No precipício de uma folha em branco ...Agora conto eu - Crónicas ou cenas parecidas
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No precipício de uma
folha em branco…
…crónicas ou cenas parecidas
João Cunha Silva
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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Agora conto eu João Cunha Silva
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No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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NO PRICIPÍCIO
DE UMA FOLHA EM BRANCO
Agora conto eu João Cunha Silva
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No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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João Cunha Silva
NO PRICIPÍCIO DE UMA FOLHA EM BRANCO –
Crónicas ou cenas parecidas
Agora conto eu João Cunha Silva
7
©João Cunha Silva/2015
Todos os direitos reservados
O uso destes textos é autorizado em contexto escolar desde que se faça
referência ao autor e à publicação.
www.facebook.com/EscritorJoaoCunhaSilva
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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Agora conto eu… crónicas ou cenas parecidas
I 9
TEXTOS PUBLICADOS NO JORNAL TRIBUNA PACENSE (TP) 9
QUANDO EU FOR GRANDE! – TP – 25/10/2013 10
A MESA DO CAFÉ DA RUA 38 – TP-01/11/2013 13
O REI QUE NÃO TINHA CASTELO –TP- 8/11/2013 16
A HISTÓRIA DA FOLHA LUTADORA… - TP-15/11/2013 19
A PEDRA MÁGICA-TP-22/11/2013 22
OS MISTÉRIOS DA LUA GULOSA – TP – 29/11/2013 25
DAR E RECEBER – TP- 06/12/2013 29
UM BRILHO NO ESCURO – TP - 13/12/2013 33
NÃO GOSTO MESMO NADA DE LER! – TP – 20/12/2013 36
TENHO UMA BALEIA NA BANHEIRA! –TP- 28/02/2014 42
CABELOS COR DE VENTO – TP- 31/01/2014 46
O TÍTULO É… ESQUECI-ME –TP- 30/05/2014 49
A ABELHA VAIDOSA–TP- 30/06/2014 53
II 57
TEXTOS PUBLICADOS NO JORNAL GAIA SEMANÁRIO (GS) 57
NO PRECIPÍCIO DE UMA FOLHA EM BRANCO – GS- 14/01/2015 58
VOANDO NUMA SEMENTE DE UM DENTE-DE-LEÃO – GS- 28/01/2015 62
A MODA DAS FÁBULAS: O BURRO E O LOBO – GS- 11/02/2015 66
A CONSPIRAÇÃO DOS ASTROS – GS- (25/02/2015) 70
EM VERSO COM ALGUMA RIMA! – GS- (26/03/2015) 74
O GAFANHOTO ANTUNES – GS- (08/04/2015) 77
QUAL O PESO DAS PALAVRAS? – GS- (22/04/2015) 80
O QUE ME FAZ FELIZ! O MEU GUIA DA FELICIDADE! – GS- (06/05/2015) 84
AS CORES VERDADEIRAS – GS- (27/05/2015) 88
A ROSA VAIDOSA E A VISITA INESPERADA. – GS- (13/06/2015) 92
O PRIMEIRO DIA DE AULAS – GS- (30/07/2015) 96
ENSAIO SOBRE O ABSURDO! – GS- (27/8/2015) 100
Agora conto eu João Cunha Silva
9
A REALIDADE E A FICÇÃO –GS-(13/08/2015) 105
I
Textos publicados no jornal Tribuna Pacense (TP)
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Quando eu for grande! – TP – 25/10/2013
Agora conto eu João Cunha Silva
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Era um dia especial na escola e sempre que
era um dia especial o Luís tinha muita
dificuldade em adormecer. Ficava de olhos
presos no teto a antecipar, minuto a minuto,
como seria o dia seguinte. Desta vez tudo
era um pouco mais complicado, pois era o Dia
das Profissões. Ele não sabia o que queria
ser quando fosse grande. Como podia? Apenas
tinha sete anos. Os seus colegas não tinham
dúvidas: polícias, médicos, engenheiros,
professores… mas o rapaz não sabia. -E se
depois não gostar de ser uma daquelas coisas?
É uma decisão importante! -pensou o rapaz. –
Se não gostar vou andar toda a vida rezingão
e maldisposto como anda o Sr. Gomes da
mercearia! – Disse baixinho para o seu urso
de peluche. De certeza, que ele se tinha
arrependido da sua escolha. Gordinho como é,
imaginou-o de avental branco a cantar de boca
bem aberta: Ladónimobilé! Não conseguiu
deixar de sorrir para o urso castanho, já
remendado, esperando em vão a sua risada de
volta. Aqueles pensamentos deram-lhe sono e
foi assim que adormeceu sem ter resolvido o
seu dilema.
Pela manhãzinha, o Sol, matreiro, obrigou-o
preguiçosamente a esfregar os olhos.
Levantou-se e de imediato se lembrou que se
tinha esquecido de escolher a sua profissão.
Enquanto engolia apressadamente os cereais
com leite, começou a pensar nas coisas que
gostava de fazer e nenhuma se parecia com as
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profissões que conhecia. Que ele soubesse, e
não devemos ignorar o que uma criança de sete
anos sabe, não existia nada parecido com
Contador de Estrelas, Admirador de Palavras,
Pintor de Sonhos, Fazedor de Sorrisos ou
mesmo como Mudador de Mundos. Pelo menos que
ele soubesse, é que apesar de uma criança de
sete anos saber muito, não precisa ainda de
saber tudo. Sentou-se no carro do pai, ainda
cheio de dúvidas e fez o percurso para a
escola sem desviar o olhar da janela lateral.
Subitamente os seus olhos brilharam e era
perfeitamente visível que algo de bom tinha
acontecido, enquanto olhava o abanar das
árvores e as gentes apressadas nas ruas.
Chegou a sua vez: aproximou-se confiante do
quadro, virou-se para os colegas e disse com
uma voz calma, segura e bem colocada, tanto
como a voz de um menino de sete anos, sem
dentes na frente, consegue ser: QUERO SER
ESCRITOR!
Δ
Agora conto eu João Cunha Silva
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A Mesa Do Café Da Rua 38 – TP-01/11/2013
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Todas as manhãs o mesmo ritual. Obedecendo
fielmente a uma sucessão de movimentos
cristalizados pela repetição e pela ordem.
Um rito…uma oferenda a um Deus maior. Passo
a passo, mecânico, numa mnemónica aprendida
num tempo ou então no seu templo. Entrava;
sentava-se; pousava o chapéu na mesa; pedia
o café com um gesto seco; agitava de forma
também maquinal a saqueta do açúcar. Pegava
na colher e mexia o café somente duas vezes,
como se no seu íntimo não desejasse uma
dissolução completa e secretamente
procurasse o prazer final do açúcar
restante. No entanto, não me lembro de o ver
pegar na chávena para beber. A partir daí,
desligava a corrente do real, como se
entrasse numa outra dimensão. E eu com ele.
Todo ele absorto, indiferente à vozearia das
restantes mesas e ao meu olhar fixo e pouco
dissimulado. Abria o caderno preto de modo
cerimonioso, olhava por momentos pela
janela, não parecendo importar-se com o seu
próprio reflexo que turvava a realidade
exterior. Baixava a cabeça como numa vénia e
a sua caneta dourada parecia ganhar vontade
própria. A escrita fluía num ritmo febril,
num frenesim galopante e descontrolado.
Devorava folha atrás de folha. A caneta,
raspava a página de um lado para o outro,
mais parecendo um tear, juntando as linhas
escritas numa mancha de texto opaca, que
Agora conto eu João Cunha Silva
15
depressa desaparecia com o virar repentino
da página.
Permanecia exatamente sete minutos naquela
mesa ao lado da minha, naquele café onde eu
próprio me encontrava, naquela rua 38.
Sempre tão perto, diariamente tão chegado e
no entanto só lhe conhecia os gestos. Não
sabia o seu nome, nem me lembro de alguma
vez ter ouvido a sua voz. (Deduzo que tenha
uma ou várias até…) Da minha mesa, vítima da
minha própria rotina, observava aquela
celebração diária de forma mística e
memorizei, gesto a gesto, os passos daquele
sujeito magro, sempre de fato preto, de
óculos redondos, de chapéu, também preto,
pousado na mesa. Aqueles sete minutos,
cronometrados, robóticos; eram mais do que
sete minutos. Eram um tempo parado no tempo.
Fechava o caderno, guardava a caneta no bolso
do casaco e levantava-se. Deixava o valor
certo do café na mesa; punha o chapéu na
cabeça e saía sem pronunciar um único som.
Durante todo dia, a mesa permanecia órfã do
seu dono e ninguém ousava sentar-se naquela
cadeira. Havia um respeito inexplicável por
aquele momento sacro, por aquele lugar e por
aquela pessoa, que podia ser qualquer
Pessoa.
Δ
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O Rei que não tinha castelo –TP- 8/11/2013
Agora conto eu João Cunha Silva
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Era uma vez um Rei que não tinha castelo.
Achava que não era necessário para a sua
função. Vivia numa casa igual à dos restantes
habitantes. Dormia também numa cama igual a
todas as outras pessoas e a sua comida em
nada diferia do que se comia por todo o
reino. As suas roupas eram também
perfeitamente normais e de coroa apenas
tinha uma calvície avançada para a idade. No
entanto, mesmo sem pompa e circunstância,
todos o respeitavam como Rei e admiravam a
sua dedicação e inteligência com que
governava o reino. O Rei era fiel no seu
trabalho de ser rei, era justo e reinava bem
e por isso a população era empenhada e
disposta a colaborar no que fosse
necessário, para tornar o reino um sítio cada
vez melhor para viver. O Rei cobrava impostos
também justos: apenas os necessários para
que o seu reino fosse um lugar culto, limpo
e seguro. Um reino que tratasse as suas
populações, dos mais novos aos mais velhos,
com dignidade e respeito. Era por isso uma
pessoa amada e venerada, mesmo sem ter um
castelo.
Todos os anos, havia um jantar que juntava
todos os Reis daquela região e nesse jantar
o Rei sem castelo ficava abismado com a
sumptuosidade demonstrada pelos outros reis.
Não deixava de admirar as suas roupas
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faustosas, coloridas e brilhantes e os seus
carros potentes e reluzentes. Imaginava que
as populações daqueles reinos viveriam
também de forma muito mais próspera do que o
seu povo. Nas conversas com os seus pares,
tentou saber como eram os seus reinos e os
reis descreveram com muitos adjetivos a
grandiosidade dos castelos em que viviam. O
rei ficou convencido que se queria realmente
que o seu povo melhorasse, teria de construir
um castelo. Regressou a casa com a ideia na
cabeça e não demorou muito a por o projeto
em prática. Reuniu os melhores trabalhadores
do reino para construir o castelo e estes
tiveram de abandonar os seus empregos,
deixando as tarefas que antes faziam; para
pagar os materiais, os artesãos e artistas
convidados para embelezar o castelo, desviou
o dinheiro dos impostos, deixando de haver
dinheiro para a educação, para a saúde e para
ajudar os mais necessitados.
Com os olhos ofuscados com tanto brilho, o
Rei olhou orgulhosamente para o magnífico
castelo que tinha construído. Estava agora
satisfeito e feliz por ser um Rei com um
castelo, sem reparar que no processo se tinha
transformado num Rei sem reino.
Δ
Agora conto eu João Cunha Silva
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A história da folha lutadora… - TP-15/11/2013
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Conta-se por aí a história de uma folhinha,
que vivia feliz nos ramos de um plátano.
