uma América livre, tal qual pregava Che Guevara logo após o sucesso da
Revolução Cubana. 10
A invasão, que era a materialização de um embate já existente nos corredores e salas
de aulas das Faculdades de Direito e Medicina entre os estudantes, deveria ter acontecido em
sincronia com a ação da Polícia Militar do Estado, cuja incumbência seria agredir e prender
aqueles que não tivessem lenços amarrados no pescoço. Por alguma feliz razão, os “lenços
brancos” invadiram antes do momento combinado evitando um choque com proporções
desastrosas caso a PM estivesse junto, conforme o trecho abaixo:
Poderia ter sido uma carnificina, alguém me contou, talvez exagerando,
alguns anos mais tarde. E só não o foi porque houve uma precipitação. Era
para ser uma ação sincronizada entre os invasores, filhos de fazendeiros em
sua maioria, arrebanhados e insuflados pelo radialista Avelino Henrique dos
Santos, e uma força da Polícia Militar do Estado. Por sorte, um daqueles
rapazes, o Mickey Lobato, esporeado pelos nervos, detonou a invasão alguns
minutos antes do tempo. A tropa só chegaria depois, quando já
conseguíramos serenar os ânimos (GALVÃO, 2004, p. 21).
Foi assim que uma reunião de universitários de vários cantos da América Latina
transformou-se numa grande arena de lutas que poderia ter trazido piores consequências caso
a invasão tivesse sido devidamente executada conforme o combinado com a PM. Mais do que
uma arena de lutas, o episódio passou a ser um trágico marco motivador das memórias de
Galvão envolvido naquela atmosfera de efervescência política na Amazônia Paraense.
Dois dias depois, aconteceu a segunda cena em evidência na narrativa de Galvão. O
fato que marcaria sua trajetória de vida e daria novos rumos para sua atuação sociopolítica.
Em 1º de abril daquele mesmo ano, a UAP (União Acadêmica Paraense) foi invadida em
decorrência da “ação pedagógica” para ensinar Belém sobre quem eram os novos mandatários
do poder. O fato fora urdido naquelas primeiras horas da madrugada de 1º de abril, à surdina.
Retrocedo um pouco antes de apresentar estas memórias de Galvão.
Tal iminência de Golpe Civil-Militar por parte de ideias comunistas era,
principalmente a partir de 1961, constantemente insuflada pela grande imprensa amazônica.
10 Cabe lembrar que a sedução por Che Guevara, Cuba, 1959, se limitava tão somente aos ideais de liberdade e
não implicava numa obediência às ações revolucionárias pelas armas. Ao longo da pesquisa de campo para
compor esta dissertação, constatei que nenhum dos entrevistados participou ou comungou da resistência pela via
armada.
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Neste sentido, cabe lembrar o estrondo causado pela Revolução Cubana, em 1959, seguida
dos apaixonados discursos guevaristas incitando jovens do mundo inteiro com possibilidades
de um mundo sem injustiças. Soma-se a declaração de Fidel Castro, em 1961, quanto ao
caráter político ideológico de Cuba: era uma nação Socialista11
. Portanto, o temor à
propagação de ideias revolucionárias comunistas era latente naquele início de década, assim
não se pode atribuir sentidos de pânico injustificado aos golpistas da direita brasileira em
1964.
É neste cenário que se insere Olympio Mourão Filho, Chefe da 4ª Divisão de
Infantaria de Juiz de Fora (MG), tinha ideias forjadas pelo dinamismo da Guerra Fria, com
tendência a apoiar ideais Capitalistas. Temia o Comunismo, mesmo sem entendê-lo à fundo.
Sua consciência agia de acordo com os discursos de Magalhães Pinto, governador de Minas
Gerais. Ou seja, veemente e severo nas posições antirreformistas. Portanto, era um
representante das Forças Armadas inclinado a combater o pensamento de vanguarda que se
instava nas Universidades e alguns setores do Governo Federal, em especial nos
posicionamentos do Presidente da República.
No entardecer do dia 31 de março de 1964, rumou com suas tropas em direção do
Rio de Janeiro. Visava combater as pretensões das Reformas de Base a serem implementadas
por João Goulart. Não agia sozinho, mas como porta-voz de uma expressiva parcela burguesa
e setores retrógrados da Igreja Católica. Ambos viam no Comunismo ameaça potencialmente
iminente. Isso explica a rápida adesão ao Golpe Civil-Militar não só de outros generais, mas
de setores da Igreja Católica e burguesia.
Naquele mesmo momento, as mais altas patentes das Forças Armadas da Amazônia
estavam reunidas na 8ª Região Militar, na Praça da Bandeira. Sob alegada homenagem pelo
aniversário do general Orlando Ramagem, comandante do CMA (Comando Militar da
Amazônia), estavam presentes os representantes da Marinha, Aeronáutica e Exército. Ao
centro das conversas reservadas, Jarbas Passarinho sussurrava frases curtas e secas. Talvez
fosse o local e momento de planejamento das ações a ser executadas nas horas seguintes.
Jarbas Passarinho foi quem intermediou conversa por radioamador entre Ramagem e o QG do
II Exército (SP), sob comando do General Amaury Kruel. Ramagem, pela manhã ainda era
reticente, mas a partir daquela conversa com um dos homens de confiança do esquema de
Jango, por volta das 15 horas do dia 1º de abril, aderiu ao Golpe Civil-Militar.
11 Ver Velarde (2005) no qual analiso a entrevista de Fidel Castro a Frei Betto, em 1961. Na ocasião, Fidel
direcionou os rumos políticos da ilha cubana para o socialismo. Esta atitude desmoronou a relação amigável
entre EUA e Cuba, iniciada em 1959.
48
Naquele mesmo dia, o Coronel José Lopes de Oliveira – o Peixe-Agulha – recebeu
ordens de prender os “subversivos” que pudessem colocar em risco todo o aparato montado
desde o Centro-Sul até Belém. As cenas narradas pelo próprio Galvão revelam detalhes
grotescos de exagero
Nas janelas da frente da UAP fomos surpreendidos pela chegada
espaventosa da tropa, soldados avançando no marche-marche típico da
ordem unida militar, deitando nas calçadas e no asfalto onde posicionavam
os tripés de suas metralhadoras apontadas contra nós. Daí para frente tudo
foi correria e atropelo, a rapaziada escapando pelos fundos, galgando muros,
varando os quintais vizinhos. Uns poucos se esgueiraram pela porta da frente
e se confundiram com as pessoas na rua. Muitos ficaram encurralados nas
três primeiras salas da UAP (GALVÃO, 2004, p. 19). – grifo meu.
O exagero da ação militar em posicionar tripés de metralhadoras é descabido. Não
havia razões para acreditar numa postura também armada por parte dos estudantes que, tão
somente estavam na UAP munidos de formação intelectual e preocupação com os rumos da
legalidade. Afinal de contas, se em algum momento houve algum indício de reação armada
por parte dos estudantes da UAP nunca foi relatado por qualquer um dos militares à frente do
Golpe Civil-Militar, tampouco foi revelado por quaisquer dos narradores aqui pesquisados.
Desta feita, o uso do exagero na ação militar que tomaria naquela noite pode ser
compreendido como estratégia pedagógica engendrada por Jarbas Passarinho a ser aplicada
aos expectadores daquela triste cena. Passarinho, lançando mão do destempero do Coronel
José Lopes de Oliveira, estava dando mostras da nova situação política que o país iria
apresentar. Talvez naquela noite tenha sido ele um dos primeiros a dar-se conta do momento
histórico em curso.
No momento da invasão alguns elementos precisam ser detalhados. O primeiro deles
é a truculência da ação, conforme o trecho abaixo.
Os soldados entraram quebrando tudo. No comando, o coronel José Lopes de
Oliveira já entrou dando um tapa no rosto de José Seráfico de Carvalho, meu
colega na Faculdade de Direito. Rente a mim voavam pedaços da divisória
de madeira e vidro da minha sala, arrebentados por um soldado a coronhadas
de fuzil. Ergui uma das mãos, gritei “pare” e o soldado parou (GALVÃO,
2004, p. 19).
Se a ordem recebida pelo Coronel “Peixe-Agulha” era tão pura e simplesmente
prender as eventuais ameaças à nova ordem, era necessário entrar “quebrando tudo”? O tapa
no rosto do estudante de Direito, José Seráfico de Carvalho, foi consequência de autodefesa
em detrimento de algum ataque do estudante portando alguma arma? Não, é a resposta para as
49
duas indagações. O próprio Galvão, em entrevista concedida em 24 de agosto de 2011, ao
rememorar aquela cena, é categórico em afirmar a atitude violenta como produto do
“destempero” e “descontrole” do Coronel Oliveira. A considerar o silêncio dos demais
narradores sobre este personagem em momentos posteriores ao Golpe Civil-Militar, é crível
que o Coronel Oliveira tenha entrado na história de todos os narradores como o pobre infeliz
destemperado que aparece em cena tão somente para ser um miserável na narrativa. Figurante
covarde a fazer-se presente nesta única lamentável cena. O pior de tudo, comprometido com
os atrasos dos quais o Brasil hoje ainda luta para se livrar, incluindo as injustiças.
Galvão, ao lembrar e selecionar as palavras, frases, expressões para narrar as duas
cenas ocorridas em 1964, age com a consciência que o tempo e a experiência de vida lhe
conferem. Teve sua trajetória de vida vincada pelos acontecimentos daqueles momentos e
justamente por isso lhe é inescapável a necessidade de narrar os dois fatos acima. Com isso,
não somente conta o que lhe aconteceu um dia, mas abre margens para outras interpretações
do que foram os primeiros dias de Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense.
50
1.2 Ruy Antonio Barata
Médico, nascido em setembro de 1944, em Óbidos, no Pará. Filho de Ruy
Guilherme Paranatinga Barata e Norma Soares Barata. Formou-se na
faculdade de Medicina da Universidade Federal do Pará em 1968. No
período imediatamente após o golpe militar de 64, desempenhou papel de
liderança no movimento universitário paraense. Liderou o movimento de
ocupação da Faculdade de Medicina em 1968, a FUAP – Frente Unida de
Ação Permanente, criada para coordenar a atividade política e reivindicativa
do movimento acadêmico no momento de crepúsculo da UAP – União
Acadêmica Paraense. Realizou Residência Médica e Pós-Graduação Strictu
Sensu, na área de Nefrologia, na Escola Paulista de Medicina, com a tese
“Ação de Nor-Adrenalina sobre a Liberação da Renina em Rins de Ratos
Artificialmente Ferfundidos”. Foi o preceptor de residentes no Hospital São
Paulo – Escola Paulista de Medicina do ABC Paulista. É coordenador das
atividades assistencialista e de ensino em Nefrologia no Hospital Santa
Marcelina, em São Paulo. No período da ditadura militar foi preso duas
vezes em Belém e duas vezes na cidade de São Paulo, acusado de atividades
subversivas. No ano de 2001, montou em Belém a Clínica do Rim que se
dedica ao tratamento de pacientes renais.
A presença de Ruy Antonio Barata nesta dissertação é emblemática por várias
razões. Destaco duas. Primeiro, é filho do poeta Ruy Guilherme Paranatinga Barata,
destacado militante comunista, deputado estadual. Este contato com o “velho Ruy” conferiu-
lhe uma postura eivada pelos valores políticos do pai. Segundo, quando a influência paterna
foi posta à prova, destacou-se na luta pela redemocratização pela via democrática, recusando a
resistência armada por entender que tal atitude afastaria o PCB das massas. Em abril de 1964,
ainda estudante no segundo ano do Curso de Medicina, na Universidade Federal do Pará,
iniciou sua saga como líder estudantil em diversas ações de solidariedade aos camaradas
Ruy Antonio Barata
Foto: Jaime Cuéllar Velarde, em 19 de agosto de 2011.
51
presos e, paralelamente, ações políticas de enfrentamento à ditadura, chegando a ser preso
quatro vezes.
Ao ler as memórias de Ruy Antonio Barata em “1964. Relatos subversivos” chamou-
me atenção o fato de ser ele o único que não concluiria o curso superior naquele fatídico ano
de 1964, concluiu somente em 1968. Em seguida, partiu para novos ares na sudeste do Brasil.
Morando em São Paulo por força do ofício, é nefrologista naquela capital, suas
vindas à Belém são raras. Por uma feliz coincidência, ou por providências de Clio, entre os
dias 19 e 22 de agosto de 2011, sob o argumento de rever a família, esteve de volta ao velho
palco político do início de sua jornada. E como dias antes eu havia estabelecido contato via e-
mail situando-o sobre os rumos e objetivos desta dissertação foi uma feliz e produtiva obra do
acaso. Neste clima de regozijo com as venturas da pesquisa de campo duas entrevistas foram
gentilmente cedidas justo em duas tardes dos dias 19 e 22 de agosto.
As entrevistas aconteceram por coincidir com uma de suas visitas à sua mãe em
Belém. Foram duas tardes ensolaradas e com típico calor modorrento na capital. Assim, tive a
honra de adentrar na casa onde Ruy Antonio Barata havia sido criado, na Avenida
Generalíssimo Deodoro, no bairro de Nazaré, Belém (PA).
Logo na primeira entrevista, Ruy Antonio Barata revelou-me que aquele ambiente da
entrevista – sala de estar, enfeites, sofás, móveis, quadros – era o mesmo desde os tempos dos
anos 1960. O ambiente havia sido testemunha de reuniões políticas, familiares, conversas
sobre os rumos do PCB na Amazônia. Os envolvidos naqueles colóquios eram, em geral,
Dalcídio Jurandir, Humberto Lopes, Jocelyn Brasil e outros próceres da intelectualidade
esquerdista amazônica. Não posso deixar de mencionar a incomensurável gratidão a Ruy
Antonio Barata por me permitir adentrar naquele “lugar de memória” (NORA, 1993). Talvez
aquela revelação fosse ingenuamente uma mera informação, talvez tivesse sido parte dos
propósitos do próprio Ruy Antonio Barata para dar outros sentidos à entrevista e minha
posterior análise dos dados coletados daquela entrevista.
Ao iniciar a conversa, contrariamente de outros narradores que me investigaram
acerca dos interesses particulares da dissertação, Ruy Antonio Barata foi logo “despejando”
informações, nomes, dados, circunstâncias. Fumando cigarros atrás de cigarros, aparentava
plena ciência dos efeitos políticos desta pesquisa para a compreensão do Golpe e Ditadura
Civil-Militar na Amazônia Paraense. Seu projeto pessoal naquela postura estava aceso como
provavelmente estiveram seus ânimos nos tempos de censura em Belém e São Paulo.
Ao longo daquela leitura, percebi o quanto algumas sensações estavam à flor da pele
na escrita de Ruy Antonio Barata. A primeira delas foi a ânsia em mostrar-se fiel para com as
52
lutas que o “velho Ruy” vinha travando com o baratismo paraense.12
Tais embates na seara
política haviam colocado aquela família como arquirrival número um dos grupos da direita
conservadora.13
Magalhães Barata era conhecido adversário pela mão de ferro com que
governava o estado. Contrariar suas vontades era assinar uma declaração de guerra. O “velho
Ruy” não se furtava ao enfrentamento e, por consequência, Ruy Antonio Barata não ficara
imune àquele ambiente autoritário de perseguições, discussões, tramas, conchavos e,
principalmente, coragem para aceitar reveses dos circuitos de poder.
Assim, com o Golpe Civil-Militar e as estratégias adotadas pelos coronéis inseridos
na política amazônica pelo peso da farda foram a gota d’água que faltava para uma tomada de
decisão por parte de Ruy Antonio Barata. Tal atitude mudaria drasticamente toda sua
trajetória de vida, pois como ele próprio relata foi impossível permanecer inerte diante da
nova cena política pela qual passava o Brasil. Sobre os primeiros momentos no movimento
universitário, Ruy Antonio Barata relatou:
Em outubro de 1964 passei a integrar os quadros do PCB, recrutado pelo
estudante de economia Manoel Bosco de Almeida, responsável pelo setor
estudantil. O poeta Ruy Guilherme Paranatinga Barata, despojado de seus
empregos, assumiria a direção política do PCB no Pará até o fechamento
total da ditadura.
Os anos que se seguiram seriam marcados pelo ascenso do movimento
estudantil, no qual assumi papel de liderança e dirigente do PCB para o setor
universitário do Pará, até a edição do AI-5, quando me formei médico, em
dezembro de 1968, pela Universidade Federal do Pará (BARATA, 2004, p.
304).
Naquelas alturas, entre 1964-68, na fase em que os próprios militares ainda não
haviam endurecido (mais ainda) o regime, o “velho Ruy” já havia sido preso, libertado,
perseguido e já não mais gozava das prerrogativas de um “cidadão comum” naquele Estado
de exceções. Os novos mandatários na Amazônia o haviam marcado como “subversivo”,
“comunista”, “agitador”, dentre outros adjetivos sempre negativados.
E como os demais narradores de “1964. Relatos subversivos”, veio à tona da
memória, o desbaratamento do I SLARDES. A noite em que estudantes da América Latina
12 Joaquim de Magalhães Cardoso Barata foi interventor no Pará em 1930 até 1934. Com governo nitidamente
populista, aos moldes varguistas, iniciou várias cenas de autoritarismo. Tais atitudes cativaram admiradores e
muitos inimigos. Sua presença na cena política paraense é evidente desde 1930 até 1950-59, quando saiu por
conta de sua morte. Suas práticas no estilo de governar deu origem ao termo baratismo.
13 Jorge Abelém, empresário bem sucedido em Belém (PA), foi citado por André Costa Nunes como membro
convicto da direita. Entretanto, pelos financiamentos desinteressados às movimentações do PCB e pelas ideias
avançadas, é narrado como pertencente da “direita progressista”, diferente do pensamento provinciano de boa
parte das elites mencionadas neste texto.
53
forma brindados pelo destempero dos também jovens “lenços brancos”. O primeiro contato de
Ruy Antonio Barata com a notícia daquela invasão por parte daqueles violentos rapazes
oriundos das oligarquias agrárias, foi por meio de uma conversa com sua irmã Maria Diva.
Não estava na cena fatídica que quase todos os narradores de “1964. Relatos subversivos”
lembraram ao iniciar suas memórias sobre o período de exceção na Amazônia Paraense. É
também o único depoente que se refere diretamente a este grupo como consequência de um
projeto ideológico doutrinado pela direita. Abaixo, permite maior entendimento ao narrar a
conversa com Maria Diva na noite de 30 de abril, de 1964, no dia do desbaratamento do
SLARDES.
- Mano, tu já sabes da maior? – perguntou minha irmã, visivelmente abalada.
- Estou completamente por fora, respondi.
- Os filhos dos fazendeiros do Marajó invadiram o SLARDES e foi o maior
quebra-pau.
Maria Diva estivera no seminário, com papai. Ela, na condição de membro
do departamento social da UAP, recepcionava os convidados, quando foi
avisada por uma colega da Faculdade de Engenharia que o local seria
invadido pela “direita” com o apoio de “soldados da Polícia Militar e da
Aeronáutica”... A informação era quente.
Em poucos minutos o recinto foi tomado pelo grupo de assalto. Jovens e
robustos rapazes, arregimentados entre os filhos da decadente nobreza
marajoara, transtornados pela raiva, exibiram conhecimento técnico passível
do orgulho de seu instrutor – um oficial de artilharia que faria carreira no
período autoritário que se anunciava.
- Parecia que estavam drogados! Os olhos injetados na face lívida pelo ódio
demonstravam que vinham preparados para arrebentar – relatou Maria Diva.
Munidos de porretes e enfeitados com lenços brancos promoveram um
espetáculo de barbárie, que até hoje deve envergonhá-los (BARATA, 2004,
p. 272-73). – grifos meus.
Pelos grifos é perceptível o quanto aquela cena, mesmo não experimentada in loco,
foi traumática e está em contínua encenação na memória de Ruy Antonio Barata. A invasão
do I SLARDES é narrada por todos os depoentes desta dissertação. Mas o único que percebeu
aquele episódio como fruto de “transtorno pela raiva” ou pelo ódio perceptível nas “faces
lívidas”, foi Ruy Antonio Barata. Não pretendo descartar tais sensações negativas nas atitudes
daqueles jovens de lenços brancos envoltos no pescoço. Afinal de contas, eram filhos de elites
agrárias em decadência econômica. Aviltar o SLARDES podia ter significados de defesa dos
status quo deles próprios e dos pais, como insinua Ruy Antonio Barata.
Todos os demais depoentes desta dissertação ao visitar os recônditos da memória
deram um significado comum à invasão do SLARDES: tratou-se de um episódio motivado
pela desesperança de pais e filhos das elites oligárquicas do Marajó que, ao perder
54
patrimônios, atribuíam toda a culpa às tendências sindicalistas do governo de João Goulart.
Não pensa assim Ruy Antonio Barata. Sobre esta temática, lança mão de suas recordações de
um diálogo com o “velho Ruy”, acontecido na noite de 1º de abril de 1964, já com o Golpe
Civil-Militar em curso, ao tratar da invasão da União Acadêmica Paraense e prisão dos
estudantes.
Está na rua um golpe militar maquinado pelos America nos e pelos
reacionários que se sentem ameaçados de perder seus privilégios construídos
sobre a miséria que tu mesmo presencias todos os dias nos porões da Santa
Casa, onde aprendes a tua medicina (BARATA, 2004, p. 275). Grifos meus.
O mesmo diálogo entre pai e filho também mostra as primeiras impressões sobre o
Golpe Civil-Militar em curso. É uma concepção, tal qual pensava o “velho Ruy”, que
compreendia todos aqueles cenários dos últimos dias de março e início de abril como um
evento motivado pela conjuntura internacional. Ou seja, as culpas do desbaratamento do
SLARDES (30 de março) e invasão da UAP (1º de abril) eram do patrocínio do imperialismo
americano. Desta forma, tomando por base este dado, pude compreender que as “batalhas da
memória” (REIS, 2004), em constantes movimentos, estão intrinsecamente ligadas às
identidades construídas pelos sujeitos que dão significados aos eventos passados.
A tese do Golpe Civil-Militar como produto de uma conspiração não é nova.
Publicações no final dos anos 1970 e início de 80, em momentos coerentes com a Guerra Fria,
apontavam a CIA (Agência de Inteligência Americana) como importante agente estrangeiro
com interesses pelo fim da política iniciada por João Goulart, principalmente quando em
1962, criou imposições para empresas estrangeiras remeterem seus lucros para fora do
circuito financeiro nacional. Soma-se ainda o IPES (Instituto de Pesquisas Econômicas e
Sociais) e IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), como representantes dos
interesses imperialistas em terras brasileiras (DELGADO, 2004). O diálogo entre pai e filho
dá mostras, portanto, de fina sintonia com o pensamento urdido pelos intelectuais daquele
contexto. 14
A militância política por parte dos acadêmicos de Medicina, e demais cursos da
UFPA, não iniciou somente por ocasião do Golpe Civil-Militar, em 1964. Já havia
organização estudantil em pleno gozo de suas prerrogativas e estatutos. Nos corredores, entre
uma e outra aula, já se falava em Brech, Sartre, Marx, dentre outros. O Partido Comunista,
14
Além da “teoria conspiratória”, sugerida por Ruy Antonio Barata, Delgado (2004) ainda indica que foram
postos em circulação outros discursos para explicar o processo ditatorial, tais como: “interpretações
estruturalistas e funcionais”, “caráter preventivo da ação civil e militar” e “análises conjunturais de falta de
compromisso com a democracia”.
55
assim como a Ação Popular e a Juventude Católica tinham fileiras de seguidores. Não
faltavam poetas engajados e atores ensaístas. Nos círculos universitários, as lutas por
melhorias educacionais estavam diariamente na pauta. As críticas – e apoios – ao projeto de
desenvolvimento, despejado no Brasil pelo Presidente Juscelino Kubitschek, pululavam na
Amazônia acadêmica.
Assim, não é descabido afirmar que os sujeitos envolvidos naquele movimento
acadêmico tinham experiências de vida que lhes possibilitavam formação política suficiente
para engajar-se em oposição ao Golpe Civil-Militar quando este acometeu o Brasil. O mesmo
raciocínio pode ser aplicado para justificar a presença de Ruy Antonio Barata nos quadros do
movimento universitário amazônico. Assim, para este sujeito, acrescento à formação política
todo o carinho, respeito, admiração nutrida pela figura do avô – Alarico Barata, advogado de
reputado lastro na defesa dos “mais fracos” –, e pelo “velho Ruy”. Estes fatores certamente
contaram sumamente para aceitar e buscar empenho no papel de liderança universitária.
Participar da luta estudantil foi um projeto de ajustes de contas contra os algozes de
seus amigos e das causas defendidas pelo “velho Ruy”? Esta questão surgiu quando vi a
determinação performática ao enfatizar cada palavra para “desmascarar” os inimigos políticos
do “velho Ruy". Assim, não se tratava de mera recusa ao projeto de governo implantado pelos
militares porque partia de um pensamento direitista retrógrado e avesso a avanços em setores
agrários, administrativos, etc. Mais do que isso, a postura encabeçadora junto ao movimento
acadêmico era reflexo da fidelidade aos valores familiares apreendidos do “velho Ruy” e de
dona Norma; sem descartar a formação intelectual a partir de autores com declínio para o
pensamento progressista, de esquerda, forjada pela biblioteca da família.
Ruy Antonio Barata naquele momento era um jovem convicto pelas necessidades de
mudanças na ordem social? Esta foi outra questão que se postou. No ano de 1964, já conhecia
as agruras das dependências clínicas do estado. A leitura da realidade médica na Santa Casa
de Misericórdia, no início do “túnel de mangueiras” da Avenida Generalíssimo Deodoro, no
bairro do Umarizal, em Belém, era de abandono e desleixo por parte do poder municipal,
estadual e federal, deixou entrever. Aquele ambiente o afetava a ponto de engajar-se numa
cruzada contra os militares cuja finalidade eram as reformas na área da saúde pública? Esta
resposta foi dada em depoimento contundente que não deixa dúvidas. Vejamos
Aos meus olhos de acadêmico, os infectos porões da Santa Casa eram a
manifestação mais grotesca da humilhação de seres humanos e da pobreza
abissal do Pará. Miseráveis indigentes purgavam aos cambulhões naquela
antecâmara do inferno. Deitavam-se em leitos enferrujados cobertos por
lençóis de morim ordinário e vestiam um impiedoso camisão do mesmo
56
tecido amarrado nas costas por fitinhas de nastro. Eram portadores de
leishmaniose, blastomicose15
, tuberculose, impaludismo, desnutrição,
amebíase, giardíase, parasitoses diversas e outras patologias, de fácil
superação pela aplicação de medidas simples de saúde pública.
A falta de água tratada e mínimas condições sanitárias, determinavam
alarmantes índices de mortalidade infantil cujo símbolo era o desfile diário
pelas ruas da cidade de enormes carros fúnebres brancos envidraçados, à
maneira de redomas caprichosamente decoradas, para o enterro dos anjinhos.
O diagnóstico mais frequente na Santa Casa era Síndrome Anêmico
Parasitário, expressão cunhada pelos esculápios paraenses para designar uma
mistura de desnutrição proteica, redução dos desenvolvimentos físico-mental
e anemia produzida por verminose. Inadmissivelmente, não havia leite para
as crianças pobres. Restava-lhes matar a fome com mingau de carimã
(farinha de mandioca isenta de proteínas). Morriam aos borbotões: opados e
buchudos. E nasciam primitivamente sem cuidados médicos. Os versos do
poema “O Nativo” do velho Ruy aí cabiam como luva: “E nascem porque
nascer faz parte da emboscada” (BARATA, 2004, pp. 275-76). – grifo meu.
O depoimento acima é emblemático pela metáfora elaborada a partir dos “infectos
porões” vivenciados por ele e pelos doentes na Santa Casa de Misericórdia. Nesta construção
de Ruy Antonio Barata, é possível ver o Estado do Pará como representativo daquele espaço
fétido e em decomposição. A fala do depoente permite ainda vislumbrar a pobreza, péssimas
condições de vida e dificuldades de acesso ao exercício da cidadania para a maior parte da
população. Ao citar as doenças, Ruy se apressa em mostrar “parasitas” habitando e sugando a
vida dos doentes. Com isso, é bem provável que a narrativa tenha o interesse em perceber a
classe política da Amazônia Paraense não só como responsável pela má administração, mas
como causadora dos males que afligiam o estado.
Ruy Antonio Barata, no auge de sua indignação, analisa a cultura gastronômica
amazônica ao acusar os “mingaus de carimã” como responsáveis por uma sociedade “mal
nutrida”, “faminta”. Novamente é preciso adentrar nesta seara partindo da premissa de que o
depoente fala por metáforas médicas. Se assim nos propusermos a fazer, posso depreender
que as “proteínas ausentes” no mingau sejam as ideias, críticas, posturas políticas já
praticadas em outros circuitos culturais e, por estas bandas, ainda mal ensaiadas ou sequer
assinaladas nas práticas e discursos de nossas gentes.
O que faltava ao povo para melhor nutrir-se? Estavam famintos de quê? Penso que os
ouvidos atentos de Ruy Antonio Barata nas salas de reuniões – algumas secretas, outras não –
do “velho Ruy”, os olhos investigativos nos porões da Santa Casa de Misericórdia, nas
15 sf (blasto+micose) Med Doença produzida por Blastomicetes. B. brasileira, Med: infecção com Blastomyces
brasiliensis, que começa como úlcera nos tecidos bucais e se estende à cútis adjacente, às amígdalas, aos vasos
linfáticos gastrintestinais, ao fígado e ao baço; também chamada blastomicose sul-americana. Extraído de
http://www.dicio.com.br/blastomicose/ - acessado em 10.04.2012
57
participações e audições de Conselhos Universitários – a ponto de encabeçar depois o
movimento de ocupação da UFPA, descrito na terceira parte desta dissertação –, são
prováveis direções a serem trilhadas para compreender o que este sujeito “medicaria” aos
“doentes e famintos”. Inegavelmente estava diante de mim um depoente ávido por mostrar
suas diversas facetas identitárias: médico, comunista e, acima de tudo, um insatisfeito cidadão
com os rumos administrativos da cidade e da região.
58
1.3 João de Jesus Paes Loureiro
Nasceu em 1939, no Pará, em Abaetetuba, onde iniciou seus estudos na
escola pública. É professor de Estética na Universidade Federal do Pará.
Mestre em Teoria da Literatura e Semiologia da Cultura na Sorbonne, Paris,
França. A partir de 1983, esteve Secretário de Educação e Cultura de Belém,
Superintendente e criador da Fundação Cultura de Pará Tancredo Neves,
Secretário de Estado da Cultura e Presidente e criador do Instituto de Artes
do Pará. Expôs na X Bienal de São Paulo poemas visuais. Participou com
poema-objeto da mostra A Vanguarda Visual Brasileira – 50 anos depois da
Semana da Arte Moderna, organizada por Roberto Pontual, para a Galeria
Collectio / SP. Prêmio Nacional de Melhor Livro de Poesia, em 1984, pela
Associação Paulista de críticos de arte, com o livro Altar em Chamas. Suas
obras poéticas mais recentes são Cantares Amazônicos, Pentacantos,
Romances das Três Flautas – edição bilíngue, português e alemão – O Poeta
Wang Wei (699-759 a.d) na Visão de Sun Chian e João de Jesus Paes
Loureiro – edição bilíngue, chinês e português. Iluminações / Iluminaturas,
traduzido para o japonês por Kikuo Furuno e ilustrado por Tikashi
Fukushima – edição bilíngüe, japonês e português – publicados por Roswita
Kempf Editora / SP. Gesãnge dês Amazonas, edição alemã, pela Editora
DIA de Berlim, 1991. Cantares Amazônicos, edição italiana, L’Aquila,
1990. Estética da Arte, obra didática, Altar em Chamas e outros poemas, O
Ser Aberto e Cultura Amazônica – Uma Poética do Imaginário (Tese de
Doutoramento, publicada no Brasil, pela Cejup/Belém, Escrituras / SP, e em
Portugal, pela Íman Editora), A Poesia Como Encantaria da Linguagem,
editado pela Cejup, em 1998 / 99. O Azul e o Raro pela Violões da
Amazônia / PA, e Pássaro da Terra, pela Escrituras Editora / SP. Em 2001,
Obras Reunidas, pela Escrituras / SP, Prêmio Pine de Texto. Em 2002, Au-
delà Du méadre de ce fleuve (Além da curva daquele rio), pela Actes
Sud/France, edição em língua francesa, ainda sem publicação no Brasil. 16
16 A breve biografia de João de Jesus Paes Loureiro foi produzida em 2004 por ocasião do lançamento do livro
“1964. Relatos subversivos: os estudantes e o golpe no Pará”. A biografia de cada autor do livro aparece logo no
final de cada narrativa. A omissão da informação do Doutorado em Sociologia da Cultura, obtido em Paris-
Sorbonne, França, em 1994, é de responsabilidade do próprio.
João de Jesus Paes Loureiro
Foto: Jaime Cuéllar Velarde, em 03 de março de 2011.
59
Poeta, folclorista, ensaísta e dramaturgo. Esses são alguns dos adjetivos que se pode
atribuir a Paes Loureiro. Nascido em Abaetetuba, cidade paraense situada à margem do Rio
Tocantins, em 23 de Junho de 1939, cursou a Faculdade de Direito e a Faculdade de Letras,
Artes e Comunicação, na Universidade Federal do Pará. De 1964 até 1976, em decorrência de
sua poesia, militância política e ideias democráticas, foi perseguido e várias vezes preso pela
ditadura militar, sofrendo torturas, graves perseguições e privações de oportunidades
profissionais.
Este sujeito cultural inicia sua narrativa a partir de uma perda irreparável. Sua
trajetória de vida, sucesso acadêmico, viagens internacionais, publicações de suas obras em
diversos idiomas, cargos públicos ligados à Cultura no estado do Pará, casamento, círculo de
amizades... Tudo isto está vincado pela apreensão e destruição do livro “Tarefa” que seria
lançado em 30 de junho de 1964, em plena reunião do I SLARDES, com sessão de autógrafos
para o dia 03 de abril, no momento de encerramento do dito evento. O evento de sua prisão ao
ser narrado também é carregado de dor, medo, tensão nas memórias deste narrador. Então a
apreensão da edição do “Tarefa” e sua consequente prisão sob a acusação de “subversivo”
serão inicialmente pontuados como as cenas que mais carregam implicações para a trajetória
de vida.
Em depoimento prestado em 03 e 30 de março de 2011, Paes Loureiro apresenta as
razões que justificam o profundo pesar repousante sobre seus discursos por ocasião da
apreensão da edição do “Tarefa”.
Essa poesia própria da época. Uma poesia experimental, mas que tinha um
cunho social, político. Além dos poemas de temas líricos também. Esse tipo
de poesia contida no Tarefa não havia no Brasil. Havia os chamados poemas
engajados. Digamos assim, mais simples de cunho político. Mas um livro
inteiro com temas trabalhados formalmente, mas com conteúdo social,
político, não havia. Então eu suponho que seria um grande momento de
lançamento como autor. Até porque a UNE daria grande repercussão aos
livros que fossem editados dentro dessa linha. E o meu era o primeiro. Então
quer dizer a frustração que isso me deu. O impacto espiritual foi muito
grande e foi algo que eu acho que eu nunca perdi. Aquela dor de ter perdido
aquele primeiro livro. E tudo o que significava para mim, para época, para os
meus ideários e tudo mais (Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de
2011).
No início de 2011 busquei contatos que me aproximassem deste sujeito cultural.
Numa rápida varredura pela internet achei seu e-mail. Com o primeiro contato via e-mail ele
sugeriu o telefônico. Este fato me mostrou sua disponibilidade em ajudar um mestrando em
60
fase inicial de pesquisa. Prontifiquei-me para aceitar qualquer sugestão dele, por isso não
houve contratempo quanto ao local ou horário: a primeira reunião fora marcada para o dia 03
de março, às 16 horas, em seu apartamento. Procurei ser pontual.
Adentrei na Av. Serzedelo Correa e avistei o Edifício Augusto Araújo, entrei. A cena
seguinte foi afortunada. O porteiro pediu-me um favor: que entregasse um pequeno embrulho
à esposa de Paes Loureiro, professora Violeta Refkalefsky Loureiro. Aquilo foi interessante,
pois iria prestar um “pequeno favor” à família Loureiro. “Quanta honra”, disse à senhora
Loureiro ao entregar o pequeno pacote. O casal sorriu gentilmente e, sem dar-me conta, já
havia quebrado a solenidade de invasão no espaço do “Outro”. O suor das mãos e o sorriso
nervoso estavam amenizados. O ritual da entrevista havia começado bem e o mérito deposito
à acessibilidade do casal Loureiro.
Ao fazer um breve warm-up17
com livros sobre a temática da Ditadura militar, o
professor Paes Loureiro pôs-se a discorrer ao longo de uma hora e trinta e sete minutos sem
que alguma pergunta fosse feita. Não aparentava pressa alguma e eu, de minha parte, comecei
a impacientar-me com tamanha despreocupação. Mais tarde, ao rever o vídeo da entrevista,
constatei que eu também estava sendo investigado por Paes Loureiro (PORTELLI, 1997). Um
homem gentil, educado e, estranhamente, aparentando inquietação. As pernas balançando, as
mãos cruzadas e o corpo inclinado para frente demonstravam apreensão.
A relação de “visão mútua nas relações sociais” e “igualdade de condições sociais”
haviam sido estabelecidas, por isso não se tratava de alguma barreira em conceder aquele
depoimento. Previamente havia me identificado de forma a ser reconhecido como um
historiador interessado em prestar contas com as lacunas historiográficas dos tempos de
exceção. Loureiro viu em mim um pesquisador ávido em conhecer a história recente de nosso
país por meio de suas memórias. Isso o colocava em posição de privilégio enquanto
informante e sujeito da história do país. Tu podes voltar outra vez. Até porque se tu me ligares
da outra vez eu vejo para ti esse material, disse Paes Loureiro, ao final da entrevista,
comprometendo-se a enriquecer a pesquisa com um material novo e necessário para mim. A
pesquisa, com essa frase, deixava de ser somente uma tarefa acadêmica para mim e o
entrevistado; ganhava outros contornos, tais como cumplicidade, cordialidade, estreitamento
17 Expressão saxônica que significa “aquecimento”. É uma técnica de entrevista sugerida pelo professor
orientador Agenor Sarraf Pacheco que consiste em preparar o ambiente da entrevista com o intuito de favorecer
o exercício de rememoração do entrevistado. Ao iniciar a entrevista levei alguns livros pertinentes a temática da
ditadura militar. Indaguei se conhecia algum. “Pouco leio ultimamente”, disse, mas deu atenção ao “Feliz ano-
velho”, de Marcelo Rubens Paiva. Tateou algumas páginas e disse que havia sido um marco na literatura, ao
contrário de “O que é isso, companheiro?”, de Fernando Gabeira, a quem chamou de oportunista.
61
de interesses (PORTELLI, 1997). Então o que aquele corpo inquieto queria comunicar?
Aponto possibilidades.
