No Restaurante e a Estranha Passageira

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No Restaurante - Quero lasanha. Aquele anteprojeto de mulher - quatro anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia - entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha. O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais. - Meu bem, venha cá. - Quero lasanha. - Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa. - Não, já escolhi. Lasanha. Que parada - lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato: - Vou querer lasanha. - Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão. - Gosto, mas quero lasanha. - Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá? - Quero lasanha, papai. Não quero camarão. - Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal? - Você come camarão e eu como lasanha. O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo: - Quero uma lasanha. O pai corrigiu: - Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada. A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou: - Moço, tem lasanha? - Perfeitamente, senhorita. O pai, no contra-ataque: - O senhor providenciou a fritada? - Já, sim, doutor. - De camarões bem grandes? - Daqueles legais, doutor. - Bem, então me vê um chinite, e pra ela... O que é que você quer, meu anjo? - Uma lasanha. - Traz um suco de laranja pra ela. Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte. - Estava uma coisa, heim? - comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. - Sábado que vem, a gente repete... Combinado? - Agora a lasanha, não é, papai? - Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo? - Eu e você, tá? - Meu amor, eu... - Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha. O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultra-jovem. Carlos Drummond de Andrade

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No Restaurante

- Quero lasanha.Aquele anteprojeto de mulher - quatro anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia - entrou decidido no restaurante. Não

precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da

competência dos senhores pais.- Meu bem, venha cá.- Quero lasanha.- Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa.- Não, já escolhi. Lasanha.Que parada - lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:- Vou querer lasanha.- Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.- Gosto, mas quero lasanha.- Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?- Quero lasanha, papai. Não quero camarão.- Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?- Você come camarão e eu como lasanha.O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:- Quero uma lasanha.O pai corrigiu:- Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações

também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:- Moço, tem lasanha?- Perfeitamente, senhorita.O pai, no contra-ataque:- O senhor providenciou a fritada?- Já, sim, doutor.- De camarões bem grandes?- Daqueles legais, doutor.- Bem, então me vê um chinite, e pra ela... O que é que você quer, meu anjo?- Uma lasanha.- Traz um suco de laranja pra ela.Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no

desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.

- Estava uma coisa, heim? - comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. - Sábado que vem, a gente repete... Combinado?- Agora a lasanha, não é, papai?- Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?- Eu e você, tá?- Meu amor, eu...- Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não

sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultra-jovem.

Carlos Drummond de Andrade

A estranha passageira

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- O senhor sabe? É a primeira vez que eu viajo de avião. Estou com zero hora de vôo – e riu nervosinha pediu que, coitada. - O senhor sabe? É a primeira vez que eu viajo de avião. Estou com zero hora de vôo – e riu nervosinha pediu que, coitada. - O senhor sabe? É a primeira vez que eu viajo de avião. Estou com zero hora de vôo – e riu nervosinha pediu que, coitada.Depois me eu me sentasse ao seu lado, pois me achava muito calmo e isto iria fazer-lhe bem. Lá se ia a oportunidade de ler o romance policial que eu comprara no aeroporto, para me distrair na viagem. Suspirei e fiz o bacano respondendo que estava às suas ordens.Madama entrou no avião sobraçando um monte de embrulhos, que segurava desajeitadamente. Gorda como era, custou a se encaixar na poltrona e arrumar todos aqueles pacotes. Depois não sabia como amarrar o cinto e eu tive que realizar essa operação em sua farta cintura.Afinal estava ali pronta para viajar. Os outros passageiros estavam já se divertindo às minhas custas, a zombar do meu embaraço ante as perguntas que aquela senhora me fazia aos berros, como se estivesse em sua casa, entre pessoas íntimas. A coisa foi ficando ridícula: - Para que esse saquinho aí? - foi a pergunta que fez, num tom de voz que parecia que ela estava no Rio e eu em São Paulo. - É para a senhora usar em caso de necessidade - respondi baixinho.Tenho certeza de que ninguém ouviu minha resposta, mas todos adivinharam qual foi, porque ela arregalou os olhos e exclamou: - Uai... as necessidades neste saquinho? No avião não tem banheiro?Alguns passageiros riram, outros - por fineza - fingiram ignorar o lamentável equívoco da incômoda passageira de primeira viagem. Mas ela era um azougue (embora com tantas carnes parecesse mais um açougue) e não parava de badalar. Olhava para trás, olhava para cima, mexia na poltrona e quase levou um tombo, quando puxou a alavanca e empurrou o encosto com força, caindo para trás e esparramando embrulhos para todos os lados.O comandante já esquentara os motores e a aeronave estava parada, esperando ordens para ganhar a pista de decolagem. Percebi que minha vizinha de banco apertava os olhos e lia qualquer coisa. Logo veio a pergunta: - Quem é essa tal de emergência que tem uma porta só pra ela?Expliquei que emergência não era ninguém, a porta é que era de emergência, isto é, em caso de necessidade, saía-se por ela.Madama sossegou e os outros passageiros já estavam conformados com o término do "show". Mesmo os que mais se divertiam com ele resolveram abrir os jornais, revistas ou se acomodarem para tirar uma pestana durante a viagem.Foi quando madama deu o último vexame. Olhou pela janela (ela pedira para ficar do lado da janela para ver a paisagem) e gritou: - Puxa vida!!!Todos olharam para ela, inclusive eu. Madama apontou para a janela e disse: - Olha lá embaixo.Eu olhei. E ela acrescentou: - Como nós estamos voando alto, moço. Olha só... o pessoal lá embaixo até parece formiga.Suspirei e lasquei: - Minha senhora, aquilo são formigas mesmo. O avião ainda não levantou vôo.

Stanislaw Ponte Preta