Vivia na cidade, no meio de um parque, onde
muitas crianças brincavam e coloriam o ar
com as suas vozes irrequietas. Tinha nascido
igual a todas as outras folhas,
espreguiçando-se toda sonolenta, assim que
as manhãs de março ficavam mais quentinhas.
Cresceu, brincando com as suas companheiras
de ramo, tentando, em corridas loucas,
encontrar o melhor lugar virada para o sol,
atitude muito apreciada por todos os que
usavam a sua sombra para fazer um piquenique
de família ou para descansar, depois de uma
tarde de brincadeiras. Em meados de agosto
tornou-se uma folha adulta, de veios bem
vincados e pontas bem definidas. Fazia o seu
trabalho de forma competente e colaborava na
importante função de manter a árvore
próspera, sã e bela, é claro. Certo dia,
ouviu dizer que a árvore, patroa de todas as
folhas, já não precisava de tantos ajudantes
e iria começar a despedir as folhas uma a
uma, depois do fim do mês de outubro. Pensou
ser um boato e não quis acreditar, pois uma
árvore tão frondosa sem folhas não haveria
de ficar. O certo é que, com as primeiras
manhãs frias do mês de outubro, as folhas,
como se tivessem perdido o seguro de saúde,
começaram a perder o verde viçoso, ganharam
tons amarelos e avermelhados e finalmente
Agora conto eu João Cunha Silva
21
começaram a ser despedidos dos seus ramos.
Lutou com todas as forças para se manter
presa, mas pouco lhe serviu quando uma brisa
mais forte a fez flutuar pelo ar. Ainda
pensou em fazer greve ou até protestar, mas
olhando a situação da árvore sabia que o que
tinha de fazer era recomeçar. Aterrou perto
das outras folhas, que no chão formavam um
tapete triste, mas colorido. Toda aquela cor
lhe deu uma ideia e ela não teve tempo a
perder. Chamou-as a todas e soprou-lhes com
emoção. Disse-lhes que não era hora de
desistir, que apesar de não terem árvore,
ainda podiam sorrir. Assim, com muita
determinação e incapazes de desistir
formaram uma empresa com a missão do mundo
colorir. Podemos cair, mas nunca podemos
desistir!
Δ
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A pedra mágica-TP-22/11/2013
Agora conto eu João Cunha Silva
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Conta-se por aí que no meio das brincadeiras
de um domingo de sol, o outono apareceu
fresco a pedir um agasalho e um chá bem
quentinho. Não dava para longas aventuras
pois os dias eram já curtos, mas o jardim da
avó, que ficava bem pertinho, era sempre um
bom local para esta pequena curiosa explorar
e brincar nas horas mais quentes.
Escondeu-se e encontrou quem se escondia.
Contava os números com prazer redobrado, de
um a trinta e depois partia para descobrir a
avó, que estava sempre no mesmo sítio. No
meio de tanta risota e corrida, a sua cara
refletia alegria e os seus olhos eram
espelhos de luz. Ela era assim quando não
tinha as suas birras: contagiava a natureza
sempre que sorria e a natureza parecia sorrir
de volta. Entendo, assim, a justiça do que
aconteceu, a natureza sabe recompensar quem
a ama e a usa para amar.
Assim, no meio do jogo das escondidas, numa
das vezes que procurava a avó, ficou parada
a olhar para o chão sem fazer qualquer
barulho. Agora, era a avó que a procurava,
pois já tinha passado muito tempo desde que
tinha dito: «Alerta!» Encontrou-a de joelhos
muito pensativa e olhando para a sua pequena
mão fechada verificou que tinha apanhado
alguma coisa do chão e perguntou: «Não me
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digas que encontraste algum tesouro.» E não
é que tinha…
Levantou o olhar do chão e exclamou em voz
alta a frase que criou espanto a quem ouviu:
«É uma pedra mágica!» A avó entrou na
brincadeira e perguntou se tinha encontrado
uma pepita de ouro ou mesmo uma pedra
preciosa. Ela respondeu que não e abriu a
mão, mostrando uma pedra banal, castanha que
nada tinha de especial. «É mesmo uma pedra
mágica, não vês!», reafirmou a menina. A Avó
sorriu, como só as avós sorriem para os
netos, mas o certo é que não via nada a não
ser uma pedra, um pequeno calhau ainda
coberto com torrões de terra. Percebendo que
a avó não acreditava nela, escolheu uma parte
mais clara do chão de cimento e com pedra
mágica que tinha na mão começou a fazer
riscos no chão.
A avó, espantada, verificou que a menina,
tinha acabado de escrever o seu nome no chão.
«Vês, é uma pedra mágica! É mágica porque é
uma pedra que escreve.»
Para mim, também tinha ficado claro: a pedra
era realmente mágica! Pensando agora sobre o
assunto, na reflexão que a escrita oferece,
não posso deixar de concluir que magia é na
verdade o que de surpreendente conseguimos
fazer, com o que à primeira vista parece
banal.
Δ
Agora conto eu João Cunha Silva
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Os mistérios da Lua gulosa – TP – 29/11/2013
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No tempo em que não havia enciclopédias e
não se sonhava sequer que a palavra Google
pudesse algum dia existir, as perguntas dos
filhotes mais curiosos tinham de ser
respondidas com muitas pitadas de imaginação
e com uma boa dose de raspa de loucura.
Naquele tempo, ainda não havia luz elétrica
nas casas, nem iluminação nas ruas e por isso
as noites tinham mesmo a cor escura que a
noite deve ter. Se para uns a visão era
assustadora, já para outros, como o menino
desta história, aquela visão dos céus
provocava uma série de enigmas e mistérios,
que não o deixavam dormir sem amarrar umas
asas à sua imaginação. Também não havia
televisão no quarto, na sala, nem em nenhuma
divisão da casa. Para se aquecerem as
famílias juntavam-se à volta de uma lareira
onde o fumo curava os presuntos e o calor
rosava os rostos.
Ora, houve um dia, numa dessas alturas de
reunião familiar, que um pai desses tempos
antigos se viu obrigado a explicar ao seu
filho de cinco anos as fases da misteriosa
lua, que para espanto do pequenote, ora
desaparecia, ora aparecia envergonhada, ora
se mostrava toda vaidosa, ora voltava logo a
desaparecer.
-Porque é que a Lua está sempre a mudar de
forma?
Agora conto eu João Cunha Silva
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Todos escutaram a pergunta do rapaz com
atenção e ninguém o mandou calar ou falar
mais baixo, para ouvir uma qualquer novela
de ficção ou da vida real; as notícias ou
mesmo para terminar a mensagem no
smartphone. Olharam todos para o fogo da
lareira como se procurassem lá a resposta,
mas foi o pai que respondeu com um certo
orgulho nos olhos pois achava que a
curiosidade era sinónimo de inteligência.
Ele próprio sempre estranhara aquele
mistério e lembrava-se da história que sua
avó lhe tinha contado, sentada à frente
daquela mesma lareira.
Assim, aquele pai dos tempos antigos, neto
de alguém dos tempos ainda mais antigos,
partilhou a história que tinha ouvido em
criança:
- Ora bem -preparou a voz - a Lua é muito
gulosa e não consegue parar de comer. Começa
muito pequenina, do tamanho de um grão de
areia, que ao longe não se consegue ver;
depois vai apanhando estrela atrás de
estrela, comendo uma a uma e sem nunca parar.
Começa a ficar cada vez maior, cada vez
maior… cada vez mais barriguda, até que
rebenta e espalha novamente as estrelas pelo
céu escuro.
Todos riram, a bom rir, da história maluca
do pai e foram dormir com um sorriso no rosto
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que só uma história consegue dar. O rapaz
ganhou mais um sonho e de certeza que
imaginou a Lua de guardanapo posto; faca e
garfo em cada mão lunar e um prato cheio de
estrelas estaladiças para se deliciar.
Δ
Agora conto eu João Cunha Silva
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Dar e receber – TP- 06/12/2013
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Todos os anos era a mesma coisa. Chegava a
hora de abrir os presentes e galopava
contabilisticamente para ver o que tinha
recebido. Abria o presente, esboçava um
sorriso, para logo depois o atirar de forma
desinteressada para um canto reservado com a
devida antecedência para alojar as suas
prendas, onde, misturados com restos de
papel de embrulho, se acumulavam roupas,
brinquedos, livros e até dinheiro.
–Receber prendas é muito bom! –Dizia em voz
alta.
Passara os dias de dezembro a pensar nas
prendas que iria ter, não tendo tempo para
mais nada. Quando a irmã lhe pediu ajuda para
enfeitar a árvore que o pai tinha trazido,
ele disse que não tinha tempo para essas
coisas, pois tinha de fazer a lista das
prendas que queria para o Natal, acabando a
conversa com a pergunta:
-O que me vais dar no Natal?
Não reparou na cara triste da irmã, nem
percebeu porque não lhe tinha respondido. O
mesmo acontecera quando o pai lhe pediu ajuda
para apanhar musgo e construir o presépio.
Nem o deixou acabar a frase, perguntando-lhe
de seguida qual seria o seu presente. A mãe
também foi brindada com a mesma pergunta ao
lhe pedir ajuda para fazer as rabanadas e
docinhos com que enfeitava a ceia de Natal.
À noite, adormecia a perguntar ao teto o que
Agora conto eu João Cunha Silva
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iria receber, vendo sombras de brinquedos a
serem desembrulhados, uns atrás dos outros,
num frenesim imparável.
- O que irei receber no Natal? O que irei
receber no Natal? – Sonhou em voz alta.
Não foi um sonho que lhe mostrou a verdadeira
natureza do Natal, nem ficou sem receber o
seu presente desejado, como a lógica poderia
antecipar. Não, tudo correu como tinha
planeado: recebeu muitas prendas, as que
pediu e as que nem precisou de pedir. Podia
mesmo verificar na sua lista, que ninguém se
tinha esquecido da sua prenda. Para ele,
estava a ser um Natal quase perfeito. No
entanto, sem conseguir muito bem explicar
porquê, não se sentia muito feliz. Pelo
menos, não se sentia tão feliz como a irmã
mais velha ficava, sempre que dava um
presente. Ela também ficava feliz quando
recebia, é claro, mas os seus dias de
dezembro eram passados a pensar e a preparar
as prendas que iria dar. Chegou a vez de o
rapaz dar os presentes e todos aguardavam
expectantes, mas ele não tinha nada para dar.
Aí ele percebeu (acho que deve ter percebido)
que as prendas são uma forma de dizer que
gostamos e nos lembramos dos outros, para
lhes mostrar que são importantes para nós.
Ficou triste ao perceber que tinha passado o
natal apenas a pensar em si. Ainda ia a
tempo! No monte das suas prendas encontrou a
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caixa de chocolates que a tia lhe tinha dado.
Abriu a caixa e distribuiu um chocolate a
cada um com um beijo e os votos de Feliz
Natal.
-Receber é muito bom, mas dar é fantástico!
– Disse o rapaz, visivelmente feliz,
provocando a todos um sorriso e um
brilhozinho nos olhos.
Δ
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Um brilho no escuro – TP - 13/12/2013
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Acordou de noite sobressaltado, ouvindo uma
voz sussurrada ao fundo, não conseguindo
identificar, ao certo, a sua origem.
- Tu mudarás o Mundo!