À medida que Loureiro me falava sobre sua prisão, a tortura sofrida, seu medo de
morrer sob a tutela do DOPS, seus projetos de vida frustrados pela intolerância do regime, a
emoção tomava conta do ambiente. A narrativa provavelmente lidava com fantasmas que
rondavam o narrador há quarenta e sete anos. Aquela temática em tela o remetia a um tempo
de dor. Percebi ao final da entrevista, e mais tarde por meio de leituras sugeridas pela
orientação, que a inquietação, nervosismo, inquietude do corpo de Loureiro estavam
diretamente relacionada aos espectros presentes naquela sala.
O primeiro fantasma a fazer-se presente foi o livro “Tarefa”, de autoria do próprio
Paes Loureiro, que não pôde ser lançado na noite de 30 de março de 1964 por ocasião de uma
orquestrada invasão à sede da UAP (União Acadêmica Paraense). Naquela ocasião, a UAP
sediava uma reunião do SLARDES. Havia estudantes de diversos países da América latina.
Paes Loureiro, estudante de Direito, iria aproveitar o ensejo para lançar seu primeiro livro de
poemas, intitulado “Tarefa”. O entusiasmo em vislumbrar o lançamento de seu primeiro livro
veio à memória do depoente antes mesmo de narrar à invasão da UAP.
Tinha feito aqueles cartazinhos. Eu tinha levado um exemplar. Tinha dado
para um jornalista. E algum colega meu pegou lá para algum tipo de
divulgação. Tinha mandado para Abaetetuba, para minha família dois
exemplares. E fui para sessão do SLARDES, aqui na Batista Campos, na
antiga Faculdade de Odontologia levando um exemplar para dar pro Alonso
Rocha. O Alonso Rocha que já era um escritor. Eu já gostava muito dele.
Uma geração bem anterior a minha. É anterior ao Benedito Nunes.
Trabalhava no Banco de Londres nesse tempo e era líder do Sindicato dos
Bancários. Eu tinha dado para ele ler o livro antes da publicação. Para
discutir com ele. Tinha ficado entusiasmado. Incentivou a publicação. E eu
levei para ele e dei, autografei. Dei um exemplar para ele. (Paes Loureiro,
entrevista em 03 e 30 de março de 2011).
Entusiasmo é o adjetivo utilizado por Paes Loureiro para descrever aquele momento.
De fato, o depoimento não deixa dúvidas quanto à importância do evento para sua trajetória
como escritor, tanto que a família em Abaetetuba já havia recebido exemplar como prova dos
frutos de estar em estudos na capital do estado. O “líder do Sindicato dos Bancários”
referendava sua capacidade intelectual, citá-lo era um recurso de retórica. Assim como citar
Benedito Nunes, já entre os píncaros da intelectualidade amazônica ainda nos anos 60,
também era estratégia para fazer-se presente entre a elite daquele momento.
Depois de explicitar o entusiasmo pela produção, aceitação de alguns leitores de sua
confiança e provável lançamento do livro “Tarefa” que poderia ter mudado sua carreira
62
artística, outro fantasma veio à cena quando começou a narrar o episódio da invasão da UAP:
os famigerados “lenços brancos”.
Naquela noite lá no SLARDES nós fomos vítimas da agressão dos “lenços
brancos”. Que eram rapazes da chamada burguesia da época. Essa classe
média alta. E com muitos filhos de fazendeiros do Marajó. E que criaram
uma associação para enfrentar os esquerdistas e para ser identificados numa
hora de briga ou qualquer coisa. Ou quando chegasse a polícia com quem
eles estavam mancomunados. A polícia sabia em quem deveria baixar a
porrada e em quem não devia. Ou quem deviam prender. Então a
identificação deles era o lenço branco amarrado no pescoço. E a primeira vez
que ocorreu essa manifestação deles. Foi que entraram lá e entraram de pau.
Discutindo. Essa coisa toda. E a polícia quando entrou já sabia em quem
baixar o pau. E eu com o Alonso levamos uns empurrões lá, uns tapas lá. E
conseguimos sair (Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de 2011).
Curiosamente, mesmo tendo sido um momento doloroso – literalmente, pelos
safanões sofridos – a narrativa de Paes Loureiro é repleta de sorrisos e diversão ao narrar
àquela cena. Diante de uma cena narrada com tamanha dissonância, duas inferências são
necessárias. Primeiro, do bom humor com sorrisos e postura corporal positiva, não posso
depreender falta de importância para o momento de vida narrado. Obviamente, foi uma
recordação triste em sua trajetória de vida. Ao invés de uma pomposa homenagem pelo
lançamento de uma obra poética, Paes Loureiro levou safanões e teve de abandonar o lugar às
pressas para não ser surrado pelos “lenços brancos”. Então, apesar dos sorrisos, o simples fato
de lembrar sabendo que se trata de uma narrativa para ser cristalizada na escrita histórica já é
demonstração de um sujeito em lutas contra apagamento das suas imagens.
Segundo, o texto oralizado é o mesmo sempre quando a memória é acionada. Essa
mesma passagem de sua vida está sempre presente em programas de televisão na qual Paes
Loureiro é convidado. Em “1964. Relatos subversivos”, por exemplo, essa mesma cena
também é contada, mas as performances podem variar conforme as situações diversas que o
tempo presente e as circunstâncias podem exigir. Ou seja, no momento em que esta entrevista
se dava, o narrador se encontrava no ambiente tranquilo de sua casa, com o gato de estimação
pedindo, e recebendo, suas atenções. A esposa, Violeta Loureiro, vez ou outra atravessava a
espaçosa sala e voltava com água, petiscos, café. Portanto, por mais dolorosas que fossem
aquelas recordações, não se pode deixar de mensurar a importância e interferência do
ambiente para o desabrochar das lembranças. Desta forma, as performances expressam, assim
como todo documento histórico, a subjetividade implícita dos sujeitos históricos.
Em outro momento da entrevista, Paes Loureiro retomou ao mesmo fato. Desta vez,
o roteiro performático foi outro. O fato curioso é o tom solene e grave quando lembra de seu
63
entusiasmo e da capacidade em ser o pioneiro na atividade político-militante. Mas quando
aborda os tapas e safanões levados no momento da invasão da sede sorri divertidamente.
Retomou o tom grave na fala e no corpo ao abordar novamente a edição do livro
Toda a edição foi destruída pela Marinha. E por muito tempo nem eu tinha o
livro. Porque houve um fato para frente interessante. Mas pouca gente tinha.
Então isso me marcou muito. Isso me traumatizou muito. Porque era um
livro que era digamos assim, ele poderia ter sido um marco nessa poesia
brasileira da época (Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de 2011).
Aqui Paes Loureiro trabalha no campo das possibilidades. Ou seja, caso o livro
tivesse sido lançado dentro da normalidade ele poderia ter o reconhecimento nacional
enquanto escritor de uma poesia política. Paes Loureiro apostava no caráter ineditista de seu
trabalho, pois de fato entendia que sua poesia era “própria da época”, mas contava com um
elemento até então não explorado pelos demais artistas das letras.
Paes Loureiro tem a clara noção do que sua obra representava para aquele momento
histórico. No cenário nacional, Jânio Quadros havia renunciado e João Goulart, quase não
toma posse; diversas manifestações da sociedade civil (setores do catolicismo conservador,
em especial) faziam passeatas em prol de “Deus, Pátria e a Família pela Liberdade”, já em
oposição aos ideais de esquerda. 18
Assim, aponta o cunho político de seus escritos como divisor de águas entre ele e os
demais autores da época. Ou seja, seu engajamento não era somente artístico, mas tinha
também a militância diante de uma realidade que não lhe convinha ou desagradava. No
cenário paraense, mais manifestações de esquerda pululavam com o aumento de preços da
farinha e, em Capanema, era fundado o primeiro Sindicato Rural da Amazônia. De fato, eram
tempos de dicotomias também pela guerra fria que se avizinhava pela Revolução Cubana, de
1959 (VELARDE, 2005). Esse ambiente sociopolítico era muito fecundo a Paes Loureiro.
Outro ponto a ser dimensionado na fala deste depoente é que, tomando como verdade
o fato da memória individual ser uma expressão da coletividade, então é bem provável que a
teoria de pioneirismo naquele tipo de atividade poético-militante tivesse adesão de seus
contemporâneos.
Não tenho a pretensão de especular a verdade sobre tal pioneirismo, mas é necessário
enfatizar que a forma como Paes Loureiro pensa o “Tarefa” e seu engajamento poético-
18
No Pará, próceres como Ruy Paranatinga Barata e Alfredo Oliveira lutavam em favor dos rumos legais para
aquela situação nova. Defendiam a posse de João Goulart como única medida para manter o quadro de
expectativas democráticas. No cenário nacional, destacou-se a “cadeia da legalidade” liderada por Leonel
Brizola que foi, aliás, vitoriosa.
64
militante é, no mínimo, um anseio deste sujeito que, neste momento, lança mão da ocasião
desta dissertação para remediar a injustiça sofrida por ele. O fato deste anseio ser manifestado
com tamanha eloquência já é digno de nota e credibilidade para a pesquisa (PORTELLI,
1997a).
Por outro lado, não descarto a questão posta por Paes Loureiro acerca da
representatividade de seu trabalho para o cenário regional/nacional. Afinal de contas, na
ocasião do lançamento haveria participação efetiva da UNE (União Nacional de Estudantes)
no suporte logístico para o lançamento e divulgação da obra. Certamente, tudo isso daria ecos
fora da região norte para o livro, conforme narra:
Até porque a UNE daria grande repercussão aos livros que fossem editados
dentro dessa linha. E o meu era o primeiro. Então quer dizer a frustração que
isso me deu. O impacto espiritual foi muito grande e foi algo que eu acho
que eu nunca perdi. Aquela dor de ter perdido aquele primeiro livro. E tudo
o que significava para mim, para época, para os meus ideários e tudo mais.
(Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de 2011).
Além de dar-se conta da repercussão graças à intervenção da UNE, novamente Paes
Loureiro retomou a angústia de não poder publicar o “Tarefa”. Aliás, o depoente retomou
aquela “dor de ter perdido aquele livro” em torno de seis vezes ao longo da entrevista. Narrou
o episódio da dor com argumentos variados, mas manteve o mesmo teor argumentativo. A
repetição da narrativa tinha um significado implícito (PORTELLI, 2001). Pelas performances
de corpo e voz, Paes Loureiro assumia o papel de “professor” na entrevista.
A informação havia sido dada, mas pela repetição do enunciado parecia desejar que
eu internalizasse aquela informação tal qual os antigos professores faziam (ainda fazem) com
seus alunos. Curiosamente, o momento da invasão, das tapas e safanões, não tiveram a mesma
reiteração na entrevista. Conclui que Paes Loureiro revivia aquela cena repetidamente com o
objetivo de reconstituir-se enquanto sujeito. A ditadura havia subtraído não apenas um objeto
(livro), mas parte de sua história, sua própria vida, frustrando-o em como sujeito.
Na medida em que esse depoimento vinha à tona, aquele senhor sentado à minha
frente abordava a dor causada pela injustiça imposta pelo regime militar. Naquele momento
dei-me conta de que Paes Loureiro estava entre as penumbras da história (THOMPSON,
2002). Enquanto sujeito cultural tão recorrente nos círculos acadêmicos o sobrenome
Loureiro é bastante citado, mas o aspecto do sofrimento por não poder recordar uma
experiência não vivida era prova cabal de que aquele era um momento doloroso para meu
65
depoente. A partir desse momento, a fala de Paes Loureiro já semeava solidariedade. E é bem
provável que aquele discurso tivesse justamente essa intencionalidade.
Avançando na narrativa, o entrevistado voa nas lembranças e avança para os dias
posteriores a invasão da UAP. A sensação desagradável aumentava à medida que o Loureiro
passeava pelos corredores da memória e via a casa dos pais sendo invadida altas horas da
noite, vendo seu irmão caçula sendo jogado truculentamente da rede sob o subterfúgio de
estarem procurando o subversivo, sua irmã inexperiente e amedrontada pedindo “papel” que
autorizasse a busca. Isso tudo sendo dito em meios sorrisos sem vida e pernas agitadas. Não
só a linguagem verbal estava sendo exteriorizada, mas a linguagem do corpo se manifestava
eloquentemente (GLISSANT, 2005).
Como todo historiador afeito aos detalhes queria saber mais sobre essas memórias.
Mais sobre a dor e sobre quais táticas foram urdidas para aliviar essas feridas. Foi então que a
História contra o esquecimento, de Sarlo (1997), ajudou a perceber que a estratégia de luta de
Paes Loureiro era exatamente o fato de conceder aquela entrevista.
A relação entre memória e esquecimento pode-se objetivar num discurso,
mas, para que a relação exista, deve também existir o documento capaz de
dar à memória pelo menos a mesma força do esquecimento: o documento
que se imponha como pilar da memória e que a memória tende,
inevitavelmente, a rejeitar (SARLO, 1997, p. 42).
Assim sendo, a arma do subversivo Paes Loureiro era o relato por meio da Literatura
e sua postura como depoente. O documento oralizado e transformado em documento escrito
ainda é para a academia o discurso que mais legitima, seja pela tradição da academia, seja
pela tradição do documento escrito. Paes Loureiro sabe dessa premissa e habilmente soube
posicionar-se no campo de batalha. Mais do que conceder uma entrevista, estava em jogo toda
a ardilosa tática de resistência de sua obra poética. Naquele momento, Loureiro mais uma vez
agia sorrateira e inteligentemente desde quando aceitou ceder informações para a tecedura
desta dissertação, desta vez contra o esquecimento de sua história de vida. Exemplo
semelhante aos demais narradores desta urdidura.
66
1.4 José da Silva Seráfico de Assis Carvalho
Estava na sede de UAP, quando o Exército, coronel Peixe-agulha à frente,
invadiu a entidade universitária. Ganhou um tapa, desferido em meio a
palavrões do militar. Depois disso, perdeu um emprego conquistado em
concurso público (da SPVEA) e o emprego no Jornal do Dia. Obter novo
emprego em Belém não foi possível. Por isso, em agosto de 1966, viajou
para Manaus. Os quinze dias que passaria na capital amazonense duram até
hoje. Lá, ingressou no quadro docente da Universidade Federal do
Amazonas, desempenhou vários cargos públicos e atuou em empresas. Foi
Secretário Municipal de Administração de Manaus, diretor da Faculdade de
Estudos Sociais da Universidade Federal do Amazonas, além de ter ocupado
várias outras funções, acadêmicas e na administração pública. Hoje, é
aposentado pela Universidade e pelo Governo do Estado. E cuja Secretaria
de Fazenda pertenceu, após aprovação em concurso público. Além dos cinco
livros que escreveu, José Seráfico de Carvalho tem mais de mil artigos
publicados em jornais e revistas nacionais. Hoje, dirige a Fundação Djalma
Batista e é membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social
da Presidência da República. Casado com a médica Maria da Graça, tem
dois filhos – Marcelo, doutorando em Sociologia na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, e Gustavo, assessor técnico do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região, com atuação em Brasília. 19
Por ter sido vítima de uma bofetada desferida pelo comandante “Peixe Agulha”,
quando a UAP foi invadida, em 1º de abril de 1964, interessei-me pela averiguação sobre a
identidade de José Seráfico de Carvalho. A cena, descrita em “1964. Relatos subversivos”, foi
a instigação que catapultou minha ânsia para conhecer academicamente as memórias deste
sujeito cultural à época do Golpe Civil-Militar.
19 A breve biografia de José Seráfico de Carvalho foi produzida em 2004 por ocasião do lançamento do livro
“1964. Relatos subversivos: os estudantes e o golpe no Pará”. A biografia de cada autor do livro aparece logo no
final de cada narrativa.
José da Silva Seráfico de Assis Carvalho
Foto: Jaime Cuéllar Velarde - Belém (PA), 07 de outubro de 2011.
67
Durante a pesquisa, confirmei aquela cena como o primeiro ato da violência dos
golpistas contra a sociedade civil. Uma dentre várias outras ocorridas nos anos seguintes. Era
preciso, todavia, perceber ações que o posicionasse dentre os sujeitos culturais previstas pela
metodologia.
José Seráfico de Carvalho, por ocasião da prisão sofrida em 1964, no ofício ao qual
havia dedicado suas atenções acadêmicas no curso de Direito não conseguia emprego para
obter o próprio sustento. Tampouco conseguiu rever seu emprego de noticiarista no jornal “O
Dia”. Havia passado cinquenta e nove dias preso. Tempo suficiente para que os novos
mandatários do poder impregnassem de medo sua readmissão. Por e-mail, adiantou-me todas
estas questões, dando destaque para a nova etapa de sua vida após aquela prisão.
A volta ao jornal acabou, quando nova ameaça do [comandante militar que
invadiu a UAP] “Peixe Agulha” forçou minha demissão. Restava-me
procurar o quê fazer. O vazio interior não demorou a ser preenchido, com o
emprego na Rádio Guajará, da qual me tornei noticiarista. Enquanto isso,
batia às portas da Justiça, magnificamente orientado pelo Dr. Alarico Barata.
Acabei por receber seis meses de salários, sem ter trabalhado, por objeção
dos dirigentes da então SPVEA. (José Seráfico de Carvalho, por e-mail, em
01 de outubro de 2011).
Novamente, o Coronel Peixe Agulha estava atravessado em sua trajetória. Isso o fez
esgueirar-se por outras brechas de trabalho obter seu sustento, mas sempre com o auxílio da
família, amigos e, principalmente, com camaradas já engajados na luta pela redemocratização
do país. Ainda não havia chegado o ano de 1968, com o famigerado AI-5, que fechou
quaisquer possibilidades de diálogos de civis descontentes com a ditadura instalada. Ainda
assim, na Belém provinciana dos anos 1960, os discursos raivosos de ataques à honra “dos
subversivos” eram constantes.
Quanto a isto, José Seráfico de Carvalho descreveu como “a pior sensação”. Não por
ter sido ele uma vítima do novo regime autoritário, mas pelas portas fechadas para as
oportunidades de levar “o Brasil a uma democracia plena, sem tanta desigualdade”. Com isto,
também “ia paro ralo a intenção de seguir carreira política”. Tais informações, vindas por e-
mail, eram instigantemente perturbadoras. A identidade narrada era de um sujeito cuja
sublimação estava despojada de valores materiais, conforme detalha abaixo:
A pior sensação, todavia, não esteve nos empregos perdidos, nem na prisão.
Mais que tudo, magoava-me a destruição de uma caminhada que,
certamente, levaria o Brasil a uma democracia plena, sem tanta
desigualdade.
(...)
68
Pouco mais de dois anos após o golpe militar, busquei em Manaus as portas
que se fecharam na cidade onde nasci. Isso serve para começo? (José
Seráfico de Carvalho, por e-mail, em 01 de outubro de 2011).
A “destruição da caminhada” havia sido avassaladora. As prisões, censuras e as
pechas de subversivos haviam afastado amigos e possibilidades de empregos. O caso da
prisão de Paes Loureiro trouxe resultados similares. Vários colegas de faculdade, por
instrução das convicções políticas dos pais ou deles próprios, também se afastaram. Junto
com o distanciamento dissimulado dos amigos, outras dificuldades apareciam.
No caso de Paes Loureiro, a busca de refúgio se deu nas ilhas dos arredores de
Abaetetuba (PA), sua cidade natal. A saga desta fuga inicia no Café Central, na Av.
Presidente Vargas, no centro de Belém. Ali, sob a tutela do amigo “Pepe”, ficou dias trancado
no andar superior durante o dia e, durante a noite, descia para o “Café” e buscava no próprio
reflexo dos espelhos compreender e diferenciar imaginário e realidade. Talvez no início de
sua fuga para não ser preso novamente, “entorpecido pela bebida e os pesadelos, sempre
cercado de sonolentos espelhos molduras douradas e iluminuras foscas” tenha chegado às
mesmas constatações de José Seráfico de Carvalho: as portas de possibilidades em Belém
estava fechadas enquanto durasse o regime militar. 20
O ostracismo estava onde estivesse José Seráfico de Carvalho. Andar na cidade trazia
a aparente sensação de liberdade, mas estava sendo observado, vigiado e repudiado. Assim, a
saída do depoente foi enfiar-se num avião rumo a outro ambiente sociopolítico que pudesse
reunir condições de recomeçar sua empreitada rumo a um “Brasil com democracia plena, sem
tanta desigualdade”.
Em pouco tempo, todos os estudantes presos na invasão da UAP foram
estereotipados como ameaças ou perigosos para a segurança da nação. Ser subversivo havia
transformado José Seráfico de Carvalho em persona non grata dentro de Belém. O mesmo
ocorreu com todos os demais narradores desta dissertação, com exceção de Dulce Rosa. 21
Colegas de faculdade, amigos e alguns familiares não davam oportunidades de aproximação.
20 Ver o Loureiro (2011). Numa mescla de ficção e realidade, o autor aventura-se na estética romancista pela
primeira vez ao longo da carreira (sempre foi mais poeta). Em escrita que durou oito anos, lançou o romance
“Café Central” cuja capa é emblemática para compreender a identidade do narrador: espelhos refletindo sua
imagem em dúbia manifestação de realidade-imaginação. Passados 47 anos de sua prisão, o tema da Ditadura
Civil-Militar, apreensão do primeiro livro de poesias e prisão não lhe escaparam da memória e da trajetória
artística.
21 Dulce Rosa não chegou a ser presa por conta do Golpe Civil-Militar. Foi convidada a adentrar ao PCB dias
após o 1º de abril de 1964. O interesse para sua participação junto ao processo de resistência se dava pela
facilidade da mesma em circular pelos espaços da cidade sem ser percebida como agente da resistência
comunista.
69
Assim como possíveis empregadores não deram margem para quaisquer oportunidades de
trabalho.
Neste processo de satanização à sua imagem, em 1966, uma viagem para Manaus
mudou os rumos de sua trajetória no Pará. A pedido de seu pai, foi a pretexto de acompanhar
uma parente em viagem de avião. Já em terras mais seguras para sua integridade física e longe
das empáfias dos militares de Belém, a família lhe solicitou que estendesse sua estada na
capital amazonense sob o argumento de buscar algum emprego. A família já havia decidido
afastá-lo do epicentro político de Belém para preservar sua segurança. Só tempos depois se
deu conta da atitude de proteção paterna.
“Escapei da prisão na Quinta Companhia de Guardas, mas fui aprisionado pela mais
doce das prisões”, me confessou quando estivemos em seu apartamento na Av. Nazaré, no
bairro de mesmo nome, na capital paraense. Conheceu a manauara Maria da Graça (hoje
médica), casou, constituiu família constituiu família. Lá, na capital amazonense, fixou
residência até os dias de hoje.
Diante do exposto, pela distância deste sujeito – estava na Amazônia Amazonense –
a entrevista com o mesmo era praticamente impossível. Eu não tinha como deslocar-me até
aquele estado para realizar a entrevista. Ainda assim, entrei em contato via e-mail. Apontei
minhas intenções de pesquisa, objetivos e importância para a historiografia amazônica.
Enquanto aguardava sua resposta, percebi vários problemas para a metodologia da História
Oral, uma delas era não poder contar com a análise das performances no decorrer das
recordações e emoções que pudesse vir à tona. Estava prestes a deixar de lado o depoimento
de José Seráfico de Carvalho justo por este detalhe.
Na resposta do e-mail, aquiesceu e presenteou-me com a surpresa de sua vinda até
Belém entre os dias 07 e 10 de outubro de 2011, por conta de sua devoção ao Círio de Nazaré.
Por conta de sua presença nesta capital, concedeu-me duas entrevistas, nos dia 07 e 09 de
outubro de 2011. Ambas na sacada do apartamento da família na Av. Nazaré. Estava pronta a
oportunidade para uma conversa tête à tête.
Ao dirigir-me até seu apartamento, sugestão de José Seráfico de Carvalho para as
entrevistas, constatei o fluxo maior do trânsito no bairro de Nazaré, em Belém. Era o mês de
outubro, em sua primeira quinzena. Neste período, a cidade é inundada de católicos,
especialmente, por conta da procissão em homenagem à Virgem de Nazaré. Naquela tarde, as
ruas estavam repletas de vendedores de flores, fitas, águas de cheiros, ervas exalantes,
brinquedos e demais suvenires pertinentes à festa religiosa. Sacra e profana, esta festa na
Amazônia Belemense é comparada ao Natal por conta do clima de confraternização de muitas
70
famílias. As comidas típicas são vendidas nas ruas, mas é nas residências que concluem o
papel de reunir famílias. Assim, o pato no tucupi, maniçoba, vatapá e muita pimenta são
motivações para conversar, apresentar novidades, rever parentes e amigos.
Por tudo isso, o apartamento localizado bem próximo à Basílica de Nazaré, estava
em constantes movimentos de pessoas entrando e saindo. A entrevista, consequentemente, foi
entrecortada por longos abraços, sorrisos, saudações e muitos salamaleques tão típicos de
pessoas queridas se reencontrando. José Seráfico de Carvalho havia chegado de viagem,
assim como muitos outros primos e tios. Aquela gravação de memórias, ao invés de perder
pela falta de concentração no assunto único que me interessava, ganhou em sensações
positivas de bem-estar e profunda comunhão. Para completar, no primeiro encontro com José
Seráfico de Carvalho, eram quase 17 horas. Os sinos da Igreja repicaram anunciando o
horário e, por conta do entardecer e do badalar dos sinos, aconteceu um curioso sobrevoo de
periquitos bem próximo ao 14º andar daquele prédio. Esta foi a tônica daquele fim de tarde.
Antes daquele encontro, tratei de reler e mapear elementos em “1964. Relatos
subversivos” que enquadrasse José Seráfico de Carvalho no perfil de sujeito cultural. Naquela
leitura mais dedicada, pincei trechos para nortear a entrevista ainda a ser realizada. Era a
primeira vez que eu fazia aquilo com um narrador. Com os demais permiti a espontaneidade
das memórias.
Na ocasião, constatei que, ainda em 1964, adentrou nas fileiras do PCB paraense. Tal
decisão havia sido municiada pelo sonho em construir um Brasil “ideal” para aquele jovem
apaixonado pelos ideais revolucionários que pululavam na década de 1960 por ocasião do
sucesso da Revolução Cubana. Incorporou para si os valores disseminados por Che Guevara,
fato que inferi a partir do trecho abaixo:
Não tardou a que estivéssemos na Faculdade de Direito. Lugar que fizemos
crescer nossa empáfia e cultivamos a certeza de que o mundo nos pertencia.
Por isso, por ser coisa que nos apropriávamos, com ele tínhamos
responsabilidades, não apenas o desfrute das coisas boas que ele poderia
proporcionar. (...) Nada disso me impediu de ingressar no Partido Comunista
e, segundo sua orientação envolver-me sempre mais na luta pela construção
de um Brasil que 1964 abortou (Carvalho, 2004, p. 180). Grifos meus.
Pela entrada na agremiação comunista, percebi sua clara intenção para o confronto na
arena política. Há de ser considerado que o livro de memórias “1964. Relatos subversivos” foi
escrito em 2004, portanto, o narrador José Seráfico de Carvalho contou com criteriosa seleção
de fatos em sua memória acerca do passado de quarenta anos para estabelecer a escrita de seu
texto naquele relato memorialístico.
71
Igualmente, é preciso considerar que a perspicácia pelo engajamento político já havia
sido semeada pelo pai antes de experimentar os próprios desafios e embates. Não foi o único
narrador que confessou tal influência paterna, Ruy Antonio Barata também deixou entrever
sua entrada ao embate político em decorrência da admiração nutrida pelo pai e avô. Assim,
José Seráfico de Carvalho ao narrar a participação do “velho Seráphico” o faz com a doçura
típica dos filhos apaixonados pelos feitos dos pais.
Pois bem, de 54 em diante eu passei de tal modo a me interessar por política
que eu suspeito que quando o meu pai foi convidado para ser candidato a
vereador no Partido Social Democrático graças à empatia que ele
estabeleceu com Magalhães Barata e a confiança que aquele militar, que eu
considero que era um autoritário de esquerda, manifestou por ele terá sido a
minha a opinião que empurrou o meu pai para aquilo que parecia uma
aventura, eleger-se vereador. E ele se elegeu vereador (José Seráfico de
Carvalho, entrevista em 07 e 09 de outubro de 2011). Grifos meus.
Adentrar para a edilidade belemense é um troféu conquistado pelo “velho Seráphico”
nas urnas. Mas é como se fosse um mérito do filho, do admirador. O rosto assinala bem esse
orgulho quando ergue o queixo e eleva o tom de voz para dizer a última frase. Ao mencionar
enfaticamente o sucesso do pai ao eleger-se vereador, José Seráfico de Carvalho dá mostras
de não conseguir mais escapar da convocação à arena política. Portanto, o jovem José
Seráfico de Carvalho, que já respirava a política acalentada da Guerra Fria, foi influenciado
também pela sede política do pai. O depoente não tinha como manter-se alienado àquela
atmosfera de discussões e interesses locais e globais.
Ato contínuo, ao adentrar na Universidade Federal do Pará, engajou-se mais ainda
nos enfrentamentos e denúncias daquilo que julgava corromper as possibilidades de um
“mundo melhor e mais justo”.
Preferiu a via democrática para o enfrentamento. Atitude, aliás, recomendada pela
direção do PCB para todos os filiados. Assim, a opção pelos “tabloides” foi uma válvula de
escape para dar vazão aos projetos de um “mundo melhor e mais justo”. Com o pequeno
jornal da União Acadêmica, era possível denunciar empresários e políticos aliados ao IBAD
(Instituto Brasileiro de Ação Democrática), cujas práticas fossem espúrias, conforme sua
narrativa:
Com Dourado fui eleito assessor de imprensa e dividi com José Mariano
Klautau de Araújo a direção do Tabloide – UAP, que saiu em apenas quatro
edições. O suficiente para marcar uma época e desencadear a ira dos
opositores políticos, dentro e fora da Universidade. Não sem carradas de
razão. Como desejar que políticos financiados pelo IBAD (Instituto
Brasileiro de Ação Democrática), órgão sustentado por empresários e
72
envolvido na preparação do golpe militar de 1964, aceitassem a denúncia
provada que divulgamos? Talvez ninguém suspeitasse de que jovens
universitários, de classe média a maioria, chegassem às informações que o
T-UAP divulgou. Pena que naquela manhã ensolarada em que o jornalzinho
agitou a vida da cidade, os financiados estivessem no pleno gozo dos
mandatos conquistados com a ajuda que considerávamos espúria (Nunes,
2004, p. 181). Grifos meus.
Assim como Ruy Antonio Barata, Seráfico vê o golpe como produto de conspiração
internacional. Daí se explica a “ira dos opositores”, como bem relatou. De fato, o jornal
impresso, por meio da organização de todo discurso, tem o estonteante poder de gerar
burburinhos inclusive com aqueles que não fossem letrados. Praças, janelas, botecos, salas
poderiam servir de espaços de divulgação de tais denúncias. Assim o objetivo daquele
tabloide cumpria sua função de denunciar.
Ainda sem conseguir modificar a estrutura social ou econômica, os articuladores do
T-UAP se orgulhavam da notoriedade alcançada pelos burburinhos causados. José Seráfico de
Carvalho estava entre os notáveis estudantes da Amazônia Paraense de 1964 que já pensavam
progressivamente e pretendiam desestruturar os tradicionais alicerces da sociedade patriarcal.
Criticar práticas espúrias poderia ser atitude inerente aos rompantes da jovem idade, mas
poderia uma mostra da identidade política construída pela presença do pai, o Sr. João
Seráphico. 22
A narrativa de José Seráfico de Carvalho em “1964. Relatos subversivos” é detalhada
quanto ao teor da matéria do T-UAP. Certamente, pretendia com o texto enfatizar sua postura
de sujeito disposto a transformar o mundo naquela efervescente década. Este detalhe, aliás, é
mencionado pelo próprio narrador, conforme detalha abaixo:
(...) Nem o número do cheque e o banco eram omitidos. Mesmo a data de
emissão estava com todas as letras no T-UAP. Mais nos enchera de orgulho
a repercussão de nossa ousadia, na Assembleia Legislativa. Pegados com a
boca na botija, restava aos comparados pelo IBAD lançar-nos infâmias e
ofensas, nenhuma delas, porém, nos afetou, valera a pena acordar mais cedo
e aumentar a rotineira agitação do Ver-o-Peso. (...) Madrugáramos para
anunciar à população quanto era enganada. Se os tempos eram efervescentes,
fervia em nós certo desejo de mudar o mundo – e era isso que estávamos
tentando. É certo que muitos, no caminho, perderam de vista esse ideal
(Nunes, 2004, p. 182).
22 João Seráphico de Assis Carvalho viveu quase nove décadas em Belém. Constituiu família com a Sra. Oneide,
com a qual teve nove filhos. Homem de convicções morais e intelectuais, João Seráphico conseguiu empreender
sua formação de caráter aos filhos. José Seráfico de Carvalho, o filho, era ardoroso observador dos costumes e
tradições seguidas pelo pai. Em 2010, pela editora Paka-Tatu, publicou biografia do pai, dando ênfase a estes
aspectos. Com esta atitude, posso inferir acerca da admiração nutrida pelo genitor. É possível também constatar
que a identidade de José Seráfico de Carvalho está intimamente atravessada pela formação política, mas,
principalmente, familiar.
73
Assim, não é de se admirar o sentimento de vingança que os tais empresários
denunciados pudessem nutrir contra os estudantes/jornalistas. E José Seráfico de Carvalho ao
invés de demonstrar temor, se gabava do feito. Convicto pela necessidade de emplacar
efetivas mudanças na estrutura social e político que o circundava, e o incomodava.
Se de um lado, o jornal impresso poderia servir como instrumento de “satanização do
termo comunista” 23
; por outro, poderia servir para debater e ampliar o debate acerca do
Socialismo no mundo. O estado autoritário, de posse desta certeza, promoveu intensas
campanhas para silenciar a imprensa paralela ao poder instituído.24
A artimanha de valer-se de
uma imprensa livre e comprometida com “a verdade” era utilizada por José Seráfico de
Carvalho e amigos. Sempre no intuito de “mudar o mundo”, conforme declarou abaixo:
Éramos, portanto, uma juventude interessada em mudar o mundo, mas só
isso. Animava-nos o desejo de ver emplacada a solidariedade ao invés da
competição. Cedo percebêramos a felicidade como o grande objetivo – e o
mais legítimo – da sociedade humana. Não nos agradava, por isso, ver
transportada para a vida social, onde o ser humano dá vazão às suas
potencialidades e constrói a cultura, a mesma lógica da cadeia alimentar que
mantém o mundo animal em equilíbrio. Se, na selva, a predação é essencial,
na sociedade dos homens ela não pode chegar a bons resultados (Nunes,
2004. p. 185) grifo meu.
A identidade de José Seráfico de Carvalho forjou-se por todos os ingredientes já
citados. A presença do pai na política já o precavia sobre as durezas que encontraria. Foi,
talvez, fundamental para que eu entendesse aquela postura de arrojo naquele momento de
crise na política brasileira.
Os predadores acima grifados eram os civis e militares ansiosos por silenciar
quaisquer tipos de oposições. E estes se manifestaram raivosamente a partir daquele
famigerado Golpe Civil-Militar em 1º de abril de 1964. Passados quarenta e oito anos daquele
momento, José Seráfico de Carvalho vivia ares democráticos, mas as lutas contra os
predadores ainda se fazem necessários. Ao longo das duas entrevistas concedidas em 07 e 09
de outubro de 2011, fez questão de enfatizar isso.
23 Ver (Velarde:2005), a respeito do uso dos jornais por parte das elites retrógradas na Amazônia para denunciar
eventuais sujeitos e ideias subversivas, em especial, àquelas ligadas à Revolução Cubana.
24 Ver Aquino (1999). Neste trabalho a autora discute as tênues relações entre práticas autoritárias e o livre
exercício da imprensa nos periódicos “O Estado de São Paulo” e o “Movimento”, estudo feito por uma década
após o AI-5, portanto entre 1968-78.
74
II PARTE
“NÃO ME PRENDERAM, NÃO APANHEI E NÃO
MUDEI DE IDEIA”
Esses tempos sobre os quais você escreve aqui, foram tempos crepusculares
e, para quem os viveu, apesar de tormentosos, que ótimo tê-los vivido. É
na dor e no sofrimento que o homem, em sabendo vivê-los, humaniza-se.
Caso de todos nós, seus entrevistados.
(Cláudio de Souza Barradas).
75
2.1 Alfredo Oliveira
Uma vasta teia de sujeitos culturais surgia a minha frente a cada entrevista. Os
entrevistados nunca deixaram de sugerir nomes imprescindíveis para a pesquisa. Uma nova
lista de personagens era gestada e se fazia bem maior do que aquela pensada nos primeiros
momentos da pesquisa. Isto foi salutar porque fazia crescer a ânsia em conhecer diferentes
perspectivas de memórias. Tais ânimos foram arrefecidos inúmeras vezes pela orientação da
pesquisa, sempre no intuito de verticalizar as análises.
Entretanto, tomei conhecimento de Alfredo Oliveira. André Nunes Netto foi quem
citou seu nome pela primeira vez e soube de sua importância como guardião da memória dos
rumos do Partido Comunista Brasileiro em terras amazônicas, antes e depois do Golpe Civil-
Militar. Por meio de uma busca na internet sobre as produções amazônicas em torno da
temática da ditadura militar na Amazônia Paraense obtive mais informações daquele nome.
Assim, tive contato com a obra intitulada “Cabanos & Camaradas”, publicada em 2010. A
partir daquelas informações preliminares, ter acesso às memórias de Alfredo Oliveira passou a
ser um dos passos necessários para esta escrita, pois sua obra continha relatos interessantes e,
alguns, inovadores para as memórias sobre os tempos de ditadura.
Com André Costa Nunes, membro do Partido Comunista nos tempos do Golpe Civil-
Militar de 1964 e companheiro de militância, obtive o contato de Alfredo Oliveira bem como
Alfredo Oliveira
Foto: Jaime Cuéllar Velarde – Belém (PA), 14 de setembro de 2011.
76
valiosas informações sobre sua trajetória política nos anos subsequentes ao Golpe Civil-
Militar. Estabeleci contato e expus as razões do meu interesse por uma entrevista. Os
argumentos que utilizava naquela apresentação estavam devidamente ensaiados para a
circunstância de ser perguntado sobre a razão de meu interesse em entrevistá-lo.
Apresentei meu nome e formação de historiador, o tema da pesquisa, agentes
históricos, temporalidade e objetivos esperados a partir das entrevistas com os sujeitos.
Rapidamente, deu-se conta da importância da estratégica oportunidade para suas memórias
com aquela entrevista. Marcou hora e local para nosso primeiro encontro.
Recebeu-me com muita cordialidade. Ele também, percebi após análise do vídeo da
entrevista, já tinha o texto pronto para ser narrado. Mais uma vez esta pesquisa estava
servindo como catapulta para outros projetos políticos individuais. Ciente que ao lançar mão
das ferramentas da História Oral há negociações nas entrevistas, procurei tirar proveito deste
processo em mão dupla que é a captura de memórias.
Na ocasião descobri algumas identidades de Alfredo Oliveira. Médico, compositor,
comunista, pai de família. Eram várias as atuações no palco da vida, portanto, uma miscelânea
identitária. Apesar das várias identidades assumidas era a vocação memorialística de Alfredo
Oliveira a mais interessante nesta investigação. É autor das obras O touro passa? (1981),
Belém, Belém (1983), Paranatinga (1984), A pedra verde (1986), Ruy Guilherme
Paranatinga Barata (1990), A partir da ilha (1991), Ritmos e cantares (1999), Almir Gabriel,
trajetória e pensamento (2002), Além dos deveres (2006), Carnaval Paraense (2006) e
Cabanos & Camaradas (2010). Ao final da entrevista fui presenteado com um exemplar
autografado da obra mais recente.
“O médico e escritor Alfredo Oliveira ficou conhecido nas letras paraenses por sua
vocação memorialística associada ao trabalho de pesquisa”, diz a orelha do caderno-livro de
memórias “Cabanos e Camaradas”, 2010, apresentando seu autor. A definição é
demasiadamente concisa, como seriam quaisquer outras definições para um sujeito cultural
cujas identidades foram vincadas pela ditadura militar na Amazônia Paraense. Em “Cabanos e
Camaradas”, Alfredo Oliveira discorre com eloquência acerca de fatos, nomes, sentimentos
evocados pelos tempos de censura.
Por esta razão e ciente da subjetividade das informações prestadas por conta do lugar
social e político deste narrador, elegi suas memórias como matéria prima nesta análise sobre
os prelúdios desta “triste página de nossa história”, como bem lembrou um poeta. Sua
trajetória política está imbricada com a trajetória de outro comunista: Humberto Lopes. Em
1959 foi arrebanhado para as fileiras do Partidão. Coube ao líder comunista Lopes a
77
responsabilidade de cooptar e treinar os melhores quadros da esquerda amazônica, dentre os
quais estava Alfredo Oliveira.
Horas após o Golpe Civil-Militar, Alfredo Oliveira recebeu orientação do PCB para
permanecer nas atividades de médico e manter afastamento das discussões políticas. O
Partidão precisava de um médico de confiança para dar assistência às famílias dos camaradas
presos; ao mesmo tempo, não poderia levantar suspeitas daquela atividade fosse mais do que
ação humanitária, mas também atividade política de um militante comunista decidido a
cumprir à risca suas obrigações com as determinações partidárias.
Assim, com seus préstimos profissionais, ajudou viúvas, órfãos, desempregados que
tivessem vínculos com a resistência democrática à ditadura dos militares no poder. Foi-lhe
incumbido o secreto papel de médico entranhado nas vísceras da sociedade belemense para,
por dentro das instituições nas quais era possível circular (hospitais, com corredores entupidos
de pessoas humildes), contribuir com a resistência pacífica. Esta atribuição tinha um sentido
político para o PCB, segundo a narrativa de Oliveira:
(...) e de 64 a 66 a tarefa principal do PCB era de tentar não se desarticular,
tentar manter o mínimo de articulação, o mínimo de aproximação entre seus
dirigentes que estavam soltos ou foragidos para poder se dedicar àquilo que
era o mais importante na época, que eram as tarefas de solidariedade. Tinha
gente presa, tinha gente sendo demitida. Então, de repente essas tarefas de
solidariedade passaram a ser uma contingência muito forte a ponto de nós
termos que dar prioridade a elas e não às ações políticas. Quer dizer, era
importante manter a sobrevivência das famílias, conseguir advogado para
quem estava preso, essa coisa toda. E aí aconteceu uma coisa que no meu
caso é específico porque foi praticamente somente comigo que isso
aconteceu. (OLIVEIRA, depoimento em 14 de setembro de 2011). – grifo
meu.
Há uma riqueza muito grande na informação de Oliveira, pois é o sujeito desta
pesquisa que abandona por completo o estereótipo de sujeito resistente ao Golpe Civil-Militar
por meio das táticas usualmente conhecidas e inova ao arquitetar ardilezas só possíveis
quando travestido pela identidade de médico. Ou seja, não fez poemas, não criou peças
teatrais, não compôs canções de protesto, não publicou manifestos. Pelo contrário, seguiu sua
rotina de exercício da Medicina junto aqueles mesmos que já vinha mantendo estreitos
contatos. Simultaneamente, criava laços de aproximação junto a sujeitos e/ou grupos ainda
distantes de seu conjunto de ideias. Cativar e seduzir adeptos para a causa comunista com
atitudes humanitárias foi a tática de Alfredo Oliveira para lidar com a censura e eventuais
espionagens. Deste modo, as “tarefas de solidariedade” ganharam novas roupagens. Eram
78
gestos políticos de aproximação com as massas e, ao mesmo tempo, suporte pedagógico de
subsídios às massas
Portanto, afastar-se das discussões públicas não foi necessariamente um alijamento
das lutas contra a Ditadura Civil-Militar. Sob orientação do PCB o médico Alfredo Oliveira
cumpria duplo papel. Primeiro, mantinha a coesão do Partido no Pará ao manter-se próximo
das massas, buscando advogados para camaradas e criando meios de sobrevivência para as
famílias desamparadas. Eis o conjunto de táticas do Partido para manter essa aproximação.
Segundo, seguia medicando conforme planejamento de sua carreira médica, mas mantendo a
postura de militante fiel às sugestões do PCB. Cumpria o papel de agente duplo.
Esta informação é sumamente necessária para compreender e desmistificar as
acusações de apatia do PCB diante da Ditadura militar. Ao contrário do que pudesse
aparentar, a invisibilidade voluntária foi uma tática extremamente eficaz para manter a coesão
em torno dos membros pecebistas. Ou, no mínimo, criaram-se vínculos de gratidão e
dependência contínua entre aqueles que recebiam algum tipo de ajuda e os solidários
camaradas que prestavam auxílio. Alfredo Oliveira explica melhor como funcionava essa
relação:
(...) até porque independente da assistência médica tinha o problema da
confiança, a pessoa podia estar foragido, podia estar escondido e você não
podia mandar um médico qualquer lá tratar a pessoa. De maneira que o
partido aqui deu prioridade absoluta para isso, então eu fiquei a partir de 66
mais ou menos, eu fiquei desobrigado de participar de reuniões, de coisas
que pudessem chamar a atenção da repressão sobre a minha pessoa e me
impedir de fazer o que era fundamental e só eu podia fazer que era dar
assistência médica aos companheiros, aquilo que a gente chamava de socorro
vermelho, né?! (Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de setembro de 2011).
Assim, o socorro vermelho narrado por Alfredo Oliveira deixa de ser tão somente
uma atitude de préstimo médico e assume outras possibilidades de entendimento. Dentre tais
entendimentos ressalto a postura política enquanto sujeitos culturais que tais voluntários
assumiram. Exercer a prática médica, consultar, visitar, receitar, diagnosticar eram táticas
camufladas para aproximar-se das massas e semear as posturas de resistências tão necessárias
para aqueles tempos de censuras e agressões aos direitos civis. 25
25 Refiro-me aos Atos Institucionais criados para justificar medidas autoritárias. Foram 12 Atos, com destaque
para: a) AI-2 (1965) que acabou com o pluripartidarismo e criou o Bipartidarismo; pretendia silenciar os partidos
de oposição nas esferas da Câmara de Deputados e Senado Federais, colocando-os na ilegalidade; b) AI-5 (1968)
que chegou a determinar a suspensão dos Direitos Constitucionais do Cidadão, destacando-se a
institucionalização da Pena de Morte para casos de urgência e necessidade, segundo a lógica dos próprios
militares.
79
Em 1981, em momento de abertura “lenta, segura e gradual”, sob coordenação do
presidente militar João Batista de Oliveira Figueiredo, começou nova atividade política, desta
vez, como escritor. Era chegado o momento de deixar vir à tona suas dolorosas memórias dos
tempos de perseguições, prisões, censuras, mortes. Em 11 publicações tangenciando os
tempos de ditadura, sob diferentes verbetes e sempre embasadas em pesquisas documentais e
memorialísticas, assumiu sua faceta identitária de escritor. Ao longo de 21 anos de
experiência autoritária, acumulou cabedal para externar suas memórias por meio de obras
publicadas a partir da década de 1980, sempre com uma escrita de dedo em riste.
Era a testemunha ocular da história e, portanto, compreendia a importância de sua
narrativa para denunciar aquilo que entendia como injustiças do regime opressor. As gerações
futuras, em especial, sua própria geração e ele próprio lhe cobrariam sua condição de
comunista fiel aos seus ideais e a sua história.
Na entrevista concedida em 14 de setembro de 2011, em sua confortável sala na
Avenida José Bonifacio, no bairro de São Braz, Belém, Alfredo Oliveira assumiu-se como
“ex-comunista”. Após a criação do PPS, em 1992, o PCB foi refundado oficialmente em
1993, com Raimundo Jinkings à frente do processo local. Nesse PCB refundado, Alfredo
Oliveira continuou a atuar, até que a secção do Pará foi desativada em 2004. A partir deste
momento compreendeu, então que “além do desaparecimento organizativo, havia o problema
resultante de um esgotamento histórico de certos aspectos inerentes à visão anteriormente
defendida para a construção da sociedade socialista”. Portanto, sem concordar com as
diretrizes do novo partido, também não aceitou continuar filiado a uma perspectiva partidária
carente de atualização doutrinária à altura da luta pelo futuro do Socialismo. Alegou que o
novo partido estava “igualmente reduzida a um pequeno grupo nacional sem o mínimo poder
de ligação com as massas e apenas usando o nome do PCB em função de épocas eleitorais”.
Abaixo, fica clara a nova postura do Partidão em buscar atualização com os novos tempos
democráticos.
Além do avanço crescente das ideias e propostas renovadoras que os
principais dirigentes do Partido assumem publicamente e que se chocam
com a estrutura orgânica defasada, (...) É assim que a nova direção pecebista,
com amplo respaldo das direções estaduais, decide convocar o X Congresso,
extraordinário, para janeiro de 1992, em São Paulo, o qual dando seqüência
às profundas mudanças iniciadas, altera o nome e a sigla de Partido
Comunista Brasileiro – PCB para Partido Popular Socialista – PPS. Setenta e
dois por cento dos delegados escolhidos em todo o país chancelam nos
encontros preparatórios a decisão aprovada por 71% dos membros do
Diretório Nacional, quando definem a convocação do encontro
extraordinário. O nome PPS recebe 58% dos votos e o do Partido
80
Democrático de Esquerda – PDE alcança 38%. O PCB é o primeiro PC no
continente a mudar radicalmente sua política, sua estrutura orgânica e sua
simbologia (extraído de “A História do PCB-PPS”, disponível em
http://migre.me/5YXDX. - acessado em 23/10/2011, às 21h46.).
Essa guinada de postura do partido incomodou Alfredo Oliveira a ponto de
abandonar definitivamente a composição do PPS, mas se manter fiel aos ditames comunistas
que defendeu na mocidade. As razões para essa decisão não serão discutidas neste momento.
Por ora, me basta constatar que o apoio das novas fileiras nas votações internas para a
metamorfose do antigo PCB não foram digeridas pelo depoente.
O ambiente autoritário produzido no Brasil a partir de 1964 foi duro especialmente
para os sujeitos culturais cujas atuações exigiam o exercício pleno da liberdade; exigência
paradoxalmente inversa às aspirações políticas dos golpistas. Neste texto, optei pelas
memórias deste ex-comunista, relatadas por meio de entrevista e através de leitura do livro
“Cabanos e Camaradas” (2010). A decisão metodológica de privilegiar as memórias de um
ex-comunista implica numa opção política de alijamento da versão oficial dos militares, os
quais por muito tempo não permitiram outras narrativas acerca do período em tela.
81
2.2 André Avelino da Costa Nunes Neto
Nasceu em 10 de novembro de 1939, na Santa Casa de Misericórdia, em
Belém. Filho de Anfrísio da Costa Nunes e Francisca Gomes da Costa
Nunes. Com dois meses de idade chegou ao Seringal Paraia no rio Iriri,
município de Altamira, onde seus pais viviam, ele sergipano e ela cearense.
Soldados da borracha, como se dizia. Eram tempos de guerra. Fez o curso
primário no Grupo Escolar de Altamira, no Grupo Escolar Barão de Rio
Branco e no colégio Suíço-Brasileiro em Belém. Depois, o ginasial no
Colégio do Carmo, salesiano e Colégio Nossa Senhora de Nazaré, marista.
Cursou a Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do
Pará, sem, entretanto concluí-la, por causa do golpe militar de 64. Militou
ativamente no Movimento Estudantil, como secundarista, na UESP – União
dos Estudantes Secundarista do Pará e, como universitário, na UAP – União
Acadêmica Paraense. Aos 17 anos de idade entrou para o Partido Comunista,
então, na clandestinidade, militou na Juventude Trabalhista do PTB, partido
que dava guarida aos candidatos comunistas, no Sindicato dos Bancários
(Banco de Crédito da Amazônia, onde foi perseguido pela ditadura),
delegado da CONTEC/CGT no Baixo Amazonas. Profissionalmente,
passados os primeiros tempos, tempos difíceis da ditadura, foi vendedor,
pequeno empresário e consultor de marketing. Casado há 45 nos com Maria
Esther Bentes da Costa Nunes é pai de 4 filhos, André, Fernando, Pedro e
Lafayette e, 8 netos. Hoje mora em Marituba, às margens do rio Uriboca,
onde tem um restaurante rural, ao qual deu o nome de Terra do Meio, em
homenagem àquela região do Vale do Xingu, que considera sua terra natal.
Ali, em Marituba, em um sítio na beira (nascente) do Rio Uriboca, onde tem
um restaurante rural, continua a plantar árvores, escrever livros, crônicas,
contos e causos, fazer licores e perfumes do mato. 26
O texto acima é um esboço autobiográfico escrito pelo próprio André Avelino da
Costa Nunes Netto, um dos memorialistas de “1964. Relatos subversivos”, publicado em
26 Breve autobiografia disponível em http://migre.me/6cAq6 - acessado em 03.03.2011 – às 21h23.
André Avelino da Costa Nunes Netto
Foto: Jaime Cuéllar Velarde – Belém (PA), 11 de setembro de 2011.
82
2004, por ocasião das comemorações dos 40 anos de Golpe Civil-Militar no estado do Pará. O
título de seu texto no livro é “Não me prenderam, não me bateram e não mudei de opinião”.
Ao ser indagado sobre a razão do título, respondeu-me que de fato não havia sido preso, que a
repressão não o colocara na cadeia e que nunca mudou de opinião sobre as ditaduras de modo
geral. Então, se não houve prisão e violência, é correto afirmar que não houve repressão? Suas
memórias, seu fazer social e, principalmente, a contundência de suas memórias são mostras
de que as agruras da Ditadura militar na Amazônia tiveram amálgamas de crueldade e
desfaçatez despejados sobre os sujeitos culturais que ousaram questionar o poder instituído
em 1964.
Cheguei a seu restaurante rural, nos arredores da cidade de Marituba no dia 11 de
setembro de 2011, manhã de domingo. Estava tranquilo quanto aos rumos daquela entrevista,
pois minha presença foi acolhida calorosamente quando estabeleci o primeiro contato com
André Nunes Netto. A boa recepção talvez tenha sido em decorrência do anúncio prévio sobre
a razão da visita naquela manhã. Havia dito sobre a importância do tema, de seu nome ter sido
citado na participação na resistência, da rala produção na historiografia regional sobre a
temática do golpe e regime civil-militar e, principalmente, da importância daquele momento
para a escrita de nossa história amazônica. Por tudo isso e pela elegância e jovialidade
daquele senhor, que o uso das bengalas em nada denunciavam as mais de 6 décadas de vida,
fui tratado com reverência.
Seria ingenuidade não constatar este momento como o ponto onde estavam fincadas
as estacas de uma delimitação mútua de territórios. Da minha parte e da dele, projetos
políticos distintos se tangenciavam naquela entrevista. Eu, mestrando em construção de
dados, bibliografias, teorias e metodologias. Ele, sujeito cultural consciente da importância de
sua narrativa para dar novos sentidos à sua trajetória, como personagem da esquerda
amazônica, como sujeito da história. A temática da Ditadura militar nos unia naquele
momento. Não podíamos desperdiçar a oportunidade que a História nos apresentava.
Meses antes daquela manhã de onze de setembro eu fizera um breve levantamento da
trajetória de meu depoente ao longo dos anos após 1964. Por ser um sujeito dissidente ao
regime e formado no Curso de Economia, da Universidade Federal do Pará, acreditei ser
possível “pescar” alguns artigos em jornais, prêmios, publicações, ou coisas do gênero para
mapeá-lo. Sem êxito. Seu nome inexistia no banco de dados do site CNPq (Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ou seja, não havia de fato
publicações científicas assinadas por aquele depoente.
83
Diante do estrondoso vazio, busquei novamente o livro de memórias “1964. Relatos
subversivos”, desfolhei os relatos até um derradeiro depoimento e deparei-me com uma
identidade bem mais sui generis que a dos demais atores desta dissertação. Aparentemente,
André Nunes havia iniciado sua emersão das brumas do silêncio aos sessenta anos. Apontarei
adiante ser este um engodo.
De fato, não havia produção acadêmica intelectual de sua autoria anterior aos
sessenta anos e isto estava atestado em depoimento no “1964. Relatos subversivos”.
Normalmente o editor, ou seja lá quem estiver encarregado de coordenar a
obra de um escritor, é quem deve escrever o currículo do próprio. Sempre na
terceira pessoa. Geralmente começa assim: Fulano ou, melhor ainda, o
professor fulano, curso essa ou aquela universidade, pós-graduou-se naquela
outra, e por aí vai. No meu caso, acho que não encontraram nada de tão
relevante e resolveram pedir minha colaboração. – André, manda o teu
currículo. Não disseram mais nada. (...) Isso é moleza. A minha vida inteira
passei escrevendo currículos para empregos e prestação de serviços. Basta
abrir a pasta “currículos” do computador e encontrar pelo menos uma dúzia
deles. Para todos os gostos. (...) Quando abri a tal pasta, caiu a ficha. Não era
nada disso. Só encontrei dados sobre minha vida pessoal de vendedor
(Nunes Netto, 2004, p. 243).
A auto-constatação de ausência de uma carreira acadêmica lhe fazia falta? As
palavras eleitas para apresentar-se ao público leitor de “1964. Relatos subversivos”
transmitiam um ar nostálgico por aquilo que não aconteceu. Afinal de contas, fora um
estudante do Curso de Economia no centro de referência intelectual da Amazônia, a UFPA.
Sua família detinha algumas posses no município de Altamira, por isso não se pode dizer que
cumpriu o papel de pobre estudante sem dotes financeiros ou intelectuais. Sua intenção ao
mostrar que “caiu a ficha” por não ser professor e/ou pós-graduado era condizente à
frustração de uma identidade que já havia sido assumido nos anos 1960. Nos tempos que fora
um filho de família abastada do interior do estado e estudante na capital do estado. Mas esta
não era a única faceta de André Nunes.
André Nunes sempre estivera em exílios. Em trânsito dentro de seu próprio mundo.
Num ir e vir a lugares que lhe exigiam assumir identidades condizentes com palcos e públicos
presentes (BHABHA, 1998). Foi assim que Nunes se mostrou quando iniciei a gravação de
nossa entrevista lancei a pergunta “quem era André Costa Nunes?”. Ouviu a proposta inicial e
respondeu calmamente, sem titubear:
Eu tive três personalidades. Diferentes. Três vidas paralelas, inclusive na
minha juventude. Eu tinha a minha turma do seringal que alguns sequer
conheciam Altamira. Outros tinham visto uma máquina de costura.
84
Liquidificador? esquece. Eu tinha minha turma do seringal. Turma boa,
ótima, de caçar, de... Do seringal. Eu tinha uma turma da cidade. Era uma
outra maneira de ver e tal. Levei tempo até ter uma bela turma. Até que eu
entrei no Partido Comunista. Então era uma turma ótima. E tinha minha
turma de Altamira. Que eu classificava turma do limbo, que as pessoas
nunca descreveram o que é uma sociedade duma cidade pequena. Nunca
ninguém se ateve a isso. Por exemplo, Altamira era isolada de tudo. Tinha
um barco gaiola por mês. E no mês que ele quebrava eram dois meses para
ele chegar lá. Levava 07 dias de Belém para o Porto de Vitória (do Xingu) e
essa turma de lá era a turma do Limbo. Porque era turma do limbo, porque
eles eram a classe média de lá. Os remediados. Eram os filhos dos
comerciantes, dos seringalistas, dos agricultores bem sucedidos, dos
funcionários do Banco da Amazônia, do Banco da Borracha, na época, do
Banco do Brasil, dos Correios, Federais, esse troço todinho aí. Essa moçada
era aquela que dormia a sesta. Depois da sesta tomava um banho e ia para
pracinha ou para calçada ou os mais novos, brincar de roda. Eles tinham um
pavor do rio Xingu, não tinham nenhuma intimidade com a mata e como em
toda cidadezinha é assim, eles eram os mauricinhos, como se diz hoje. E na
cidade [Belém] eles eram caipiras. Então eles estavam bem no meio. No
limbo. Eles ‘não eram’ (Nunes Netto, entrevista em 11 e 13 de setembro de
2011).
Homem simples, do seringal, filho de migrantes nordestinos. Esta era uma das
opções que Nunes gozava para apresentar-se. E sabia tirar proveito disso. Mas também soube
tirar proveito da condição de “remediado”, da turma “do limbo”, na cidade natal, em
Altamira. E, quando atuava em Belém, sabia fazer-se membro do Partido Comunista.
Ao longo de sua narrativa, André Nunes fez bem o jogo das identidades. Não
demonstrou sofrimento pela movência da identidade, pelo contrário, mostrou-se astuto para
tirar proveito das camuflagens oportunizadas. Bem mesclou/separou as identidades quando
lhe foi necessário para manter-se de pé, vivo, atuante, no front (HALL, 2006).
Desde os 17 anos, figurava entre os quadros do Partido Comunista em Belém. A
repressão sabia disso e, por este motivo, lhe conferiu status de “subversivo” digno de ser
perseguido pela precoce opção política e, mais tarde, com o AI-5, foi exonerado do cargo de
economista do Banco de Crédito da Amazônia. Passado este momento crítico fim de sua
carreira de bancário, precisou buscar novas fontes de renda. Rondou balcões na condição de
vendedor, montou uma pequena empresa de fabricação de brinquedos que, segundo ele, só
causava prejuízos, hoje é garçom e proprietário de um restaurante rural. Sua carreira
acadêmica foi destroçada pela repressão e sobre isso não mencionou palavra ao longo da
entrevista. Restaram-lhe as memórias e a destreza para produzir textos.
Andei publicando algumas crônicas e ensaios acadêmicos, chochos, sobre a
Amazônia, política e economia. Depois dos sessenta anos de idade, resolvi
ser escritor. Na vera. Em setembro de 2003 publiquei meu primeiro romance
85
– A Batalha do Riozinho do Anfrísio. Gostei muito e, sem cabotinismo,
recomendo. Como deu certo, peguei corda. Mais dois estão no prelo (Nunes
Netto, 2004, p. 244).
Aparentemente, como foi dito acima, houve um tardio despertar para o
enfrentamento ao regime militar e suas mazelas. Entretanto, este sujeito cultural agiu pelas
bordas ao longo da ditadura. Lançou mão de táticas bem escamoteadas para agir junto às
populações mais simples. Afinal de contas, tinha instrumentos, recursos e malícias para
infiltrar-se no cotidiano e vivências das populações das matas e rios sem parecer um estranho.
Poderia disseminar ideias, incutir opiniões, propagar sentimentos de indignação, semear
perspicácia.
Para agir pelas fimbrias e construir novos significados ao golpe e regime civil-militar
partia do princípio de que travestir-se de “intelectual” não ajudava muito naquele momento.
Assim, fez questão de criticar duramente aquela categoria muito aceita em meios acadêmicos
com o seguinte depoimento:
O termo intelectual é excludente dos companheiros! É um pouco recente a
banalização dessa classificação de intelectual. Sei lá, alguns anos atrás, meio
século atrás, não era exatamente pejorativa, mas não dizia muita coisa. Não
era. Era elitista. Quem faz cultura Latu Sensu não é pobre. Não vale
raciocinar como Bertold Brecht. Não vale raciocinar pela exceção. Quem faz
cultura, um bico de qualquer maneira, é a classe média. É a classe
privilegiada. Isso nas artes e na música... (Nunes Netto, entrevista em 11 e
13 de setembro de 2011).
Aqui, como em outros tantos momentos da entrevista, André Nunes sorri ao falar. O
corpo levemente inclinado para frente e o tom de voz suave davam mostras de um evidente
interesse pelo assunto do qual tratávamos. A certeza daquele enunciado de crítica profética
soava com tom professoral, mas com extrema cautela e carinho. Como se houvesse uma
tentativa, bastante sábia, em alicerçar-me para uma escrita da dissertação sem compromissos
com tons tradicionalistas. Por esta postura de André Costa Nunes, mantive-me em estado de
alerta para novos sinais corporais ao longo daquela entrevista.
Ao estabelecer analogia entre “produção cultural” e “privilégios”, André Nunes
percebia os riscos de um eventual distanciamento da identidade assumida nos tempos que o
seringal no Rio Iriri27
era seu palco de atuação. Caso se afastasse da identidade interiorana e
27 Um dos maiores afluentes da margem esquerda do Rio Xingu. No município de Altamira (PA), é a maior
expressão hidrográfica, com trechos não navegáveis por conta das pequenas corredeiras. Ao longo de suas
margens, os seringais ainda vigoram como meios de subsistência para os moradores. Além disso, a pesca
86
se aproximasse da “intelectualidade”, não teria como cooptar corações e mentes para seus
ideais esquerdistas. Tampouco queria distanciar-se da “turma do limbo”, ou dos amigos filhos
da classe média, em Altamira. Considerando as memórias de André Costa Nunes como
espaço de privilégios para os tempos de Ditadura Civil-Militar, é possível perceber a
severidade crítica aos ditos intelectuais. Vejamos que não se trata de somente uma crítica à
carga semântica do termo, mas à posição assumida e colocada no todo social. Assim, este
sujeito passa pela academia sem grandes propostas de transformações para os grupos que o
rodeiam por fora dos muros.
Talvez os vínculos com as identidades construídas entre cidade interiorana e
seringais tenham sido suficientemente fortes para que tivesse optado pela recusa em assumir-
se como estudante de esquerda do Curso de Economia e partidário do Partido Comunista
Brasileiro. Assumir-se assim, significava a não aproximação das classes sociais mais
humildes. Não foi a tática definida para atuar nos anos de repressão que seguiram ao Golpe
Civil-Militar.
Na ocasião do Golpe Civil-Militar, André Costa Nunes estava empregado no Banco
de Crédito da Borracha, em Santarém (PA). Dentre os narradores de “1964. Relatos
subversivos”, é o único que não estava na capital paraense. Já havia tido notícias do Golpe
Civil-Militar no dia 1º de abril, mas não levou à sério. Somente no dia 02 de abril, no dia
seguinte à invasão da UAP, percebeu tratar-se de uma ação com sérias implicações que
mudaria os rumos de sua vida. Assustou-se com os rumores de que a Polícia Militar e o Tiro
de Guerra estavam em seu encalço. Resolveu fugir. A primeira providência, depois de
arrumar os poucos pertences, foi livrar-se de todos os documentos, livros e outros impressos
comprometedores.
Naquela altura dos acontecimentos, passado o primeiro momento de susto, deu-se
conta do quanto era “pretensioso”. Não deveria temer a repressão militar uma vez que sua
identidade não atendia aos apelos preenchidos pelos ditos “subversivos”. Pelo contrário, não
era sindicalista, tampouco dirigente do PCB, nunca havia concluído a leitura de “O Capital”,
de Karl Marx, e não passava de um inofensivo bancário longe da capital. Ainda assim,
providenciou sua fuga de Santarém (PA) até Belém. Na capital paraense teria melhores
condições de locomoção e chances de esconder-se.
Desta feita, ao narrar sobre o itinerário de fuga da cidade de Santarém, por meio de
uma pequena embarcação fretada e capitaneada por um tal “Comandante Vasco”, aproveitou
comercial e esportiva também é paraticada por moradores e turistas. Na perspectiva de André Costa Nunes este
rio ganha dimensões para além da economia. Ali produziu palcos para explicar aspectos de suas identidades.
87
para mostrar eficácia da tática de aproximação e cooptação dos indivíduos mais afeitos à
identidade de homem acostumado com as entranhas dos rios e matas. Segundo André Costa
Nunes, depois de alguns dias a sós no barco com o Comandante Vasco, a certa altura, “já
estava politizado. Era esquerda radical, chamava-me de camarada e aos militares de gorilas.
Só ainda não aceitava esse negócio de reforma agrária.” (NUNES, 2004, p. 229). A narrativa
regada por bom humor, característica constante na postura narrativa, lembra que
Já perto, um farol potente iluminou tudo. Deu para divisar gente fardada na
proa do barco. Foi quando vi o Pedro, com extrema ligeireza, pulando para
trás de um tronco, com a espingarda na mão. Imediatamente saí de onde
estava, com as calças na mão, todo melado de merda, pedindo aos berros
para que ele se aquietasse. Pois bem, a lancha era mesmo esquisita, o pessoal
estava fardado, mas eram apenas mata-mosquitos de um desses órgãos de
combate à malária. Estavam sem óleo lubrificante, viram nosso barco e
vieram pedir um litro que desse para chegar a Santarém. Ainda nos deixaram
uma lata de bolacha e um pacote enorme de leite americano da Aliança Para
o Progresso. Passado o susto, ríamos à toa tomando banho à noite e na
chuva, ainda mais quando o Pedro lembrou que a espingarda não tinha
cartucho. Ele esquecera de comprar (Nunes Netto, 2004, p. 230).
O episódio é significativo e constante nas rodas de histórias de André Costa Nunes.
De um lado, revela o quanto havia sido eficiente seu poder de persuasão com as ideias de
oposição e crítica ao novo regime. Em contato com um homem simples, cujo cotidiano era o
rio Tapajós e afluentes, o Comandante Vasco conscientizou-se porque quem lhe falava era um
“igual”. Alguém que compartilhava das mesmas trajetórias, portanto, alguém de confiança.
De outro, o fato de André Nunes ter recebido solidariedade ao longo de sua fuga da
cidade de Santarém não implica necessariamente numa adesão aos mesmos ideais. É preciso
ser realista quanto ao fato de que a solidariedade se dá a partir de muito outros laços
estreitados nas relações de amizade, trabalho, compadrio, parentesco. Portanto, a ajuda,
dedicação e proteção do Comandante Vasco ao seu companheiro de viagem não pode ser
interpretada pura e simplesmente como um ato de “tomada de consciência marxista”
construída em tão poucos dias de conversas. Há elementos, posturas de vida, trajetórias,
cosmovisões políticas, que precisam ser conjecturadas. Por ora, não serão contempladas nesta
análise introdutória.
Aspecto sobre a identidade de André Nunes a ser salientado é sua condição de recusa
em admitir as nomenclaturas de “resistente”, “dissidente”, “guerrilheiro” ou “partisan”. Ao
88
contrário de outros sujeitos que usufruem de Bolsas Ditadura28
, este entrevistado é enfático
ao recusar a pecha de “herói” no rol de características de sua identidade. Sobre esta temática,
assume uma postura de crítica à condição de heroi conforme amplia seu relato:
As pessoas se definiam guerrilheiros, resistentes, partisan, aí resumia a coisa
assim. Não me enquadro em nenhum desses quadros. Eu resisti muito pouco
[ao golpe] para ser um resistente, para ser um partisan. Não é por aí. Muito
menos um guerrilheiro. Eu era aquele cabocão chucro que veio estudar em
Belém. No meio desse curso, pintou o Golpe Militar. Eu fui aluno interno no
[Colégio] Salesiano, no Carmo e interno no Marista, no Colégio Nazaré, mas
sempre com aquela postura de cabocão, brigão, discriminado pelo pessoal da
cidade (Nunes Netto, entrevista em setembro 11 e 13 de setembro de 2011).
Nestes tempos em que as batalhas da memória (REIS, 2004) tendem a favorecer
aqueles “subversivos” que outrora já foram anti-herois, a atitude de André Nunes é digna de
nota. O depoente claramente optava por uma linha de ação que, não por coincidência, era
idêntica àquela traçada pelo Partido Comunista Brasileiro logo após o Golpe civil-militar de
64. Não tomaria armas, não adotaria posturas radicais. Enfrentaria a Ditadura Civil-Militar
pelos meios legais do jogo democrático. Sua entrada no Partido Comunista desde os 17 anos
certamente havia influenciado aquela postura ou, certamente, a rígida formação familiar de
migrantes nordestinos habituados a valorizar muito mais a honra também deveria ser
considerada nesta análise.
Ao mesmo tempo em que André Nunes se esgueira das pechas de “heroi”,
“divergente”, “resistente”, “partisan” há paralelo esforço em mostrar-se como “chucro”,
“garçom de restaurante” (de sua propriedade), “escritor tardio”. De posse destas posições foi
inevitável impor-me algumas reflexões: porque este sujeito foi convidado para escrever um
texto numa edição comemorativa dos 40 anos de Golpe Civil-Militar a partir da ótica dos
estudantes no Pará? Afinal de contas, naquela edição era preciso apresentar personagens
significativos para as trajetórias de resistência à Ditadura.
A metodologia desta pesquisa havia elegido sujeitos que houvessem produzido
culturalmente a serviço da coletividade amazônica. E o depoente, ao longo das duas
entrevistas concedidas no mês de outubro/2011 fazia questão de manter-se afastado dos
estereótipos da pesquisa. Então, o que André Costa Nunes desejava mostrar? Estas respostas
emergiram em duas cenas nada homeopáticas.
28 Ver críticas desferidas aos sujeitos que foram, em alguma instância, perseguidos pela repressão da Ditadura
Militar e com o fim do regime tiram proveito disso com ações indenizatórias milionárias contra o Estado. Sem
cair no mérito da questão de haver ou não razão para tais ações reparadoras, André Nunes recusa participação no
rol de resistentes e/ou merecedores da pecha de “herois”. Ver opinião sobre o tema em http://migre.me/6eFPB -
acessado em 12 de novembro de 2011, às 23h45min.
89
A primeira está ligada à crise financeira enfrentada tão logo aconteceu seu retorno
para Belém. Como se apresentou ao Banco de Crédito da Borracha ainda teve alguns dias para
obter meios de garantir sustento. Entretanto, sua presença ali no Banco era incômoda para
muitos adeptos do Golpe Civil-Militar. Descreveu assim seus primeiros momentos de crise
financeira:
Voltando aos primórdios de minha volta a Belém: na maior cara de pau,
apresentei-me ao Banco, para surpresa geral. Reaças alvoroçados e alguns
colegas trânsfugas, oportunistas, a toda hora tramavam minha demissão.
Foram dias de muita tensão e perseguição. Um diretor do Banco, depois
deputado federal, Camilo Montenegro Duarte, conseguiu segurar-me por
algum tempo, mas depois foi cassado com base no AI-5 e aconteceu o
inevitável (Nunes Netto, entrevistas em 11 e 13 de setembro de 2011).
Ser bancário na década de 1960, assim como hoje, era obter status de sucesso
profissional. Eram tempos de pouca mão de obra qualificada para o mercado financeiro, ainda
mais para a função de economista de um banco. As faculdades de ensino superior reduziam
sua presença à capital do estado, então o interior ficava desguarnecido da oferta de vagas.
Assim, dadas as condições econômicas de muitos, somente famílias relativamente abastadas
conseguiam manter a estada de seus filhos na capital. E a família de André Costa Nunes
preenchia tal quesito. Seu pai – o velho Anfrísio – era dono de boa parte da área rural de
Altamira, com gigantescas fazendas de gado e alguns seringais. Portanto, ser bancário do
Banco de Crédito da Borracha era consequência de firme projeto de investimento da família
para com André Costa Nunes.
Apesar disto, o narrador não se encaixava no perfil de membro da elite econômica
paraense. Pelo contrário, sua conduta de postar-se como servidor do bem comum fez com que
fosse recrutado para as hostes do PCB. Foi sua postura de fraternidade e completo alijamento
de bens materiais que mais chamou atenção das lideranças comunistas no Pará, quando ainda
cursava o antigo Segundo Grau. E assim se manteve ao deparar-se com o Golpe Civil-Militar
de 1964.
Tal postura de engajamento esquerdista e crítica ao Capitalismo desagradava os
colegas bancários. Ser visto ao lado de André Costa Nunes poderia comprometer a reputação.
Ser taxado de subversivo, como já estava demarcado o depoente, não era desejo de nenhum
membro da fina flor amazônica ou brasileira. Daí se explica a relativa virulência em relação à
sua presença no Banco de Crédito da Borracha dias após o Golpe Civil-Militar. E explica as
razões que levavam alguns colegas a tramar pela sua demissão, conforme narrou acima.
90
Naquele momento, portanto, seus nervos estavam à flor da pele. Amigos presos,
“convites” para depor às sete da manhã, mas só recebido tarde da noite, com poucos amigos já
que muitos lhes fecharam a cara e portas. Os namoros também foram grande problema
naqueles momentos, “deviam ser duplamente escondidos”, contou. Não foram tempos fáceis
para um jovem estudante, morador da capital em visitas constantes à cidade de Altamira e aos
seringais do pai. Sua estabilidade identitária, por mais intensos que fossem os trânsitos, foi
inteiramente tirada das zonas de conforto. E, para piorar, veio o AI-5 e a demissão do banco
(sem grandes explicações plausíveis, é bom mencionar).
André Nunes teve que reconstruir seu estilo de vida, trabalho, círculo de amizades.
Muitos dos velhos amigos estavam presos por atender o perfil de subversivos. Outros
simplesmente se afastaram por convicção ideológica ou pressão familiar. A formação
acadêmica também lhe foi cerceada. Abandonar as trajetórias já iniciadas e dar início a novas
partidas foi o grande desafio postado. Talvez tivesse sido um recomeço doloroso, mas
estavam postas novas condições para um sujeito já habituado em outros trânsitos identitários.
Inicialmente foi corretor de imóveis. Vendeu todos os imóveis na Rua Três de Maio,
de propriedade da “construtora Penna de Carvalho & Pinheiro de Souza. Ali acabou a
‘imobiliária’. Apesar do sucesso, nenhum outro construtor teria a coragem do doutor
Angenor”. Inevitável não constatar o ressentimento nesta passagem.
Em seguida, fez-se distribuidor de cimento para a cidade de Altamira por obra de
mais um favor “do camarada Albertino Santos”, gerente do Banco em Capanema. Aos poucos
obteve relativo sucesso, em especial pela ajuda de um caminhão baú de propriedade do seu
pai. Paralelamente, criou uma fabriqueta de brinquedos. Chamou-a Central Park, em um
americanismo provavelmente jocoso, já que se rotulava como comunista avesso aos louros do
capitalismo dos EUA.