Não acreditou muito naquela voz, pois como
seria possível uma pessoa mudar o Mundo,
principalmente uma criança que vivia num
país tão complicado, a quem nem o nome
original lhe deixaram ficar. O seu país, lá
para os lados do Sul da terra mãe, levava as
cores muito a sério e viviam todos separados
de acordo com a cor que nasciam. Haviam
cores, que eram tratadas de modo
privilegiado, como se fossem mais
importantes do que outras. A cor da pele era
sinónimo de riqueza e quanto mais escura,
menos importante se tornava. Os serviços
públicos também eram diferenciados pela cor
dos seres humanos e mesmo os lugares dos
autocarros eram também ocupados de acordo
com a cor da pele: quanto mais escuro, mais
atrás se tinha de sentar. Havia mesmo grades
a separar aqueles mundos de cores
diferentes. «Que estranho e injusto
pensava!» Uma das palavras mais difíceis que
aprendeu a soletrar na escola, mesmo sem
saber muito bem o significado, apesar de o
viver diariamente, foi a palavra SE.GRE.GAR.
Como poderia um menino mudar o Mundo, que o
considerava inferior só pela cor da sua pele?
Agora conto eu João Cunha Silva
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Cresceu revoltado com tanta injustiça e
estupidez primária e interpretou aquela voz,
que ouvira em criança, como um apelo à luta
intransigente pelos direitos do povo do seu
país. A sua determinação acabou por o levar
à prisão, porque os que separam, não querem
livres aqueles que tentam unir. O seu corpo
ficou aprisionado durante vinte e sete anos,
mas durante todo esse tempo, a sua voz, num
voo místico ancestral, sobrevoou as
consciências dos que se dizem humanos e mais
humanos eles ficaram. As suas palavras foram
um brilho no escuro, uma luz guia
pacificadora num Mundo de trevas que
ameaçava ruir.
Um dia as grades partiram, mas ele já estava
livre, principalmente de ódio e rancor.
Tornou-se no pai de todos, independentemente
da cor, libertando mesmo aqueles que o tinham
aprisionado. Aquela voz tinha agora sentido:
ele tinha mudado o Mundo!
Ao longo dos seus últimos anos, ensinou-nos
uma palavra que muitos ainda teimam a não
conseguir soletrar: CON.GRE.GAR.
RIP TATA - Os heróis nunca morrem!
Δ
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Não gosto mesmo nada de ler! – TP – 20/12/2013
Agora conto eu João Cunha Silva
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Era sempre assim. Sempre que alguém tinha a
ideia estratosférica de lhe dar um livro, a
sua cara ganhava a cor de fastio e lá saía
um agradecimento forçado. Atirava o
calhamaço para um lote de presentes sem
sentido, com uma clara noção de desperdício
de dinheiro que aquilo significava. «-Um
livro!...bahhhh! Então não era muito melhor
um jogo para a consola, um filme ou outra
coisa qualquer!?» Quando vinha acompanhado
de talão de troca, a coisa até não era assim
tão má, pois sempre dava para trocar por
outra coisa qualquer. O pior era quando se
tratava de uma livraria, daquelas onde
apenas se leem, vendem e promovem livros. Aí
a troca só seria feita por outro livro e
quando era assim nem se dava ao trabalho:
deitava logo o talão fora e atirava o livro
para o monte, para cima de outros livros,
sempre à espera que alguém os abrisse.
Ficavam assim no chão como folhas mortas num
outono eterno, onde nem uma brisa corria para
alterar o padrão que formavam. Quando ouvia
aquelas frases “Ler é bom! Ler faz bem!”
fazia sempre a mesma cara de troça. Ele até
tinha acreditado na história dos
superpoderes e sentiu-se mesmo um super-
herói, assim que juntou com sentido as suas
primeiras letrinhas para formar palavras,
mas depois aquilo já não era só para se
divertir e vinha sempre com algumas
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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perguntinhas parvas que só quem fosse muito
distraído é que podia não saber. Lembra-se
sempre de ler aquela história do Pedro e do
Lobo, em que depois de vezes e vezes sem
conta a ler a palavra Pedro, tinha de
responder por escrito e de forma completa à
pergunta: “- Como se chamava a personagem
principal?” Claro que era Pedro! «Mas que
perda de tempo!» Podiam ter perguntado como
tinha ficado a cara de Pedro quando ninguém
o acudiu! Isso sim seria interessante. A
resposta podia muito bem ser um desenho. Mas
não, eram apenas perguntas que não lhe
apetecia nada responder. Com isto e com o
assombro de que cada livro tinha um teste de
avaliação na última folha, começou a perder
o interesse, pois muitas vezes queria
guardar para si aquilo que lia e assim não
era possível, porque ninguém lhe perguntava
como se sentia depois de ter lido aquela
história. Queriam saber quem era o narrador,
se este participava na história; pediam para
descrever as personagens, física e ainda por
cima psicologicamente, como se estivesse
numa esquadra a fazer o retrato-robô, ou
sentado no sofá de um psicanalista. Era
demais! Era muito mais fácil jogar um jogo:
aí ninguém se atrevia a perguntar nada e
podia jogar descansado. Aos poucos perdera o
interesse pela magia de ler. Sim, enquanto
narrador desta história posso mesmo afirmar
que ler é mágico. Algo aconteceu para poderem
ler o que estou a escrever. E isso, caros
Agora conto eu João Cunha Silva
39
amigos leitores, é magia. Convencido de que
não podia ler o livro como quem come um
gelado, apenas por prazer, começou, cada vez
mais, a manter os livros à distância, mas
mesmo assim não evitava que, de vez em
quando, por altura do Natal ou do seu
aniversário, lhe oferecessem um calhamaço,
ou dois. Já tinham destino marcado: o “monte
do esquecimento”. Nos tempos livres, fazia
Legos sem livro de instruções, jogava
Monopólio com o irmão e perdia, jogava à
“bisca dos nove” com o avó e ganhava até ao
nono jogo, para perder dez de seguida, andava
de canoa, jogava à bola, andava de bicicleta
apenas com os pés nos pedais, brincava com
os primos, com a sua cadela Dama, mas ler
não ocupava sequer um segundinho da sua vida.
«E também não faz falta nenhuma!» pensava o
rapaz.
A verdade é que aparentemente não fazia mesmo
falta nenhuma na vida daquele rapaz, mas como
os leitores mais atentos já devem estar a
antecipar, alguma coisa deve ter acontecido
para que o rapaz mudasse de ideias em relação
à leitura e aos livros. O que terá sido?
Conseguem antecipar?
A noite tinha sido muito mal dormida. Não
sabia muito bem se a causa seria a dor de
barriga ou a ansiedade pelo importante jogo
de futebol que iria ter na manhã seguinte na
escola. O certo é que jogou a custo e a dor
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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de barriga tornou-se insuportável a ponto de
o levarem para o hospital.
– Acho que é uma apendicite! - disse a medo
a médica estagiária que o observou.
Aí, tudo iria mudar e há que dizê-lo sem
pudor, que há males que vêm por bem, pois
aquele internamento haveria de ser o fator
de mudança da sua vida, pelo menos da sua
vida de leitor. Trocar uma ponta do intestino
dispensável, por uma vida de contato com os
livros parece-me sempre uma boa opção e neste
caso pode-se dizer que a troca foi claramente
um ganho. Ali, sem se poder mexer, no meio
de uma enfermaria cheia de gente estranha,
cada um com a sua dor, foram os inúmeros
livros que leu que tornaram o seu
internamento suportável.
De início, parecia maldição, chegaram livros
de todos os lados. Os que o visitavam, num
inocente gozo, traziam livros, uns dados,
outros emprestados, outros vindos do “monte
do esquecimento” do seu quarto, que no seu
todo formavam uma biblioteca que nem um ano
de cama daria para ler. De início ficaram lá
pousados, num descanso que parecia destinado
a ser eterno, mas após as primeiras horas a
ver o tempo que o soro demorava a descer, lá
se decidiu a abrir o primeiro com clara
desconfiança. A partir daí nunca mais parou.
Descobriu ideias novas, mundos novos,
pessoas novas, leituras novas. Perante a
Agora conto eu João Cunha Silva
41
alegria que tinha redescoberto, espalhou-a
por toda a enfermaria, e a sua cama, aquele
número 231, passou a ser a secção de
empréstimo de livros durante aquela semana
que acabou por ser mágica. Assim que
recuperou, continuou a fazer tudo aquilo que
fazia antes e não se transformou em mais um
sabichão ou estrela de quiz show, nem se
tornou numa enciclopédia ambulante
insuportável, mas destinou um período do seu
dia para a leitura. Não fosse aquele pedaço
de intestino de discutível utilidade, seria
hoje um adulto como tantos outros, daqueles
que duvidam que ler é realmente um
superpoder, que permite interpretar primeiro
e melhor o mundo e as pessoas que nos
rodeiam.
Δ
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
42
Tenho uma baleia na banheira! –TP- 28/02/2014
Agora conto eu João Cunha Silva
43
«Ajudem-me! Tenho uma baleia na
banheira!!!!!»
Foi assim que acordei numa manhã cinzenta de
dezembro. Agora que penso no assunto, não
sei muito bem se foi um pesadelo ou um sonho,
porque a baleia não é um animal que provoque
medo imediato. Acho que foi só mesmo o susto
de ter uma baleia na minha banheira que me
fez acordar sobressaltado. Meio ensonado e
ainda a pensar porque haveria eu de ter um
sonho assim, calcei os chinelos e fui ao
quarto de banho. Tentei abrir a porta, mas
parecia que alguma coisa a impedia de abrir.
Forcei, forcei e de seguida empurrei,
empurrei, até que muito a custo lá se abriu
uma pequena frincha por onde espreitei.
Saltei de espanto! Afinal não tinha sido nem
sonho nem pesadelo!
«Socorro, Ajudem-me! Tenho mesmo uma baleia
na minha banheira!» Desato a correr em
círculos, ainda meio atarantado. Belisquei a
mão (ato muito usual para quem pensa que está
a sonhar) e reparei que me doeu e por isso
confirmava-se que aquela visão não se
tratava nem de nenhum sonho, nem da minha
imaginação. De imediato, liguei o 112 e disse
com a voz mais aflita que encontrei, «Preciso
de ajuda! Tenho uma baleia na banheira.» Do
outro lado da linha, uma voz com acento grave
disse: «Não acha que já tem idade para ter
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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juízo» e continuou, «pode estar a ocupar a
linha para alguma emergência. Respondi de
imediato «Eu sei, eu sei… mas isto é mesmo
uma emergência, não é brincadeira. Tenho
mesmo uma baleia na banheira!» Do outro lado,
de forma irónica perguntaram-me: «Não me
diga que a baleia está a brincar com um
patinho amarelo!» Fiquei espantado, como
poderiam saber? «Sinceramente…» disseram-me
do outro lado, «Ele há cada uma!» e
desligaram o telefone na minha cara. Pousei
o telefone, indignado com a terrível falta
de consideração pelo que se estava a passar.
Se não é para o 112, para onde se deve ligar
quando se tem uma baleia na banheira?
Espreitei mais um pouco para dentro do meu
quarto de banho. Já não estava a brincar com
o patinho amarelo, tinha mergulhado. Entrei
e quando julgo que afinal tudo se passou de
uma alucinação própria de um acordar
ensonado e nada mais do que isso, eis que a
baleia, enorme como só uma baleia consegue
ser, aparece de rompante e num salto
acrobático cai com um grande estrondo em cima
da superfície da água. Escusado será dizer
que fiquei encharcado da cabeça aos pés.