Desta vez com um pouco mais de desenvoltura, mas sem lucros palpáveis, já que a
empresa se dedicava muito mais a empregar presos do Partido Comunista que iam sendo
libertos aos poucos. Em maio de 2009 criou um restaurante rural nos arredores de Marituba
(PA). Curiosamente, o restaurante é intitulado “rural”, com o nome de “Terra do Meio” em
alusão aos trânsitos da juventude. Nostalgia, saudosismo, passado ligado ao presente. As
memórias de André Costa Nunes estão ainda encenando as experiências vividas.
A segunda cena fica por conta das publicações na mais recente identidade de André
Nunes: romancista. No decorrer das entrevistas fui presenteado pelas publicações desta
empreitada. Ao folhear brevemente as páginas de “A agenda do velho comunista” (2005)
percebi a temática da ditadura militar. Lugares, nomes, amigos que se foram, camaradas do
91
Partidão. Estão todos lá. Com “A batalha do riozinho do Anfrísio” (2003) há uma imersão nos
tempos de identidade indígena, cabocla, de tramas centradas e presenciadas por rios e
“riozinhos”.
Apresentados os aspectos seminais das identidades de André Costa Nunes e as cenas
que o credenciam a constar em quaisquer propostas historiográficas sobre a ditadura militar na
Amazônia Paraense, faltava o sentimento de culpa motivador para toda a trajetória de vida e
engajamento nos embates da memória em prol da esquerda. A frase abaixo não deixa dúvidas
desta crise identitária:
Durante muito tempo nutri inconscientemente um sentimento de culpa por
não haver sido preso. Muitos dos meus amigos o foram e eu não fui!
Como tive inveja da bofetada que o Seráfico levou do coronel José Lopes de
Oliveira!
Eu deveria estar no I SLARDES naquela “noite dos cristais”. Na UAP,
quando foi invadida (Nunes Netto, 2004, p. 242).
O que mais queria Nunes Netto? Não ter cumprido o estereótipo do “perigoso
subversivo” o afligia a ponto de nutrir “um sentimento de culpa” por não ter sido esbofeteado
pelo Coronel “Peixe-agulha”, isto ficou claro. Mas que razões estariam por trás de tal
sentimento? Talvez o fato de sua trajetória de vida ter sido sempre de pequeno empresário,
fato imperdoável para marxistas radicais que questionam a exploração da mão de obra em
detrimento da classe dominante. Talvez o fato de não ter sido um destacado “intelectual” da
cena amazônica possa ter causado recalques.
Pelas duas cenas descritas por Andre Nunes Netto há um turbilhão de sentimentos
diversos, múltiplos, moventes, mas fiéis às identidades assumidas. O seringueiro, o citadino, o
estudante de economia, o comunista, o perseguido e aquele que nada sofreu... Este
entrevistado revela estar envolto por muitas certezas, mas também inúmeros remorsos. Há um
sujeito ansioso para mostrar-se pelos textos literários, pelas narrativas prazerosas de serem
ouvidas, pelas memórias dos seringais da Altamira. Esta dissertação é uma chance.
92
2.3 Cláudio de Souza Barradas
As linguagens e possíveis críticas do teatro para com a realidade sociopolítica dos
anos 1960, em solo amazônico, interessavam-me incomensuravelmente para tecer esta
dissertação. Por isso mesmo fazia-se imprescindível entrevistar um diretor ou ator que tivesse
vivenciado os anos de ditadura a partir do Golpe Civil-Militar, em 1964. Foi com esta
premissa que Cláudio de Souza Barradas passou a elencar este texto uma vez que sua
importância como teatrólogo para as artes do cenário amazônico é notória no cenário artístico-
cultural de Belém.
Tal reconhecimento se dá por haver um discurso quase homogêneo por parte da
Universidade Federal do Pará que o coloca como sujeito de primeira grandeza na cena da
Amazônia Paraense chegando a homenageá-lo com uma sala de espetáculos em seu nome. É o
Teatro Universitário Cláudio Barradas29
, uma das melhores e bem aparelhadas salas,
localizada na Rua Jerônimo Pimentel, no bairro do Umarizal, em Belém.
29 É um complexo do Instituto de Artes Cênicas do Pará, da Universidade Federal do Pará, e é composto pelo
Teatro Universitário Cláudio Barradas, a Escola de Teatro e Dança e um centro de ensino, pesquisa e extensão
dedicado às artes cênicas e experiências estéticas. Foi inaugurado em 19 de junho de 2009 para atender uma
demanda de diversos grupos artísticos da região metropolitana e outras regiões do estado. Está situado em espaço
nobre da cidade, no bairro do Umarizal, em Belém (PA). Disponível em http://migre.me/7NiG1 - acessado em
04.02.12, às 11h30min.
Cláudio de Souza Barradas
Foto: Jaime Cuéllar Velarde – Belém (PA), 13 de maio de 2011
93
O primeiro contato com este sujeito se deu por informações de terceiros. Das
atividades cênicas, construiu fama de sujeito bem humorado, dinâmico e absorto no trabalho,
de opiniões controversas e, muitas vezes, polêmicas. Nutria também a fama de intolerante
com pessoas de “raciocínio curto”. Mais eloquente, todavia, foram os burburinhos causados
pela repentina guinada na carreira artística. A identidade do sujeito ligado ao teatro cedeu
espaço para outra faceta identitária bem distinta daquela experimentada até então: foi
ordenado sacerdote da Igreja Católica em 25 de janeiro de 1992. Atualmente, dirige a
paróquia de Jesus Ressuscitado, no bairro da Marambaia, em Belém (PA).
Dois papeis distintos no palco da vida de Barradas: padre e teatrólogo. Como discorrer
sobre Cláudio Barradas sem adentrar nas dicotomias provocadas por atividades tão distantes?
Diante desta questão sui generis, trilhei por suas memórias. Por meio de duas entrevistas,
obtive informações acerca de sua formação intelectual no bairro do Umarizal, ainda nos
primeiros nove ou dez anos de vida, passando pela breve estada no seminário. Observei ainda
um mergulho nas lembranças das atividades artísticas nos tablados belemenses – com
algumas viagens para outras capitais brasileiras, inclusive a cidade de Manizales, na
Colômbia – até a consagração da vida sacerdotal. Após os dois densos encontros, me atrevo a
afirmar que lidava com papeis imbricados, amalgamados, indissociáveis.
Por essa razão, no intento de dar conta destes complexos perfis identitários tão
distintos e, ao mesmo tempo, imbricados neste sujeito, doravante me refiro a Cláudio de
Souza Barradas como o “padre teatrólogo”.
Pela idade de 82 anos (nasceu em 04 de janeiro de 1930), na década de 1950, na flor
de sua juventude, tinha 20 anos. Era o período em que o teatro, mesmo existindo em grupos e
associações de bairros da cidade de Belém, já se manifestava na cena da cidade.
Os anos 1950 e os primeiros anos da década de 60 também foram palco dos prelúdios
do Golpe Civil-Militar de 196430
, portanto, coincidiam com as primeiras experiências de vida
do jovem Barradas. Tratei de buscar maiores informações sobre o padre teatrólogo neste
período por meio de pesquisas bibliográficas. Num primeiro momento, pouco encontrei.
Diante do aparente vazio de informações escritas, busquei dados junto a paroquianos
ou profissionais com algum contato junto ao padre teatrólogo. Com os paroquianos obtive a
30 Para entender mais sobre o processo de demonização do comunismo na política paraense/brasileira é preciso
remeter-se ao contexto da Guerra Fria e a posição que o Brasil ocupava naquele processo. Sobre as notícias de
jornais em circulação no Pará que, em larga escala, contribuíram para formar opiniões adversas ao socialismo.
Ler a monografia de Especialização em Ensino de História do Brasil, intitulada “O vermelho nas letras de
jornais: uma análise dos discursos anticomunistas na imprensa paraense (1961-64)”. O trabalho teve como
objetivo analisar manchetes de jornais postos em circulação na cidade de Belém nos primeiros anos da década de
1960 e que explicam parte do êxito e apoio das massas ao movimento golpista de 1964.
94
informação vaga de seu contínuo contato com a produção nos palcos e a vibração de um ator
quando atuava no altar, durante as missas. Mas foi com o diretor de jornalismo da Rede
Nazaré, Marcos Valério Reis, que obtive informações mais concretas acerca da personalidade
de Cláudio Barradas.
Este informante foi valioso na medida em que, pela atuação como jornalista em
coberturas de missas e procissões transmitidas pela TV Nazaré, da Rede Nazaré de
Comunicação, canal 30, já havia estabelecido boa relação de trabalho e amizade com o padre
teatrólogo. Foi Marcos Valério Reis quem me informou apressadamente que o padre, já
calejado pelas inúmeras entrevistas concedidas para pesquisas acadêmicas e/ou jornalísticas,
estava intolerante com perguntas pouco inteligentes. Na ocasião, alertou-me para a
necessidade de traçar aspectos básicos da sua identidade. Ao traçar o primeiro esboço,
constatei que, em função da relação de amizade, os elogios citados não eram poucos, tais
como: astuto, inteligente, rápido, afetuoso. Também surgiram adjetivos pouco nobres, mas
ditos com extrema sutileza, tais como a impaciência com pessoas e atitudes “pouco
inteligentes”. Com estas informações preliminares à entrevista, o padre teatrólogo Cláudio
Barradas foi o único informante desta dissertação que teve uma identidade virtualmente
traçada antes do primeiro contato. Com os demais entrevistados não tive a oportunidade de
conhecer pessoas mais próximas antes das entrevistas.
Em maio de 2011, já de posse dos números de telefone da paróquia e
disponibilidades de tempo, tratei do primeiro contato para entrevistá-lo. Aconteceu por meio
de um telefonema à sua paróquia, no bairro da Marambaia, em Belém (PA). Sua secretária,
conhecendo os protocolos exigentes do padre teatrólogo, habilmente pediu um roteiro de
perguntas. Minha metodologia já havia dispensado tal estratégia de intervenção nas memórias,
mas como havia sido preparado31
não me recusei em enviar. “Por e-mail”, exigiu a secretaria,
demonstrando pouco espaço para uma entrevista na agenda do padre teatrólogo. Meses
depois, em conversas informais, compreendi aquela exigência para filtrar assuntos e pessoas
que fossem de interesse e domínio do pároco. “Não converso nem dou entrevistas sobre coisas
que não sei. Quando tomei ciência das perguntas vi que ali tinha coisa que já tinha me
metido”, disse-me com relação ao questionário que versava sobre Ditadura Civil-Militar e
teatro. A precaução era necessária para não permitir sua imagem em situações que lhe
causassem embaraço intelectual, principalmente.
31 O roteiro de perguntas foi pensado na fase inicial desta pesquisa, mas foi rapidamente abandonado porque a
metodologia de análise das entrevistas seguiram outro rumo. Ao invés de um questionário fixo de perguntas,
optei por deixar os entrevistados livres do roteiro pré-estabelecido. Assim, só receberam o tema central como
mola propulsora de memórias e ficaram à vontade para externar suas lembranças, fatos, frases, lugares.
95
No caso deste memorialista, foi o único a solicitar com antecedência o roteiro das
perguntas naquela entrevista. Já nos primeiros momentos da entrevista o próprio padre
teatrólogo abandonou o questionário. Aquela atitude de baixar a guarda, conforme sugeria
Portelli (1997), indicava que fui investigado pelo entrevistado e havia sido aprovado para
estar ali. A partir deste momento de permissão de Cláudio Barradas o padre assumia
constantemente o papel de teatrólogo: encenava o corpo e voz de acordo com as situações que
fatos e personagens da memória exigiam.
Aqui é necessário enfatizar que pela minha condição de ser um estranho à zona de
conforto de todos os entrevistados, tive a permanente preocupação de olhar nos olhos e
permitir ser analisado. Com esta postura, pretendi – e creio ter obtido êxito – não permitir
dúvidas quanto a minha honesta pretensão de aprender e colocar a pesquisa à disposição de
um bem comum: a valorização de sujeitos culturais antes negligenciados pela escrita histórica.
Com Cláudio Barradas esta postura foi mais enfática.
Vencida esta mais difícil fase de aproximação, por volta das 20 horas do dia 13 de
maio de 2011, a tranquilidade passou a preencher-me. Havia tempo para mapear o ambiente
daquele encontro. O lugar, escolhido por ele, já lhe conferia mais estabilidade dentro de sua
zona de conforto. Era uma sala com mesa para 08 lugares, estante com muitos livros, fotos de
santos. Estava bem próxima ao escritório paroquial. Onde o padre teatrólogo despachava sua
agenda diária. O ambiente de nossa entrevista, naquele horário, também abrigava reuniões de
outras pessoas ligadas a apostolados, comissões, etc. Assim, a todo instante passavam pessoas
se despedindo, acenando, falando algo. Aos poucos, a sisudez da entrevista começava a
desanuviar mais ainda.
A segunda e última entrevista foi concedida dez dias depois, novamente à noite, no
dia 23 de maio de 2011. Desta vez, o compromisso de seguir o questionário sequer foi
mencionado. Agora, como alertou Portelli (1997), eu próprio havia sido alvo de análise por
parte do padre teatrólogo e, consequentemente, já gozava de certa confiança de sua parte. Essa
certeza aumentou a partir de um curioso fato naquela noite de 23 de maio. Meu telefone tocou
tão logo começamos a sentar na mesma sala e mesa da entrevista anterior. Por respeito à
presença do padre teatrólogo, não atendi e avisei que era o amigo Marcos Valério. O padre
teatrólogo, num rompante me tomou o aparelho de celular, atendeu e começou uma animada
conversa. Ria e se divertia com o interlocutor. Entre risos, avisava que estava concedendo
uma entrevista para mim e o convidou a participar da conversa.
Narro este fato com o intuito de mostrar a dissipação da barreira inicial dos primeiros
contatos com quaisquer tipos de entrevistados. O padre teatrólogo não tratava aquele
96
momento como uma situação de desconfiança e, consequentemente, deixava os arredios
cuidados e resistências fora daquela conversa, como ele havia se referido à entrevista.
Obviamente, eu havia ganhado sua empatia. E vice-versa.
Quando o Golpe Civil-Militar foi brutalmente imposto à sociedade brasileira, em
abril de 1964, Cláudio Barradas já era um experiente sujeito da cena belemense. Havia
iniciado cedo o exercício de seus dotes artísticos e, portanto, lidar com imprevistos e atropelos
não era algo de todo novo em sua vida. Sobre a construção dessa experiência de vida no
cenário artístico, o padre teatrólogo narra o bairro do Umarizal como um dos fortes elementos
para sua veia artística pois
(...) eu nasci num bairro, naquela época, altamente artístico, o bairro do
Umarizal. Onde, quando em junho havia pássaros e bois e em dezembro
pastorinhas, ou seja, havia o teatro popular feito do povo para o povo. No
Pará tinha isso, uma coisa rara no Brasil. Em junho, pássaros e bois e em
dezembro pastorinhas. Em garoto, eu frequentei esses negócios aí. Eu nasci
numa rua... Hoje a casa que eu nasci é um salão de beleza, Nilce
Cabeleireiro, quando eu nasci era um barracão de zinco, então para mim era
poético ter vivido ali. (Cláudio de Souza Barradas, entrevista em 13 e 23 de
maio de 2011 - Grifo meu).
Segundo a narrativa, as influências culturais do bairro foram responsáveis pelas
tendências “poéticas” do padre teatrólogo. As memórias externadas apontam “pássaros, bois e
pastorinhas” proporcionando a feitura de um teatro autóctone. Ou seja, atribui à produção em
âmbito público responsabilidades para com as vivências domésticas. Daí é possível
depreender a imbricação das práticas cotidianas vindas das ruas do bairro do Umarizal em
consonância com a educação do lar. Nas memórias de Barradas é como se o espaço público-
urbano de Belém, nos idos dos anos 1930-50, fosse extensão ou complemento do espaço
familiar. E vice-versa.
Trilhando pelas memórias do padre teatrólogo, vão surgindo os sujeitos responsáveis
pela sua formação artística. Ao contrário de muitos que atribuem sua formação aos pais ou
outro membro da família, o padre teatrólogo me surpreendeu ao imputar à antiga patroa de
sua mãe as influências artísticas. “Dona Florzinha”, pianista do cinema Moderno, assume o
papel de mentora na medida em que quebra com o estigma de patroa e redimensiona sua
atuação junto ao filho da governanta.
Depois, depois que eu nasci nos mudamos de lá, minha mãe... Porque minha
mãe era governanta da dona dessa casa que era uma viúva e tenho muita
influência artística dessa senhora. Era Margarida Costa de Carvalho, mais
conhecida como Dona Florzinha, ela era pianista e ela tocava no cinema
Moderno, que nesse tempo era cinema mudo, e eu ia com ela, eu era o... E
97
apesar de eu não ser o neto verdadeiro, eu era filho da governanta da casa
dela, mas ela me tratava como “o neto”. Os netos dela chegavam lá,
sentavam, não falavam nada e eu mandava na casa. Então, ela me levava, ela
tocava no cinema moderno, debaixo da tela ficava um piano. Ela sentada lá e
eu do lado dela (Cláudio de Souza Barradas, entrevista em 13 e 23 de maio
de 2011).
O padre teatrólogo ao ser incitado sobre as memórias de sua infância não consegue
fazê-lo sem mencionar a importância da antiga patroa. Mesmo atribuindo sua formação a
outros fatores, como a produção de “pássaros, bois e pastorinhas” feitos no bairro do
Umarizal, dá maior relevo à participação de Dona Florzinha em sua vida, pois “pela década de
40 eu tava metido no seminário e nem sabia de nada do que acontecia aqui, eu entrei em 43 e
saí em 50, nem sabia... Na década de 35 até 42 é que eu tive esse envolvimento porque eu ia
com essa senhora”, completa Barradas. Ou seja, sua formação intelectual se deve muito mais
ao envolvimento afetivo com a ex-patroa de sua mãe, que chegava a tratá-lo como “o neto”,
do que a educação e formação de padres, ao longo de sua estada no seminário. Sobre este
período, adiante detalharei.
Mesmo indiretamente, sua narrativa segue atribuindo a Dona Florzinha parte de sua
formação. Quando aborda sua inclinação para o teatro, lembra do amante de Dona Florzinha
que fora gerente do Cinema Moderno, no qual ela própria chegou a trabalhar como diretora
musical, tocando piano. Sobre a importância do cinema em sua formação, assim narra:
Então, eu tive muita vivência teatral quando garoto e, sobretudo experiência
estética cinematográfica, além do que depois eu vi todos os grandes filmes
mais de quarenta vezes que já se fizeram e aí ponto. Portanto, a minha
influência veio do cinema, não tenho influência na unidade de tempo, nem
de lugar, só na de ação (Cláudio de Souza Barradas, entrevista em 13 e 23 de
maio de 2011).
Assim, com muita clareza, as memórias de Barradas reencenam a infância para dar
conta da identidade artística forjada na incipiência de sua vida. O projeto de exteriorizar a
presença da diretora musical do Cinema Moderno, a relação desta com o gerente, as
facilidades para ingressar nas salas de apresentações, permite-me inferir a existência de um
roteiro didaticamente enumerado para corroborar a densa e longa experiência.
Outro fato a ser registrado é a ênfase na repetição de audições visualizações de um
filme. Pelo tom de voz e pelo sorriso de satisfação, aquela atividade não era motivo de
cansaço para o padre teatrólogo Barradas. A postura corporal, com os braços estendidos sobre
a mesa e o sorriso no olhar estampado no rosto eram constantes nestes momentos da
entrevista. Assim, é possível inferir que a repetição não era sinônima de estafa ou
98
aborrecimento mesmo porque em seus relatos havia uma alternância de suas idas às sessões
de cinema com as visitas às Casas de Espetáculos, no Largo de Nazaré, em Belém.
Em consonância à influência cinematográfica, Barradas começou bem cedo suas
experiências no palco. Ainda na Escola Externato Misto Santa Luzia já ensaiava suas
primeiras experiências de palco, conforme detalhou
Então, eu comecei a fazer teatro na escola primária, havia um corredor
enorme, nesse corredor, no final de cada semestre faziam, armavam um
estradozinho e os alunos faziam espetáculos, então, eu participei desses
espetáculos. A primeira vez que eu entrei no palco eu fazia “Os anõezinhos
da montanha”, eu era um dos sete anões e logo, tinha uma escada, eu sempre
fui muito desajeitado herdei do meu pai, eu não sou nada prático, quando eu
entrei no palco eu caí e entrei de quatro, o povo já riu da minha entrada, a
minha primeira entrada foi de quatro e não era para entrar de quatro. A
música era essa: “os anõezinhos da montanha, tra lá lá, tra la lá, passam a
vida bem contente tra La lá tra La lá” tu já viste que eu tenho uma boa
memória, eu fiz isso com dez anos ou sete, oito eu estou com oitenta e um,
então entrei...outro, outro eram esquetes, coisas pequeninas outra era as sete
cores, eu era o lápis roxo, naquela época a roupa toda era feita de papel
crepom, eu acho que hoje nem se usa mais papel crepom, eu tava todo de
roxo eu dizia, eu só falava assim: “Eu, o roxo, tenho a cor das violetas”
(Cláudio de Souza Barradas, entrevista em 13 e 23 de maio de 2011).
O fato de chegar a recordar a música cantada há cerca de 70 anos é mais do que
nostalgia pelos tempos áureos, tampouco está reencenando passagens de vida que lhe
trouxeram prazer. Ao enfatizar a habilidade em memorizar textos, como o enunciado da frase,
metricamente construída e a melodia musical, pretende enfatizar a excelência domínio sobre a
atividade teatral. O padre teatrólogo, ao exibir sua memória pródiga com os detalhes do ritmo
da música e do material utilizado pretendia dar mostras da longa experiência no meio teatral.
Novamente, este momento da narrativa apresentava um sujeito com sorriso aberto e o tórax
avançando, entrecortando as frases. Esta postura revelava que aquela entrevista era espaço
para reencenar gratas memórias.
Retomando ao lugar do Seminário em seu barro cultural, Barradas o situa ainda nas
séries iniciais do Primeiro Grau. Longe desta guinada de vida pudesse tê-lo afastá-lo dos
palcos, sua narrativa aponta a direção inversa, pois os “padres Salesianos gostavam muito de
teatro”, contou. Assim, os palcos ganham sua vida desde a tenra idade, sem hiatos, até os dias
atuais.
Sobre sua permanência junto aos padres, entretanto, há um misto de satisfação e
secura. Ao abordar a rala interação com as primeiras notícias sobre o Golpe Civil-Militar, em
1964, Barradas é enfático em justificar sua tênue participação no processo de resistência “por
99
ser desligado da política”, mas principalmente pela sua estada no Seminário. Na fala abaixo
há uma ordem sequencial para explicar sua participação política nos primeiros dias daquele
abril de 1964.
Só que como eu te digo, eu era um cara, um sujeito desligado de política.
Inclusive eu me sentia mal pelo seguinte, meu irmão, eu entrei para
seminário garoto, com 13 anos. Garoto de subúrbio, portanto, garoto todo
inocente e fiquei lá até uns vinte. Fiquei oito anos lá, enclausurado. Só
fazendo estudar e rezar. Estudando o dia todo e só saíamos no fim do ano
dez dias para ficar em casa. E como eu gosto muito de estudo, solidão e de
ler. Eu só ficava dois dias em casa e voltava para seminário. E durante a
semana, se saía para passear na quinta-feira, era todo mundo em fila de braço
cruzado andando, eu ficava. Então por exemplo, eu saía às quintas feiras
para passeio, com esse barulho do Ver-o-Peso, eu me sentia mal com essa
confusão. Além do que sou solitário, sou caseiro, não gosto de viajar. As
minhas viagens são mentais e por leitura. Aí, portanto, eu tava meio... Nunca
pertencia a grupo nenhum. Eu me sentia até mal. Gostaria de ter marchado
no dia cinco, dia sete. Nunca marchei na minha vida. Porque eu era
seminarista. Então eu me achava assim um fulano fora da sociedade
(Cláudio de Souza Barradas, entrevista em 13 e 23 de maio de 2011). Grifos
meus.
A primeira frase grifada acima (eu era um cara, um sujeito desligado de política) é
dita com uma parada abrupta no sorriso. O rosto se retraiu. De pronto percebi tratar-se de uma
irritação por conta do desejo de ter tido um envolvimento maior nas tramas políticas de 1964.
Afinal de contas, aquele período foi farto de movimentos da juventude em luta contra as
censuras do regime militar. Ter ficado de fora do processo de lutas, em sua análise no
momento da entrevista, pode ser que constitua uma lacuna dolorosa em sua vida.
Entretanto, ao narrar sobre o período de oito anos em clausura, seu corpo deita sobre
a cadeira. Estufa o peito, eleva o tom de voz, dando mostras de orgulho por ter realizado um
estágio pródigo em sua vida intelectual. O fato de ter passado oito anos debruçado em leituras
o faz um sujeito diferenciado na cena cultural. No momento da frase Fiquei oito anos lá,
enclausurado. Só fazendo estudar e rezar, o queixo é erguido. Como um enxadrista que dá o
último lance no tabuleiro, seu sorriso é de satisfação. Estudar e rezar são como recompensas
pelos anos de clausura.
No último trecho grifado, nunca pertencia a grupo nenhum. Eu me sentia até mal.
Gostaria de ter marchado no dia cinco, dia sete. Nunca marchei na minha vida. Porque eu
era seminarista. Então eu me achava assim um fulano fora da sociedade, retoma o tom de
lamúria pelo alto preço das recompensas. O tórax volta à posição alinhada com o resto do
corpo. O queixo se abaixo até quase tocar o peito e a impressão de altivez se esvai. Esta
postura corporal me deixa entrever a reclusão como dolorosa, mas como motivo de
100
sublimação. Suas memórias por algo não vivido são nitidamente marcadas por um breve
sentimento de culpa. É bem provável que esta alternância de sentimentos lhe cause alguma
dor, digno de ser aqui enfatizado como uma das marcas/facetas de sua identidade.
Com este conjunto de depoimentos sobre sua penetração no mundo das artes, o padre
teatrólogo deseja afirmar-se com portador de uma sólida educação pautada no que havia de
melhor na cena cultural da cidade de Belém. Tal afirmativa é ancorada por depoimento
idêntico feito ao “Programa Ribalta: Cláudio Barradas – Memória do Teatro e da Dança no
Pará”, filmado em 2009 e transformado em DVD, por ocasião da inauguração do Teatro
Universitário Cláudio Barradas. A impressão sobre o discurso da entrevista em 23 de maio de
2011 se repete ao assistir ao DVD. Ou seja, com poucas variantes, percebi um texto pré-
concebido e pronto para ser declamado sobre a influência do bairro do Umarizal, dos
“pássaros, bois e pastorinhas de dezembro”, o piano e programas culturais oportunizados por
Dona Florzinha, as repetidas sessões de filmes no Cinema Moderno e as visitas às Salas de
Espetáculos, no Largo de Nazaré.
O discurso sobre sua identidade foi organizado, planejado e executado por Barradas
para dar conta de uma agenda que também o coloca na excelência da cena teatral da região
amazônica. Ao contrário disto ser um problema, constato que há uma busca em pôr em
diapasão as narrativas da memória com a fama conferida pelos discursos oficiais. E vice
versa, uma vez que os discursos oficiais são produzidos por pessoas de seu circuito e não há
desejo em fazer ruir a imagem construída.
Por esta razão, o padre teatrólogo Cláudio de Souza Barradas consta no rol de
entrevistados desta dissertação. Por cumprir o papel de sujeito cultural que, logo após a
deflagração do Golpe Civil-Militar, em 1964, não cessou suas atividades teatrais. Assim, a
crítica e postura de questionamento à ordem vigente foram sutilmente manifestas em favor do
processo de redemocratização do país.
101
2.4 Dulce Rosa de Bacelar Rocque
No momento da gestação deste texto, o Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque
(UFAC), na condição de Examinador do texto de Qualificação da dissertação, incitou-me a
buscar uma escrita cuja participação feminina não estivesse invisibilizada pela visão
falocêntrica há muito tempo presente na historiografia tradicional. A observação de
Albuquerque permitiu-me avançar em perspectivas ainda não pensadas para esta arquitetura
textual. Afinal de contas, o papel ativo de mulheres em movimentos políticos na Belém dos
anos 1960 não era algo improvável, pelo contrário, seria perfeitamente plausível tal presença.
Cabia à pesquisa identificá-la.
As narrativas desta pesquisa e demais produções acadêmicas da região Amazônica
sobre ditadura não mencionavam tal presença, por isso, fez-se necessário investigar mais
sobre o viés que se apresentava naquele momento. Assim, imbuído pelo propósito de
encontrar a participação de mulheres no processo de resistência ao golpe e Ditadura Civil-
Militar, de 1964, iniciei telefonemas aos entrevistados e varredura pela rede mundial de
computadores. Ao enveredar nesta nova pesquisa, recorri novamente aos maiores expoentes
Dulce Rosa de Bacelar Rocque
Foto: acervo pessoal de Dulce Rosa – Itália/Bologna – sem data informada
102
da produção sobre o período. Assim, adensei a leitura sobre Alfredo Oliveira (2010), Pere
Petit (2003), Tony Leão da Costa (2008) e Raquel Cunha (2008). 32
Seguindo a investigação em edições on-line de jornais, encontrei uma entrevista
sobre uma mulher chamada Dulce Rosa de Bacelar Roque saída do Brasil em 1969 por conta
do Golpe Civil-Militar. A matéria fora publicada pelo jornal O Liberal, em 04 de janeiro de
2009 e versava sobre seu retorno ao Brasil em 2004. Dizia ainda sobre sua formação
acadêmica no Brasil (havia cursado a Faculdade de Ciências Econômicas, pela Ufpa), na
extinta União Soviética (ali estudou Economia Política) e na Itália, na cidade de Bolonha
(nesta cidade cursou Economia e Comércio, fez pós-graduação em Programação Econômica
do Território, além de Direito Público).
Este achado da pesquisa havia se concretizado em poucas horas de pesquisa. Daí,
sem titubear, cheguei a pensar não haver problemas para rastrear outras personagens e ampliar
a sugestão dada por Albuquerque no momento da Qualificação. Ledo engano. As dificuldades
para encontrar outras mulheres dispostas a indagar suas memórias acerca dos tempos
ditatoriais foram muitas. A professora Violeta Loureiro, já havia figurado na monografia de
Raquel Cunha, mas estava em viagem no exterior. Ao mesmo tempo, novas personagens se
fizeram impossíveis para compor este texto. Portanto, Dulce Rosa de modo bastante corajoso
irá figurar nesta escrita como a representante feminina que não se opôs a hastear a bandeira
feminina no conjunto de astúcias para combater a Ditadura Civil-Militar. 33
32 Alfredo Oliveira, em trabalho de memórias pessoais, intitulado “Cabanos e Camaradas”, publicado em 2010,
versa sobre o Golpe Civil-Militar e destaca os mais relevantes personagens do Partido Comunista Brasileiro, ao
longo do século XX. Este memorialista, na condição de médico, tem o honroso papel de mencionar a
participação de mulheres junto aos maridos, bem como na ação direta de embates contra a ditadura militar.
Chega inclusive, por feliz coincidência, a destacar a importância do papel de Dulce Rosa na luta junto ao PCB
contra a Ditadura Civil-Militar. A esta companheira do partidão dedicou duas páginas.
i. Pere Petit, com “Chão de Promessas – elites políticas e econômicas no estado do Pará pós 1964”, lançado
em 2003, não chegou a mensurar a atuação feminina no período posterior ao Golpe Civil-Militar, em
1964. Cabe ressaltar que este autor carrega a importância de ser a principal referência acadêmica sobre o
período em tela.
i. Tony Leão da Costa, em dissertação de Mestrado, em 2008, cujo enfoque em História Social da
Amazônia, sob o título “Música do Norte: intelectuais, artistas populares, tradição e modernidade na
formação da MPB” no Pará (anos 1960 e 1970), tem o honroso mérito de desvencilhar-se do olhar
puramente político e economicista. Sua análise recai especificamente sobre a relação musical com os
acontecimentos pós 1964 no Pará.
ii. Raquel Cunha, em monografia de conclusão de curso, em Ciências Sociais/antropologia, no ano de 2008,
sob o título “Um olhar à cidade de Belém sob o golpe de 1964: paisagens e memórias de estudantes e
artistas”. Cunha apresenta, dentre outras, a narrativa da Prof.ª Dr.ª Violeta Refkalefsky Loureiro
(Socióloga/UFPA). É o primeiro trabalho de pesquisa sob a temática da ditadura e metodologia da
História Oral que retirou a ação feminina da invisibilidade histórica.
33 No lançamento do livro “Bússolas”, de José Seráfico de Carvalho, em maio de 2012, havia dezenas de amigas
do nobre autor e contemporâneas ao Golpe Civil-Militar. A maioria era de colegas de faculdade. Portanto,
haviam presenciado ou “ouvido dizer” sobre as prisões e angústias do colega Seráfico. Ao buscar contato com as
103
Em um telefonema para André Costa Nunes obtive êxito para o primeiro contato com
aquela possível narradora. Forneceu endereço, e-mail, contato telefônico, nomes dos pais,
irmão. A surpresa diante daquele rol de informações tão claras chegou a assustar-me.
Explicou que ambos eram amigos desde os tempos de Faculdade de Economia, ainda em
1964, daí a facilidade em divulgar informações tão ricas.
Ao telefonar para tratar da possibilidade em conceder uma entrevista para a pesquisa
de memórias sobre a ditadura militar na Amazônia Paraense, Dulce Rosa foi prontamente
acessível. Como se conceder entrevistas fosse parte de seu cotidiano, aquiesceu. Ao longo do
telefonema foi muito amável e tratou-me como trata a um velho amigo. Por fim, marcamos
duas entrevistas ainda por telefone: 28 de dezembro de 2011 e 07 de janeiro de 2012.
Dulce Rosa recebeu-me em sua casa no bairro da Cidade Velha, em Belém (PA).
Local bastante aprazível e diferenciado no espaço urbano da capital paraense. No trajeto, fui
constatando aspectos diferenciais daquele bairro e, principalmente, da privilegiada localização
da casa. Foi construída bem à diagonal da Igreja do Carmo e do tradicional Colégio do
Carmo. À frente, a Praça do Carmo, com suas mangueiras frondosas de frutos pela temporada
própria do mês de dezembro. Meninos brincando na praça davam um ar bucólico à cena. Os
casarões antigos, cuja arquitetura obedece à tradição portuguesa, estavam mal cuidados,
inertes no tempo, à espera de reformas emergenciais, mas ainda com o glamour dos tempos
áureos dos louros da borracha para as elites belemenses do início do XX.
No mês de dezembro, em Belém, as chuvas são constantes, então havia um ar de
frescor na tarde, um cheiro de chuva que acabou de cair. Todo o ambiente é muito
diferenciado do restante da cidade. Por isso, por todo este estranhamento, ao chegar até a
frente da casa, onde a entrevistada já estava em pé esperando, tratei de parabenizá-la pela bela
localização do lar. Sua resposta foi um doce sorriso que me fez brincar com seu nome tão
logo entrei na sala: “Dulce, doce, Rosa, flor... Vai dar para criar um bom título”, lhe disse
com o intuito de enviesar uma entrevista com todos os rigores necessários previstos pela
metodologia, mas sem formalidades ou sisudez. Novamente sorriu. Com isso percebi tratar-se
de uma mulher com excelente senso de humor.
Dulce Rosa foi sentando e começando a falar sem que eu tivesse tempo de ligar e
posicionar a filmadora ou explicasse novamente os intentos da pesquisa. Sobre a temática da
mesmas, a recusa foi imediata. Aconselharam-me, inclusive a “deixar aquilo de lado, pois havia sido tudo tão
chato”. Outras, fechavam-se em couraças não permitindo sequer avanços nas perguntas sobre aqueles tempos.
Conclui, para aliviar minhas inquietações acerca daquelas recusas, que o papel feminino dos anos 1960, para a
maioria, excluía o envolvimento em questões políticas. O “tempo da mulher”, por ser ainda uma sociedade
falocêntrica, devia ser voltado para “questões do lar” ou “do trabalho”.
104
minha presença ali só havíamos falado por telefone dias antes. Pareceu-me que já havia sido
informada sobre a importância desta dissertação, assim como aspectos de minha pessoa pelo
amigo comum que intermediou nosso encontro: André Costa Nunes.
Nos momentos iniciais de sua fala eu estava preocupado em encontrar o fio condutor
que a justificasse na dissertação como sujeito cultural das táticas de resistências no Golpe
Civil-Militar. Isso ocorreu sem que eu a incitasse por meio de intervenção direta ou
indiretamente. Conforme já mencionei, a metodologia desta dissertação tem como diferencial
ausentar-se de um roteiro específico ou comum de perguntas a serem feitas aos entrevistados.
Desta forma, livre para selecionar quais memórias lhes fosse mais convenientes operar
naquelas circunstâncias da vida, Dulce Rosa aflorou recordações sobre os primeiros dias do
golpe e prisões.
Digamos que veio o golpe, eu acho que é mais importante falar esta ocasião
aí, quando aconteceu o golpe, no primeiro dia de aula, no dia 02 de abril
depois do golpe estava tudo muito estranho na faculdade, metade dos alunos
tinha desaparecido, porque mesmo se tu não eras comunista tu tinha feito já
atividade ou tu era da AP (Ação Popular) ou tu era católico paraticante,
também fazias política, estava muito estranho tudo, não. Os colegas tinham
desaparecido e tinham se escondido e durante muito tempo ficaram
escondidos. Pouco a pouco começaram a voltar, mas alguns foram presos.
Foram presos até mesmo no dia primeiro, no dia dois [de abril] porque
quando se descobriu que era verdadeiramente um golpe as pessoas
começaram a tentar se esconder e a fugir, mas ainda saiam pelas ruas, então
alguns foram presos aqui pela [rua]16 de novembro (Dulce Rosa Bacelar
Rocque, entrevista concedida em 28/dez./2011). Grifos meus.
Esse dado, de que os alunos tinham desaparecido da faculdade, é novo dentre as
informações fornecidas pelos narradores. Em “1964. Relatos Subversivos”, por exemplo,
estão as memórias do primeiro dia do Golpe Civil-Militar. Ou seja, trata das prisões de
estudantes presentes na reunião da UAP, na noite do dia 1º de abril daquele ano de 1964, em
Belém (PA). Curiosamente, mesmo parecendo óbvio que os estudantes estivessem retraídos e
receosos de novas prisões, ainda não havia narrativas sobre esse momento específico de pós-
golpe vivenciado pelos estudantes em Belém. Dulce Rosa, diferenciando-se, traz à tona o
segundo dia daquele momento.
Ao desvelar esse episódio, a entrevistada o faz com as mãos em constantes
movimentos de apertar um objeto inexistente. Sua voz suave não condiz com a movimentação
rápida das mãos. Um aparente nervosismo é visível. Corpo, voz e gestos, nessa convivência e
interação com Dulce Rosa, transformam-se em textos complexos e contraditórios de leitura. A
105
metodologia da História Oral, quando explorada para além de seus dados objetivos, permite
alcançar sentidos da rede que costura a vida humana.