Banho matinal tomado, pensei eu. E agora o
que fazer com uma baleia na banheira? Ela
parece que se encontra bem e não quer sair,
pois se o quisesse, desapareceria tal como
apareceu. Acabei por me habituar à ideia e
assim sempre posso dizer que tenho um animal
de estimação muito especial. Uns têm um cão,
Agora conto eu João Cunha Silva
45
um gato, ou mesmo um periquito, mas qual é a
piada disso quando se pode ter uma baleia na
banheira. Por isso, se virem passar uns
camiões carregadinhos de krill já sabem para
onde vão. Porque uma baleia, mesmo uma baleia
que vive numa banheira, também precisa de
comer.
Δ
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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Cabelos cor de vento – TP- 31/01/2014
Agora conto eu João Cunha Silva
47
No final daquela rua havia uma casa vazia.
Uma casa de uma cor qualquer que o tempo se
encarregou de apagar. Porventura seria
branca ou talvez amarela, mas isso agora
pouco interessa, porque não é a cor exterior
que torna mais ou menos interessante uma
casa, mas sim o que se passa no seu interior:
as pessoas, a vida que albergou. É disso que
quero hoje falar.
Conta-se que aquela casa, quando ainda tinha
cor, era habitada por uma mulher com cabelos
cor de vento. Todos a conheciam por aquele
nome e era fácil saber porquê: os seus
cabelos ondulados, esvoaçavam como papagaios
de papel, ao levantar-se a mais pequena
brisa, ganhando assim a cor que o vento traz.
Saía todos os dias daquela casa, com cor das
marés, e ficava a olhar as ondas do mar que,
numa luta contínua, golpeavam de forma
assertiva as dunas onde se sentava. Imóvel,
permanecia em silêncio, ouvindo os murmúrios
borbulhantes da espuma das ondas.
Ao longe, ao ver aquele diálogo mudo entre
os elementos, aquela figura feminina fazia
parte daquele quadro móvel em conjunto com o
mar, as dunas e o vento, como se nunca de lá
tivesse sequer saído. Mas saía e sabiam-no,
porque assim que o horizonte ganhava a cor
do sol poente, regressava a casa embalada
pela promessa de um novo amanhecer.
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Poucos segundos depois de ter entrado, a
janela ganhava cor de luz e a casa cor de
vida. Uma só janela com luz, nada mais…uma
só pessoa. Não demorou a que a casa ganhasse
cor de sono onde apenas um candeeiro de rua
tentava quebrar a monotonia da cor da noite.
Despertada pela cor da aurora, a mulher
regressou ao local de sempre onde os seus
cabelos esvoaçantes ganhavam de novo a cor
do vento. De mãos juntas parecia suplicar ao
mar, que agora beijava os seus pés, na
impossibilidade de atender aos seus rogos e
súplicas. Uma rajada de vento trouxe consigo
a cor do choro e a mulher, envolta pelas
lágrimas do mar e pelo choro do vento
desapareceu do quadro revolto que a cena se
transformara. Na areia, a fotografia de um
amor que o mar não devolveu. Estavam juntos
agora, mas a casa perdeu para sempre a cor
da vida e a janela, aquela única janela que
por algumas horas ganhava cor de luz,
permaneceu para sempre apagada, pintada com
a cor que a noite sempre traz.
Δ
Agora conto eu João Cunha Silva
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O título é… esqueci-me –TP- 30/05/2014
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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Sempre fui muito distraído. Ou me esqueço da
luz acesa, ou não me lembro onde deixei as
chaves do carro, ou me esqueço da carteira,
ou… sei lá… agora mesmo esqueci-me do que ia
dizer… está aqui na ponta da língua, mas
parece que se recusa a sair. Agora também já
não importa. Sempre vivi desta forma,
esquecendo-me das coisas, perdendo outras,
encontrando-as depois, principalmente quando
já não preciso delas. «Acontece…», costumava
eu dizer! Pois, o que mais fazer nestas
situações… não se pode mesmo fazer nada e
até conseguia viver assim. Não me incomodava
assim tanto. Obrigava-me a um difícil
exercício mental e a um estado de alerta
permanente, despertadores e alarmes em
duplicado. Mas com meia dúzia de truques na
manga, o dia-a-dia tornava-se suportável e
ninguém se apercebia, a não ser um número
muito reduzido de pessoas muito próximas.
Descia assim a rua como sempre fiz. A chave
do carro no bolso da frente, os óculos mesmo
à frente dos olhos, a carteira no bolso de
trás… e sim tinha apagado a luz antes de sair
de casa, foi necessário confirmar duas
vezes, mas estava apagada. Confirmadíssimo.
Antes que me esqueça do que estava a contar…
ah! Estava a descer a rua sem me ter
esquecido de nada, confiante com tal feito,
que não deve ser considerado menor dadas as
circunstancias. Ia eu entretido no diálogo
com a minha própria memória, quando de
Agora conto eu João Cunha Silva
51
repente sou abordado, por um aparente
estranho.
- Olá, já não te via há muito tempo!
- Pois é… já lá vão alguns anos… desde a
escola secundária.
Sabia quem ele era, mas o nome… estava na
ponta da língua, mas simplesmente se
recusava a sair, mais uma vez! Não querendo
dar uma ideia de fraqueza demonstrando uma
senilidade prematura, disfarcei, a partir
daquele momento com o uso do pronome, que
nestes casos, dá cá um jeito. «Tu isto…tu
aquilo…tu lembraste…» O certo é que a
conversa seguiu, fiquei a saber em género de
CV o seu percurso de vida, desde o momento
em perdemos a convivência diária nos bancos
da escola secundária… mas o nome, nem vê-lo.
Ele falava e eu acenava com a cabeça sempre
numa luta interior para me lembrar do nome
do sujeito. Também não sei se ele se
recordaria do meu, nunca o disse na conversa.
Ele subiu e eu continuei a descer a rua ainda
a pensar no abraço com que nos tínhamos
despedido. Entrei no café e pedi a minha dose
de cafeina diária acompanhada por uma bela
nata. Continuei com o nome dele à porta da
memória, mas relutantemente agarrado à
soleira sem se querer mexer. O líquido quente
despertou-me o cérebro ensonado, como que
iluminando o caminho por onde passava. O
clique final deu-se com o polvilhar da
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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canela. Sentidos todos despertos. «- Ah,
grande camelo!» Seguiu-se uma vã tentativa
de apalpar a carteira no bolso! Aqui, juro
que não sei se me referia a mim, ou ao “zé
mãozinhas” … pois não me lembro… está claro.
O nome veio jorrado cá para fora, assim como
a lembrança de que ninguém tirava a carteira
do bolso dos outros com a classe do Zé, disso
eu devia ter-me lembrado. Sabia agora que
não me tinha esquecido da carteira em casa.
Δ
Agora conto eu João Cunha Silva
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A Abelha Vaidosa –TP- 30/06/2014
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Os leitores mais atentos terão reparado que
a crónica do mês passado não estava
assinada…até correu bem, já o que o título
era “Esqueci-me…” e realmente, há coisas que
nos escapam, mesmo quando temos a
preocupação de tudo controlar. Ilusão! Não
conseguimos controlar tudo e por vezes é
muito bom que assim seja. Para mim é sinal
de humanidade, para outros … uma boa
desculpa. Mesmo assim, aqui fica a minha
explicação.
Nesta minha recente vida de pai e de contador
de histórias, por vezes, é difícil acordar a
imaginação para criar uma história
fresquinha, apetitosa e comestível para uma
criança de olhos brilhantes, que está à
espera, nada menos, do que uma história
genial, capaz de ombrear com as grandes
histórias da literatura infantil. Apesar de
difícil, é uma das tarefas de pai que me dá
mais prazer: adormecer a minha filhota ao
som de uma boa história, inventada no
momento, à vela da narrativa espontânea, com
personagens muito a propósito e com a ouvinte
/ crítica mais sagaz do mundo inteiro e
arredores. Assim nasceu a história que vos
vou contar: a história da “Abelha Vaidosa”,
a história que adormeceu a Maria numa destas
noites de junho. Numa colmeia no meio do
monte vivia uma abelha muito vaidosa. Sempre
que saía para apanhar o pólen das flores,
Agora conto eu João Cunha Silva
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passava sempre pela frente do espelho para
confirmar e melhorar a sua beleza. Todos os
dias repetia a mesma rotina e a cada vez
arranjava uma forma de se tornar, aos seus
olhos, um pouco mais bela: ora encaracolava
os pelos, ora revirava as pestanas, ora
pintava as unhas com feitios diferentes em
cada uma… Aqui fui logo interrompido pela
minha crítica, que mesmo parecendo já estar
para lá do rio do soninho, depressa abriu os
olhos e disse com a maior das certezas: «As
abelhas não têm unhas, papá!» Ultrapassei
este nó narrativo com a desculpa de que tinha
aplicado umas unhas de gel e lá continuei
com a história, pois os olhos voltaram a
fechar em sinal de aceitação… Tal atitude
atrasava as suas tarefas e era sempre a
última a levantar voo. A rainha da colmeia
não se chateava muito com o assunto que já
dava falatório, pois apesar de tudo, mesmo
sendo vaidosa, a abelha cumpria com
distinção a tarefa de recolher o néctar das
melhores flores. Um dia, ao olhar-se ao
espelho, sem já saber o que fazer para
melhorar a sua aparência, a Abelha Vaidosa
decidiu pintar as riscas, que antes eram
amarelas, de vermelho, uma cor que achava
que lhe ficava bem. Olhou, tornou a olhar,
deu uma voltinha e sorriu: o resultado era
positivo, pelo menos no seu entender. A
tarefa de pintar as riscas de vermelho deve
ter demorado mais do que o habitual, pois
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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nem ao longe via as suas companheiras e por
isso levantou voo sozinha para o seu trabalho
diário.
A esta hora já a Maria dormia e por isso a
história terá de continuar na próxima edição
onde iremos descobrir o que aconteceu com a
Abelha Vaidosa. Até já!
Δ
Agora conto eu João Cunha Silva
57
II
Textos publicados no jornal Gaia Semanário (GS)
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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No precipício de uma folha em branco – GS- 14/01/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
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A folha em branco causa-me sempre sentimentos
controversos.
Por um lado há a promessa da ilusão do tudo
possível, da criação de mundos novos, de novas
ideias. No fundo, efervescências em forma de
palavras que se apressam por preencher todos os
espaços que encontram em branco, numa correria
desvairada, sem eira nem beira, à procura de
sentido.
Por outro lado, há o desmaio de nada conseguir
escrever; de encontrar uma porta fechada, por
onde nada entra e nada sai e sem puxador e
fechadura à vista; um frio vazio que congela os
dedos e os impede de escrever; uma longa pausa
que parece eterna.
Mas quando tudo parece perdido, uma pequena luz
se vê no meio daquele vazio e a folha branca é
agora um recreio coberto de neve onde crianças,
às gargalhadas, atiram bolas e de costas
deitadas, desenham anjos no chão, abrindo e
fechando os braços e as pernas. As palavras,
caem como flocos e amontoam-se em bonecos de
neve ou em iglôs improvisados.
Mas aqui, nesta terra de pés molhados pelo rio,
não há neve, e de olhos presos na minha folha
em branco, fico de novo parado perante o abismo
de nada conseguir escrever. De novo o frio do
vazio, tanto frio que a folha encharcada pela
neve derretida se transforma numa pista de gelo.
Mais possibilidades a surgir à frente dos meus
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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olhos e, de súbito, as palavras de mãos dadas
com uma bailarina de cabelo imaculadamente
penteado fazem piruetas, rodopios, saltos
acrobáticos e aterragens destemidas ao som de
uma música que parece seguir todos os seus
movimentos. Escrevo nesse ritmo frenético,
tentando acompanhar a música, enquanto a minha
bailarina de patins, voando sobre a minha folha
feita pista, faz um levantamento e ergue as
minhas palavras enquanto rodopia sobre o seu
próprio corpo. A música acaba. A bailarina
curva-se para receber o aplauso e as minhas
palavras ficam marcadas na folha pelas lâminas
dos seus patins. Sai a bailarina e saio eu de
cena. A minha presença já não é necessária,
agora que as palavras se recusam a sair da folha
e parecem acomodar-se aos lugares que lhe
destinei. Polvilhadas ao sabor do vento ou
cortadas pelas lâminas dos patins da bailarina,
foram ocupando o seu lugar de forma ordeira:
letra a letra; palavra a palavra; frase a frase;
linha a linha. Como lenha amontoada pronta a
ser queimada numa noite fria de inverno.
Para que servirão as palavras que preenchem uma
folha em branco, se não for para nos aquecer?
Fica a promessa que este espaço nunca ficará em
branco a partir de agora. Será sempre preenchido
pelas minhas palavras, palavras escolhidas por
mim ou palavras que me escolham a mim, tanto
faz. Podem ser contos, crónicas ou mesmo
palavras de urgência que o momento não consegue
calar. Fica também a promessa que serão sempre
Agora conto eu João Cunha Silva
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palavras livres, sem algemas ou prisões, porque
as palavras são a nossa liberdade e a liberdade
só é verdadeira, se existir a possibilidade de
as colocar numa folha em branco, de acordo com
a nossa vontade e engenho.
Je suis Charlie!
Δ
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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Voando numa semente de um dente-de-leão – GS- 28/01/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
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O vento ainda era frio, mas, às escondidas, a
natureza já se espreguiçava num longo acordar.
Por todo lado o ar trazia já a azáfama da
bicharada: formigas encarreiradas carregando
mundos; abelhas namoriscando todas as flores
que encontravam, competindo com borboletas
floridas pelo melhor lugar; lagartixas
espraiando nos ainda fracos raios de sol;
escaravelhos de todas as cores e feitios correm
apressados de um lado para o outro…
Com este acordar cíclico, mas no entanto sempre
surpreendente, chegam também as cores do que
outrora tinha sido monótono e sombrio; chega
também o riso das crianças. É hora de ir brincar
lá para fora, depois de dias de uma aparente
hibernação.
Como ela gostava daqueles dias de sol à tardinha
e de percorrer com as mãos as pontas ainda
húmidas das ervas. De repente parou. Acho que
viu alguma coisa especial: algum bicho para qual
olha com especial atenção? Ou uma flor que terá
aprisionado o seu olfato? Já sei o que foi! Vejo
agora que segura uma semente de dente-de-leão,
na mão. Ela sabe que não faz mal arrancar «Estou
a ajudar a natureza!», diz ela, como se fosse
uma entendida nestas questões da biologia. O
facto é que estava mesmo a ajudar, pois estava
a substituir o seu amigo vento e dar-lhe uma
ajudinha.
Sem perder muito tempo e de dente-de-leão na
mão, fechou os olhos e soprou com força. É assim
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que se pedem os desejos: fecha-se os olhos e
guarda-se todos os nossos sonhos nos nossos
pulmões. Por breves momentos tudo fica suspenso
à nossa volta e até a natureza parece querer
esperar, curiosa por saber o que vai dentro de
nós. Depois tudo acelera e à medida que
libertamos o ar aprisionado nos pulmões, vamos
projetando naquela semente de flor todas as
nossas expetativas e sonhos. Abrimos os olhos e
esperamos que a realidade à nossa volta esteja
diferente, como se uma pequena semente de dente-
de-leão fosse capaz de fazer o que muitas vezes
nós não conseguimos ou não temos coragem. Mas
nem por isso deixamos de soprar: é isso que nos
torna humanos, ou seja, a nossa capacidade de
sonhar.
E ela sabia disso. Com o seu sonho preparado,
soprou como sempre soprava e deixou-se levar
pela sua imaginação. Consigo ver pelo seu rosto
que ela vai à boleia do seu sonho, agarrando-
se a uma das sementes de dente-de-leão. Deixou-
se arrastar pelo seu amigo vento, sem querer a
responsabilidade de escolher o seu caminho.
Ainda era cedo: primeiro é preciso sonhar,
construir castelos impossíveis, brincadeiras
tontas e dizer coisas sem sentido. Só depois
disso, muito depois disso é que é preciso
acordar para perseguir os nossos sonhos.
Ainda era tempo de sonhar para ela: sentia-se
bem, sentia-se leve, sem peso, a confiar em quem
a levava pela mão, a confiar na natureza e no
seu amigo vento. De olhos fechados, sobrevoou
Agora conto eu João Cunha Silva
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os campos, ainda verdes por ainda não terem sido
beijados de forma intensa pelo sol; sobrevoou
pelas copas das árvores ainda a recuperar as
cores, que se encontravam povoadas pelo
chilrear de pequenos pardais que por ali
namoriscavam; sobrevoou pelo rio e passou
levemente a mão pelas suas águas frescas, como
se quisesse fazer desenhos na sua superfície.
Depois abriu os olhos, e aqueles breves
segundos, duraram horas. Horas felizes com toda
a certeza.
Não sei ao certo com o que sonhava, apenas
posso imaginar o significado daquele sorriso
enquanto soprava a semente de dente-de-leão.
Diz o poeta que o sonho comanda a vida. Quero
acreditar que sim, mas para mim já acho
suficiente que a torne suportável.
Δ
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A moda das fábulas: O burro e o lobo – GS- 11/02/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
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Decidi que também vou fazer uma fábula: primeiro
tenho de arranjar uma animal que fale, pode
mesmo ser um burro. Sim, nada melhor do que um
burro bem-falante; de seguida tenho de arranjar
alguém que sirva para mau da fita; bem, desta o
lobo não se livra, e que seja mau, muito mau,
já que hoje em dia, faz muita falta um lobo mau,
para nos assustar de vez em quando e nos obrigar
a levantar do sofá e correr um bocadinho. Falta-
me só escolher uma moral, sim porque as fábulas,
vêm sempre acompanhadas por uma indispensável
moral, para nos ensinar alguma coisinha. A moral
mais apropriada neste momento é a fábula do bom
aluno.
Agora, com todos os ingredientes selecionados,
pomos tudo dentro de uma daquelas máquinas que
cozinham sozinhas, programamos o tempo
necessário e aqui está, uma fábula quentinha,
pronta a servir.
Conta-se por aí que em certo país, lá para os
lados das arábias, existia um burro falante que
andava há muitos anos na escola. Este burro,
por ouvir sempre a mesma coisa, parecia ser
muito bom aluno, uma vez que já sabia as
respostas todas. Nunca quis mudar de classe,
pois assim era sempre o melhor, mesmo que depois
de tantos anos, apenas conseguisse as suas notas
a copiar e a roubar os trabalhos dos outros. À
frente do professor, fazia-se sempre de bem
comportado e fazia sempre o que ele mandava.
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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Para mostrar serviço, acusava injustamente os
colegas para que estes ficassem de castigo e
lembrava o professor, quando este se esquecia
de marcar os trabalhos de casa, ou de os
corrigir. Isto para tristeza e muita raiva de
todos os outros animais da sua turma. Como estes
eram muito mais novos e tinham medo, nada
diziam. O burro era o rei daquele pequeno mundo.
Um dia chegou à escola um aluno novo, radical,
de óculos escuros e sorriso brilhante e com a
adequada cara de mau. Sentou-se lá no fundo da
sala. Alguns ficaram com medo, mas todos ficaram
admirados com a figuraça que o lobo fazia. E as
suas palavras… fantásticas e sem medo de
questionar o professor e as ideias copiadas do
burro, que parecia mandar por ali. As coisas
que dizia faziam sentido, e ele sabia mesmo do
que estava a falar. Aos poucos, o professor, já
um pouco farto da conversa burra do burro, ou
talvez até um pouco amedrontado, começou a dar
mais atenção às palavras e ideias novas do lobo
e as suas respostas começaram a ser as mais
apreciadas e elogiadas.
Ora o burro, não gostou de deixar de ser o
centro das atenções, e quando viu que o
professor até parecia querer ouvir as palavras
daquele intruso, começou a zurrar como só os
burros sabem, e à falta de argumentos válidos,
começou a dizer: “Mas ele é o lobo mau, não
estão a ver! Ele é o lobo mau e vai comer-nos a
todos.”
Agora conto eu João Cunha Silva
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Todos se riram, até mesmo o professor, pois via
agora a verdadeira natureza do burro. O lobo
afinal não era mau, só dava, aqui e ali, uma
merecida rosnadela ao burro, para o pôr no
devido lugar ou quando ele tentava copiar.
Agora, chegou a hora de tirarmos as corretas
conclusões e a devida moral da história (isto
para evitar extrapolações para o atual contexto
político internacional): O burro, com o lobo
por perto, estudou mesmo e aprendeu a lição, e
nós aprendemos que as aparências iludem e que
para ser mau não é preciso ser lobo, basta ser
mau.
Δ
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A conspiração dos astros – GS- 25/02/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
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Um frio que não chegava a ser incomodativo
batia-me no rosto, despertando, um a um, todos
os meus sentidos, como se desejasse preparar-
me para o que viria a suceder. O ar estava leve
e limpo e a Lua, mostrando-se ainda a medo,
deixava já antever a forma sombreada de todo o
seu perímetro e futuro esplendor. Logo por baixo
dela, à distância precisa de dois polegares,
dois astros capturaram a minha atenção. Pela
sua trajetória e tipo de brilho, percebi que
eram certamente planetas. Um mais brilhante e
vibrante; o outro um pouco mais sóbrio e
expectante. A sua posição pouco usual parecia
querer dizer-me alguma coisa e o meu olhar nunca
mais se desviou daqueles pontos da tela celeste
e passou a acompanhar o seu desaparecimento na
linha de arvoredo, que no meu caso antecipa a
linha do horizonte. Os fenómenos celestes
costumam aprisionar a minha atenção, mas por
norma, surgem sempre antecipados por grandes
notícias ou pesquisas fortuitas na internet.
Neste caso, nada disso… apenas olhei na altura
certa e no lugar certo e nunca mais fiquei
indiferente. Sei identificar os astros e
constelações no desenho do céu. Mesmo assim,
não sabia ao certo que planetas seriam e por
isso, qual astrónomo de trazer por casa, recorri
preguiçosamente a uma aplicação no telemóvel e
apontei para aqueles dois pontos brilhantes,
situados dois polegares abaixo da Lua. Marte e
Vénus! Tornei a confirmar… eram mesmo os dois
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
72
planetas, eternos amantes. Não consegui
disfarçar o meu entusiasmo e surpresa, pois a
ligação entre estes dois astros não é vazia de
significado para os mais atentos. Senti, por
isso, que os astros conspiravam para me dizer
alguma coisa.
Naqueles minutos em que fiquei a observar aquele
bailado de amantes arrebatados, viajei até
junto deles e sentei-me a recordar as suas
histórias. Lembrei-me das vezes que me cruzei
com os seus nomes ao longo da minha vida;
lembrei-me como fazem parte do imaginário de
todas as verdadeiras histórias de amor;
lembrei-me dos poemas e dos textos que lhes
foram dedicados; lembrei-me do carinho que,
segundo Camões, tinham por todos os portugueses
e venturosos; lembrei-me do seu filho Cupido e
das datas em que no calendário comemoramos o
AMOR e vi que este encontro, afinal, não tinha
sido por acaso.