Os olhos, janelas d’alma, como diz o velho ditado popular, a todo instante buscavam
o teto como em uma tentativa de esquadrinhar e não deixar passar detalhes. Mas o olhar
sempre levantado para o teto também me pareceu apreensão em buscar as palavras com a
cautela necessária para uma narrativa com responsabilidade em não criar réus. Talvez estas
lembranças não lhes fossem confortáveis. Ou a movimentação rápida das mãos fosse causada
pelo desconforto de relatar fatos vividos a um interlocutor ainda pouco familiar.
Apesar da palavra medo não ter sido mencionada neste momento da narrativa, foi
esse o termo que Dulce Rosa buscou não dizer para explicar tais ausências de estudantes a
partir do segundo dia do Golpe Civil-Militar. Neste momento iniciei pesquisa que abordasse o
medo enquanto categoria presente nas pesquisas sobre ditadura. Dividi as leituras para este
texto em dois planos: de um lado, a produção do eixo sul-sudeste, por ser
hegemônica/consistente no mercado editorial; de outro, a produção amazônica paraense
publicada pela Universidade Federal do Pará, também hegemônica no que se refere à
pesquisa.
Na produção acadêmica do eixo sul-sudeste sobre a luta política do movimento
estudantil contra a ditadura militar, Valle (2008) faz questão em apontar os principais
episódios da intensa luta política travada entre estes dois grupos. Entretanto, não consta em
sua análise o medo dos estudantes “livres” quanto às prisões executadas no primeiro dia de
ditadura (1º de abril de 1964). Pelo contrário, sua pesquisa enfatiza os estudantes como
sujeitos “coadjuvantes” na cena política ao tomar para si as rédeas de ação e intervenção
diante das estratégias autoritárias dos militares.
Na produção acadêmica da Amazônia Paraense, quatro pesquisadores merecem
ênfase: Peñarrocha (2003), Costa (2008) e Cunha (2008), ambos tampouco mencionam o
medo como espectro presente no lado estudantil no embate contra a ditadura. Oliveira (2010),
por outro lado, com seu livro de memórias intitulado “Cabanos e Camaradas”, é uma rara
exceção na análise. Este último, apesar de também não mencionar o medo enquanto categoria
analítica para explicar a fuga, faz uma bela explanação acerca do tema. Segundo este autor, a
fuga era tática de ação determinada pela alta cúpula do Partido Comunista. O PCB preferia
um militante solto a um heroi preso ou morto, explicou ao longo de sua obra. Assim, para este
memorialista a prisão não configurava consequência do binômio “medo-coragem”, mas
implicava em “perda-continuidade” de quadros para a resistência.
106
Em todo caso, a identidade dos estudantes paraenses em 1964 nas lembranças
narradas por Dulce Rosa, mostra os estudantes despidos de bravatas. O que se apresentava
naquele momento era o caráter humano do medo intuindo o perigo. Busquei a todo custo, no
intuito de construir bustos de heroísmo, perceber nas palavras de minha interlocutora, as
ausências no campus como um gesto de sagacidade por parte dos estudantes diante de um
adversário mais bem equipado e numeroso. Entretanto, sua gesticulação corporal e entonação
da voz mostraram-me estudantes como jovens, imaturos, perdidos diante daquela inédita cena
de prisões e, portanto, com medo diante do cenário desconhecido. Ou seja, Dulce Rosa
apresentou-me uma faceta do movimento estudantil desprovida de atos heroicos, mas repleta
de sinceridade.
A narrativa é coerente com o momento de entrada de Dulce Rosa na militância
política. Diferente dos demais narradores já atuantes em movimentos de embate antes de
1964, sua entrada no ativismo político só teve início depois de deflagrado o Golpe Civil-
Militar. Sobre esse tema, alertou-me para o fato de haver diversos grupamentos políticos na
faculdade que já imprimiam discussões acerca de ideais de governo, educação, filosofias de
vida, etc.. Eram a Ação Popular, o Partido Comunista Brasileiro e a Juventude Católica, sendo
o PCB a organização mais numerosa. Ela, entretanto, não pertencia a nenhum destes grupos e
por isso sobre sua pessoa não tinham informação substancial justamente pelo fato de não atuar
na política estudantil antes de adentrar na faculdade. Assim, quando sondada para ser
cooptada por algum desses grupamentos pouco ou nada encontravam, conforme ela mesma
relata:
Eu, com certeza, eles [grupos de esquerda] não tinham nenhuma informação,
eu vinha do [colégio] Paes de Carvalho, mas eu nunca tinha feito nenhum
tipo de atividade. Sempre por questões de educação familiar, “não, isso não é
coisa de mulher. Não senhora, não vai para reunião nenhuma, porque
mulher, moça de família não anda sozinha de noite e tal” (Dulce Rosa
Bacelar Rocque, entrevista concedida em 28/dez./2011).
São duas revelações importantes no mesmo enunciado. Primeiro, dá pistas de sua
entrada na atuação da política estudantil somente depois do Golpe Civil-Militar, em 1964, fato
que abordarei mais adiante. Segundo, Dulce Rosa aponta para outra faceta amazônica nos idos
da década de 1960: o patriarcalismo vigente na Amazônia Paraense. E num efeito cascata, ela
compreende a atuação feminina com pífia atuação nas esquerdas paraenses justamente pelo
conservadorismo patriarcal da sociedade belemense.
107
É bem verdade que se pode compreender as tramas da resistência à Ditadura Civil-
Militar sob a égide do falocentrismo político. Entretanto, é preciso considerar que a
participação política ou engajamento à dissidência – independente de gênero – não se dá
somente nas esferas das discussões partidárias. Por meio da “cultura” – tal qual a concebe
Bhabha (2007) – é possível alargar o horizonte das perspectivas do que seja engajamento em
quaisquer causas que sejam.
No caso da Ditadura Civil-Militar, a participação de outros sujeitos e,
principalmente, do protagonismo feminino fica evidente com Oliveira (2010). Este
memorialista já alertava para tal envolvimento das mulheres durante aqueles tempos
autoritários. Com a sensibilidade à flor da pele, este memorialista deu conta das esposas dos
comunistas, seus camaradas de militância.
Conheci, no entanto, exemplos de compreensão e solidariedade de mulheres
que enfrentavam todos os tipos de dificuldades sem reclamar dos maridos
comunistas. Levavam marmitas para as prisões, apreendiam a encarar os
policiais com altivez, andavam atrás de advogados para defendê-los.
Recordo algumas criaturas dessa estirpe: Gilvanete, a mulher do dirigente
Humberto Lopes; Maria, a mulher do arrumador Luciano Amaral;
Conceição, a mulher do comerciário Francisco Nascimento; Isa, a mulher do
bancário Raimundo Jinkings; Norma, a mulher do poeta Ruy Paranatinga
Barata. Representavam exemplos que conheci de perto. Nenhuma das citadas
era militantes comunistas (OLIVEIRA, 2010, p. 563).
Desta forma, Dulce Rosa tem o mérito de constar neste trabalho por meio de sua
coragem e audácia em adentrar ao Partido Comunista Brasileiro e participar diretamente no
cumprimento das tarefas político-partidárias. No entanto, outras mulheres, pela ação
cotidiana, poderiam tranquilamente estar arroladas ao seu lado mesmo que não estivessem
filiadas a quaisquer partidos.
Retomando ao fato do ingresso tardio no processo de engajamento político, ou seja, a
entrada de Dulce Rosa no Partido Comunista, somente após a deflagração do Golpe Civil-
Militar, em 1964, veja o que revelou sobre o fato de ser mulher e não pertencer a antigos
quadros de grupamentos políticos de esquerda conferiram algumas facilidades:
Então foi aí que o partido se aproximou mais de mim. Eu não era conhecida
em nenhuma parte como uma que agisse politicamente ou que fizesse
política, então eles [membros do PCB] se aproximaram de mim e
perguntaram se eu podia ir onde hoje é [a Casa das] Onze Janelas. Ali na
Quinta Companhia de Guardas, porque um dos nossos colegas Mário Matos
Brito de Albuquerque, um cearense que estava aqui, era nosso colega de
faculdade e era tenente nesse quartel. Então, se eu podia ir lá falar com ele e
ver quem é que estava lá preso. Eu fui, era fácil para mim. Ele tinha sido
108
meu namorado, mesmo se a história já tinha acabado eu cheguei lá, mandei
chamá-lo, ele veio. Eu fiz a pergunta que eu queria saber, “quem é que tá aí
dentro e tal?...” (Dulce Rosa Bacelar Rocque, entrevista concedida em
28/dez./2011). Grifos meus.
Novamente analisarei dois aspectos da narrativa. Primeiro, em relação ao fato de ser
a própria Dulce Rosa uma desconhecida no cenário político de Belém, cabe lembrar as
campanhas anticomunistas existentes no Brasil naqueles primeiros anos da década de 1960.
As “Marchas pela Família”, em nome de Deus e da Liberdade grassavam em várias capitais.
Belém não ficou imune a este ambiente hostil. Em narrativa de Ruy Antonio Barata34
, por
exemplo, quando se refere às prisões sofridas pelo pai35
pelo simples fato de ser
declaradamente um comunista, narrou que a ordem dos comandantes da Polícia Militar
paraense era “prenda os de sempre”. Em clara alusão a ser a família Barata renomadamente
conhecida por ser comunista/subversiva, portanto, sempre era alvo de prisões.
Além disso, lembrando o macro cenário político brasileiro, destaca-se o fato da força
das classes médias. Já haviam influenciado a capitulação de Jânio Quadros, em agosto de
1961 e andavam irritadas com o governo de João Goulart (1961-64). Os altos índices
inflacionários, o não alinhamento do presidente Jango com a batuta norte-americana e o
preconceito comunista era somado à tônica dos discursos conservadores daquele momento.
Assim, Dulce Rosa, ao selecionar e evidenciar na narrativa o fato de não ser conhecida por
atuações políticas, aponta para a necessidade do anonimato daqueles dias como vital para a
sobrevivência.
Segundo, Dulce Rosa aponta a premissa de ser mulher para facilitar sua entrada na
Quinta Companhia de Guardas. Não só isso, o fato do tenente já ter sido um antigo namorado
contribuiu mais ainda para tal feito. Com isso, é evidente o projeto de querer mostrar-se e ser
percebida como um quadro diferenciado nas táticas de enfrentamento daquele momento. Ser
mulher em Belém, nos anos 1960, filha de uma funcionária pública e vinda da conservadora
Escola Estadual Paes de Carvalho era a equação suficiente para preencher o estereótipo de
alguém completamente alijado do mundo político. Com isso, estava concretizado o disfarce
perfeito para outras atuações de Dulce Rosa dentro das estruturas políticas do PCB: bastava
ser coerente com o papel que a vigilância social esperava de ser mulher.
34 Entrevista concedida em 26 de agosto de 2011.
35 Ruy Antonio Barata é filho do deputado Ruy Paranatinga Barata, renomado partidário do PCB desde a década
de 1930 e alvo de inúmeras perseguições por conta de sua postura socialista.
109
Em seguida, outro episódio solidifica a atuação de Dulce Rosa junto ao Partidão.
Desta vez, poucos dias depois do Golpe Civil-Militar, foi solicitada para atuar em benefício
do PCB. Era a segunda vez a ser acionada e não titubeou, conforme narra:
Então, o Partido veio novamente falar comigo e pediu se eu podia ir na
[prisão da rua] Gaspar Viana procurar uma determinada pessoa, que
infelizmente eu não lembro que me parece fosse o responsável de finanças
aqui de Belém e, mas sabe depois do golpe ninguém tava preparado para
isso, nem a polícia, nem o exército, nem ninguém. Então ninguém sabia se
comportar nos primeiros dias. Quando eu cheguei lá eu disse: “- Olha eu
queria falar com fulano de tal”, que era um preso, ele disse: “- Tá, espere aí”.
Mandou-me entrar numa sala e foi chamar o fulano que eu estava
procurando (Dulce Rosa Bacelar Rocque, entrevista concedida em 28 de
dezembro de 2011). Grifos meus.
O Quartel do 2º Batalhão da Polícia Militar, situado à Rua Gaspar Viana, era
considerado o local para presos políticos mais perigosos. Após o Golpe Civil-Militar não era
nada prudente para os quadros de esquerda circular pelas ruas da cidade à luz do dia, muito
menos dirigir-se até o 2º BPM. Por isso, a escolha do PCB para ser Dulce Rosa a pessoa
responsável para reorganizar as finanças do Partido foi estratégica. Novamente, o fato de ser
desconhecida pela direita e pelos militares facilitou aquela tarefa.
Quanto ao fato de ser prontamente atendida na pelo guarda responsável, é preciso
levar em conta a observação da própria narradora. Os grupos de direita, nem de esquerda,
sabiam como agir naqueles primeiros momentos de ditadura. Aliás, é bom que se diga, não
havia a clareza de tratar-se de uma ditadura em curso. Daí a facilidade em adentrar prisões e
conversar reservadamente com os presos.
Com esta fala, o semblante carrega mais tranquilidade em relação ao momento inicial
da entrevista em que apertava um objeto inexistente em suas mãos. Já passam de seis minutos
desde o início da entrevista e por isso os estudos dela em relação a minha pessoa já talvez já
tivessem estabelecido mais confiança. Antes de começar a gravação do vídeo eu havia
retomado o assunto de minha visita (memórias sobre o golpe e a Ditadura Civil-Militar, em
1964). E tão logo avisei que estava ligando a câmara ela disparou o gatilho das memórias
sobre os anos 1960. É de supor que houvesse mais tranquilidade, até mesmo o movimento das
mãos apertando algo inexistente já não mais acontecia. O tom da voz também estava mais
sereno e em ritmo mais sereno. Então, no momento de expor o diálogo entre ela e o soldado
há um breve sorriso de quem soube tirar benefício da prerrogativa de ser mulher.
Com o desfecho exitoso desta segunda empreitada de Dulce Rosa à serviço do PCB,
sua entrada no partido, mesmo sem a tão usual “ficha de filiação”, estava praticamente selada.
110
Afinal, nas duas vezes em que foi solicitada, duas vezes houve êxito sem quaisquer
problemas. Aparentemente, naquele momento Dulce Rosa não havia se dado conta da
importância daqueles breves e pequenos favores em prol do PCB. Isto se depreende a partir
do convite feito pelo comunista Roberto Brasil para seu ingresso no partido a partir da
seguinte conversa:
Passou-se pouco tempo, o [Roberto] Brasil, que era um dos ativistas do
partido, voltou de novo à faculdade e soube dessa história (que o partido
tinha me utilizado em duas ocasiões), então ele veio me perguntar se eu não
queria entrar para o partido e eu disse que “não”, “que eu acreditava em
Deus”, na ocasião eu era protestante da Igreja Presbiteriana (Dulce Rosa
Bacelar Rocque, entrevista concedida em 28 de dezembro de 2011).
Ou seja, o fato de haver sido útil em duas oportunidades para o PCB ainda não era
motivo suficiente para sentir-se do quadro efetivo do partido. Mas como sua presença
manteve-se constante junto aos partidários era inevitável ficar alheia aos acontecimentos
havidos nas reuniões. Mesmo não tendo envolvimento direto, os fatos e demais decisões eram
comunicados. Isso culminou com um anúncio seco por parte do amigo Roberto Brasil: “Olha
Dulce, o partido comunista não tem carteirinha, portanto para nós tu já estás dentro”.
Se os tempos de controle às atividades subversivas haviam chegado, então a
identidade de jovem estudante e filha de família de classe média preenchia perfeitamente o
disfarce para ações secretas do Partidão. Assim, Dulce Rosa construiu os primeiros momentos
de sua história de vida ligada ao PCB e, consequentemente, ao processo de resistências por
meio de táticas para desvencilhar o país dos militares. Após esse momento, partir para outras
atividades foi questão de agenda do partido. Dulce Rosa de Bacelar Rocque passou a ser
efetivamente uma comunista a serviço do processo de lutas de redemocratização do país.
111
III PARTE
TÁTICAS E SENTIMENTOS DE RESISTÊNCIAS
(...) Ou seja, a memória e o esquecimento aqui
também só existem sob os olhares da história,
investindo-se na reconstrução de novas
identidades, a partir de um critério utilitário-
político. “Toda memória, seja ela ‘individual’,
‘coletiva’ ou ‘histórica’, é uma memória para
qualquer coisa, e não se pode ignorar esta
finalidade política (no sentido amplo do termo).”
(SEIXAS: 2004, p. 42).
112
A violência institucional contra as liberdades individuais foi engendrada a partir de
uma política de Estado que não hesitou em mostrar-se forte ou parecer antipática à opinião
pública. Esta última, aliás, nunca foi claramente conhecida ou divulgada pelos meios
midiáticos. O alardeado “milagre econômico”, no início dos anos 1970, o advento da televisão
em cores, as transmissões da Copa do Mundo de Futebol de 1970 e 1974, o sucesso brasileiro
nos gramados, as telenovelas, a jovem guarda (capitaneada por Roberto e Erasmo Carlos),
tudo isto serviu de subterfúgio para não mostrar as posturas contrárias à Ditadura Civil-
Militar.
Outro aspecto a ser mencionado são os fortes aparatos de censura existentes externa e
internamente nas empresas jornalísticas. A censura enquanto mecanismo de controle social,
por exemplo, é mencionada em diversos trabalhos, tais como: Mariani (1998), Berg (2002),
Martins e Luca (2006), Silva (2010), Aquino (1999) e Orlandi (1997). Destaco para esta
análise Mariani (1998), Kushnir (2004) e Aquino (1999).
Aquino (1999), assim como Kushnir (2004), é enfática em denunciar as posturas
acovardadas dos empresários da imprensa. Ambas põem em circulação a categoria “censura
prévia” como estratégia de manutenção de privilégios junto ao governo militar. Com esta
postura, censurando os próprios editoriais sem esperar pela intervenção do órgão oficial,
muitos jornais conseguiram obter favores ao longo dos 20 anos de Ditadura Civil-Militar. E
ainda hoje sustentam suas audiências e leitores colhidos desde os tempos de conivência com o
regime.
Mariani (1998), valendo-se dos rigores da Análise do Discurso, percebe ao longo do
período ditatorial, por meio de jornais, uma série de silenciamentos (alguns forçados, outros
sagazmente de propósito), no que diz respeito à trajetória do PCB no país. Assim, Mariani
aponta um importante aspecto a ser mencionado neste momento: nem sempre o leitor (e/ou
não leitor) percebe o discurso jornalístico enquanto modus operandi de manutenção do poder.
Significa dizer que as empresas jornalísticas mencionavam somente aquilo que fosse
agradável ou interessante ao regime por meio de matérias eivadas de preconceitos contra o
comunismo ou quem fosse atrelado a este ideário. Com raras e honrosas exceções, a trajetória
do PCB nos jornais de grande circulação no país satanizavam posturas de esquerda. O grande
público, repito, sem grandes chances de reação.
As análises em torno da censura e discursos jornalísticos explicam como os discursos
da mídia foram responsáveis, em larga medida, pelos depoimentos dolorosos de José Seráfico
de Carvalho, André Costa Nunes, Ruy Antonio Barata e Alfredo Oliveira. Estes foram os
depoentes que deixaram entrever todo o cenário de repressão da ordem institucional. O padre
113
teatrólogo Cláudio Barradas, por estar neutro nas posturas partidárias, ora sofria, ora era
privilegiado, por adotar tal atitude. Dulce Rosa e Pedro Galvão de Lima, mesmo tendo
migrado para a URSS/Itália e Rio de Janeiro, respectivamente, também sofreram com os
discursos uniformizados da direita no poder. E Paes Loureiro, nem sempre buscando uma
postura esquerdista, mas sempre inconformado com a violência, repressão e censura, era
criminalizado de ameaça vermelha.
Neste ambiente hostil, os narradores produziram suas ações de diálogo com o poder
institucionalizado e outros círculos de atuação. Produziram poesias, peças teatrais, enviaram
cartas, medicaram, sofreram. Nenhum deles se alijou do dever imputado por eles mesmos
quanto à obrigação de lutar, por meios democráticos, com perspicácias e malícias, contra a
Ditadura Civil-Militar instalada desde o famigerado 1º de abril de 1964.
Terminadas as entrevistas, passava ao segundo passo: transcrever os áudios e analisar
as performances da língua e do corpo. O objetivo desta atitude era mapear e analisar
sentimentos que pudessem ser manifestados ao longo da entrevista. Neste sentido, Pacheco
(2006) bem ensina como o pesquisador de memórias pode lançar mão da produção
iconográfica como suporte para catapultar memórias de entrevistados. De outra forma, o texto
imagético pode acompanhar o roteiro temático da entrevista e, ao ser mostrado ao narrador, é
possível que dispositivos de lembranças sejam acionados e remetam a outras perspectivas e
construções de narrativas36
.
Utilizei este esquema metodológico fazendo uma inversão. Parti da premissa de que
os corpos dos entrevistados pudessem produzir em minhas análises outras imagens em
movimentos, uma espécie de performance visual, diferentes daquelas que o discurso oralizado
provocava. Assim, ao rever os vídeos dos entrevistados procurei compreender os corpos,
enquanto suportes da cultura, construindo textos imagéticos e, concomitantemente, os
confrontava com os textos oralizados.
Se esta metodologia de análise tem problemas pelo caráter da incipiência, por outro
lado, é uma possibilidade necessária quando estão em jogo memórias há muito marginalizadas
e não exploradas pelos circuitos oficiais da produção historiográfica. Há de ser considerado o
tempo transcorrido desde o golpe até o presente momento. Ou seja, em geral os
36 O uso da imagem enquanto parte de uma possibilidade metodológica foi ampliada em recente publicação na
Revista Ensaio Geral, da Universidade Federal do Pará, por Pacheco (2011). Neste artigo o pesquisador explora
iconografias e memórias orais, sejam de quaisquer segmentos sociais, como patrimônios socioculturais que
devem ser preservados e valorizados. Ultrapassando a noção tradicional e restrita de patrimônio, Pacheco
preocupa-se com o patrimônio afetivamente produzido pelos agentes históricos.
114
contemporâneos ao abril de 1964 já ultrapassaram a barreira das seis décadas. Assim, é mister
pôr em circulação possibilidades de análise que estes sujeitos possam apresentar.
De posse deste método, a partir das entrevistas fichei temáticas dos entrevistados e
mapeei sentimentos demonstrados pela corporeidade. Como resultado a Perplexidade, o
Orgulho, o Medo, o Ressentimento, a Esperança e a Superação são os sentimentos mais
perceptíveis nas narrativas.
Todos os narradores de alguma maneira deixaram mais que registros de memórias.
Causaram algum tipo de ensinamento para uma postura de vida mais equilibrada, menos
caótica e mais humana. Essa inferência faz lembrar Antonacci (2006, p. 18-19), quando
assinala:
Esta é uma das perspectivas mais promissoras em torno das metodologias de
História Oral em trabalhos com memórias. O ato de socializar com outros
seus sofrimentos e empenhos, como que construindo avaliações de vida,
desvenda o que ainda podem conseguir fazer. Ou seja, compartilhar
memórias pode significar reavivar sonhos e esperanças. Para osseguir sem
deixarem-se perder pelo desespero ou mesmo mortes antecipadas. O fogo
das emoções revividas reacende esperanças de vida.
Paes Loureiro, por exemplo, intelectual com títulos e publicações na França, foi o
primeiro entrevistado. Naquela altura do mês de maio de 2011, ao investigar seu currículo,
senti a densidade e consistência da carreira acadêmica construída desde o fatídico 30 de abril
de 1964, quando a primeira edição do “Tarefa” foi bruscamente sacada do mercado. Assim,
com o primeiro contato em sua confortável sala de estar no apartamento da Av. Serzedelo
Correa, levei comigo uma leve preocupação na relação de poder que pudesse ser travada
naquela ocasião. Ao invés de deparar-me com um altivo intelectual no alto de seus títulos
honoríficos fui recebido – e servido – pelo casal Loureiro como um homem igual a mim, no
sentido mais sociológico da palavra. Naquele momento recebia uma lição de humildade tão
necessária nestes tempos de fogueiras das vaidades academicistas. A mesma lição, é
necessário mencionar, foi impressa por todos os depoentes por meio de sugestões de possíveis
entrevistados, abraços, desejos de boa sorte, acenos de despedida, afetos no olhar.
O dia 1º de abril de 1964 foi testemunha de dois lamentáveis acontecimentos nas
memórias dos narradores: o golpe e a invasão da UAP. Foi o fatídico dia desencadeador do
processo de recordações dolorosas sobre a Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense.
Absolutamente todos os entrevistados mencionaram aquele momento como representativo nos
momentos futuros de suas vidas. Ruy Antonio Barata não chegou a ser preso naquela noite
pelo simples fato de não pertencer à UAP, entretanto, era acadêmico de Medicina e já se
115
compreendia como estudante. Assim, aquela noite pode ser considerada o início de uma longa
noite para a história dos estudantes no Pará, pois durou até 15 de março de 1985.
Naquela ocasião, o estudante de Direito José Seráfico de Carvalho, era um dos mais
preocupados com os rumos políticos do país deflagrados pela ação de Olympio Mourão. Sua
presença naquela reunião extraordinária da UAP, na antiga Rua São Jerônimo [hoje é a Av.
José Malcher], assim como todos os presentes, tinha por finalidade contribuir com soluções
emergenciais a serem tomadas pelo movimento universitário no dia seguinte. Ao longo
daquela tarde já haviam preparado panfletos, que foram apreendidos por sinal, telefonado para
o 8º Comando Militar da Amazônia, buscavam apoios legais para impedir no Pará o avanço
golpista. Estavam com os nervos à flor da pele. Os próprios militares deveriam estar atônitos
com a avalanche de acontecimentos. O dia havia sido angustiante e cansativo para todos.
Estavam reunidos no pequeno ambiente da UAP vários universitários, dentre eles,
Paes Loureiro, José Seráfico de Carvalho, Pedro Galvão de Lima. Não sabiam que do lado de
fora, um grupamento fortemente armado de soldados havia recebido ordens para dar fim
àquela reunião. Fortemente armados, comandantes e soldados estavam com pistolas em punho
e metralhadoras assentadas no chão apontando para possíveis rotas de fuga. O prédio da UAP
estava cercado. A operação, coordenada pelo Coronel “Peixe-Agulha”, não tinha mais como
retroceder.
Com a ordem de “avançar”, de repente a reunião foi invadida. A porta foi derrubada
e vários estrondos de móveis e objetos caindo se seguiram. Após o susto inicial veio o instinto
de sobrevivência, os estudantes começaram a correr espavoridos em várias direções. José
Seráfico de Carvalho correu em direção à porta. Por desatino de Clio, deu de encontro com o
agulhético Coronel. Foi recebido com uma forte bofetada.
Todos os depoentes citaram aquele fato e nas palavras selecionadas para descrever
aquela cena está presente a perplexidade. Não pelo ato violento em si, mas por compreender a
atitude partindo da premissa que o Poder estava institucionalizado nas ações de pessoas
representativas da república. O gesto arbitrário não seria punido por mais que fossem feitas
queixas e denúncias, afinal de contas, atitude do Coronel “Peixe-agulha” era porta-voz do
novo projeto político no Brasil e da Amazônia Paraense.
André Nunes Netto por mais que não fizesse parte daquela cena foi eivado pelas
repercussões do episódio. Tanto que no final de sua narrativa em “Relatos” aborda o quanto
sentiu inveja de Seráfico de Carvalho por ter sido contemplado pela bofetada da violência
institucionalizada.
116
De forma muito louvável, é bom mencionar, o Ódio e a Mágoa não estiveram
presentes em nenhum momento das entrevistas. A princípio, busquei tais sentimentos quando
revisei as entrevistas, por mais que eu me esforçasse para localizar tais pequenezas de espírito
não obtive êxito. Senti-me culpado por tentar induzir os dados construídos pela pesquisa para
fazer desta dissertação um ajuste de contas de minha revolta com o golpe e regime civil-
militar. Buscando a honestidade como requisito da escrita acadêmica, curiosamente, também
me senti bastante aliviado e confortável por ter dedicado momentos de vida junto a homens
maduros na idade e no espírito. Talvez aí, no momento de explicitar tais atributos positivos
dos narradores, resida o tão desejado acerto com o passado tão doloroso e caro à memória de
homens e mulheres que ousaram desafiar o autoritarismo.
Partindo da premissa de que corpos são portadores de cultura, aceitei o desafio de
analisar o texto das narrativas em confronto com as performances. Assim, gestos e expressões
faciais podem ajudar a revelar sentimentos ainda não prestigiados pela escrita da História.
Este exercício complexo está ancorado na proposta de inversão da metodologia
sugerida por Pacheco (2006) quando utiliza o recurso imagético para ajudar seus
entrevistados na difícil tarefa de “lembrar” de experiências vividas que, em muitos casos,
insistem em ser esquecidas. É um recurso que acompanha o roteiro da entrevista e, neste
sentido, age como mola propulsora para acionar recordações já experimentadas.
De posse deste ardil, ao rever as filmagens das entrevistas mapeei sentimentos que,
em consonância com as narrativas orais. De imediato, ao contrastar a oralidade com as
performances, destaquei os sentimentos de Orgulhos, Perplexidades, Orgulhos, Medos,
Ressentimentos/Tolerâncias e Esperanças.
O Golpe Civil-Militar, em 1964, e a consequente instalação da ditadura, foram
extremamente negativos para o exercício das liberdades individuais, políticas e expressões
artísticas. Sob o aval de amplos setores civil, a política de estado instituída no Brasil foi
construindo estratégias cujo cerne era o cerceamento das ações e posturas mais críticas.
Entretanto, isso não significou ruptura na produção dos sujeitos culturais que compõem esta
escrita. Os sujeitos dissidentes ao regime sempre estiveram atentos à possibilidade de atuar
pelas frestas das imposições governamentais. A produção de ações portadoras de teor
contestatório passou por um crivo no momento de sua gestação no sentido de tornar-se menos
visíveis aos olhos da censura institucional. Existiu por meio do teatro, poesia, músicas ou
simplesmente em atitudes diárias de insatisfação para com determinadas posturas autoritárias.
Um segundo aspecto a ser indicado neste momento aponta para a metodologia das
entrevistas que compõem esta escrita. Conforme já detalhei anteriormente, além de registrar a
117
oralidade em áudio e vídeos, estive atento às performances dos corpos dos narradores. Esta
atitude foi permanente ao longo das análises das transcrições por entender a linguagem oral
não açambarcando todas as formas de comunicação. Oralidades e corpo atuam em simbiose
indicando outras possibilidades de compreensão da memória narrada acerca da história vivida
(GLISSANT: 2003). De posse desta postura metodológica, pude compreender o Golpe Civil-
Militar e do regime por um prisma de inúmeras possibilidades de sentimentos brotados a
partir das memórias narradas. Orgulhos, ressentimentos, medos, traumas, esperanças, foram
captados ao longo das entrevistas. Neste momento, tratarei de expor e analisar alguns.
Em diversas passagens das narrativas, o fato de ter criado inúmeras formas para
driblar os autoritarismos foi motivo de sorrisos, algumas gargalhadas, peitos à frente, queixos
erguidos denotando emoções orgulhosas, outras vezes pesarosas, acerca daqueles tempos.
Estive atento também à entonação da voz para perceber sentimentos de vitórias e derrotas
diante do adversário mais forte. Assim, diversos sentimentos presentes nas ações de
dissidentes por meio de textos escritos, narrados e performáticos, mesmo que em momentos
esporádicos, estarão contemplados doravante.
Desta feita, Paes Loureiro, ao narrar sobre a cerimônia de formatura do curso de
Bacharel em Direito, em 1965, dentre várias sensações manifestas pelas memórias sobre o
episódio da censura, se orgulha por ter contribuído para um fato inusitado dentro do regime de
exceção. Fora responsável por um fato, no mínimo, inusitado na história do autoritarismo
militar: foi um orador sem discurso na cerimônia de formatura.
Cabe lembrar a pompa que normalmente rodeava – e ainda rodeia – as cerimônias de
formatura de nível superior. Trata-se de uma efeméride nas vidas dos formandos. Parentes,
amigos, professores sentem-se prestigiados pela conquista do nível superior alcançado. O
ambiente cultural naquela Belém do ano de 1965 ainda respirava o romantismo da década de
ouro (1950). Havia um compreensível clima de euforia naqueles últimos dias de sala de aula.
Tal sensação de vitória se deve pelo fato de – ainda – vivermos em um país cujas
universidades não figuram dentre as possibilidades palpáveis para boa parte dos brasileiros.
Para Paes Loureiro, vindo de Abaetetuba (PA), cidade ribeirinha, por mais que houvesse
posses, o curso de Direito materializava uma aspiração não só dele, mas da família e
sociedade que o rodeava.
O próprio bacharelado em Direito também recebia – e ainda recebe – uma aura de
glamour, afinal, os bacharéis ainda recebem o tratamento de “doutores” das leis. Assim,
aquela formação conferia ao depoente status diferenciado em Belém e Abaetetuba. Soma-se a
isto, a dedicação do narrador em produzir um livro cujos textos estavam engajados na poética
118
e na política, inaugurando para a Amazônia Paraense uma proposta inédita de produção. Ser
escritor já era por si só um mérito de poucos; alcançar patamares de reconhecimento em
escala nacional pelo trabalho com as palavras gerava uma ansiedade bastante compreensível.
Diante disto, não é estranha a expectativa diante da cerimônia de formatura, do
lançamento do livro “Tarefa”, da festa seguinte à formatura, dos cochichos e conversas em
circuitos acadêmicos – ou não – para coroar todo o êxito de Paes Loureiro e demais
envolvidos naquelas efusivas conquistas.
Considerando este cenário, Paes Loureiro narra sobre a primeira edição do livro de
poemas “Tarefa”. Já havia sido apreendida e destruída pela Polícia Militar ainda na noite de
30 de março de 1964 – antes do Golpe Civil-Militar – e, dias mais tarde, fora preso pelo novo
poder instituído. Paes Loureiro estava marcado pelos grupos direitistas civis e militares em
Belém: desde o momento da apreensão do “Tarefa”, passou a ser abertamente combatido
como perigoso, comunista, subversivo.
No ano de 1965, quando estava prestes a concluir o Curso de Direito, a informação
de que a turma o havia escolhido como orador vazou para conhecimento público. A situação
se fez embaraçosa por envolver interesses políticos para além da compreensão dos jovens
estudantes daquele momento.
Por um lado, a Ditadura Civil-Militar ainda não apresentara todas suas facetas
autoritárias, por isso o Conselho Universitário da Faculdade de Direito e setores da sociedade
civil ainda acreditavam na defesa de livre arbítrio daquela turma de acadêmicos. Escolher o
orador, mesmo que desagradasse setores mais reacionários da sociedade, ainda era cogitado
como algo dentro da legalidade, sem ônus para a imagem dos cargos daqueles que
gerenciavam aquela faculdade ou o conservadorismo das famílias de muitos alunos. Por outro,
algumas famílias, cujos filhos eram colegas de Paes Loureiro, estava francamente apoiando o
novo governo.
Além das famílias mais reacionárias, o novo governo já defendia a mordaça como
instrumento de diálogo para os perigosos subversivos que ameaçassem a soberania da pátria e
da família brasileira. Basta lembrar do famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), criado em 1939, pelo governo autoritário de Getulio Vargas. Este havia semeado o
espectro da censura nos tempos republicanos, mas o Império, na figura das Regências também
já havia instituído a censura no jornal “O Paraense”, capitaneado por Batista Campos e Felipe
Patroni.
Assim, tomando por base a censura averiguada nos tempos de Ditadura Civil-Militar
pós 1964, é possível constatá-la como um instrumento repressor para garantir a condição sine
119
qua non dos grupos mais conservadores. Desta forma, também é possível entender os medos
por detrás da escolha de Paes Loureiro como orador cujo papel social ameaçava a ordem
pretendida. Afinal de contas, já havia sido preso, apontado como comunista, ameaçador,
subversivo. Por tudo isto, sua identidade já se sinalizava como símbolo de subversão.
Assim, dentre sorrisos, para explicar episódio de impasse quanto à autorização para
que ele fosse o orador da turma, Paes Loureiro narrou sobre a convocação e reunião do
Conselho Universitário da Faculdade de Direito que, em reunião extraordinária, decidiu sobre
a questão. Apesar da situação constrangedora e autoritária, Paes Loureiro ao narrar o episódio
dá mostras de orgulho e satisfação. Vejamos:
(...) Nossa turma foi toda convocada também. Então nós ficávamos na nossa
turma. Na nossa sala de aula. O Conselho Universitário reunido na sala do
Conselho. Como o Conselho Universitário tinha certa solenidade. Agora a
universidade abandonou um pouco isso. Até com, agora, com a criação das
[instituições] particulares. O Conselho Universitário se reunia de beca, né?
De beca e tudo. Era uma coisa meio solene. Uma coisa de embate. A nossa
turma dizia que eu seria mantido enquanto orador. E o Conselho queria
arrumar uma maneira... Mas o Conselho não tinha como argumentar porque
aquilo estava sendo uma violência ao direito. Como é que uma Faculdade de
Direito, o Conselho de uma Faculdade de Direito, não é isso? Iria corroborar
uma violência contra o direito? Então esse era o Conselho. Até que houve
um acordo que era o seguinte: eu seria mantido como orador. Mas não leria o
discurso (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de
2011).
Ao dizer a frase “mas não leria o discurso”, Paes Loureiro gargalhou fartamente. A
partir deste momento de sua narrativa, o sorriso se fez presente até o final deste episódio da
solenidade de formatura. Obviamente, conforme mencionei anteriormente, em 1964, na
condição de estudante de Direito já havia sido preso e espancado por conta de sua atividade
poética e por suposto envolvimento subversivo junto ao movimento estudantil. Assim, seus
sorrisos ao narrar mais essa situação vexatória é uma brecha construída pelo discurso da
memória para amenizar as dores das experiências vividas. Mas há outro dado a ser
considerado, talvez o mais interessante em sua narrativa: manter-se como orador e não ler o
discurso era também uma conquista no enfrentamento com a ditadura. Afinal de contas, ao
ficar calado na condição de orador de uma turma do Curso de Direito construía um estrondoso
factoide para a memória da ditadura. Esta percepção está claramente evidenciada no trecho
abaixo:
Seria chamado um orador e tudo mais, mas não leria. E o Clóvis Malcher,
que era o paraninfo da turma, nosso professor disse então que em
120
solidariedade a turma e a mim também não pronunciaria o discurso dele.
Ora, criou-se uma situação histórica além da circunstância. Que pela
primeira vez na história do Brasil um orador da Faculdade de Direito não
falava. Era um orador sem fala. Um orador sem discurso. Transformaram, na
verdade, o fato num fato histórico (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista
em 03 e 30 de março de 2011). Grifos meus.