Agora, estavam ali tão perto de mim. Percebi
que eu próprio fazia parte do universo presente
e passado, pois partilhava o mesmo ar de todos
os outros que, ao longo dos séculos, observaram
o mesmo céu e se sentiram inspirados para criar
os seus poemas, histórias e narrativas. Ao ver
a dança apaixonada destes dois eternos amantes,
iluminados apenas pela Lua, como sempre deveria
ser, sorri maravilhado ao pensar que tinham
escolhido o meu horizonte para se encontrarem
por aqueles breves momentos. Tive aí a certeza
que conspiravam em meu favor.
Agora conto eu João Cunha Silva
73
Para mim, à imagem de Sophia enquanto olhava o
mar e as coisas simples, isto é motivo de
maravilhamento, de poesia e de inspiração. Sei,
no entanto, que para aqueles dotados de um
cinismo científico, nada disto é mais do que o
aproximar aparente de dois planetas desprovidos
de vida, ou para aqueles dotados de um perigoso
desinteresse geral, isto não deixa de ser uma
mão cheia de nada. No entanto, são estes dois
“amantes” e nossos vizinhos imediatos nas
viagens à volta do sol, que permitem a
existência de condições para haver vida no nosso
planeta.
Marte e Vénus não conspiraram apenas para o
sucesso dos portugueses na descoberta do
caminho marítimo para a Índia, eles conspiraram
para que toda a vida no planeta Terra
encontrasse o seu caminho.
Δ
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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em verso com alguma rima! – GS- 26/03/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
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-Que palavras traz hoje?
-Trago das frescas e das boas…
saídas agora do mar!
saltitam e soltam escamas,
que se espalham pelo ar!
Trazem o brilho do sol nascente
e o aroma da flor de sal
vindas deste nosso mar,
desta língua sem igual.
Eu próprio as pesquei
Neste mar português imenso
O papel, a minha rede,
Que apanha tudo o que penso.
Não as trouxe todas comigo:
as que queria, escolhi,
as outras são para outras pescas
e ao mar as devolvi.
O destino as levará
A outra mão e a outra rede
E por certo serão remédio
A outra fome e a outra sede.
As que trouxe dão bom petisco
Numa esplanada à beira mar.
Lidas num verso curto
Soltas, livres no ar.
Se as preferir numa prosa,
Para uma refeição elaborada,
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
76
Acompanhe-as de uma boa história,
Para uma leitura demorada.
É só a “menina” escolher
O uso que lhes quer dar
As palavras, são sempre boas
Desde que saibam a mar!
Δ
Agora conto eu João Cunha Silva
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O gafanhoto Antunes – GS- 08/04/2015
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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Vá lá baixem-se um bocadinho, afastem-se das
estradas e da confusão, desliguem o rádio e a
televisão. Escolham um pedacinho de terra, ou
mesmo um pinhal e sentem-se mesmo no chão, o
Parque do Castelo pode até ser uma boa solução.
Agora que estão preparados encostem o ouvido à
terra e escutem com muita atenção, pois esta
pequena história é passada mesmo no chão, com
animais pequeninos que merecem atenção.
Conta-se por aí que num campo de trigo muito
longe do barulho dos automóveis e da poluição
das cidades, vivia um pequeno gafanhoto com a
mania que era atleta.
Andava sempre aos saltinhos por todo lado que
ia, para preocupação da sua mãe que sempre lhe
dizia:
“Antunes não andes aos saltos que podes mesmo
cair!”
Mas o rapaz lá das alturas, já não ouvia, ou cá
para mim fingia. Continuava a saltar sem nunca
mais parar e cada vez melhor, até que um dia
lhe disseram:
”Ó Antunes! Com tanta saltaria mais valia ires
à olimpíada!”
O que foram dizer ao rapaz! A partir daquele
dia, o fato de atleta sempre vestia. Que alegria
era ver o gafanhoto Antunes a saltar quanto
podia, para ganhar a saltaria, ou melhor a
olimpíada. Todos no campo de trigo o apoiavam e
agora até a sua mãe o incentivava, mesmo que às
escondidas pusesse as mãos na cabeça com tanta
preocupação e acendesse uma velinha para não
lhe faltar proteção. Treinou, treinou, treinou
até que o grande dia chegou e sem surpresa para
Agora conto eu João Cunha Silva
79
mim, foi ultrapassando eliminatórias até chegar
ao grande fim.
No final ficaram só três para ganhar o troféu:
Antunes, o nosso herói; a rã Kika e a pulga
Rita. Os três mestres no salto, que passavam a
vida a saltar, mas qual destes amigos irá afinal
ganhar?
Começou a pulga Rita que não parava de se coçar,
apesar do seu grande salto, decerto não dava
para ganhar. De seguida saltou a Kika, vinda do
Lago dos Pardais, que depois de ver a pulga,
pensou que podia saltar muito mais. Um salto
bem sucedido levou a Kika para primeiro,
deixando o nosso Antunes nervoso para o salto
derradeiro. Com aplausos de incentivo o
gafanhoto preparou o seu salto, e se queria
ganhar teria de saltar muito mais longe e muito
mais alto. Respirou fundo e os olhos fechou e
quando deu conta já ia no ar. Saltou tão alto e
tão longe que nem queria acreditar, mas
esqueceu-se que quem voa, tem sempre de saber
aterrar.
Estatelou-se no chão e sentiu-se mesmo um pouco
dorido. Levantou-se triste e desiludido e
pensou que tudo tinha perdido, mas quando o
aplaudiram viu que afinal tinha conseguido!
“Antunes, o gafanhoto campeão” diziam no dia
seguinte os jornais e ele todo contente
comemorou no seu campo de trigo, junto dos seus
amigos e pais!
Δ
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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Qual o peso das palavras? – GS- 22/04/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
81
Será que as palavras têm peso, cor ou sabor?
Existirá uma qualquer balança que avalie ao
pormenor as gramas de certos vocábulos? Sabemos
que abraçamos e nos deixamos acariciar por
certas palavras, por nos parecerem leves, doces
e amigáveis. Por outro lado, há palavras que
nos põem carrancudos, maldispostos e que nos
causam repulsa por serem pesadas, carregadas de
ondas negativas e que parecem carregar um aroma
um tanto ou quanto acre. No entanto, quer umas,
quer outras, não deixam de ser aglomerados de
letras com sons associados, às quais atribuímos
significado e atiramos uns aos outros como
beijos, ou como pedras. Há também aquelas que,
disfarçadas, nos enganam, e parecem ser uma
coisa e afinal quando nos batem, são outra. Ao
longe parecem beijos, mas acertam-nos como
calhaus pontiagudos.
Confesso que me perdi com estas deambulações e
antes que avancem para outros lados da página,
para uma publicidade colorida, ou mesmo uma
figura agradável para lá das páginas deste
jornal, façam apenas o exercício que vos peço
com a palavra “humano” usada como adjetivo.
À primeira vista, quando vos qualificarem com
esta palavra será fácil identificar se é beijo
ou pedra. Mas será mesmo assim tão fácil? Será
que o que conhecemos desta palavra, com todo o
seu historial, torna aprazível e não insultuoso
ser caracterizado de “humano”?
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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Vejamos com mais atenção: quando usamos a
palavra “humano” para nos referirmos às
qualidades das pessoas, queremos dizer que a
pessoa é bondosa, que gosta de fazer o bem e
que é sensível ao mal alheio. Se quisermos ir
um pouco mais longe na definição, podemos dar a
resposta pronta que “humano” é um ser racional
e que se opõe à palavra “animal” que designa um
ser irracional, bruto, estúpido e grosseiro.
Até há pouco tempo senti-me bem com esta
distinção e para ser muito sincero nunca tinha
pensado muito nisso. Usava as palavras da forma
habitual, sem me aperceber que poderia a estar
a cometer um erro quando dava um elogio «Tiveste
um gesto muito humano hoje!»; ou quando no meio
do trânsito dizia a barafustar «Que grande
animal!». É o que dá não pensar muito no peso
das palavras. Por vezes temos de nos afastar e
olhá-las com estranheza, como se as olhássemos
pela primeira vez, ou como se tivéssemos de as
colocar numa entrada nova no dicionário.
Convido-vos a fazer esse mesmo exercício,
usando as características predominantes daquele
que se assume como “humano”. A mim, deu-me isto:
Humano – (adj. Sing.) caracteriza aquele que
tudo mata e destrói; aquele capaz de extinguir
ecossistemas e provocar genocídios;
característica de um ser dotado de
comportamentos irracionais e maldosos;
característica do ser capaz de provocar o caos,
o pânico e a morte de outros seres,
encurralando-os entre muros reais e legais,
Agora conto eu João Cunha Silva
83
fronteiras, escarpas e mares; característica do
ser capaz de assistir a todos os pontos
anteriores com indiferença.
Sei que a definição que escrevi apresenta um
lado negativo e parcelar da palavra e da
realidade que descreve. Concordo! Mas a
definição que todos conhecemos e tomamos como
válida também o é. E cá para mim, estando apenas
um pouco atentos à realidade que nos rodeia,
temo que a minha definição sirva melhor o
propósito de a descrever.
As palavras têm assim pesos, cheiros e cores.
Não são é sempre os mesmos e não flutuam em
direção ao que seria desejável. Há palavras que
descrevem realidades ideais e que o passar dos
dias tornou pesadas e vinagrentas, capazes até
de nos causar reações muito “humanas” (à luz da
minha definição) de repulsa e de resposta
violenta.
Por isso, da próxima vez que alguém me disser
que eu sou muito “humano”, não espere que sorria
e agradeça. Não gosto de ser insultado.
Δ
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O que me faz feliz! O meu guia da felicidade! – GS- 06/05/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
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Todos procuramos a felicidade, no entanto
parece que ainda não há um guia para a
encontrar. Corrijo. Há por aí muitos guias que
detalhadamente descrevem o caminho para a
felicidade, com promessas de dias de sorriso
aberto. Basta comprar aquele guia, fazer tudo
como está descrito, na dose certa e zás, trás,
catrapás. Às três pancadas, passamos de uma vida
triste e cabisbaixa, para uma radiosa
felicidade, capaz de iluminar a mais escura das
noites. Tretas! A mais pura das tretas! A
felicidade não se avia como uma receita e por
muito que fosse mais fácil, não podemos obrigar
ninguém a ser feliz. «– Toma lá, agora sê
feliz!». Ninguém é feliz da mesma forma que o
vizinho do lado, ninguém é feliz fazendo as
mesmas coisas e da mesma maneira que os outros
fazem. Por isso, o que há que fazer é
conhecermos a nossa felicidade. Olhar para o
espelho e perguntar: «Tu…sim…tu aí! Afinal, o
que é que te faz feliz?» Não esperem resposta
do espelho, a voz terá de ser a vossa, e a vossa
resposta é única, inimitável e impossível de
copiar. Mesmo que por vezes se tratem das mesmas
coisas, nunca será do mesmo modo e por isso não
será exatamente a mesma coisa. Apesar de a
felicidade ser um conceito universal, já que
toda a gente quer ser feliz (salvo alguém que
sofra de uma qualquer patologia),
encontraríamos, por certo, inúmeras definições
para a explicar.