Pelo trecho grifado, Paes Loureiro dá mostras de um sujeito consciente das ações
executadas no campo de confrontos. É bem verdade que esta interpretação dos fatos, motivo
de risos, só é possível nos dias atuais. Na época, talvez não houvesse a picardia suficiente para
ser capaz de rir daquela situação. O sarcasmo daqueles sorrisos só era viável graças ao
relativo distanciamento temporal para poder analisar a situação em outras perspectivas. Em
todo caso, aquela cerimônia de formatura promovida pela Universidade Federal do Pará,
instituição mantida pelo Executivo Federal, serviu para dar visibilidade aos primeiros
estrondos no campo das denúncias daquele primeiro ano do Golpe Civil-Militar. Se os novos
senhores do poder desejavam impor seus projetos políticos, conseguiram. Mas também é
possível que o fato fosse motivo de antipatia por parte daqueles que estiveram atentos à
celeuma do orador do Curso de Direito da turma de 1965. Uma conquista de Paes Loureiro
entrincheirado no front por 20 anos.
Outro episódio narrado com entusiasmo pelo professor e poeta Paes Loureiro, diz
respeito não à uma ação produzida por ele, mas por simpatizantes com sua trajetória de vida
ou postura política. Um ano antes, no dia 30 de abril, portanto antes do Golpe Civil-Militar,
setores reacionários – dentre eles, alguns militares, especialmente Jarbas Passarinho37
–
respiravam um ambiente de conspiração golpista por parte das esquerdas. Talvez por conta da
guerra fria, o pensamento esquerdista grassava nos movimentos estudantis em Belém. Por
outro lado, as ideias fascistas também ganhavam espaço entre alguns governantes, setores da
Igreja e políticos da região. Sobre essa questão, Ruy A. Barata externou seu ponto de vista
alegando que isso não passava de “paranoia” por parte da direita. 38
Mesmo com a suposta existência (ou inexistência) de um clima de golpismo por
parte das esquerdas, os militares da Amazônia Paraense estavam intranquilos com o
37 Nesta perspectiva, Petit (2003) e Alfredo Oliveira (2010) deixam entrever Jarbas Passarinho enquanto militar
visionário, à frente nos movimentos de 31 de março e 1º de abril de 1964. O narrador Ruy Antônio Barata, em
entrevista concedida em 14 de setembro de 2011, acidamente, se apressou em externar sua opinião sobre Jarbas
Passarinho na ação do movimento golpista: também compartilha da opinião de Petit e Oliveira.
38 Cabe lembrar que Ruy Antonio Barata era filho do poeta e deputado do PCB, Ruy Paranatinga Barata. Em sua
casa, na sala de estar, eram comuns as discussões políticas sobre os rumos políticos do Socialismo no Brasil,
URSS, China e Cuba, além de críticas ao modelo capitalista vigente no Brasil. Segundo entrevista em 14 de
setembro de 2011, Ruy A. Barata afirma jamais ter presenciado conversas cujo teor fosse um movimento
golpista por parte das esquerdas sobre o governo de Jânio Quadros ou João Goulart.
121
lançamento de um livro de poemas intitulado “Tarefa”, de autoria de Paes Loureiro. Era um
livro de vanguarda, segundo depoimento do autor. Seu teor era vincado por uma trajetória a
partir do movimento estudantil paraense. O Departamento de Arte Popular, coordenado pelo
próprio Paes Loureiro dentro da União Acadêmica Paraense, talvez fosse visto como ato de
subversão pelos reacionários paraenses. Vejamos a narrativa:
(...) aqui na União Acadêmica Paraense, eu tinha criado, coordenado a
criação do Departamento de Arte Popular. Que tinha outro nome mas era a
mesma finalidade do CPC (Centro Popular de Cultura). Uma coisa curiosa.
Por isso que nós entrosamos muito essas duas coisas. E o meu livro Tarefa
foi selecionado para ser publicado nessa programação. E o lançamento dele
seria no terceiro dia, mais ou menos. No dia 3 de abril, em pleno Seminário
Latino Americano pela Reforma Universitária: o SLARDES. Então quando
foi no dia do lançamento. Eu tinha recebido isso na véspera, os livros. Como
eu morava na casa do estudante, os pacotes dos livros foram para sede da
UAP porque seria lançado logo depois. Estava dentro da programação do
SLARDES (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de
2011).
Conforme já foi exposto, o lançamento do livro “Tarefa” não chegou a acontecer no
momento previsto. Paes Loureiro relata a cena com profundo pesar e indignação. Neste
momento da narrativa, e em todas as demais vezes que retomou o assunto, seus braços
gesticulavam mais do que o normal aparentando, ora nervosismo, ora indignação. As pernas
balançando insistentemente, a voz em tom elevado, confirmavam os sentimentos dolorosos
por recordar tão lamentável passagem em sua história.
Entretanto, mesmo num momento tão doloroso, as memórias do narrador conseguem
perceber um tracejo a ser lembrado com um esboço de sorriso. Acontece que a apreensão
daquela edição não foi suficiente para impedir o lançamento da obra. Passados vinte e cinco
anos, uma grata surpresa havia sido destinada para o rol de experiências daquele narrador: o
“Tarefa” de súbito chegou novamente até suas mãos por meio de ato corajoso da mãe de um
antigo colega de faculdade. Vejamos como narra o episódio:
Eu morava aqui na [Avenida] Conselheiro Furtado. Claro, eu estava casado.
Casei ainda na década de 1960. Em 1966, por aí. Então morava na
Conselheiro. E 25 anos depois eu nem estava ligado na época. Recebemos
um pacote em casa como se viesse pelo correio. Esse pacote tinha um
exemplar do [livro] “Tarefa” com a capa toda roída pela umidade. E um
bilhete não assinado da mãe de um colega meu que, na época a semelhança
do que muitas mães fizeram, muitas famílias faziam, escondiam os livros.
Uma forma era embrulhar o livro bem e enterrar. Foi o que ela fez no
quintal. Houve pessoas que assim, com mais medo, queimavam os livros.
Todo mundo sabia que invadiam as casas. Como fizeram comigo em
Abaetetuba em minha casa, e tal. Então ela dizia que ficava temerosa que
122
fosse encontrado o livro por causa do filho dela, que ela temia que fosse
preso. Tinha reunido alguns livros que podiam ser perigosos e tinha
enterrado (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de
2011).
Diante das memórias daquela insólita cena recordada por Paes Loureiro, dois
aspectos merecem destaque para justificar a postura corporal do queixo erguido e tom de voz
altivo, denotando alegria pelo fato de ter novamente a edição do “Tarefa”.
Primeiro, na narrativa é visível a sensação de vitória, consequentemente orgulho, por
ter em suas mãos aquele exemplar que fora confiscado no fatídico 1964. Os exemplares
deveriam estar totalmente destruídos dias antes de sua divulgação para o grande público. Se,
de um lado, a apreensão e destruição daquela edição havia se tornado símbolo da violência
que viria nos anos seguintes, de outro, aquele exemplar desgastado pelo tempo passava a
simbolizar a vitória das destrezas e artimanhas sobre o autoritarismo do golpe e regime civil-
militar. Cabe lembrar que a edição foi apreendida no dia 30 de março, no desbaratamento do I
SLARDES, na Faculdade de Odontologia, na Praça Batista Campos. Assim, passados 25
anos, mesmo sendo impossível acionar mecanismos para olvidar as dores registradas naquelas
páginas da vida de Paes Loureiro, ainda seria possível cumprir esta etapa da carreira de
escritor: (re) lançar o primeiro exemplar da carreira de escritor. E assim aconteceu. Por
iniciativa de sua esposa, senhora Violeta Loureiro, o “Tarefa” ganhou edição fac simile como
presente de aniversário para o escritor e poeta Paes Loureiro.
Porque quando, nesse mesmo ano, a Violeta mais amigos meus. E eles
fizeram versão fac similar com o Jorge falando, que era dono de uma
gráfica. E era já amigo nosso aquela altura. E fizeram uma surpresa para
mim. E claro, convidaram mais gente. Eu vi muitos amigos em casa. Eu
achei meio estranho aquilo e fiquei na minha. Quando deu certa hora me
chamaram, e tudo mais, e foi a surpresa: uma versão fac similar do livro com
um prefácio que a Violeta escreveu contando a história do livro (João de
Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de 2011).
Inolvidavelmente, Paes Loureiro narra tal episódio com imensa alegria. O sorriso não
é tão largo, mas com a convicção de sentir naquela atitude da esposa a realização de um
sonho. Ao mesmo tempo, o tom de voz se acalmou. Tornou-se sereno o suficiente para
transmitir aquela notícia sem permitir-se transbordar de euforia. No entanto, não pude deixar
de perceber que ao narrar aquele fato Paes Loureiro estava demarcando um avanço nas fileiras
do adversário. Ainda que tardiamente, lançar o “Tarefa” significava atropelar o autoritarismo
outorgado sobre ele no fatídico 30 de março de 1964.
123
Segundo, com o ato autoritário da apreensão e destruição do “Tarefa” a estafe militar
pretendia dar uma lição para completa dominação sobre o tecido cultural amazônico. O desejo
daquele gesto autoritário era silenciar por completo quaisquer manifestações de pensamento
libertário. A julgar pela aparente apatia de muito estudantes universitários e famílias convictas
de ideologias direitistas/conservadoras, pode-se pensar num eventual êxito da prática raivosa
de apreender livros. Atitude mais comum foi a queima e destruição total dos livros, quaisquer
livros, que “pudessem depor contra a lealdade à nação brasileira”. Assim, livros cujos autores
pudessem ser interpretados como subversivos, foram queimados, conforme narrou Paes
Loureiro em diversas passagens das duas entrevistas concedidas. O objetivo era sempre livrar-
se de provas que pudessem depor contra si em caso de alguma invasão nos domicílios.
Mas houve quem ousasse não aceitar. Apesar das metralhadoras, cavalaria e soldados
ameaçadores, houve quem ousasse a desobediência. O exemplar do “Tarefa” desgastado e
corroído pelo tempo nas mãos de Paes Loureiro carregava ares emblemáticos para os novos
tempos democráticos.
Nem todas as táticas de resistência, é necessário admitir, foram urdidas para derrubar
a ditadura ou combater às atitudes governamentais. Muitas vezes, buscavam demarcar a
soberania sobre o próprio terreno, sem necessariamente adentrar na arena de embates políticos
de enfrentamentos diretos. Para as mães é possível que, ao não destruir os livros, como se
esperava que todas as famílias assim o fizessem, estivessem respeitando e demonstrando amor
aos ideais dos filhos. Não se tratava de adentrar no mérito do conflito político ideológico
existente naquele momento por conta da Guerra Fria. Neste sentido, posso inferir que o livro
“Tarefa” fosse resultado de uma atitude corajosa da esfera política daqueles anos. Mas
também, e isso é necessário especular, poderia ser tão somente fruto de um ato materno.
Ainda assim, ao demarcar tais espaços ainda na década de 1960 deveria ser
inevitável a sensação do binômio medo-orgulho por parte dos “infratores” por se permitirem
avançar sobre o limiar do autoritarismo imposto pelos golpistas ou mesmo sobre imposições
de setores mais conservadores da sociedade civil. Assim como era também inevitável à
memória selecionar e explicitar tal sentimento no momento da entrevista concedida pelo
próprio Paes Loureiro. Mesmo passadas quatro décadas do Golpe Civil-Militar, evidenciar tal
binômio de medo-orgulho era a opção política daquela narrativa.
Neste meio raio de raciocínio, Ruy Antonio Barata é categórico ao afirmar-se como
sujeito orgulhoso pelos simples feitos de demarcar seu espaço enquanto comunista da
sociedade belemense desde os tempos de sua juventude. Orgulho, inclusive que se entende até
os dias de hoje quando conclamado a expor seu ponto de vista neste assunto. Seguindo os
124
ensinamentos de Sarlo (1997, 2005), tratei de instigar os entrevistados com temáticas que
pudessem buscar minúcias nas memórias. Desta forma, quando entrevistava Ruy Antonio
Barata abordei suas memórias acerca do pai, as prisões sofridas, os estereótipos negativos
atribuídos quando o comunista Ruy Paranatinga Barata estava no enfrentamento com o
baratismo e, depois, com a Ditadura Civil-Militar. Ao invés de esquivar-se ou denotar alguma
preocupação com o tema, narra o seguinte:
Tinha uma série de cassados. Figuras importantes do humanismo na cidade
se rebelaram. Agora, os jornais se enchiam na época. Eu lembro quando meu
pai foi preso: O cartorário da fé pública, comunista, foi preso. Desse
tamanho. A nossa cara nos colégios [quando os colegas apontavam]: Olha o
pai daquele cara é comunista. Comunista é um bicho feio. E nós dizíamos:
comunista é muito mais importante que vocês. Nós sabíamos a importância
de ser comunista. Tínhamos orgulho de sê-lo. Tinha orgulho de sê-lo. Não
comunista soviético. Essa coisa assim. Mas tudo aquilo que vinha em si de
uma sociedade de mais oportunidades, mais igualitária. Por exemplo, a luta
pela terra. (...) Sensações eram de orgulho. Primeira coisa. De orgulho. De
você enfrentar o mais forte, poderoso. Segunda coisa, eu era estudante da
Faculdade de Medicina. Era um homem muito bem sucedido, do ponto de
vista do meu momento pessoal. Tinha prestado vestibular, tinha passado em
12º lugar de uma faculdade. Era um aluno privilegiado. A minha irmã tinha
acabado de se formar em Direito. Ela formou-se em 65 e foi presa em 66. E
nós tínhamos um avô que era muito corajoso. Chamava-se Alarico Barata. Já
estamos habituados a enfrentar o Magalhães Barata (Ruy Antonio Barata,
entrevista concedida em 19 e 22 de agosto de 2011).
Ruy Antonio Barata não hesita em demonstrar-se como membro de um seleto grupo.
Em sua narrativa, não atribui para si o rótulo de “grupo de comunistas perseguidos
politicamente”, mas como “figuras importantes do humanismo na cidade que se rebelaram”.
Talvez pela severa educação de sua mãe, senhora Norma Barata. Talvez pela admiração
nutrida ao seu avô, o advogado Alarico Barata tantas vezes mencionado e comparado ao
famoso jurista Sobral Pinto. Talvez pelo respeito às ideias defendidas pela família, em
especial do “velho Ruy”. O fato é que Ruy Antonio Barata narra o episódio acima com
tamanha ênfase que se fez impensável esta escrita dissertativa sem a análise do orgulho
externado enquanto categoria analítica para compreender o Golpe Civil-Militar e a ditadura na
Amazônia Paraense.
Ser comunista assumia uma faceta identitária que Ruy Antonio Barata construiu
desde os tenros momentos de alteridade política. Mais do que uma opção política, a narrativa
coloca a identidade comunista como uma postura de vida em prol da coletividade. Desta
forma, a opção partidária política entranhada à formação familiar construída pela admiração
aos pais e avô fazendo funcionaram como ebulidores de sua identidade.
125
O orgulho de ser comunista, ter sido preso, ver o pai cassado em seus direitos
políticos, tudo isso era maior do que a estabilidade econômica da família ou do fato de ter
sido aprovado no concorrido vestibular de Medicina, da Ufpa. Longe de tudo isso significar
uma mácula em sua história, a memória captura e põe em evidência essas experiências vividas
para construir uma identidade digna de nota e alinhada com o orgulho para que assim, e
somente assim, Ruy Antonio Barata pudesse conviver com este passado tantas vezes
doloroso. Assim, ao ser indagado novamente sobre as prisões que havia passado, ou de seu
pai, a mesma sensação causada pelo queixo erguido e o peito estufado foi mantida. Seguiu
com a mesma performance ao longo de toda a entrevista com a mesma postura de altivez,
inclusive para narrar sobre as prisões sofridas por alguns membros da família Barata e por ele
mesmo. Sobre o episódio de sua detenção, narra da seguinte forma:
Na Polícia Federal eu fui preso porque quando houve o AI-5 não havia mais
brecha para nenhum tipo de movimento político e nós tínhamos ocupado a
Faculdade [de Medicina] por sessenta dias. E saímos com movimentos
vitoriosos. Foi a primeira vez que nós ocupamos uma Faculdade. E a
Faculdade de Medicina era o centro da atividade política porque ela tinha o
maior número de estudantes, tinha 600 estudantes, tinha uma liderança
aguerrida. Eu fui presidente da fundação... da Comissão de Ocupação (Ruy
Antonio Barata, entrevista concedida em 19 e 22 de agosto de 2011).
Novamente vem à tona a altivez por estar diante de um evento protagonizado por
uma “liderança aguerrida” de “600 estudantes” da Faculdade de Medicina, cuja atividade
política era o “centro do movimento estudantil”. O fato de ser preso pela Polícia federal torna-
se minúsculo uma vez que a causa defendida em prol da imensa coletividade era mais nobre
que os arroubos autoritários. Por isso, ao contrário do que seria para outro sujeito em situação
similar, neste trecho da entrevista, ao citar a prisão, é concomitante com um tom acima do
comum. Senta-se mais à frente do velho sofá da sala de estar e o peito salta à frente. Assim, o
narrador externaliza toda a grandeza de sua atitude. Portanto, ao narrar este episódio com
tamanha eloquência, faz questão de registrar-se dentro de um projeto de protagonismo
histórico na temática da ditadura militar na Amazônia Paraense.
Neste sentido, Paes Loureiro se assemelha a Ruy Antonio Barata. O professor poeta,
ao narrar sobre as dificuldades para ingressar no mercado de trabalho precisou impor-se
corajosamente, segundo inferências a partir da narrativa, diante dos infortúnios criados pelos
tentáculos da ditadura. Ao concluir o curso de Direito encontrou poucas oportunidades de
trabalho em Belém. Tal fato, aliás, não foi incomum naqueles tempos de censuras e exclusões
do mercado de trabalho. É preciso lembrar que seu nome fora marcado com a pecha de
126
subversivo na política regional e, portanto, os empresários ou outros empregadores não
tinham interesse em relacionar-se com tal predicado tão nocivo para a imagem dos negócios.
Não pensava conforme a maior parte do empresariado belemense a freira diretora do
Colégio Santo Antônio. Deu-lhe emprego dois anos após a formatura do Curso de Direito,
mas para lecionar Literatura Portuguesa, primeiro, depois, Brasileira. Apesar de ser uma
escola tradicional e frequentada pela elite paraense, aquela diretora (cujo nome não foi citado
por Paes Loureiro) ousou ir de encontro à exclusão social imposta ao bacharel. Paes Loureiro,
por conta de tal atitude dentre outras, à chama de “uma diretora excepcional como educadora
e como cabeça mesmo”. Muito embora a licenciatura não fosse parte do projeto de sua área de
atuação, a sala de aula era um emprego cuja função colocava aquele dito subversivo na vitrine
da sociedade. Fato que lhe conferia a desconfiança de diversos setores civis-militares e,
obviamente, vigilância dissimulada.
Algum tempo depois de já lecionar no Colégio Santo Antonio, os professores
precisaram alinhavar os estudos acadêmicos com as funções exercidas. E lá foi Paes Loureiro
prestar vestibular para o curso de Letras, na Ufpa. Foi aprovado, cursou e habilitou-se para
seguir sua trajetória de professor. De posse deste diploma viu-se apto a prestar concursos
públicos, como de fato o fez. Foi aprovado tão logo tentou os concursos propostos em editais
federais.
Mesmo sendo aprovado honrosamente em duas cátedras, em primeiro lugar em
ambas, a censura e vigilância ainda pairavam sobre Paes Loureiro. Por causa disso, não foi
admitida sua posse em nenhuma das duas cátedras. A pecha de subversivo pela poesia
inovadora, as prisões e, principalmente, sua atuação diante do Colégio Santo Antonio eram
vistos como atitudes desafiadoras aos senhores do poder na região, fossem eles civis ou
militares.
Abaixo, Paes Loureiro começa a dar mostras que nem sempre o regime obteve êxito
nos projetos autoritários. Segundo a narrativa abaixo, a identidade de professor dedicado,
intenso nas aulas e honesto com seus princípios começara a surtir efeitos junto à sociedade e
ao governo, pois:
Os alunos começaram a se organizar fazer uma greve para minha entrada.
(...). Foi quando o Damião Coelho de Souza que tinha sido meu professor na
Faculdade de Direito, professor de Introdução a Filosofia do Direito, ficou
muito meu amigo. Ele gostava muito de mim. Acompanhava minha vida de
estudante, vida literária. E depois também manteve assim, e eu por ele, a
admiração que eu sentia por ele. Ele me ligou e disse se eu me importava
que ele intercedesse por mim na universidade. Ele disse: Se você entrar na
universidade por força de um movimento como esse, você vai ficar marcado
127
lá dentro. Na primeira oportunidade, quer dizer a ditadura ainda estava,
então vamos ver o que a gente fadiga isso. Eu disse: Olha não tenho nenhum
interesse de brigar. Quero entrar, fazer valer meu direito de entrar. E ele
articulou. Falou com não sei quem. Falou com o MEC, falou com o reitor. E
o reitor me chamou com ele presente, inclusive, disse que eu ia lecionar. Foi
engraçado porque parecia um teste, porque eu fiquei seis meses sem ser
contratado. Aquela coisa de experimentar. Passado os seis meses eles
contrataram (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de
2011).
Foi a partir do trecho acima que a narrativa de Paes Loureiro abandonou o discurso
performático de vítima daquele regime. As frases passaram a ser entrecortadas por risos, o
rubor na testa acalmou-se. Este momento da narrativa foi, sem sombra de dúvidas, o primeiro
momento daquela tarde que o professor permitira-se relaxar o tórax. O corpo deixou-se cair
sobre o sofá espaçoso da sua sala de estar. As pernas deixaram de balançar agitadamente e a
voz ganhou um tom abaixo dos momentos de nervosismo. A razão para a mudança de
discurso corporal deu-se, dentre outras, por que o próprio Paes Loureiro percebeu-se como
vitorioso no embate de forças junto aos governantes que o impediam de tomar posse. E esse
trecho foi lentamente a ser pinçado na memória para ser mostrado ao vídeo e entrevistador.
Ser disputado pelos alunos, que queriam seu ingresso na universidade, e pelo
professor de Direito, que havia se tornado amigo, ganhava um caráter emblemático de sua
carreira no magistério. Mais do que isso, considerando o corpo como portador de um discurso
vencedor, aquele fato era o ponto alto de sua trajetória na arena de disputas com o poder
executivo estadual. Na narrativa, Paes Loureiro não havia sido empossado por carregar o
status de subversivo. Ao converter favoravelmente a situação e permanecer com a pecha era o
mesmo que adentrar pela porta da frente na cova do inimigo: a universidade regida pelo
governo federal, cujos reitores eram indicados pelos generais.
Ao concluir este trecho de sua narrativa, Paes Loureiro apresenta um desabafo,
também em tom de conquista orgulhosa por conta dos labirintos de sua trajetória de vida. A
partir de todos os momentos de perseguições e sofrimentos por conta do Golpe Civil-Militar e
da ditadura, o professor poeta antecipa as intenções desta escrita dissertativa. Incita-me a
pensar as recordações acerca do Golpe Civil-Militar e ditadura para fazer inferências e
analogias a partir da “emoção e reflexão teórica”, conforme detalha abaixa:
Então veja bem, todos esses fatores reunidos tinham que me dar uma marca
muito forte. Tanto na minha memória, na minha emoção, como na minha
reflexão teórica. E no meu desejo de poder relatar sempre isso para que
nunca mais uma situação como essas tenha chance de retornar para o país.
Eu acho uma obrigação nossa de mostrar isso. Aí os acontecimentos pessoais
servem para uma interpretação social, histórica e psicológica. Por isso que eu
128
não evito com relação a isso porque eu acho que as pessoas têm que saber
(João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de 2011).
Mais uma vez Paes Loureiro explicita o orgulho por dar importância à sua narrativa
enquanto sujeito cultural nos tempos de ditadura militar. Primeiro, sua identidade em
diferentes espaços de atuação o fizeram fundamental para pensar a temática em tela a partir de
outros olhares. Seja enquanto poeta, acadêmico de Direito, prisioneiro, professor, cidadão,
suas posturas nos primeiros momentos antes do Golpe Civil-Militar e ao longo da ditadura o
colocaram em evidência sob a pecha de subversivo. Segundo, no jogo de entre – vistas e
percepção do jogo das identidades, Paes Loureiro compreendeu a importância de sua narrativa
pinçando da memória vivida para a historicização do Golpe Civil-Militar e ditadura. Por
compreender seu lugar social e político na História, o professor não hesita em mostrar-se
satisfeito com os rumos de seu depoimento na situação de entrevista e, consequentemente,
mantém a altivez que os grandes vultos provavelmente tivessem.
Passo seguinte, ao ser questionado sobre as táticas utilizadas na época para driblar os
rigores da censura ou outros tipos de autoritarismos, o professor trouxe uma informação
bastante pertinente para a atuação dos jornalistas. Vejamos:
Havia mil artimanhas. Houve um boicote, então ninguém sabia. E mesmo
durante muito tempo depois não sabia o que estava acontecendo. Você tinha
o jornal e o que saía no jornal era controlado pelo sistema de censura. Quer
dizer, os jornalistas encontraram uma maneira que eu acho genial. Duas
maneiras que eu acho geniais para poder contornar isso. A primeira, quando
proibiam uma notícia na primeira página ou qualquer outro lugar em lugar
da notícia eles colocavam uma receita de bolo ou de comida. Que era para as
pessoas estranhassem aquilo. Ao invés de colocar uma notícia para disfarçar
a coisa, não. Que era para as pessoas poderem estranhar aquilo. E para as
redações dos jornais a maneira era o linotipo. Aquela máquina que recebe
o... Então que eles faziam? Uma notícia proibida. Eles mandavam a notícia a
seguir é proibida, não pode ser publicada, etc. atenção para isso, mas
passava a notícia. Depois da notícia, novamente avisava esta notícia não
pode ser publicada por ordem do Serviço Nacional de Informações. Passava.
Então de boca em boca, né? Foi quando a oralidade colaborou com a
imprensa escrita, né? (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de
março de 2011).
Ao mencionar a importância da oralidade, Paes Loureiro é eficiente mais uma vez
para esta tecedura. De fato, os jornais sofreram censuras diversas ao longo do período
ditatorial. As demissões de jornalistas, substituições de editores, infiltração de policiais para
assumir as funções daqueles profissionais da imprensa que fossem possibilidades de
problemas para o regime. Os “novos” propagadores de notícias agiam como verdadeiros “cães
129
de guarda” para dar sustentabilidade às novas e velhas oligarquias compactuadoras do Golpe
Civil-Militar (KUSHNIR: 2004). Entretanto, nem sempre os tentáculos do autoritarismo
garantiam a isenção de críticas. Páginas em branco na capa, receitas gastronômicas, tarjas
pretas sobre matérias censuradas compunham o métier de sujeitos culturais infiltrados nos
jornais, como bem lembrou Paes Loureiro e assinalava Kushnir. Eram táticas para chamar a
atenção do grande público que alguma coisa estava acontecendo e estava sendo escamoteada.
Na mesma trilha de Paes Loureiro e Ruy Antonio Barata, o teatro amazônico
paraense presente nesta argumentação por meio do padre teatrólogo Cláudio Barradas também
conseguiu fazer-se notar enquanto forte instrumento de crítica ao regime. O padre teatrólogo,
em depoimento sobre as táticas utilizadas nos palcos para fazer oposição ou denunciar
mazelas sociais, foi bastante elucidativo ao narrar como lançou mão de personagens,
monólogos, diálogos, cenários e toda gama de linguagens teatrais para fazer-se presente no
cotidiano político do país, em especial, da cidade de Belém. Nas diversas passagens de sua
narrativa, a ardileza/destreza estiveram presentes nas táticas da linguagem em suas produções
artísticas para escapulir/driblar a censura.
Este narrador evocou inúmeras sensações ao longo das duas entrevistas concedidas
no mês de maio de 2011. Foi excluído de círculos sociais por conta da opção de adentrar ao
Seminário e estabelecer-se um rígido cotidiano religioso. Assim, pouco se envolveu/cultivou
grupos de amigos. Pela trajetória de vida, nos primeiros momentos de sua vida de seminarista
recluso, sentiu raiva, medo, alegrias. No início dos anos 1950, sua vida sofreu uma
significativa guinada: abandonou a reclusão do seminário e aceitou novos desafios para sua
vida. Foi a partir desta reviravolta, com a maior liberdade, passou a atuar artisticamente junto
aos palcos. Doravante, o orgulho foi pinçado de alguns trechos e a partir daí podemos
compreender estratégias e táticas urdidas ao longo da Ditadura Civil-Militar na Amazônia
Paraense.
Ao iniciar a entrevista, Cláudio Barradas partiu para um solo em torno das memórias
sobre os primeiros tempos de suas incursões pelos palcos. Infelizmente, os primeiros anos de
suas atuações teatrais coincidiram com o fatídico Golpe Civil-Militar, em 1964. Assim, as
primeiras recordações de Cláudio Barradas nas atuações teatrais estão ligadas à censura e
imposições diversas por parte dos militares ancorados no poder. Cabe lembrar que o golpe foi
civil e militar, ou seja, setores da sociedade civil também viam com desconfiança os textos
politizados do alemão Bertold Brech. Desta feita, a censura sofrida pelo teatro paraense vinha
de duas frentes: aquela temerosa que só se compreende ao lembrarmos do advento da guerra
fria e, outra, se considerarmos a sociedade provinciana com pensamento conservador, em
130
defesa de valores que julgavam necessários para a manutenção de seus status quo, conforme
narra o próprio padre teatrólogo:
As outras artes no Pará me parecem assim... Mas o teatro... Porque o teatro
era feito por jovens. Como te disse, o jovem que não for revoltado não é
jovem. Que não quer mudar esse mundo, mesmo que não mude nem o nariz
dele. Então o teatro ia, além do que, todo mundo tava descobrindo Brecht.
Teatro político. Discussão de problemas (Cláudio Barradas, entrevista
concedida em 13 e 23 de maio de 2011).
Assim, na esteira dos orgulhosos pelos feitos nos tablados amazônicos, o padre
teatrólogo Cláudio Barradas é categórico ao afirmar a linguagem teatral como forte
instrumento de denúncia social, política e econômica ao regime militar porque era feito por
jovens. Cabe lembrar que nem sempre as peças tinham por objetivo questionar ou criticar a
ditadura ou seus sujeitos, mas tão somente trazer à tona temas universais, como a miséria,
tristeza, maldade, paixões, etc. Assim, o teor crítico dos textos era inevitável em qualquer
tempo histórico e não somente aos tempos de autoritarismo instalados pelo Golpe Civil-
Militar, pós 1964.
O grupo que compunha a classe artística do teatro, segundo o padre teatrólogo, tinha
a característica da “revolta” nas identidades de seus componentes. Pelo sorriso contínuo e
constante impostação de voz, como se estivesse no palco, narra sobre a importância destes
personagens dando ênfase para o fato de serem não somente pessoas com pouca idade, mas
por serem dotados de um salutar desejo de transformar. Com isso, longe de dar um conteúdo
pejorativo à expressão “revolta”, pretende incorporar a este adjetivo a característica de
personagens revolucionários, tão necessários para a crítica e mudanças naquilo que está
alicerçado em valores conservadores. Para Barradas, os jovens orgulhosamente assumiriam a
vanguarda revolucionária dos necessários personagens para o processo de crítica ao regime.
Quando incitei a memória do padre teatrólogo nas possíveis táticas da linguagem
teatral contra a censura, as passagens e exemplos de situações inusitadas, engraçadas e bem
humoradas foram inúmeros na narrativa. Todas as situações externadas envolviam orgulhos
dentre outras sensações tão comuns em expressões artísticas. Para o padre teatrólogo, a
riqueza da linguagem teatral no embate com a censura dava largas margens de vitória para a
criatividade. Assim, diante dos inúmeros exemplos disponibilizados pela narrativa da
entrevista, para esta escrita contemplei apenas os casos mais significativos da narrativa do
padre teatrólogo, apesar de existirem outros tantos exemplos que poderiam facilmente
direcionar esta dissertação para outras riquíssimas análises.
131
No que se refere à criatividade para desvencilhar-se da censura, Cláudio Barradas
orgulha-se por ter saído exitosamente de todas as “confusões” em que se meteu. Assim, no
primeiro exemplo que sua memória conseguiu selecionar, conseguiu afastar-se de algum
ressentimento com relação aos censores que tanto o incomodaram e, surpreendentemente,
narrou com relativa simpatia as recordações que nutria de todos, até dos mais fervorosos
defensores dos tais “bons costumes”.
Nesta seara dos orgulhos nas atuações contra o regime ou com relação aos eventuais
problemas de liberdade de expressão, ao ser questionado sobre o enfrentamento direto que o
teatro pudesse ter provocado, Cláudio Barradas lembra de um caso citado como o primeiro
confronto com uma censora chamada “dona Selma”. Esta o visitou no palco de ensaios para
exercer a função de censora e era conhecida por ser implacável no seu ofício. Naquela altura
do ano de 1967 ainda não havia acontecido o famigerado Ato Institucional nº 5, por isso ainda
restava relativa liberdade para abordar temas universais aplicáveis à realidade ditatorial
brasileira. No depoimento do padre teatrólogo, por exemplo, era possível fazer
(...) Crítica à política brasileira, mas sem falar nela, isso eu fiz em 67. Era
um espetáculo grego. Um texto grego do século V a.C chama-se Antígone
ou Antígona. É um dos textos mais belos de todos os tempos. Se eu tivesse
que escolher dez textos, eu escolheria esse (Cláudio Barradas, entrevista
concedida em 13 e 23 de maio de 2011).
O texto grego do século V a.C, de autoria de Sófocles,39
por ser “um dos mais belos
de todos os tempos” atendia aos apelos artísticos, mas também políticos pelo qual passava o
Brasil. O governo de Castello Branco (1964-67) prometia entregar a presidência a um civil. O
próprio vice-presidente, aliás, era o civil Pedro Aleixo. Entretanto, neste mandato começaram
as edições dos primeiros Atos Institucionais. Apesar do Congresso Nacional ainda estar em
funcionamento, o modelo de governo recém-instalado já mostrava suas primeiras facetas
autoritárias.
No Pará, por exemplo, os estudantes presos no momento do Golpe Civil-Militar já
estavam marcados e alijados de quaisquer tratamentos de isonomia perante o governo. Para
compreender esta afirmativa, basta contextualizar os eventos políticos que influenciaram a
produção teatral daquele momento. Alacid Nunes havia sido eleito prefeito de Belém em 1964
sem quaisquer vestígios de participação popular. Foi alçado à condição de chefe executivo do
município mais importante da região amazônica por decisão pressionada da Assembleia
Legislativa do Pará. Depois, foi favorecido a chegar à condição de governador em duas
39 Ver análise do texto de Sófocles em http://migre.me/8NOoT - acessado em 23 de abril de 2012, às 17h43min.
132
ocasiões (1966-71 e 1979-83). O favorecimento se deu pela criação do sistema bipartidarista
de eleições, prisões e cassações dos quadros de esquerda. As eleições paraenses eram um jogo
de cartas marcadas em que um ou outro candidato não representava grandes críticas ao regime
ditatorial.
O outro expoente da política regional, por exemplo, foi Jarbas Passarinho. Acreano
baseado na 8ª Região Militar conseguiu fazer-se presente nos momentos cruciais do Golpe
Civil-Militar. Pelas estratégias ardilosas, foi eleito governador pela Assembleia Legislativa.
Após este feito, três vezes foi eleito senador. Chegou também ao cargo de Ministro do
Trabalho e Previdência Social do General Costa e Silva, entre 1967-69. Mais tarde, a linha-
dura do General Médici o alçou a condição de Ministro da Educação e Cultura (1970-73). E
no último governo ditatorial (do também General João Batista Figueiredo) foi Ministro da
Previdência e Assistência Social, entre 1983-85.
Jarbas Passarinho foi um dos inquiridores dos estudantes presos na invasão da UAP
assim como Alacid Nunes. Este último, estranhamente frequentava a Faculdade de Economia
dias antes do Golpe Civil-Militar, segundo depoimento de Dulce Rosa de Bacelar Rocque.
Ambos são, inevitavelmente, personagens citados por todos os depoentes desta análise como
equivalentes ao despotismo militar em solo amazônico.
Assim, diante do cenário de autoritarismo que envolvia o cotidiano do padre
teatrólogo, não é de se estranhar inspirações críticas a tal ambiente. A produção teatral não
poderia ficar imune e, ao narrar sobre a montagem do cenário para a peça “Antígona”,
Cláudio Barradas lembra sobre a organização do cenário. Pretendia expor uma faixa com
conteúdo subversivo ao final do espetáculo. De modo bem didático em suas memórias, relata
da seguinte maneira:
(...) E assim acaba a peça. Eu queria criticar o regime militar. Mas eu fiz o
que? A peça se passa na Grécia. Aí, como começa o espetáculo? É um grupo
de trabalhadores que está discutindo sobre liberdade. Eles usavam macacões.
E tinham nas mãos instrumentos de trabalho. (...). Aí começa a contar a
história. Eles se transformam em trabalhadores e personagens da peça.
Agora, o Creonte, usava roupa grega, mas no manto, a suástica nazista.
Porque toda ditadura, para mim, é nazista. Agora, no final do palco, de novo
tem o... Eu pedi lá no fundo do palco, lá no espaço tinha um busto de
mulher, de gesso, belíssimo, que eu mandei colocar. E aqui, descia, uma
grande folha marrom e nela pregado os recortes de jornal da época. Uma
delas dizia: “e os militares?”. Aí no lado, é que eu coloquei o que eu te disse
“as luzes se apagaram na verdadeira Grécia”. Onde está “velha Grécia”, leia-
se “o Brasil”... “Não desanime a democracia vencerá”. Porque tem uma
coisa, quando a gente faz espetáculo assim, o ditador é burro. Ele não vê que
estão falando dele, mas o povo sabe (Cláudio Barradas, entrevista concedida
em 13 e 23 de maio de 2011).
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Para o padre teatrólogo, algumas questões estão claramente postas. A primeira vai
exatamente ao encontro da pregação dos partidos de esquerda naqueles tempos de guerra fria.
Os personagens não estão simplesmente discutindo o conceito liberdade de um ponto de vista
filosófico, mas se assumem enquanto “trabalhadores”. Ou seja, assumem a identidade
esperada pela prerrogativa mínima para uma revolução socialista na perspectiva marxista
operada pelos movimentos estudantis amazônicos. Curiosamente, o padre teatrólogo já havia
mencionado em diversas passagens de sua narrativa o ralo envolvimento com a política
partidária, mas neste momento, sem agitar bandeiras, chega a tangenciar a máxima da
revolução a partir da organização proletária.
Em seguida, Cláudio Barradas dá mostras de sua postura política em relação ao
nazismo e os máximos chefes executivos que o cercam. Ao estabelecer analogia entre Creonte
e os governantes brasileiros daquele momento político, dá a Alacid da Silva Nunes
(governador paraense entre 1966-71) e Costa e Silva (presidente da república entre 1967-69)
os epítetos de autoritários, contraditórios, medrosos e toda a gama de pejorativas qualidades,
tais como o grego Creonte. 40
Neste momento, a narrativa é entrecortada pelo rosto teso, alternado por sorrisos de
deboche em relação à reencenação. Ao estabelecer um nexo com a sugestão marxista de
revolução, Cláudio Barradas inconscientemente destila sua ácida crítica aos militares. O rosto
é teso, sério. A voz, apesar de em tom sempre sereno, é altiva, como se estivesse
representando para uma plateia. Sua atitude de posicionar personagens gregos travestidos de
“trabalhadores” é repleta de investida política de denúncia e incentivo em prol da causa
trabalhista. Ao mencionar Creonte e o nazismo, o sorriso é largo. O peito à frente dá mostras
de um orgulho pela perspicácia em situar o nazismo num patamar de comparação com um
personagem representativo do medo e covardia disfarçados pelo autoritarismo.
Sabendo da crítica perspicazmente posta pela frase na faixa e conhecedor da dureza
da censora “Dona Selma”, o padre teatrólogo ao ser visitado para fins de fiscalização tratou
logo de apagar as luzes do palco e dificultar a fiscalização. Ao narrar a atitude de esperteza
para com a censora, o padre teatrólogo estufa novamente o peito e sorri fartamente como
quem sabe o que estaria por vir na narrativa. A censora, entretanto, ao perceber as luzes
apagadas, retrucou: “Não seu Barradas, mantenha a luz acesa. Tire!”. Segundo o padre
40 Ver sobre a índole contraditória e autoritária do personagem Creonte, em Sófocles, em http://migre.me/8Ogja -
acessado em 23/04/2012 - às 11h22min.
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teatrólogo, “Dona Selma” apontava para a faixa. Não havia adiantado a tentativa de burlar a
inteligência da censora.
Cláudio Barradas apontava, gesticulava, impostava a voz para deixar claro o
autoritarismo da censora ao tratar com ele. A narrativa, a partir deste momento, foi todo um
jogo de encenações: passou a reencenar aquele momento vivido interpretando a si próprio e a
“Dona Selma”.
- “Dona Selma, posso cobrir tudo isso com um X?”. Dando a entender humildade na
fala para convencer a censora de que nada de político havia por detrás daquela intenção tão
tênue.
- “Pode”, com força e ar de desprezo. Mudando a entonação da voz para dar a
entender que seria uma resposta feminina, de Dona Selma, portanto.
- “Pois agora mesmo, na sua presença”. Em movimentos largos, com os braços, o
padre teatrólogo mostra como marcou as faixas com um X com uma caneta vermelha. O
sorriso largo permanece quando se assumia como protagonista daquele momento de suma
esperteza. O objetivo era deixar a frase, mas com o X da censura e em tinta vermelha. “E o
pessoal vai querer subir para ver [o que o X pretendia esconder]”, explicou o padre teatrólogo.
Assim, o efeito de denúncia da censura estaria óbvio para o público presente no espetáculo.
Com este jogo de variação de tom de voz e encenação de humildade, Cláudio
Barradas insere-se na condição de sujeito cultural em pleno uso de táticas teatrais para
denunciar o autoritarismo da cena política do país. Ao narrar aquele episódio, o padre
teatrólogo não só acionava a memória sobre os tempos de ditadura, mas articulava o conjunto
de língua e corpo para demonstrar como diversas possibilidades eram urdidas a partir das
linguagens artísticas.
Com aquela atitude de esperteza, Cláudio Barradas conseguiu seu intento: a peça foi
autorizada a estrear. “Pode estrear. Vou para [o balneário de] Mosqueiro. E segunda-feira
cedo você passa lá comigo para eu lhe dar a autorização”, disse-lhe a censora. Acontece que
momentos antes daquela conversa entre o teatrólogo e a censora, um fotógrafo do jornal A
Província do Pará estivera no local e havia fotografado o cartaz, ainda sem o X proibitivo. E
publicou no sábado. Tal episódio era foi suficiente para gerar um desgaste na relação de
confiança entre a Censura e o Teatro amazônico. Naqueles tempos de caça às bruxas, Cláudio
Barradas iria sofrer sérias consequências, tais como ser enquadrado pela Lei de Segurança
Nacional. E assim foi. Ao pegar o jornal com aquela frase estampada na capa da Província do
Pará, o padre teatrólogo partiu em direção ao escritório de Dona Selma. Levou consigo o livro
135
“A experiência grega”, como numa tentativa de portar um escudo que o protegesse das cenas
seguintes.
Quando chegou ao local onde estava dona Selma, na Polícia Federal, no bairro de
São Braz, ouviu uma mão teclando com rapidez. “Thá, thá, tchá”, onamatopeizou a máquina
de escrever. O padre teatrólogo fez questão de mostrar a força do ruído causado pelas teclas e
a rapidez dos dedos da datilógrafa. “Ê Seu Barradas, é você?! Já estava esperando. Viu esse
barulho da máquina? Sou eu enquadrando você na Lei de Segurança Nacional porque você
me de-so-be-de-ceu”. A narrativa faz ênfase em soletrar a desobediência como numa tentativa
de deixar clara a autoridade e o respeito que dona Selma esperava receber por conta do cargo
exercido.
Ser censora em tempos de ditadura era o mesmo que desprezar quaisquer
possibilidades de direitos por parte dos demais cidadãos, afinal, no exercício daquela função,
zelava pela segurança da nação. “Eu mandei tirar aquele negócio e você não tirou”, continuou
o padre teatrólogo com tom de voz de deboche pela frase arrogante dita pela censora.
A Polícia Federal tinha uma sede toda feita de ferro, segundo Cláudio Barradas. E
fez questão em enfatizar o material da construção. Talvez desejasse deixar evidente a força e
dureza daquele lugar e das pessoas que compunham o ambiente da censura. Assim, a arma
para atuar contra tamanha força e dureza deveria ser a astúcia. E assim foi. Sempre imitando o
tom de voz para mostrar a fala da censora, o padre teatrólogo se prontificou a ser novamente
inspecionado, colocando-se à disposição para ir junto. Dona Selma aquiesceu. Deu nova
oportunidade para não enquadrar o jovem diretor. Ao contar isso, o narrador sorri
divertidamente pela astúcia como conseguiu desvencilhar-se da situação que parecia
irremediável. Acompanhado de dois agentes federais, foi até o SESI apanhar a chave e não a
encontraram. Barradas teve voz de prisão decretada. A paciência se esgotava rapidamente
quando aqueles sujeitos, em nome da defesa nacional, não obtinham imediatas respostas para
seus desejos. Fazia parte da política de estado. Seguiu argumentando até conseguir nova
chance. Foram até sua casa, a chave não abriu, pulou o muro, entrou por detrás do teatro e
abriu as portas.
“Viu?”, disse Barradas ao mostrar o X sobre a frase dita subversiva. O tom de
satisfação e alívio foram marcados com um sorriso no momento da encenação. Mostrava aos
dois agentes federais que não era subversivo e não se eximia da obediência irrestrita aos
donos do poder. O tom de voz dando a entender a submissão aos agentes da lei foi
devidamente enfatizado para demonstrar o quanto aqueles senhores gostavam de adulação.
136
A atitude de obediência e submissão era credencial necessária para fazer-se notar
como sujeito pacífico e assim obter permissão para seguir sua trajetória de crítico ao regime.
A atitude deu certo: “Você é um heroi. Um romântico. Continue a fazer o teatro como você
faz, mas não nos dê trabalho”, ouviu de dona Selma.
Toda a cena encenada por Cláudio Barradas, aparte de ser um monólogo digno de
aplausos, foi pinçada dos arquivos da memória e narrada de tal maneira com a
intencionalidade de exemplificar as táticas urdidas pela experiência teatral para driblar os
arbítrios autoritários dos censores. Portanto, foi graças a ações como esta de Cláudio Barradas
que o teatro conseguiu sobreviver sem patrocínios e com patrulhamento ideológico, muitas
vezes incoerente.
Na mesma linha de altivez descrita por Cláudio Barradas para descrever a autonomia
amazônica, Ruy Antonio Barata também é bastante enfático. Na opinião deste narrador, a
Amazônia tinha um projeto eficiente de soberania que foi interrompido pelo Golpe Civil-
Militar. Com extremo didatismo, Ruy Antonio Barata exprime sua satisfação ao externar o
ambiente cultural e político gestado no Pará. Segundo ele:
Ou seja, o militar brasileiro quando chegava a um grau de estado maior ia
para Europa. E aí, com o pós guerra e a hegemonia americana todos os
militares passaram a seguir a formação no Fort Leavenworth, nos Estados
Unidos. E o novo momento de hegemonia acontece depois que os EUA
ganham a dianteira do mundo. Eles treinam os militares brasileiros para um
projeto de, digamos assim, para um projeto menor, projeto subalterno.
América do Sul, tendo conflito com conceito de guerra fria que emergiu no
pós guerra, passa a ser o quintal dos americanos. E essa elite que se cria nos
militares estava há muito tempo que aderiu no pós guerra. Esse partido
chamava-se UDN – União Democrática Nacional – cuja cabeça fundamental
chamava-se Carlos Frederico Werneck de Lacerda, ou Carlos Lacerda. Então
Lacerda foi o pai e a mãe de 61 e 64. Porque 64 foi o golpe militar. Toda
essa gente estava na UDN. Quem fundou a UDN? Era o brigadeiro Eduardo
Gomes. Foi o fundador da UDN. Foi candidato duas vezes a presidente da
república. Uma em 45, que ele perde para o Dutra. E outra, em 1950, que ele
perde para Getúlio. Esse grupo militar nunca perdoou o projeto de
desenvolvimento autóctone e autônomo e, principalmente, anti-latifundiário.
Isso tudo estava aqui dentro do Pará. Aqui não era brincadeira de se dizer
assim: “O Pará, coitadinho, só tinha aquele bando de estudantezinho,
burrinho, que gostava de cantar no meio da rua, que jogava pedra nos
militares, nos cavalarianos, que queriam fazer revolução.” Não. Tinha um
projeto de autonomia da Amazônia. Tinha um projeto de transformar a
Amazônia (Ruy Antonio Barata, entrevista concedida em 19 e 22 de agosto
de 2011).
A conclusão do enunciado acima não deixa dúvidas quanto ao caráter político
amadurecido por parte das esquerdas amazônicas. Ou pelo menos era esta a interpretação
137
dada por Ruy Antonio Barata e aqueles que o circundavam. A respeito disto, há uma
discussão bastante eloquente sobre a identidade regional versus identidade do Brasil, em
especial com Barbosa (2010). Este nos diz sobre o problema do “enjeitamento” sofrido pela
região amazônica, em especial o Pará, por parte das regiões ditas “mais avançadas” (sul e
sudeste), ao longo de todo o Império e boa parte da República. Os regionalismos, norteados
pelas tradições, foram a tônica para traçar indeléveis diferenças com as demais regiões do
país. Paralelamente, Barbosa menciona velhos projetos políticos e econômicos de setores
amazônicos para engajar-se ao cenário nacional sem, contudo, grandes eficácias. Neste
sentido, é bem provável que o pensamento de Ruy Antonio Barata esteja inserido no rol de
projetos pensados por Barbosa (2010).
Na mesma esteira de experiências em projetos políticos, Ruy Antonio Barata segue
dando mostras de articulação e coragem para enfrentamentos na arena política. Acerca disto,
lembra as histórias contadas pelo avô, o advogado Alarico Barata, na cidade de Óbidos, no
baixo Amazonas (oeste do Pará), sobre embates violentos. A narrativa, para melhor ser
ilustrada, é contada com requintes literários. Assim versou sobre a temática:
Estava calejado. Na luta política. Diferentemente do movimento estudantil.
O movimento estudantil era um movimento de meninos, jovens, etc. Nós,
quando, na minha casa em Óbidos. Lá em Óbidos, eu nasci em Óbidos,
quando eu fui visitar depois de 10 anos, meu avô mostrou os buracos que ele
guardava na parede. Buraco de bala. Os capangas do Barata mandavam atirar
à noite. Então era uma luta tão primitiva quanto era uma luta dos cangaceiros
do Graciliano Ramos ou de Jorge Amado. Então para nós... Aquilo ali... Nós
já nascemos nesse berço de enfrentamento de regimes tão autoritários (Ruy
Antonio Barata, entrevista concedida em 19 e 22 de agosto de 2011).
“Já nascemos nesse berço de enfrentamento de regimes tão autoritários”, diz Ruy
Antonio Barata com a altivez típica de uma estátua de bronze nas praças públicas. Com o
rosto impávido e orgulhoso, o narrador destila rancor – salutarmente – às práticas autoritárias
conhecidas no estado desde os anos 1930 com o início do baratismo. Sem querer adentrar no
mérito da veracidade dos “buracos feitos à bala” na casa de Alarico Barata, nem pretender
averiguações acerca do caráter criminoso do eventual mandante – o interventor Magalhães
Barata –, é inevitável recordar acerca das memórias herdadas por Ruy Antonio Barata. O fato
de externar a violência sofrida pela família ainda em Óbidos é tão relevante quanto deixar
claro que tal memória é oriunda nas recordações do avô.
A performance de Ruy Antonio Barata está para além do tom de voz ou atividade
corporal. Não posso negar o quanto aquele trecho do depoimento me impressionava. A
vibração da narrativa de Ruy me deixou, em diversas passagens, impressionado pela forma
138
didática, mas também pela identidade do magrelo sujeito montado em seu pangaré, munido
tão somente de coragem e ousadia em querer transformar o mundo em um lugar melhor
habitável. Os moinhos de vento intransponíveis não eram somente o autoritarismo dos
governantes que se revezaram na região amazônica, mas o cruel apoio de setores poderosos da
sociedade civil. Ruy Antonio Barata lutava contra estes moinhos. Estar ali, ouvindo aquela
narrativa, me orgulhava.
Dias antes, em entrevista com Pedro Galvão, já havia experimentado a mesma
emoção de haver escolhido este tema de memórias com sujeitos culturais que experienciaram
os tempos ditatoriais na Amazônia Paraense. Quando o questionei sobre eventuais
arrependimentos ou aprendizados sobre as experiências com a Ditadura Civil-Militar, ouvi
sua resposta desprovida de sentimentos inseguros.
Para mim o aprendizado, o maior aprendizado que a gente pode ter tido com
a ditadura foi o valor da liberdade. O valor da liberdade. Por quê? Porque
nós lutávamos, nós reivindicávamos os valores, pelo valor da liberdade. Nós
lutávamos contra a censura. Nós defendíamos a liberdade de opinião para ser
contra a ditadura. Eu não posso depois disso honestamente ser a favor de
uma ditadura de esquerda. Eu não posso. Todo regime que restringir a
liberdade. Todo regime que censurar. Todo regime que não permitir uma
liberdade criativa. Da cultura, da área da literatura, na área de cinema, na
área de teatro, seja de esquerda, seja de direita. Ou seja, eu tenho que me
respeitar. Eu tenho que respeitar o que eu disse para sair da ditadura, para ser
contra a ditadura, com a volta do estado de direito. Toda aquela luta, eu não
posso trair aquilo. Não posso mais trair aquilo. Aquilo impregnou na minha
vida. Ou eu não acredito mais nesses valores, como liberdade. Para mim é
uma questão fundamental essa. Mas ao mesmo tempo eu entendo que a
questão social é muito importante (Pedro Galvão de Lima, entrevista em 25
de maio e 24 de agosto de 2011).
Pedro Galvão se dizia “impregnado” pelos ideais defendidos desde os tempos de
golpe e Ditadura Civil-Militar. Assim como os demais narradores desta dissertação, o trecho
acima é recheado de orgulho pela experiência vivida, mesmo com os reveses sofridos (perda
de oportunidades de trabalho, amigos se distanciando, prisões sofridas) há diversas passagens
na narrativa com posturas de altivez por ter pertencido ao seleto grupo que ousou enfrentar a
ditadura pela via democrática. Assim como Pedro, outros narraram o mesmo teor. Entretanto,
o trecho acima pinçado vem na mesma esteira de orgulho pela tradição de enfrentamento, tal
como Ruy Antonio Barata.
Os ideais de liberdade, tão aclamados por Pedro Galvão, também estiveram na tônica
dos demais narradores. O orgulho por terem se envolvido na defesa deste bem maior dos
estados democráticos foi loquazmente posto em evidência por todos, ora sutis, ora com
139
ênfase. Evidentemente, é preciso relativizar esta categoria. Os conceitos estão sempre
sofrendo reformulações no decorrer dos tempos, assim é com a “liberdade”. Isto, é bom frisar,
não invalida as táticas de subversão, muito menos os orgulhos decorrentes de tais práticas.
Nem todos os narradores vinham da tradição dos enfrentamentos. O poeta Paes
Loureiro quando narra um episódio da Polícia Militar revistando a casa de seus pais, em
Abaetetuba, deixa clara sua distância do perfil de sujeito revolucionário nos moldes
guevaristas.
Vejamos que logo após a apreensão da edição do “Tarefa”, em 30 de março de 1964,
aconteceu o Golpe Civil-Militar. Paes Loureiro foi um dos presos naquele entrevero após a
invasão da UAP, em 1º de abril do mesmo ano. E, numa ânsia de controlar corações e mentes
do “novo país”, os militares também iniciaram caça às ideias dos perigosos subversivos. Ou
seja, por iniciativa de Orlando Ramagem ou Jarbas Passarinho, ambos controlando a 8ª
Região Militar da Amazônia, os livros dos estudantes começaram a ser apreendidos
estivessem onde quer que seja. O objetivo daquela dantesca atitude era dar cabo a quaisquer
possibilidades de investiduras ideológicas que pudessem ameaçar os rumos da “revolução”
em curso. Assim, imbuídos da nobre missão de salvar o país da subversão, uma corveta de
guerra, aparelhada para tal, aportou no cais de Abaetetuba. Rumaram para a casa dos pais de
Paes Loureiro. Quando chegaram, a ordem era encontrar livros com ideias de esquerda. Ao
adentrarem na casa, chegaram até a biblioteca. Paes Loureiro narra o seguinte episódio:
E um fato engraçado é que... Os livros caindo. Derrubaram mesmo aquela
biblioteca que eu tinha lá. Tinha livros meus, mas também tinha do meu pai.
E de repente caiu. Tinha um exemplar da bíblia que arrancou. O miolo
arrancou da capa. E havia um exemplar do “Capital”, do [Karl] Marx. Então
minha irmã pegou e fez o seguinte: pegou o “Capital” e enviou dentro da
capa da bíblia. (...) Aí [o soldado] viu aquela coisa da bíblia pegou mas não
abriu. [Disse:] “Veja só um comunista lendo a bíblia” (João de Jesus Paes
Loureiro, entrevista concedida em 03 e 30 de março de 2011).
A cena, contada entre risos, é emblemática para demonstrar que nem todos os
sujeitos culturais desta dissertação estavam aparelhados por ideologias marxistas sólidas. Ao
mesmo tempo, o fato mostra a tradição da qual vinha Paes Loureiro. Não era do embate
político, isto deixou claro em vários outros momentos. Era filho de uma família ribeirinha,
acostumada muito mais com o comércio de regatões pelas ilhas do que do confronto. Mas os
risos talvez sejam os mais contundentes para demonstrar o quanto estava alijado das disputas
políticas. Ser interpretado pelo militar que revistava a casa como um marxista cristão era
motivo de risos pela contradição aparente de como soava aquilo em tempos de Guerra Fria.
140
Entretanto, o fato de ter na mesma estante um exemplar bíblico e de Karl Marx demonstram o
quanto era, no mínimo, heterogênea sua formação política. Ao dar-se conta do que narrava,
sorria. Foi um dos raros momentos da entrevista que se permitiu relaxar com todas aquelas
memórias.
Outro sentimento apreendido na cena dos livros esparramados na biblioteca foi o
ressentimento. A violência desferida sobre as estantes atingiam em cheio a austeridade da
família Loureiro. Não se tratava somente de uma invasão em busca de livros subversivos, mas
de uma arbitrariedade contra a soberania de um lar.
Neste jaez, a narrativa de Paes Loureiro se aproxima do médico comunista Alfredo
Oliveira. Ao entrevistar este segundo narrador, notei que se manteve no mesmo discurso
performático. O corpo do médico respondia a uma educação formal, quase religiosa. Quase
não movia pernas e braços para sinalizar sensações de nervosismo, cansaço pelo calor ou
alegrias. Então foi preciso rever o áudio da entrevista para capturar variações no tom de voz.
Assim, e só assim, depreendi momentos de ironia, irritação e inúmeras passagens de
ressentimentos com o Golpe Civil-Militar provocado em 1964. Sentimentos bem próximos
daqueles que Paes Loureiro evocava.
Alfredo Oliveira tem um currículo invejável na produção de trabalhos de memória
acerca de um dos personagens mais elementares da esquerda brasileira: Ruy Paranatinga
Barata. Seu trabalho sobre o poeta e político, intitulado “Ruy Guilherme Paranatinga Barata”,
publicado em 1990, chegou a ser temática das leituras obrigatórias de vestibulares durante os
anos 1990. Recentemente, no início do ano de 2012, o jornal Diário do Pará fez uma
promoção junto aos leitores para distribuir a obra O Touro Passa?, de 1981, em evento de
grande tiragem se considerarmos este periódico com alcance para além do estado do Pará.
Além da identidade de autor consagrado, Alfredo Oliveira também assume-se como um dos
compositores musicais mais gravados no cenário nacional. Nomes como Fafá de Belém, Leila
Pinheiro, Jane Duboc, Fátima Guedes, Verônica Sabino, Zé Renato, Neguinho da Beija-Flor,
estão entre os intérpretes que já repercutiram suas letras românticas. Dentre os regionais, teve
parcerias e interpretações com Nilson Chaves, Marco André Costa Nunes, Paulo André Costa
Nunes Barata, Vital Lima, Nazaré Pereira, dentre outros. Nenhuma delas, entretanto, com
engajamento político. Médico por formação acadêmica e comunista por opção política,
Alfredo Oliveira é um dos narradores desta dissertação que guarda a maior porção de
ressentimentos ao lembrar a Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense. Em sua opinião, a
historiografia ou a grande imprensa não trataram os movimentos de esquerda e suas devidas
141
historicidades com o devido lugar na história. Assim, a entrevista cedida para esta dissertação
pode ser compreendida como ferramenta de luta, de sua causa.
No mesmo sentido, deixou entrever logo no início de sua fala que seu livro de
memórias, lançado em 2010, intitulado “Cabanos & Camaradas”, por exemplo, é uma das
raras e honrosas publicações que prestigia a memória de homens que lutaram pelo processo de
redemocratização da nação.
A entrevista aconteceu na espaçosa sala de estar de sua casa. Pela tarde quente do
verão amazônico dois ventiladores foram acionados para minimizar o mormaço. Estávamos
em setembro, mês com poucas chuvas na região, e por isso mesmo o ar seco e abafado
estiveram presentes no trabalho de recordar cenas distantes há mais de quarenta anos. Ainda
assim, a importância ao seus livro de memórias foi logo ressaltada como uma atividade para
além do papel de médico. Disse ser uma “tarefa partidária” a atividade de lembrar e registrar,
conforme narra abaixo:
Olha, nesse meu livro, esse meu livro era uma dessas... Até certo ponto uma
tarefa partidária também porque pessoas do partido, algumas a maioria já
está morta só tem um vivo, tá lá em Santos, aliás tem dois vivos mas um eu
não... eles me diziam: “- Alfredo...” Que a nossa história não estava
registrada em lugar nenhum. Primeiro porque a imprensa, o jornal
normalmente não publicava nada só publicava o que era para esculhambar,
para distorcer, segundo o que nós produzíamos não tinha como ser
publicado, razão pela qual eu escrevia (...) do Ruy [Paranatinga] Barata
(Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de setembro de 2011).
Os primeiros lampejos de ressentimentos começam em direção a academia
amazônica em não expor às luzes da cientificidade o devido lugar sociopolítico dos quadros
da esquerda na região. Obviamente, sua cisma recai sobre a imprensa censurada ao longo da
ditadura, quando os tempos de censura prévia e autocensura dos editores era prática comum
no Brasil. Mas sua fala também sinaliza os tempos livre da censura. Atualmente, apesar de
termos pesquisas substanciais, a pesquisa na academia amazônica acerca das memórias sobre
o regime é pouco numerosa, conforme expus na introdução desta dissertação.
Exemplo de lacuna nas pesquisas acadêmicas, a solidariedade ou ajuda humanitária
empreendida pelos quadros do PCB amazônico não foram contemplados pela pesquisa
amazônica. O médico Alfredo Oliveira, em depoimento firme, bem atribui ao partido sua
postura humanitária ao longo dos 21 anos de Ditadura Civil-Militar, conforme narra abaixo:
Atendi os companheiros como médico não apenas por ser um médico, mas
também uma tarefa de solidariedade que me foi atribuída pelo PCB e que
isso é uma coisa que me honra profundamente, segundo, participei da linha
142
do PCB em relação a luta contra a ditadura através da resistência
democrática, o PCB lutou contra a ditadura através do processo de
resistência democrática. Um deles foi transformar o MDB numa frente
política contra a ditadura. Então, a minha participação durante a ditadura foi
essa, trabalhar como médico dando assistência a companheiros que
precisavam de atendimento médico e não tinham de onde tirar esse
atendimento (Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de setembro de 2011).
Em outras passagens, Alfredo Oliveira informou sobre a ajuda médica dada a feridos
ou sujeitos perseguidos pelo regime que podiam ser presos ao adentrar em hospitais públicos.
Afinal, as cidades estavam fortemente vigiadas sob o argumento do “iminente perigo
comunista” que rondava a nação. Belém não escapava a tal esquema de segurança. Então, em
várias situações havia doenças ou ferimentos que careciam de cuidados clínicos. Era o médico
Alfredo Oliveira quem atuava nestes casos. Em outros momentos muito comuns naqueles
tempos de dificuldades, viúvas, órfãos, desempregados, buscavam ajuda de alimentos junto ao
comunista. Todos eram também ajudados pelo depoente. Com dinheiro, conversas amigáveis,
indicações para conseguir trabalho, repetidamente o prestígio e boa vontade do médico vinha
à tona.
A preocupação em deixar clara essa postura voltou a ser repetida outras vezes com
maior ou menor veemência. Destaquei o trecho abaixo pela intensidade e didatismo da frase.
Desta vez, deixou clara o quanto aquela atitude estava amalgamada entre a decisão da
identidade do ser humano e do médico comunista fiel às diretrizes do PCB.
(...) não era só uma tarefa humanitária, ela era humanitária sim porque era
um atendimento médico prestado a alguém que estava doente e estava
precisando desse atendimento, mas era também uma tarefa política porque
ela visava dar apoio a um cidadão que estava escondido, foragido,
desempregado tava sendo perseguido pela ditadura, então ela era também
uma tarefa política, por isso mesmo que a gente chama de socorro vermelho,
socorro vermelho, socorro comunista (Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de
setembro de 2011).
O depoimento acima aponta em duas direções. Primeiro, a opção pela
redemocratização sem uso de armas. A via pacífica foi a escolha do PCB para atuar na arena
de enfrentamentos. Cabe lembrar que dos quadros do PCB vieram Pedro Pomar e João
Amazonas, paraenses, ambos fundadores do PCdoB e árduos defensores da resistência
armada. Tal postura radical não foi aceita pelo PCB como método de enfrentamento. Então,
aliar-se a quadros emedebistas não foi algo estranho ou doloroso para as convicções de
comunistas históricos em Belém. Era a saída mais viável, segundo Alfredo Oliveira, para
143
ajudar o país. Segundo, a tarefa de solidariedade citada na narrativa é uma dupla decisão: do
próprio Alfredo Oliveira, na condição de médico; e, do partido.
Tal informação acerca das tarefas de solidariedade é contundente para desmistificar
a índole criminosa das identidades dos sujeitos tidos como ameaças para a nação.
Considerando como verdadeira sua atuação junto aos desprovidos paraense, é preciso colocar
no devido lugar da história o PCB e seus dirigentes. É bem provável que outros sujeitos,
pertencentes ou não a partidos políticos, tivessem ações humanitárias no rol de suas
atividades. Entretanto, não há registros de outro partido político tomando para si tal atribuição
de “cuidar”.
A atitude de Alfredo Oliveira em explicitar as ações humanitárias é emblemática. O
fez incisivamente após reclamar da negligência com relação às memórias de sujeitos dos
tempos de Ditadura Civil-Militar. Além do discurso organizado cautelosamente para narrar
suas memórias é possível inferir sobre a existência de um projeto de fazer-se presente na cena
historiográfica da região. E não esperou de braços cruzados pela boa vontade de
pesquisadores acadêmicos.
No que se refere às perplexidades causadas pelo cunho pedagógico aplicado pelos
militares durante o processo de Golpe Civil-Militar, especificamente no dia 1º de abril de
1964, José Seráfico de Carvalho é, sem sombra de dúvidas, o narrador com mais clareza nas
recordações daquele momento específico. Morando em Manaus desde 1966, praticamente não
havia como entrevistar este sujeito. Mas como estamos em tempos de velocidades rápidas,
graças à rede mundial de computadores, busquei contato pelo correio eletrônico. E foi por e-
mail que estabeleci o primeiro contato. Desta forma, Seráfico forneceu-me preciosas
informações para compreender o que aconteceu ao longo do fatídico 1º de abril.
Segundo José Seráfico, a sede da UAP estava movimentada naquela manhã e tarde
do dia 1º de abril de 1964. Os estudantes – e toda a sociedade paraense, incluindo militares –
estavam ouvindo diversos rumores das ações movidas pela iniciativa de Olympio Mourão. As
notícias do Golpe Civil-Militar estavam ventiladas aos quatro cantos de toda a região
metropolitana de Belém. Por isso, os estudantes universitários divulgavam arduamente o
manifesto escrito pelo próprio Seráfico no qual defendia a legalidade e dando “não” ao
golpismo. Tudo caminharia nos mesmos moldes do que a experiência havia mostrado no caso
da “Campanha da Legalidade”, movida por Brizola, no episódio da posse de João Goulart.
O manifesto havia sido redigido por um pedido feito a José Seráfico pelo Presidente
da UAP, o estudante de Direito Pedro Galvão de Lima. Entretanto, um fato piorou ainda mais
os ânimos dos estudantes. A gráfica Sagrada Família, que confeccionava o manifesto, havia
144
avisado sobre o confiscado de todo o material por uma alta patente da 8ª Região Militar: o
Major Moura. Tal notícia, como não poderia deixar de ser, asseverou os nervos de todos os
estudantes. É válido lembrar que dois dias antes, no dia 30 de março, a edição do “Tarefa”, de
Paes Loureiro havia sido apreendida e destruída pela Marinha do Brasil. Este fato ainda não
havia sido digerido pelos jovens universitários. Os acadêmicos de Direito, colegas do autor,
então, eram os mais exaltados. Mais uma apreensão aflorava ainda mais os nervos.
A recomendação da gráfica Sagrada Família foi que os estudantes buscassem contato
com o Major Moura para pedir explicações sobre o fato em curso. Assim o fez Seráfico,
apoiado por Pedro Galvão, sempre junto nas ações tomadas. Por telefone, argumentou sobre o
caráter ilegal daquela atitude. Ouviu do Major Moura, com uma calma desconfortante, que
fosse até a 8ª Região Militar para compreender melhor o que estava acontecendo. Ponto
crucial da narrativa, descrita da seguinte maneira:
Naquele momento, o gerente da gráfica Sagrada Família, que era na rua
Independência então, hoje Magalhães Barata disse que dispunha do telefone
do Major Moura, que eu ligasse para ele. E eu disse, ao telefone, ao Major
Moura, porque tentei falar com ele, que ele estava desrespeitando o Chefe
das Forças Armadas, o Chefe Constitucional das Forças Armadas, que o
errado era ele e não nós que defendíamos a manutenção. E ele então, com
muita cortesia, me pediu para visitar o Comando da Região. Eu, obviamente,
seria “Daniel entrar na toca dos leões”. Então, o que fizemos nós? Optamos
por eu redigir novo manifesto e voltamos a sede da União Acadêmica
Paraense (José Seráfico de Carvalho, entrevistas em 07 e 09 de outubro de
2011).
A atitude de José Seráfico foi de ordem prática. Era preciso arregaçar as mangas e
tratar de efetivar aquilo que o movimento estudantil julgou ser a saída mais lógica: redigir
outro documento e tratar de distribuir entre os transeuntes próximos à sede da UAP. Não
sabiam os estudantes que não lhes restava tempo para ações mais ousadas como ocorrera no
episódio com Brizola. Em uma jogada desesperada, mas de otimismo, foram buscar junto ao
general Orlando Ramagem algum apoio de ordem institucional.
O tempo que houve entre esses episódios e a invasão sofrida pela UAP só
bastou para fazermos novo manifesto, distribuirmos à população que passava
nos ônibus, passava na rua em frente à União Acadêmica e depois irmos
visitar o general Orlando Ramagem, na casa em que ele morava na Rua
Doutor Moraes e voltarmos depois daquele encontro e que notamos o
general muito, digamos assim, muito tartamudeante, muito hesitante e
realmente não sabíamos na verdade se ele ia honrar o compromisso de
defender aquele que o havia nomeado ou se ao contrário, como afinal
aconteceu ocorrendo, tinha traído (José Seráfico de Carvalho, entrevistas em
07 e 09 de outubro de 2011).
145
A postura reticente do general Ramagem já antecipava as cenas seguintes. A leitura
de José Seráfico acerca do comportamento “tartamudeante” do general fora precisa. De fato,
ao captar a insegurança de Ramagem, Seráfico antevia não ser este o sujeito a tomar frente da
cena política nos anos seguintes na Amazônia Paraense. Seriam Jarbas Passarinho, em
especial, entremeando o poder com Alacid Nunes. As duas principais lideranças da situação.
Nas entrevistas com Alfredo Oliveira e Ruy Antonio Barata a mesma informação foi dada.
Tivessem buscado o tenente Jarbas Passarinho para maiores esclarecimentos sobre a
apreensão do material na gráfica, sairiam de lá com a certeza de que o Golpe Civil-Militar era
irreversível naquela altura. Enquanto buscavam respostas com Orlando Ramagem outras
ações estavam sendo arquitetadas para o êxito do golpe. Naquele exato momento, o Coronel
Peixe Agulha já havia recebido ordens para desbaratar qualquer reunião tão logo chegasse a
noite. E ao anoitecer, as tropas tomaram conta da antiga Rua São Jerônimo. Assestaram
metralhadoras no chão, cercaram pelos fundos a sede da UAP, arrombaram aos chutes porta,
talvez estivesse só encostada, invadiram truculentamente. Destruíram o pequeno palco – ou
“teatrinho”, como chamou carinhosamente Pedro Galvão. Jogaram papeis pelo ar, estantes ao
chão, mimeógrafos e aparelhos de som empastelados.
Tinham o olhar de seres enfurecidos, descreveu Ruy Antonio Barata, já distante
alguns anos depois da cena que não presenciou. E então aconteceu a cena drástica descrita por
todos os narradores de “1964. Relatos subversivos”: José Seráfico de Carvalho, por estar
próximo da porta de entrada da UAP, foi esbofeteado pelo comandante “Peixe-Agulha”. A
partir da informação daquele gesto violento, mencionei a bofetada desferida e levantei
algumas questões para que fossem comentadas quando estivéssemos frente a frente em
Belém, nos dias 09 e 12 de outubro. Lancei-lhe as seguintes questões: quais foram suas
sensações ao vivenciar esse fato? Houve desejo de vingança pessoal ou nos dias seguintes se
tratava de uma luta com causa maior (a liberdade e retomada da democracia) e a bofetada foi
esquecida? Aliás, esse fato existe em suas memórias, quais imagens desse acontecimento
estavam guardadas e o que eles representam ainda hoje?
Esperava que se manifestasse quando chegasse até Belém. Entretanto, qual não foi
minha surpresa ao deparar-me com uma resposta minutos após haver enviado as questões
acima. Dias depois, na entrevista concedida no apartamento da Av. Nazaré, em Belém,
preferiu pouco assentar-se nesta temática. Portanto, optei por declinar-me em seu depoimento
dado por e-mail:
146
(...) desde que levei a bofetada, ocupava toda minha atenção a ansiedade por
avisar os familiares dos que estavam comigo na sede da UAP e não tinham
um pai às proximidades dos acontecimentos. Eu o tinha, e por isso fui
socorrido. Quanto à bofetada em si, ela me pareceu apenas um despropósito
de quem se esconde atrás da culatra de uma arma de fogo. Doeram-me mais
aos ouvidos as palavras de baixo calão que o oficial pronunciou, ao
esbofetear-me (José Seráfico de Carvalho, por e-mail em 1º de setembro de
2011).
A resposta foi demasiadamente curta diante das expectativas que eu alimentara desde
o início da pesquisa de campo. Mas elucidativa, por apresentar várias possibilidades de
análise para aquele aparente desvio de assunto. A agressão física não fora esquecida, conclui.
Afinal, a rapidez de sua resposta e os diversos relatos no livro “1964. Relatos subversivos”
deixavam evidente o quanto aquele tema ainda latejava nas memórias. Seráfico apontava para
o orgulho ferido pelas palavras de baixo calão desferidas junto com o bofetão. É provável que
doessem mais, realmente. Afinal, eram tempos de acusações infundadas de “perigosos”,
“comunistas”, “vermelhos”, “ameaças”, além de ofensas de ataque à honra e integridades das
famílias.
Aliás, acusações infundadas foram, em dois depoimentos, as principais reclamações
ao longo dos interrogatórios vivenciados ao longo das prisões. Pedro Galvão de Lima, em
entrevista no dia 25 de maio de 2011, sobre ser acusado ao longo do interrogatório da prisão
ocorrida no dia do Golpe Civil-Militar, lembra de ser chamado de “comunista frio e
calculista” quando negava todas as acusações de golpismo por parte das esquerdas estudantis.
E negava por ter plena ciência da diferença entre ser comunista e ser membro da Ação
Popular, uma vertente composta de quadros expressivos que muito se assemelhava à
Juventude Universitária Católica. Por essência, a Igreja Católica não coadunava seus
pensamentos com o marxismo dos idos dos anos 1950-60. Este se declarava ateu e, portanto,
feria os preceitos cristãos.
Não se nega aqui, e isso é necessário mencionar, que dentre os quadros da AP e JUC
houvesse sujeitos com leituras e convergências para o marxismo daquela época. Ao mesmo
tempo, sobre este jaez, Ruy Antonio Barata não deixa dúvidas quanto à clara diferenciação
entre PCB, de um lado e, de outro, AP e JUC. Segundo este narrador, “os padres odiavam
comunistas porque não gostavam das ideias deles, mas porque eram materialistas, desde a
guerra civil espanhola”.