Seguindo o meu próprio conselho, usei aqueles
guias de felicidade como pisa-papéis ou como
niveladores de mobília, ou mesmo como arma de
defesa pessoal, no caso dos guias mais volumosos
e comecei o meu próprio método de autoajuda para
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86
a felicidade. Sentei-me de lápis na mão e
iniciei a minha lista de dez coisas que
realmente me fazem feliz. Depois de elaborar a
lista, é tempo de a escrever com letras gordas
e afixá-la num sítio da casa que seja impossível
de não ver ao iniciar um novo dia. No meu caso,
no espelho onde confirmo diariamente o avanço
das minhas entradas herdadas geneticamente. A
receita (ah, afinal sempre há uma receita, ouço
uma vozinha irritante a dizer ao fundo, mas que
não passa da minha imaginação, é claro!) passa
por procurar fazer todos os dias essas dez
coisas que constam da lista. Se me faz feliz,
por que motivo, não o faço todos os dias! Assim,
nas restantes linhas deste texto, vou escrever
as dez coisas que me fazem feliz. Alerto uma
vez mais que são as minhas dez coisas e não são
copiáveis e no caso de uma transferência direta,
não me responsabilizo pelos efeitos que possam
causar.
Para o bem de todos, cada um que faça a
sua. Tenho a certeza que pensarão em coisas
muito mais interessantes do que as minhas. Aqui
vai:
1. Abraçar a minha família e dar-lhes
muitos beijinhos logo pela manhã;
2. Dizer «Bom dia!» a toda a gente;
3. Almoçar com os meus pais;
4. Tomar café e não pensar em nada durante aqueles breves segundos em que mexo o
açúcar;
Agora conto eu João Cunha Silva
87
5. Ficar em silêncio a observar as coisas (o mar, o rio, as árvores, as formigas, os
pássaros, as estrelas…);
6. Escrever de noite;
7. Ver os outros felizes com alguma coisa que eu faço;
8. Inventar histórias para a filhota
adormecer;
9. Sonhar com coisas impossíveis;
10. Lembrar-me dos meus avós.
Esta é a minha lista. Nem todos os dias a
cumpro, e por isso mesmo são dias menos felizes.
Desafio-vos a fazer a vossa lista e a
experimentar. Para ser feliz, é preciso
procurar ser feliz!
Δ
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As cores verdadeiras – GS- 27/05/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
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Seria bom virmos dotados de um dispositivo que
mostrasse as nossas verdadeiras cores. Acho que
se tivéssemos de apostar numa melhoria enquanto
capacidade especial, este seria por certo um
dos “upgrades” a fazer no nosso código genético.
Assim, munidos de um qualquer aparelho em forma
de prisma, ser-nos-ia mostrada a decomposição
da luz nas suas cores e a partir daí saberíamos
de que elementos os outros seriam feitos. No
fundo, tratar-se-ia de replicar o que já se faz
na astrofísica na descoberta de novos mundos e
corpos celestes, em que a partir da análise de
um código de cores, é possível identificar os
elementos existentes nesses locais a milhões de
anos-luz. Neste caso, pouco me interessaria
saber os componentes da tabela periódica de que
somos compostos. Acredito mesmo que pouca
diferença haveria entre uns e outros: somos
feitos da mesma massa. O que seria interessante,
neste possível “upgrade”, seria que nos fosse
revelado as verdadeiras cores das pessoas que
encontramos, ou seja, as suas qualidades
enquanto “humanos”. Seria certamente mais fácil
não ser enganado, desiludido, ou mesmo
violentamente surpreendido.
Confesso que a escrita deste texto iniciou antes
mesmo dos acontecimentos da semana passada. No
entanto, esses mesmos acontecimentos revelam a
extrema necessidade de não nos deixarmos levar
pelas aparências exteriores. Todos já sabemos
isso; é aliás uma daquelas frases que ouvimos
como certas desde pequenos, mas de uma forma ou
No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |
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de outra, só nos apercebemos da sua verdadeira
validade, na altura em que nos enganamos em
relação a alguém.
No meio dos meus naturais festejos de sofá,
mostrando a quem me é próximo o que eu entendo
ser a natural alegria da vitória, um vídeo
assombra-me de tal forma que me causa um
sobressalto. Hoje é discussão geral e foi tema
de noticiários. Na hora não tive dúvidas da
importância daquelas imagens e do que revelava
do caráter “humano”: quer do fardado que agride;
quer do fardado que abraça e tenta acalmar a
criança. De seguida, inexplicavelmente, no meio
de festejos, uma “intifada”, digna de uma
qualquer guerra civil ou revolta popular. Claro
que não fiquei bem… não podia. Para mim, o
futebol deve ser alegria e festa, e não uma
propagação de ódios e de frustrações pessoais.
Passada a surpresa e a tristeza, lembrei-me de
novo do início do meu texto e da utilidade do
dispositivo descrito ou da necessária melhoria
genética. É que se o tivéssemos, seria possível
ver para além das fardas e para além da cor das
camisolas. Aquele polícia, sobre o qual só
preciso de saber a data da sua expulsão, seria
visto automaticamente como um barril de pólvora
e por isso colocado no devido lugar, dentro de
um quarto acolchoado ou noutro sítio qualquer
onde pudesse usar o bastão sem incomodar
ninguém. Ao verem as suas verdadeiras cores,
nunca estaria num lugar de comando, nunca usaria
uma farda que tem como missão “assegurar a
Agora conto eu João Cunha Silva
91
legalidade democrática, garantir a segurança
interna e os direitos dos cidadãos”. Mas nada
de confundir uma árvore com a floresta: quase
no mesmo frame televisivo, entre o desespero e
pânico da criança que me causou um aperto na
garganta, consegui ver a verdadeira humanidade
do outro agente, muito provavelmente abaixo na
hierarquia das divisas, mas muito acima na sua
capacidade de ser gente. À primeira vista, as
mesmas cores da farda, mas com aquele tal
dispositivo ou melhoria genética, seria fácil
escolher a quem pedir ajuda se tivesse a minha
filha pela mão. E os outros? Usando a mesma
camisola encarnada, que deveria significar
orgulho, respeito e alegria pela vitória. Eram
todos iguais? Claro que não eram! Uns eram
criminosos, arruaceiros e bestas e isso há de
todas as cores. É preciso ver a verdadeira cor
das pessoas, já que a que usam no exterior nada
diz da sua qualidade. Cientistas, toca a
trabalhar!
Δ
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A rosa vaidosa e a visita inesperada. – GS- 13/06/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
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Conta-se por ai que em certo jardim lá para os
lados do Marão, vivia uma rosa muito bonita e
cheirosa, mas terrivelmente vaidosa.
Para esta rosa, era importante ser a flor mais
bonita, esmerada e organizada do jardim. Era
uma questão de honra! Só assim se percebia a
sua mania das limpezas. Passava os dias a
reclamar com a bicharada que pousava nas suas
pétalas, pois vinham carregados de pólen e
sujavam tudo, deixando-a sempre maldisposta e
carrancuda.
Entravam sem limpar as patinhas, «Que mal-
educados!» Pensava em voz alta a rosa vaidosa,
sem se importar que a ouvissem. Ficava mesmo
irritada! É que quando falamos de insetos, temos
de nos lembrar que são logo três pares de patas,
seis ao todo, a deixar pegadas de pó amarelado
por todo lado.
Era todo o dia a mesma coisa: mal acabava de
varrer, lá vinha uma abelha ou um zangão ou
mesmo uma borboleta armada em modelo a sujar-
lhe a arrumação. Sempre de vassoura na mão, sem
aspirador que lhe valesse, a rosa apressava-se
por ficar mais brilhante do que as gotas de
orvalho, que de manhã caiam das suas folhas.
À sua volta, consta que acontecia o mesmo às
suas vizinhas, mas estas, mais relaxadas, até
gostavam de toda aquela animação e recebiam de
sorriso aberto todos os hóspedes temporários,
por muitos desastrados que fossem.
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Um dia, farta de tanto limpar, e irritada com o
constante descuido dos seus visitantes,
resolveu escrever um letreiro com a frase
“Proibida a entrada a insetos e a animais
similares”. A frase não deixava dúvidas, ela
não queria visitantes, muito menos visitantes
de patas empoeiradas.
Pela primeira vez sentou-se descansada a olhar-
se ao espelho, apreciando de todos os ângulos
as suas pétalas, caule e folhas. Era realmente
uma rosa bonita, cheirosa e agora sem pó. Ao
olhar-se ao espelho, julgava-se mesmo a rosa
mais bonita daquele jardim, plantado lá para os
altos do Marão.
Sem nunca perceber os efeitos da polinização,
não ficou de imediato alarmada quando viu as
suas pétalas perderem a cor ou quando viu cair
algumas das suas folhas, outrora muito verdes e
seguras. Ao seu lado, todas as outras rosas se
mantinham viçosas e vistosas e com grande
atividade social, tanto quanto uma rosa pode
desejar.
Todo o jardim se mostrava sorridente, com flores
coloridas e bem-dispostas, borboletas e abelhas
a voar por todo o lado, oferecendo aos mais
atentos uma composição de zumbidos, escrita em
lá menor.
Uma dessas abelhas, um pouco míope e
habitualmente desastrada, acabou por não ler o
letreiro que estava na entrada da rosa e aterrou
aos trambolhões numa das suas pétalas, deixando
Agora conto eu João Cunha Silva
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a rosa aparentemente furiosa com toda aquela
confusão. «Não sabes ler!», disse-lhe de modo
pouco simpático.
No entanto, apesar da rispidez da sua resposta,
a rosa vaidosa não deixou de apreciar aquela
entrada imprevista. A verdade é que tinham sido
dias de tédio a conversar sozinha com o seu
espelho e a admirar a limpeza e organização das
suas pétalas, que de dia para dia pareciam menos
brilhantes e saudáveis.
A abelha Augusta pediu desculpa pela
intromissão, e quando se preparava para voar
para outra flor, logo a rosa, visivelmente mais
satisfeita, a convidou para um chá.
Passaram horas a conversar e as cores voltaram
de imediato à flor, conta quem viu. Agora à sua
porta havia já outro letreiro: “A entrada a
insetos e a animais similares é muito bem-
vinda!”
Δ
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O primeiro dia de aulas – GS- 30/07/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
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Parece contraditório falar do primeiro dia de
aulas em plenas férias, mas tenho os meus
motivos. Ele há dia mais especial do que este?
Quase todos os anos o revejo nos rostos e
olhares da pequenada. No entanto, este ano vai
ser especial: o friozinho na barriga vai ser a
dobrar. Alerto que a memória deste dia foi
certamente alterada pelo tempo e pela vontade
racional de tudo bater certo e estar articulado
num texto com princípio, meio e fim.
Era manhãzinha cedo e entramos na sala com olhos
brilhantes, ainda que ligeiramente assustados.
Envergonhados e um pouco sem jeito, sentamo-nos
pouco a pouco, seguindo as indicações da
professora, que parecia tão grande, enorme. Tão
grande como as cadeiras onde nos sentávamos,
que deixavam os nossos pés lá fora no recreio,
ainda a brincar no baloiço. A voz da professora
ouvia-se em todo lado, parecia que trovejava e
por vezes até pareciam sair faíscas.
Assustados, todos nos encolhemos, olhando para
baixo enquanto alguns rodopiavam com os pés.
Estávamos juntos pela primeira vez! Era mesmo
um grande dia.