Na mesma esteira dos grupos de esquerda que compunham a Universidade Federal
do Pará no início dos anos 1960, Dulce Rosa é mais detalhista quanto à composição política
dos estudantes daquele momento. Segundo esta narradora, apesar de outros segmentos
147
políticos, três grandes grupos principais se revezavam no ápice dos acontecimentos e
discussões políticas: PCB, AP e JUC. Vejamos como detalhou a questão:
Digo comunista porque existiam também outros dois agrupamentos: Ação
Popular e a Federação dos Estudantes... É a Juventude Católica. Então,
digamos que os que lutavam naquela ocasião, o golpe ainda não tinha
acontecido, por um algo diferente no Brasil era o Partido Comunista, e que
tinham representantes nas universidades, era o Partido Comunista, Ação
Popular e a Juventude Católica. Na Faculdade de Economia era mais forte o
Partido Comunista (Dulce Rosa de Bacelar Rocque, entrevistas concedidas
em 26 de dezembro de 2011 e 07 de janeiro de 2012).
Considerando como verdade a composição política daquele momento na UFPA,
Pedro Galvão, da Ação Popular, tinha razão em negar as acusações de “comunista
subversivo”. Tais acusações, se fossem direcionadas a Ruy Antonio Barata, declaradamente
comunista, tivessem outro peso e merecessem destaque nesta dissertação.
Neste sentido, Ruy Antonio Barata detalha com estrema eloquência e didática acerca
da conjuntura política das forças e lideranças na Amazônia Paraense após 1964. Segundo este
narrador, o Golpe Civil-Militar foi responsável por uma nova e inédita formatação política no
estado. Vejamos:
Então quem escreve sobre 1964 para cima, achando que é uma revolução de
estudantes, aparentemente está certo. Porque foi a única força que sobrou do
que todas as forças organizadas do Pará foram liquidadas. Como é que ela
teve um ascenso no Pará? No Pará, o Partido Comunista teve uma força
muito importante porque ela incorporou inúmeros intelectuais, inclusive a
aliança com João de Jesus Paes Loureiro, que não era do Partido Comunista,
mas era ligado ao Partido Trotskista. Eu acho que umas três ou quatro
pessoas ligadas aos trotskistas e ele, João de Jesus, era uma delas. João de
Jesus, aos 19 anos, estudava aqui nessa casa e declamava seus poemas. O
primeiro livro dele chamado “Tarefa”. Foi lançado pela União Acadêmica
Paraense, da qual o Pedro [Galvão de Lima] foi o último presidente na
legalidade. Na mão dos estudantes sobraram as bandeiras liberestárias no
Pará. Então de 1964 a 68, o movimento político se caracterizou no estado do
Pará por uma coisa. Pela ausência de lideranças institucionais, pela
interventoria dos chamados conspiradores de 64 (Ruy Antonio Barata,
entrevista em 19 e 22 de agosto de 2011).
O depoimento acima, conforme já foi mencionado, é dito com extrema tranquilidade.
Entretanto, é preciso frisar o ar sisudo e compenetrado de Ruy Antonio Barata ao lembrar
deste fato. Justo ele que, em vários momentos havia se identificado como filho de um dos
mais renomados comunistas paraenses – o deputado Ruy Paranatinga – e neto do renomado
advogado de causas populares – o bacharel em Direito Alarico Barata, deveria ter lembrado
148
com profundo pesar a ausência de lideranças institucionais na resistência à Ditadura Civil-
Militar.
Ruy Antonio Barata ao aparentar mais sisudez do que de costume ao lembrar da
ausência de lideranças, explicou mais tarde aquele comportamento mais rígido que seu corpo
manifestava. Lembrou do camarada Humberto Lopes, do PCB paraense, e sua importância
junto ao governo estadual de Aurélio do Carmo. Para descrever este sujeito, passou a utilizar
gestos largos. A voz ganhou outra entonação e finalmente disparou:
Humberto Lopes era comunista. Humberto Lopes era um cara que era um
capa preta [liderança política] e vivia clandestinamente no Pará, mas que ele
tinha tanta importância na história, que é isso que eu queria chegar com
você. Tinha tanta importância, era um homem que se integrou. Falava com
Aurélio do Carmo. Ele falava com todas as pessoas que tinham importância.
Vou te dar um dado que era importante. No dia que houve a renúncia do
Jânio, aí volto para cadeia da legalidade que eu tava falando, perguntaram
para o governador do estado em que lado ele estava. Se estava do lado da
legalidade ou se estava do lado dos militares e o Aurélio, corajosamente
disse que estava ao lado da legalidade e lutava pela posse de João Goulart. O
Aurélio nessa ocasião pensava que o Partido tinha o domínio das massas,
porque já tinha feito algumas greves, no movimento estudantil, tinha o
domínio do movimento operário. Os petroleiros aqui eram muito fortes.
Tinha o movimento dos bancários que era muito forte. Tinha o movimento
dos arrumadores do cais que era muito forte. E o Aurélio tinha a falsa
impressão que no momento que houvesse intervenção do Pará, os
comunistas poderiam reagir junto com ele. Sabe o que ele fez? Mandou
buscar os três líderes do Partido Comunista lá no Palácio (Ruy Antonio
Barata, entrevista em 19 e 22 de agosto de 2011).
A narrativa é eficiente em deixar clara a importância do PCB junto ao movimento
operário no estado. É claro que é necessário relativizar tal depoimento uma vez que o próprio
Ruy Antonio Barata era membro do PCB e, em memórias cujo epicentro é o próprio narrador,
são comuns os exageros. Entretanto, o fato do próprio Aurélio do Carmo chegar a convocar
reuniões oficiais e fechadas com os principais quadros comunistas denota a força política
daquele partido naquele momento.
O comunista Alfredo Oliveira também dá pistas sobre a importância dos camaradas e
o que representavam como ameaças para o novo regime. Ao ser incitado sobre a violência
presenciada ao longo dos anos 1960-70, recordou do colega comunista Jaime Miranda. O
depoimento ajuda a compreender e ratificar o depoimento de Ruy Antonio Barata. Segundo a
narrativa de Alfredo Oliveira, há uma clara denúncia de crime paraticado por parte dos
militares temerosos em perder o status quo conquistado pela força das baionetas.
149
Pois bem, o Jaime Miranda no início, não sei se nos anos 70 isso está no meu
livro não consigo guardar tudo de cabeça, o Jaime Miranda foi preso e na
prisão ele apareceu com um câncer na laringe, um câncer terrível, ele lutou
para ter uma licença para fazer um tratamento de saúde no Rio de Janeiro,
foi solto e aí ele, apesar da clandestinidade daquela situação difícil do
partido ele foi mandado para União Soviética para fazer o tratamento melhor
e lá ele foi tratado foi operado, melhorou bastante, foi mandado de volta pro
Brasil. Quando ele chegou no Brasil ele estava na casa, estava no Rio de
Janeiro na casa de uma irmã, em trânsito para voltar para Alagoas quando
ele foi localizado pela ditadura, foi localizado pela ditadura e agora se sabe o
que aconteceu com ele. Ele chegou num dia, no dia seguinte ele saiu para
fazer uma compara e nunca mais voltou para casa, sumiu. Agora se sabe, no
princípio pensavam que ele tinha sido jogado de um avião no mar, mas agora
não, está comprovado inclusive aquele Helio Gaspari que escreveu muito,
escreveu sobre isso, está no meu livro já baseado nessa última obra “A
Comissão da verdade” que diz que na verdade ele não foi jogado do avião
não, foi levado preso para São Paulo torturado até a morte, o cara com
câncer, e que lutava pela resistência democrática, você entende um negócio
desses?! (Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de setembro de 2011).
A considerar como verdadeiras as leituras e interpretações de Alfredo Oliveira acerca
das pesquisas de Hélio Gaspari, nota-se o nítido propósito dos militares em livrar-se das
lideranças pensantes que compunham a luta pela redemocratização do país. Também
corrobora as ideias defendidas por Ruy Antonio Barata no que se refere à importância que os
governantes creditavam aos comunistas.
Provavelmente, a grande repercussão que o PCB nutria aos jovens daquele momento
se deva ao fato do sucesso da Revolução Cubana em 1959. Naqueles tempos de hostilidades
entre regimes políticos – Socialismo versus Capitalismo –, o imaginário dos jovens
universitários talvez desejasse o esplendor do romantismo revolucionário irradiado por Che
Guevara e Fidel Castro, conforme o próprio Ruy Antonio Barata admite.
Nos admirávamos Che e Fidel, e todo mundo lia os livros do Jean-Paul
Sartre. O livro de Jean-Paul Sartre que todo mundo admirava chamava-se
“Um furacão sobre Cuba”. Foi um livro clássico que andou na mão de tudo
que é estudante. Então se criou uma elite e um grupo de estudantes de
esquerda. Como é que esse grupo de esquerda se dividia,? Um lado era
aliado dos comunistas. O outro lado era aliado da Igreja progressista que se
formava. A Igreja progressista que se formava vinha no bojo de João Paulo
II? Não. Como é que chamava? João XXIII. João XXIII era um papa que
escreveu a Encíclica Magistra, pregando o diálogo entre comunistas e
cristãos porque achava que comunistas e cristãos tinham muito a ver (Ruy
Antonio Barata, entrevista em 19 e 22 de agosto de 2011).
Assim, com o apoio ideológico do papa João XXIII, muitos católicos se atreviam a
folhear – ou fingir ler – manuais da esquerda política, O Capital, de Karl Marx era um dos
exemplares que mais estavam difundidos nas mãos dos estudantes, apontou Ruy Antonio
150
Barata em outro momento. No trecho acima, indicou o existencialismo sartreano como leitura
comum entre os acadêmicos. Para acabar de completar, no mesmo depoimento, Ruy indicou a
existência de dois padres bastante influentes entre a mocidade de Belém.
(...) eram adeptos dessa opção, chamava-se padre Diomar; o outro chamava-
se padre Raul. Esses dois padres tinham uma liderança efetiva sobre os
jovens. Entre eles, não só aqueles que eram ligados a JUC e AP, mas todos
aqueles que eram simpatizantes desse grupo chamava-se de grupão. Eram
grupos de esquerda, mas de uma esquerda heroica. Ou seja, estavam
extremamente influenciados pelas posições do Che e do Fidel (Ruy Antonio
Barata, entrevista em 19 e 22 de agosto de 2011).
Então, retomando a composição política existente na UFPA nos idos de 1960-70, a
partir de três narradores é possível notar a forte presença de grupos de esquerda que, mesmo
com diferenças – ou variações – ideológicas, encontravam pontos de convergência bastante
sintomáticos para uniões em momentos de crise (como foi o episódio do golpe e Ditadura
Civil-Militar).
Quando foi deflagrado o Golpe Civil-Militar, em 1964, houve um misto de satisfação
e incertezas quanto ao futuro. Nem esquerdas, nem direitas, conheciam os próximos
acontecimentos políticos da nação. Assim, nos dois primeiros anos de ditadura eram comuns
constatar atitudes que buscassem tão somente a autoafirmação ideológica. Ou seja, militares
empenhando-se ao máximo em repreender o “perigo vermelho”, de um lado; de outro, grupos
de esquerda já arquitetando atividades subversivas. Significa dizer que os dois lados se
entrincheiraram e passaram a atuar em razão da obrigação de agredir o outro. 41
Neste cenário de guerra, as esquerdas menos aparelhadas e pegas de surpresa pelo
repente do golpe não tiveram forças suficientes para organizar-se efetivamente à altura das
direitas. Então por mais que houvesse esforços para equilibrar o embate, os aparelhos de
Estado sob poder dos militares tendiam a minar os quadros da resistência. No caso da
Amazônia Paraense, o caos foi atenuado pela ação imediata e desprendida do então jovem
médico Alfredo Oliveira.
A solidariedade foi a tônica de sua atuação em prol dos prisioneiros de guerra, sendo
necessárias ações que articulassem a própria sobrevivência do PCB enquanto célula de ação.
Assim,
41 É o caso das inúmeras prisões contra estudantes da UAP, em especial o caso de João de Jesus Paes Loureiro,
que chegou a ser transferido para o Dops do Rio de Janeiro, de um lado; de outro, ver as atividades
desempenhadas pelo grupo do PCB no qual se inseria Dulce Rosa.
151
(...) de 64 a 66 a tarefa principal do PCB era de tentar não se desarticular,
tentar manter o mínimo de articulação, o mínimo de aproximação entre seus
dirigentes que estavam soltos ou foragidos para poder se dedicar àquilo que
era o mais importante na época que eram as tarefas de solidariedade, tinha
gente presa, tinha gente sendo demitida. Então, de repente essa tarefa de
solidariedade passou a ser uma contingência muito forte a ponto de nós
termos que dar prioridade a ela e não às ações políticas (Alfredo Oliveira,
depoimento em 14 de setembro de 2011).
Com este depoimento, Alfredo Oliveira aflora sua identidade de médico e faz jus ao
juramento de Hipócrates. Prestar socorro ou, ser solidário, como optou dizer no depoimento,
não estava na agenda de todos os pecebistas, é bom que se diga. Mas para ele, a atuação na
prestação de socorro aos companheiros (ou não) fazia parte de sua premissa de comunista e
médico. Os papeis se fundem na agenda cotidiana de Alfredo Oliveira. Outros quadros do
PCB, em detrimento das adversidades impostas pela ordem ditatorial de perseguição aos
subversivos, a investiram ainda mais neste tipo de atividades “política”42
; outros, uma
pequena parte, conforme deixa entrever o narrador, abandonaram a cruzada. Mas para este
narrador as tarefas de solidariedade estavam na ordem do dia e assim permaneceu por dez
anos. Um ato de entrega em prol de uma causa que lhe foi cara.
A partir de 1964, inúmeros militantes das esquerdas ou simpatizantes quando presos,
perdiam seus empregos e dificilmente os recuperavam. Ser um dos presos por conta da
suspeita de ser subversivo incluía o sujeito na lista negra da sociedade. Era como passar para
o limbo social. Oportunidades de empregos se fechavam, amigos passavam a evitá-los,
familiares discriminavam. Pelo lado patronal, o simples ato de conversar com estes sujeitos
poderia ser atividade de vigilância e punição, empregar em sua empresa, loja ou coisa similar,
era incorrer no risco de sofrer averiguações e eventuais prisões. Por essa razão, com o Golpe
Civil-Militar, aumentou o número de pessoas carentes de ajuda médica, econômica e social.
Neste contexto de dificuldades econômicas, é válido salientar que o Sistema Único
de Saúde não existia nos moldes que existe hoje, assim, diante dos tempos de perseguições,
prisões, desempregos e desesperos, Alfredo Oliveira, com a sensibilidade de poucos, narra o
seguinte:
(...) quer dizer, era importante manter a sobrevivência das famílias,
conseguir advogado para quem estava preso, essa coisa toda. E aí aconteceu
uma coisa que no meu caso é específico porque foi praticamente somente
comigo que isso aconteceu. Eu passei a ter uma função específica que durou
praticamente até 78, até quase o fim da ditadura militar. (...) Então de
42 André Costa Nunes, por exemplo, empreendeu diversas outras atividades econômicas, chegando a empregar
vários amigos que haviam sido presos e passavam por dificuldades.
152
repente com pessoas desempregadas, sem recursos para o tratamento, a
minha participação para poder dar um pouco de atendimento médico para
essas pessoas passou a ser vital, até porque independente da assistência
médica tinha o problema da confiança, o camarada poderia estar foragido,
escondido, não se podia mandar um médico qualquer lá tratar o companheiro
(Alfredo Oliveira, depoimento em 14 de setembro de 2011).
O interessante na narrativa de Alfredo Oliveira é a frase foi praticamente somente
comigo que isso aconteceu. Sua narrativa mostra o ato de abrir mão da militância política para
dedicar-se ao sacerdócio da ajuda humanitária. Dá um tom de uma “fatalidade”, um caminho
sem volta. Como se a decisão de prestar solidariedade fosse um passo irreversível. A verdade
é que esta atitude sendo posta em prática se trata de uma decisão humanitária, própria de
indivíduos superiores, heroicos. Não era uma decisão fatídica ou simplesmente um
determinação do Partido, mas uma postura de vida diante das adversidades vividas pelos
companheiros. É bom mencionar, Alfredo Oliveira não expõe tais memórias lamuriosamente.
Pelo contrário, o diz como altivez em tom de voz acima do normal. Quase uma ode
declamada.
No momento deste trecho da narrativa, Alfredo Oliveira é firme nas palavras. O
semblante é sereno, apesar das pernas estarem o tempo todo balançando, aparentando
inquietação com as imagens que lhe vinham à mente. E como estas expressões corporais
podem emitir sinais falsos... Aquela era uma tarde quente. Alfredo Oliveira já havia solicitado
dois ventiladores a uma pessoa que estava em sua casa. Ainda assim, o tempo abafado exigia
que estivéssemos ventilando o corpo. Portanto, em momento nenhum da entrevista pude
perceber tensão, nervosismo ou apreensão por conta de alguma memória. Pelo contrário, a
calma foi a tônica de seu depoimento ao longo de aproximadamente uma hora em que estive
ali.
Quanto à política partidária da parte do PCB, houve uma adequação para atender o
perfil da personalidade de Alfredo Oliveira. Sobre esta questão, pesquisei sobre a ajuda
humanitária ou “socorro vermelho” de pecebistas a companheiros em dificuldades. Encontrei
registros na historiografia a partir da postura de advogados em relação aos presos políticos43
,
mas não observei médicos na mesma atitude. Talvez existam, mas a historiografia ainda não
os alcançou. Sobre à determinação partidária para a ajuda humanitária, Alfredo Oliveira narra
que
43 Ver depoimento de Ruy Antonio Barata com relação ao seu avô, Alarico Barata.
153
(...) o Partido aqui deu prioridade absoluta para isso, então eu fiquei a partir
de 66 mais ou menos, eu fiquei desobrigado de participar de reuniões, de
coisas que pudessem chamar a atenção da repressão sobre a minha pessoa e
me impedir de fazer o que era fundamental e só eu podia fazer que era dar
assistência médica aos companheiros, aquilo que a gente chamava de socorro
vermelho, né?! (Alfredo Oliveira, depoimento em setembro de 2011).
Assim, de modo bastante sui generis Alfredo Oliveira ensina que o processo de lutas
contra a ditadura não está balizado tão somente no binômio maniqueísta há muito difundido
pela escrita histórica. Preenchendo o perfil de sujeito cultural proposto no início deste texto,
este narrador coloca-se às margens do processo. Não por alijamento político imposto pelo
regime, pelo contrário, foi uma decisão humanitária de dar sobrevida aos feridos e
cambaleantes daqueles que lutaram em prol da redemocratização da nação em solo amazônico
paraense.
Não, não é bem assim, não é uma tarefa política. A solidariedade é
solidariedade, é uma questão humanitária, a solidariedade é uma questão
humanitária complexa porque envolve também, quer dizer, ela é uma coisa
complexa. A solidariedade ela não é só uma... Não, ela é uma coisa
complexa, ela envolve uma série de aspectos e de tarefas. Veja bem, é muito
diferente... Agora, ela é diferente de uma solidariedade por caridade, é igual?
A solidariedade do partido é igual a caridade que você faz dando dinheiro
para uma pessoa ou a caridade da santa casa? Não. Por quê? Porque ela tem
um nível de compreensão diferente, ela tem um nível de compreensão
diferente, você tá entendendo?! Você não está ali por caridade, por pena. A
caridade é a pena que você tem de alguém. Você não faz essas tarefas de
solidariedade feitas pelo partido, não eram caritativas nem por pena, sabe?!
Faziam parte da formação do comunista, humanitária e política porque as
duas coisas não se separam. Você tem a formação humanitária ao lado da
formação política, as duas se juntam você tá entendendo?! (Alfredo Oliveira,
depoimento em 14 de setembro de 2011).
A explicação política para a atuação da solidariedade enquanto método de ação do
PCB é reduzir demasiadamente a atitude de Alfredo Oliveira. A ajuda humanitária partidária,
a solidariedade e “ser comunista” eram posturas amalgamadas na identidade deste sujeito.
Assim, conquistar quadros e mantê-los a salvo era uma tática para conquistar corações e
mentes das massas para, em seguida, atingir o ambiente necessário para a luta em prol da
redemocratização do país.
154
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"Escorraçado, amordaçado e acovardado deixou o poder como imperativo da
legítima vontade popular o sr. João Belchior Marques Goulart, infame líder dos
comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história
brasileira já registrou, o Sr. João Goulart passa outra vez à história, agora também
como um dos grandes covardes que ela já conheceu.
Temos o direito de dizer tudo isso do Sr. João Goulart porque não lhe
racionamos os adjetivos certos, por mais contundentes que fossem, na hora em que
êle dominava o poder, e posava de líder todo-poderoso da Nação. Como não nos
intimidamos na hora em que Jango e os comunistas estavam por cima e amargamos
até cadeia, não precisamos nem fazer a demagogia da generosidade. Mesmo porque
não pode haver generosidade nem contemplação com canalhas. E Jango, Jurema,
Assis Brasil, Arraes, Dagoberto, Darcy Ribeiro, Waldir Pires e toda a quadrilha que
assaltou o poder não passam de canalhas.
E além de canalhas, covardes. E além de covardes, cínicos. E além de cínicos,
pusilânimes. E além de pusilânimes, desonestos. Bravatearam, fingiram-se machões,
disseram que fariam isto e aquilo, mas aos primeiros tiros saíram correndo
espavoridos e ainda estão correndo até agora. Alguns, como Aragão, como Assis
Brasil, como Crisanto de Figueiredo, como Arraes, como Cunha Melo, como todo o
rebotalho comunista, não serão encontrados tão cedo. (...)
Nunca se viu homens tão incapazes, tão desonestos e tão covardes. Agora que o
País se livrou do fantasma da comunização podemos repetir o que vínhamos dizendo
exaustivamente: todo comunista é covarde e mau caráter. Os episódios de agora
vieram provar que estávamos cobertos de razão. (...)
O Povo brasileiro lavou a alma. O Carnaval que se comemorou ontem em plena
chuva só poderia mesmo ter sido feito por um povo que estava precisando dessa
desforra que lhe era devida precisamente há 30 meses. O povo que comemorou
ontem a queda de Jango foi o mesmo que votou contra êle em 1960 e foi traído pela
renúncia de Jânio. A comemoração de hoje é pois uma revanche e uma recuperação.
Precisamos agora de organizar o mais ràpidamente possível o nôvo govêrno, pois
os aproveitadores de sempre já cerram fileiras em tôrno dos cargos, já se apresentam
como os heróis de uma batalha que não travaram. Junto com a organização do nôvo
govêrno temos que providenciar, também urgentemente, para que os direitos
políticos dos que foram ontem legitimamente banidos pelo povo, sejam cassados
para sempre. (...)
Não se trata de vingança, nem estamos aqui defendendo o esquartejamento dos
derrotados. Mas quando o destino do País está em jôgo, quando se trata de decidir da
sorte dos que queriam comunizar o País, não podemos ser generosos ou
sentimentais. Para os civis, cassação dos direitos políticos. Para os militares como
Assis Brasil, Crisanto, Cunha Melo, Napoleão Nobre, Castor da Nóbrega e para
todos os comuno-carreiristas das Fôrças Armadas, o caminho é um só e inevitável: a
reforma pura e simples. Não falavam tanto em reforma? Pois apliquemos a fórmula
a êles.
Enfim, começa hoje uma nova era para o Brasil. Confiemos no espírito público
dos homens que salvaram a democracia brasileira, e no discernimento e
superioridade com que o marechal Dutra se conduzirá nos próximos 22 meses."
(Tribuna da Imprensa, 2 de abril de 1964).
Nos fins da década de 1950, o PCB e demais agremiações de esquerda estavam
discutindo os caminhos a percorrer para conduzir o país ao Socialismo. Defendiam o
acirramento das lutas contra o imperialismo norte-americano e até contra a ordem feudal (sic)
ainda existente. Os discursos reformistas, subsidiados por grupos camponeses organizados em
Ligas, pretendiam a reforma agrária com urgência. Outros, alinhavados com Jango, desejavam
155
o fim das remessas de lucros para fora do país, a nacionalização de grandes capitais
exploradores. Estudantes pretendiam a reforma e democratização do ensino superior.
O Pará não estava imune a este ambiente, contraditório, mas sempre necessário. Por
aqui também pulularam grupos cujos debates eram também acalorados. O movimento
estudantil estava alinhavado com o partido político que melhor representava esta vanguarda: o
PCB. Somava-se a este um forte grupo ligado à Igreja Católica, JUC, e outro, mais envolvido
com o movimento estudantil nacional, a Ação Popular (AP). O movimento estudantil era
pulsante no início dos anos 1960. Organizados em grêmios ou Centros e Diretórios
Acadêmicos, os estudantes produziam tabloides, como o T-UAP dirigido por José Seráfico de
Carvalho. Denunciavam corruptos. Anunciavam novos tempos. Semeavam esperanças e se
alimentavam de sonhos revolucionários.
Sem deixar de mencionar grupos e projetos com influência trotskista e outros
independentes, havia, nos dizeres de Ruy Antonio Barata, um “projeto de autonomia”
amazônica no Pará. Esta efervescência política agigantou-se com a posse de João Goulart na
presidência do Brasil. No Pará, o governador Aurélio do Carmo, sempre aberto ao diálogo e
expansivo na busca de apoio político, permitia-se dialogar no interior do Palácio de Governo
com comunistas, inclusive. Paralelamente, uma grande campanha de demonização do
socialismo movia-se por meio de empresas midiáticas, ações organizadas ou isoladas também
agiam no sentido de brecar a todo custo as expansões esquerdistas. Basta lembrar o
desbaratamento do SLARDES por parte dos “lenços brancos” na noite de 30 de março de
1964. Temiam pelas propriedades privadas, ameaça ao sistema capitalista e, principalmente,
pela manutenção do status quo.
Nem as notícias das centenas de mortes por parte do governo da URSS arrefeceram
os exaltados ânimos de uma mobilização socialista no Brasil. Jovens eram arrebanhados todos
os dias para os quadros de esquerda. E na Amazônia Paraense, o ambiente global se
reproduzia com tentáculos próprios.
Neste cenário aconteceu o Golpe Civil-Militar em 1º de abril de 1964. A UAP foi
invadida, estudantes presos, incomunicabilidade na prisão da Gaspar Viana e 5ª Companhia
de Guardas, torturas psicológicas. Atos Institucionais prevendo o bipartidarismo (AI-2) e o
fim das liberdades individuais (AI-5) sepultaram as mobilizações democráticas. Aos
dissidentes do regime, se queriam engajamento democrático em lutas contrárias ao projeto
ditatorial, lhes restava a atuação pelas margens. Com manobras militares todo o rumo das
vidas daqueles sujeitos havia sofrido drástica mudança. Compreender aquele momento era
crucial para a sobrevivência na nova conjuntura.
156
Entre o ambiente de preocupação pelas prisões efetuadas na noite do dia 1º de abril
de 1964 e os rompantes revolucionários de não fugir diante da ameaça, os narradores desta
tecedura amanheceram no dia 2 de abril com a certeza de que o dia anterior seria inolvidável e
ponto de partida para novos tempos. O texto raivoso da Tribuna da Imprensa circulou no país
inteiro, e no Pará teve ecos principalmente com a Folha do Norte. Expressava bem o projeto
político dos grupos civis-militares reacionários no Brasil. Em seu âmago, toda a eiva e revolta
que antagonizava com as bandeiras reformistas erguidas por Jango. Os “pusilânimes
covardes”, como enfatiza a Tribuna, haviam sido devidamente “derrotados” e prestes a sofrer
esquartejamento de suas imagens. E assim foi.
Nos dias e anos seguintes ao Golpe Civil-Militar, dezenas de outras matérias foram
publicadas com teor tão ou mais rancoroso que o texto da Tribuna. Os narradores deste
trabalho, com variantes bem próximas, tiveram que conviver com horrorosas acusações
propagadas a respeito da índole e caráter. Vale reforçar que, e isso valia para todos os quadros
esquerdistas, as ofensas proferidas atingiam qualquer sujeito portador de visões políticas
progressistas naquele momento. Para os grupos reacionários que assumiam o poder,
“comunistas” eram todos os críticos daquele modelo de desenvolvimento imposto pela ordem
burguesa, patriarcal, coronelista. Assim, a imprensa midiática agia como porta voz de um
projeto das elites aristocráticas do campo e cidade no Brasil dos anos 1960.
Todos, sem exceção, tiveram suas vidas radicalmente transformadas. As matérias
jornalísticas, dedos em riste, comentários burlescos ao caminhar pelas ruas, passaram a fazer
parte da cena cotidiana deles. Por conta disto, as marcas de remorsos, sofrimentos,
ressentimentos, esperanças, orgulhos, altivez, estão nas narrativas, trejeitos e performances de
todos.
Paes Loureiro, por exemplo, foi um dos que sofreram com a prisão apreensão do
“Tarefa”, a prisão na 5ª Companhia de Guardas e, principalmente, o risco de morte pelo
DOPS no Rio de Janeiro. Carrega traumas até hoje. Não era sujeito da lida e tradição política,
como bem enfatizou nas entrevistas concedidas. Dulce Rosa sofreu mais com a própria
ausência do país do que com as matérias pejorativas, mas mesmo fora do Brasil nunca deixou
a luta pela redemocratização. André Costa Nunes, por meio de identidades alinhavadas com
seringais e espaços urbanos, ziguezagueava entre um empreendimento e outro em busca de
sobrevivência para camaradas do partidão. Sempre acusado de “chucro” e comunista ao
mesmo tempo. Pari passu, Cláudio Barradas, nas cochias e palcos do SESI, ora gargalhava
das confusões armadas junto aos censores, ora se preocupava com a possibilidade de ver-se
enquadrado pela Lei de Segurança Nacional. Nas entrevistas, não deixou entrever rancores,
157
mas fechou o sorriso ao lembrar da relação traumática com a censura. No caso do padre
teatrólogo Cláudio Barradas, suas fugas para não entrar em rota de colisão com o projeto de
poder civil-militar estavam nos palcos e textos encenados/adaptados.
Pedro Galvão de Lima e José Seráfico de Carvalho tiveram que conviver com o
espectro das prisões e violências psicológicas ao longo de 59 dias trancafiados na 5ª
Companhia de Guardas. Lideravam a UAP e o T-UAP, respectivamente. Arcaram alto custo
pelo engajamento estudantil, sem demonstrar arrependimentos. Assim aconteceu também com
Ruy Antonio Barata, mas este estava mais habituado com os traquejos políticos apreendidos
com o “velho Ruy”. As matérias veiculadas pela Tribuna da Imprensa lhe serviam de
ferramentas para seguir lutando em prol do Socialismo. Por fim, Alfredo Oliveira, ao afastar-
se estrategicamente do partido, mesmo sendo pouco assediado pelo autoritarismo paraense,
sofreu nos bastidores dos hospitais públicos vendo o sofrimento e mazelas dos mais pobres
impostas pelo estado. As acusações feitas por jornais lhes chegavam aos olhos e ouvidos, mas
sua atuação estava para além das discussões partidárias. Era um homem dedicado ao ato mais
sublime de um ser humano naqueles tempos de medos e prisões: mostrar o amor
cotidianamente por meio de ações voluntariosas de solidariedade.
Entretanto, apesar das dificuldades impostas pelo novo regime, em momento algum
se ausentaram do embate. A maior parte das vezes, os dissidentes reagiram. Construíram
artimanhas pequenas, mas engenhosas para demarcar posições. Produzindo peças teatrais com
dúbios sentidos, enviando cartas a consulados e jornais, seja cometendo poemas
aparentemente inocentes, estes atores entraram no palco de lutas com ações sagazes o
suficiente para fazer-se notar na cena. E sofrer as consequências destes atos quando flagrados
pelos olhares atentos da repressão.
Se tais ações os colocaram às margens durante a Ditadura Civil-Militar no Pará, por
outro lado, em tempos democráticos estão na ordem do dia em diversas entrevistas, rodas de
conversas, palestras, com a temática da Ditadura Civil-Militar. Apesar da longa demora, com
algumas dissertações de mestrado envolvendo memórias nos tempos ditatoriais, estes mesmos
sujeitos saem de zonas de silêncio nas quais foram enfurnados por 20 anos de ditadura.
O clima de tensão em decorrência das matérias jornalísticas, prisões, fugas,
interrogatórios, cesuras, ainda está latente nas seleções de cenas narradas pela memória. E
assim encontram refúgio, passados quarenta e oito anos do 1º de abril de 1964, para seus
sentimentos. Narrar foi, para todos, um grande parazer. Construí vínculos de amizade o
suficiente para, ao reencontrá-los, ganhar afetuosos abraços e apertos de mão. Nas vezes que
isto aconteceu, senti-me honrado.
158
O que movia minha admiração e consequente parazer em receber atenção de tais
distintos sujeitos estava claro para mim. Eu fui, e sempre serei, admirador da nobre arte de
perseverar em ideais de transformação de nossa realidade para condições menos injustas de
relação entre sapiens-sapiens. Todos eles se posicionaram e conseguiram mostrar identidades
com nobres valores. A questão, entretanto, era outra: o que os movia a direcionar tamanha
atenção a mim? Seriam as descomprometidas etiquetas da boa educação tão somente.
Obviamente não descarto esta possibilidade. Mas é preciso adentrar em outra questão para
entender melhor esta última inquietação desta dissertação.
Sarlo (1997) ajudar a desanuviar esta questão ao indagar sobre a existência dos
resíduos do passado fazendo-se notar no tempo presente. Pois, sobre este jaez, afirmo
categoricamente que por meio de derrotas seguidas de derrotas, todos os narradores chegaram
à vitórias. Percebi, buscando detalhes de suas experiências de vida, o quanto sofreram por
defender seus sonhos. Assim, com quedas e sofrimentos, deram visibilidades e transformaram
em axiomas seus discursos e práticas externadas nos últimos 50 ou 60 anos de vida.
Conseguiram, pelas trilhas democráticas, impor seus projetos de vida como verdades.
Para constatar a anuência obtida pelos narradores em tela basta ver as numerosas
petições públicas de ONGs e mobilizações populares pedindo a abertura dos inquéritos
militares, o julgamento e punição aos torturadores e assassinos do regime. Outro exemplo
reside nos mandatos presidenciais dos últimos vinte anos. Todos, desde Fernando Henrique
Cardoso (1994-2002), Luis Ignácio Lula da Silva (2002-2010), até Dilma Rousseff (2010-
2014), foram vítimas de alguma maneira da Ditadura Civil-Militar. A última, inclusive,
chegou a ser torturada fisicamente e seu algoz hoje enfrenta a Justiça para explicar-se. Os
criminosos de 1964, como acusava a Tribuna, são os herois de hoje.
Assim, é provável que os narradores ao dedicar atenção a minha pessoa estejam
ainda em plenas “batalhas da memória” (REIS, 2004). Concedendo entrevistas cuja temática
envolve o passado vincado pela dor, estão operando com identidades sabiamente arquitetadas
para dar vazão a seus projetos de emersão. Ou, nos dizeres de Sarlo (1997), valem-se da
memória e narrativas históricas como ferramentas contra o esquecimento. Esta dissertação,
portanto, é mais um ardiloso instrumento destes sujeitos que não pararam de semear
perspicácias.
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Olympio Mourão Filho, portanto, na condição de militar, não era o único
representante da aventura que mergulhou a democracia brasileira numa noite de vinte anos
(1964-85).44
Daí se justifica a tese do golpe ser de caráter civil e militar.
Por fim, além das narrativas, todos ainda operam com recordações tênues, fugazes,
idas e, acima de tudo, com um bonito sonho de lutas, com grandes lições de amor e cidadania.
Foram sentimentos, paixões, medos recalques, angústias, orgulhos... Mesclados em
depoimentos agitados/calmos e nervosos/serenos. Em simbiose; ao mesmo tempo. Transmitir
a experiência vivida por meio de sorrisos, pernas balançando, tensões faciais e toda sorte de
performances do corpo e da voz são formas de compreender e explicar o golpe e a Ditadura
Civil-Militar. Não me acanho de tentar!
44 Em pesquisa com jornais de circulação na Amazônia Paraense, nos primeiros três anos da década de 1960,
antes do Golpe, portanto, junto à seção de Jornais/Obras Raras, da Fundação Tancredo Neves – Centur, constatei
discursos jornalísticos com satanização do termo “Comunismo”. As matérias versavam sobre o “Perigo
Vermelho”, “Cubanização”, “Avanço Comunista” e outras expressões que instigavam os leitores da região a
pensar esse regime sócio-político-econômico como um inimigo a ser combatido. O papel do bispo Dom Alberto
Ramos no processo de caça aos padres com ideais comunistas infiltrados nas fileiras da Igreja também é descrito
no mesmo trabalho. Sobre a ação dos jornais em circulação na Amazônia Paraense nas vésperas do Golpe Militar
ver: (VELARDE, 2005).
160
DESCRIÇÃO DAS FONTES
1. Entrevistas
1.1 Pedro Galvão de Lima, entrevistas em 25 de maio e 24 de agosto de 2011.
Idade: 72 anos Nascimento: 28. Mar. 1940 Naturalidade: Belém (PA)
1.2 Ruy Antonio Barata, entrevistas em 19 e 22 de agosto de 2011.
Idade: 65 anos Nascimento: 07. Set. 1946 Naturalidade: Óbidos (PA)
1.3 João de Jesus Paes Loureiro, entrevistas em 03 e 30 de março de 2011.
Idade: 73 anos Nascimento: 23. Jun.1939 Naturalidade: Abaetetuba (PA)
1.4 Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de setembro de 2011.
Idade: 77 anos Nascimento: 14. Jun. 1935 Naturalidade: Belém (PA)
1.5 André Avelino da Costa Nunes Netto, entrevistas em 11 e 13 de setembro de 2011.
Idade: 72 anos Nascimento: 10. Nov.1939 Naturalidade: Belém (PA)
1.6 Cláudio Barradas, entrevistas em 13 e 23 de maio de 2011.
Idade: 82 anos Nascimento: 04. Jan.1930 Naturalidade: Belém (PA)
1.7 Dulce Rosa Rocque Bacelar, entrevistas em 28 de dezembro 2011 e 07 de janeiro
2012.
Idade: 68 anos Nascimento: 10. Dez.1943 Naturalidade: Belém (PA)
1.8 José da Silva Seráfico de Assis Carvalho, entrevista em 07 e 09 de outubro de 2011.
Idade: 70 anos Nascimento: 23. Abr. 1942 Naturalidade: Belém (PA)
Jornais pesquisados
1.1 A Província do Pará, 08.07.1964.
1.2 A Província do Pará, 25.08.1965.
1.3 A Província do Pará, 29.08.1965.
1.4 A Província do Pará, 27.02.1966.
1.5 A Província do Pará, 01.03.1966.
1.6 A Província do Pará, 02.03.1966.
161
1.7 A Província do Pará, 13.03.1966.
1.8 A Província do Pará, 10.06.1967.
1.9 A Província do Pará, 08.12.1980.
1.10 Folha Vespertina, 10.11.1965
1.11 Folha Vespertina, 26.11.1966
1.12 O Estado do Pará, 18.10.1976.
1.13 O Estado do Pará, 19.11.1978.
1.14 Tribuna da Imprensa, 02.04.1964
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