Sentados dois a dois por ordem alfabética,
enfrentamos pela primeira vez o desafio de
termos um estranho ao nosso lado, a respirar
mesmo à nossa beirinha e a partilhar o nosso
espaço. Um olhar ou outro trocado, uns sorrisos
escondidos, mas sem muita coragem de nos
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olharmos diretamente, não vá estarmos a fazer
alguma coisa de errado.
Um barulho fora do comum ouve-se do exterior,
como se arrastassem muitas cadeiras ao mesmo
tempo, mesmo por cima de nós. De forma
automática, virámos todos a cabeça lá para fora.
De pescoço esticado, como se de um filme se
tratasse, conseguimos ver aparecer na janela da
sala um Caterpiller gigante, ou no nosso dizer
uma catrapilha. Era de um amarelo muito vivo
que contrastava com o cinzento dos paralelos da
rua, e parou mesmo em frente da janela da nossa
sala com os seus braços mágicos a subir e a
descer.
Alvoroço! Agitação total e pela primeira vez,
todos soltamos completamente a respiração, sem
medo de sermos ouvidos. Levantamo-nos uns atrás
dos outros de forma espontânea para espreitar à
janela, e como alguns ainda eram muito pequenos,
trataram mesmo de subir para cima das mesas, na
procura do melhor lugar para ver aquela máquina
de sonho.
Mas já estávamos na escola, e na escola parecia
que já não havia lugar para sonhar ou agir de
forma verdadeira, nem saltar quando vemos
alguma coisa entusiasmante. Era preciso manter
a ordem e à ordem de trovão da professora, todos
corremos aflitos para o lugar. Foi aí que vi o
meu companheiro de carteira verdadeiramente
pela primeira vez. Quis o destino e o nome que
Agora conto eu João Cunha Silva
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ele se sentasse ao meu lado e a partir daí se
tenha tornado no meu melhor amigo.
Δ
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Ensaio sobre o absurdo! – GS- 27/8/2015
Agora conto eu João Cunha Silva
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Uma das piores coisas que nos pode acontecer é
imaginarmos uma situação absurda, (ou nem
sequer a conseguir imaginar, de tão absurda), e
passado algum tempo sermos confrontados com
essa mesma realidade. Não há nada pior para o
nosso ego! Por um lado revela que a nossa
imaginação é muito limitada, e que os nossos
horizontes são de alguma forma curtos; por outro
lado revela que não estamos bem enquadrados com
o mundo em que vivemos e que há toda outra
realidade que nos ultrapassa e o que nos parece
absurdo, afinal não é assim tanto.
São vários exemplos de absurdidades que me
lembro para ilustrar esta situação. Se
perguntassem a qualquer contemporâneo da
segunda Grande Guerra que 6 000 000 (seis
milhões) de pessoas seriam mortas de forma
industrializada, todos achariam absurdo; no
entanto aconteceu; pela mesma altura se
perguntassem às mesmas pessoas se algum dia
seriam lançadas bombas que destruíssem cidades
inteiras de uma só vez, todos achariam absurdo.
Mesmo que fosse tecnicamente possível, isso
nunca seria feito; no entanto faz este mês 70
anos que as bombas “Little Boy” e “Fat Man”
arrasaram as cidades japonesas de Hiroshima e
Nagasaki. O absurdo novamente aconteceu.
E não faltam mais exemplos e nem será necessário
ir a grandes enciclopédias e a manuais de
história, (se bem que isso não faça mal nenhum).
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Basta abrir os jornais diários para vermos
testados os nossos limites de absurdidade. Há
dez anos (isto para ser cuidadoso com os espaços
temporais) alguém imaginaria que um ex-
Primeiro-Ministro estivesse preso, isto sem
recorrer à piada fácil e à vox populi que
normalmente qualifica os políticos. Nem aqueles
que o queriam muito, com ou sem razão,
acreditavam mesmo que isso fosse possível. Era
absurdo? Era, mas mais uma vez aconteceu. E
sobre o BES a mesma coisa. O absurdo novamente
a pregar partidas à nossa imaginação. E a
revolta social, justa, devo dizer, motivada
pela morte do leão Cecil, comparada com a quase
indiferença com que se tratam as mortes diárias
dos refugiados que tentam entrar na europa. É
absurdo não é? Mas está a acontecer mesmo agora!
Apesar de tudo, há um lado positivo na busca do
que para os outros é absurdo; atrevo-me a dizer
que depende quase sempre da salubridade dos
sonhos. Vejamos: quando Kennedy disse em 1961
que antes do final dessa mesma década tinha como
grande objetivo colocar um homem na Lua, e
trazê-lo de volta vivo, uma grande maioria deve
ter achado absurdo, muitos dos quais elementos
da própria NASA. Neste caso ainda bem que o
absurdo aconteceu. E a circum-navegação de
Fernão de Magalhães? Absurdo aos olhos de
muitos, por certo, mas aconteceu. E o que dizer
de Galileu e a absurdidade de defender o
Heliocentrismo? Absurdo por certo!
Agora conto eu João Cunha Silva
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Se não se lutasse pelo absurdo ainda haveria
escravos, as mulheres não votariam, as crianças
não tinham direito a ser crianças, a democracia,
mesmo que aparente, não existiria. Para uns,
todos estes passos foram passos dados no
absurdo. (Ainda bem que alguém acreditou que o
absurdo era o inverso.)
Há este lado positivo da procura pelo absurdo;
este alargamento contínuo dos nossos limites e
das nossas possibilidades enquanto humanos.
Muitos disseram que seria absurdo tentar lançar
um livro. Entretanto, lancei três e estou a dois
meses de lançar o quarto e não consigo parar de
escrever e de criar histórias. Se me
perguntassem há pouco mais de quatro anos se eu
imaginaria isto, eu diria que era absurdo. Se
calhar continua a ser… Às tantas, mesmo nos dias
de hoje, continua a parecer absurdo um neto de
um sapateiro e de um afinador de máquinas
industriais querer ser escritor e não ter medo
de o dizer e lutar por isso todos os dias que
se levanta, independentemente da indiferença
geral. Há por isso diferentes tipos de absurdos,
mas que não deixam de ser absurdos, uma vez que
contrariam a razão e a normal lei das coisas,
com que muitos gostam de viver.
Por isso, dotar-me-ei de metas impossíveis,
objetivos intransponíveis e de absurdos
saudáveis. Essa será a minha revolta, acho mesmo
que sempre foi e sempre será, pois não me
importo de continuar como Sísifo, a carregar a
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pedra do meu sonho até ao ponto mais alto da
montanha, para quando ela inevitavelmente
descer, a fazer subir de novo, e de novo, e de
novo… Mas isto pode muito bem ser um absurdo.
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Δ
A realidade e a ficção –GS-13/08/2015
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É cada vez mais difícil distinguir o que é a
realidade do que é ficção. O que era realidade
transforma-se em ficção e o que parecia ficção
transforma-se assustadoramente em realidade.
Para quem escreve isto é verdadeiramente um
desassossego: pensamos que estamos a criar algo
novo e somos subitamente acordados com a
realidade, uma realidade suficientemente
parecida com que imaginamos, de modo a mandar o
que escrevemos para o lixo.
A ficção é a verdade assente na mentira, isto
é: o possível e verosímil daquilo que
simplesmente não é verdadeiro. Não tenho um
crocodilo como animal de estimação, mas se
tivesse teria de criar o seu espaço, teria de o
alimentar, passear, e entretanto … esperar não
ser comido. A imaginação só têm rédea solta até
certo ponto; há sempre uma âncora que nos prende
aos nossos valores e vivências e que por isso
nos limitam. A ficção assenta assim em algo que
apesar de não ser real, poderia muito bem ter
sido ou poderá ainda ser, caso se verifiquem
determinados parâmetros e determinadas
circunstâncias. Não imagino nenhuma que me
levasse a ter um crocodilo como animal de
estimação, mas se isso acontecesse eu teria de
ter todas essas preocupações, isto se quisesse
que a minha história fosse aceite por um leitor,
que vejo sempre como exigente. Nem sempre
apliquei estes mesmos princípios ao longo da
minha escrita, mas reconheço que o deveria ter
feito. Lembro-me sempre daquele dia, quando
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numa escola, numa sessão de apresentação do meu
primeiro livro “A Maria da Lua”, um aluno me
perguntou como é que os passarinhos, que
plantaram as flores na lua, passaram a atmosfera
da terra. Bem tentei dizer que deveriam levar
uns capacetes especiais, mas percebi naquele
momento que deveria ter dado uma resposta melhor
no texto, já no momento, foi a melhor resposta
que saiu.
Sabemos que ao entrar no mundo da fábula e da
ficção logo se aplicam outras regras e outras
fórmulas. O ”Era uma vez…” abre-nos um portal
infindável de possibilidades. No entanto, mesmo
quando nos deparamos com a existência de animais
falantes, ou com naves espaciais a saltar de
planeta em planeta, repletas de seres estranhos
de múltiplos membros e olhos a lutar ou a
conviver, há sempre uma organização de base já
conhecida que deverá ser verosímil e plausível
de ter acontecido naquelas circunstâncias. Com
Alice tudo estava bem até aparecer um coelho
falante que a levou a um mundo onde toda a
lógica é desafiada. No entanto, mesmo nesse
mundo do faz de conta há uma ordem e regras
próprias. É assim tão diferente do que que se
passa no mundo real? Quantas vezes não pensamos
o mesmo de costumes de povos diferentes ou mesmo
de costumes de comunidades dentro do nosso país?
Queimar um gato não vos parece estranho e
próprio de ficção (doentia é certo!)? A
realidade derrota a ficção por KO.
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Na ficção começa-se sempre com uma premissa
silogística “Se estamos em 2045, logo as nossas
roupas serão de uma forma estranha, as nossas
armas serão lasers, as nossas viagens
rotineiras serão feitas de pequenos aviões e as
nossas vias serão a 200 metros do chão… deixo
que a vossa imaginação tome conta do resto, mas
desde já aviso que estava a com a imagem da
série Jetsons na cabeça. A partir daqui, toda a
construção tem de fazer sentido, e quando não o
faz é porque se procuram efeitos de pura ironia
ou efeitos cómicos como o avental do robot da
série mencionada.
A este propósito e para demonstrar que as minhas
referências não passam apenas pelos desenhos
animados, tenhamos em atenção os livros de José
Saramago, quer o Ensaio sobre a Cegueira quer o
Ensaio sobre a Lucidez. Todos começam com uma
ideia “E se…” A partir daqui, de uma forma
brilhante (o Nobel não é certamente por acaso)
somos levados para um mundo em que se o “E se…”
fosse real, não tenho qualquer dúvida que o
descrito seria o mais próximo da realidade. Para
mim seria exatamente assim que tudo
aconteceria. Só um conhecimento profundo da
humanidade permitiu Saramago chegar a esse
ponto de perfeição pois é exatamente assim que
nos comportamos perante aquelas mesmas
situações. Antes não fosse, mas a história tem
demonstrado o contrário…
O ano é de estreia é 2006 e o protagonista do
filme é Clive Owen e conta com outros atores de
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renome como Julianne Moore e Michael Caine. O
filme com o título original “Children of Men”
apresenta-nos um cenário apocalítico no ano de
2027 onde as mulheres deixaram de conseguir
engravidar e a humanidade caminha para a
extinção. No entanto não é isso que me chamou
particularmente a atenção: no filme as
fronteiras estão fechadas à volta do Reino
Unido, e pessoas desesperadas tentam entrar.
Não sei… apenas me lembrei desta ficção tão
afastada da realidade dos nossos dias. Longe de
nós isto estar a acontecer mesmo agora!
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