No Romance 'Murphy', Um Beckett de Excessos
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5/10/2015 No romance 'Murphy', um Beckett de excessos
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Criaturas
domingo, 10 de maio de 2015
#173
Maio/2015
ARQUITETURA
Entre os conceitos atuais de construo, prevalece a concepo de projetos que tragam solues e inovao complexidade do tecidosocial e urbano. Como se pensa a arquitetura nos dias de hoje?
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No romance 'Murphy', um Beckett de excessos
Escrito por Clarissa Macau
Sex, 20 de Setembro de 2013 14:27
Reproduo
As imagens disformes das palavras de Samuel Beckett irms das figuras retratadas pelos pintores Francis Bacon e Louis Le Brocquy
e das esculturas de Giacometti anunciam de forma emocionalmente dura, o irracional e o racional humanos unidos e sem rostos em
lufadas de pensamento que viajam ao interior dos personagens da estria, e dos olhos das coisas sem vida, paredes e janelas, que vm
tudo. Neologismos, discusses amorosas sob filosofias cartesianas e a metalingustica envolvendo o leitor e os lidos, numa conversaquase que questionando se toda a fico contada ali vale mesmo a pena, Becket, ento, esculpiu a vida deMurphy, homem mpar,
mstico, banal e decadente, tanto quanto seus amigos e amantes colegas de enredo. Acompanhado de hobbies excntricos como se
amarrar numa cadeira de balano, numa tentativa de meditao aparentemente masoquista para conseguir conectar esprito e corpo, ele
cultiva seus princpios particulares devidamente atrapalhados pelos inconvenientes da vida civilizada.
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Quadro de Louis Brocquy, com Beckett
Trabalhar ou viver? Eis um dos dilemas de Murphy, que, alis, no estava em seus planos discuti-lo, pois ele convicto s entra em
conflitos forado pelas foras exteriores ao seu mundo particular. Havia vises e sons de que Murphy no gostava. Prendiam-no ao
mundo do qual faziam parte, mas no ele, como gostava de sonhar (pgina 5), comunica o narrador logo no incio do livro. Oprotagonista talvez um romntico s avessas. Dentro da decadncia, a qual no considera, deseja a riqueza do transe. Unir o dualismo
da vida, esprito e corpo, soma que resultaria em outra coisa, em paz individual num mundo paralelo, sem se importar em romper com a
sociedade. Dessa ambio nasce uma maneira enternecida de encarar a loucura, ou seria essa s uma outra faceta de viver o mundo,
um pequeno universo que no para todos?
Desprendido de esttica agradvel para contar estrias, o dublinense Samuel Beckett, como se o tempo fosse sempre nublado mesmo
na presena do sol que brilha sem alternativa, guia-nos em um dos seus primeiros exerccios literrios da vida, o romance de estreia,
Murphy, de 1938. A traduo at ento indita para o portugus, feita por Fbio de Souza Andrade em verso editada pela CosacNaify, traz um narrador em terceira pessoa discretamente possessivo, dominador e diferente das obras beckettianas posteriores, como
Molloy e Malone Morre, nos quais descartando grandes virtuosismos, os protagonistas estendem seus discursos totalmente orais e
livres normalmente em primeira pessoa.
Um Beckett prolixo
Beckett era adepto da falha, foi assim que revolucionou e ganhou o Nobel de
literatura em 1969. Ao desafiar a linguagem, era perfeccionista na tentativa de no
ser perfeito, de duvidar de um retrato especfico de realismo humano coerente eclaro atravs das palavras. Criou, assim, uma escrita de fluxo da conscincia
travado, minimalista, confuso, no fluido, mas rico para construir vozes
verdadeiramente humanas de personagens moribundos e incompreendidos. Em
Murphy essas caractersticas so embrionrias, contextualizadas atravs de uma
prolixidade sem acanhamento (ou seja, nada minimalista), muito possivelmenteinspiradas no seu dolo e mestre do qual iria tanto se distanciar no modo de
escrever, James Joyce.
Numa passagem, Murphy conversa com a namorada. O narrador descreve a
situao dela diante das palavras bonitas do protagonista: Sentiu-se coisa muitofrequente nas conversas com Murphy, como que ensopada por palavras que
sucumbiam to logo pronunciadas, cada palavra abolida antes de fazer sentido,
pela palavra que sucedia, de tal forma que, ao final, no sabia o que havia sido
dito. Era como ouvir msica difcil pela primeira vez (pgina 35). O bombardeio
de detalhes da linguagem de Beckett nos tira os olhares sobre os personagens,
porm, as imagens construdas so capazes de olhar-nos sugando o texto, e
deixando simples delineamentos de peas de roupas, cabelos e objetos descritos
esse um hbito que perdurou por toda obra de Beckett. H a impresso de que
acessamos o interior imprevisvel dos personagens. A expresso no facial, figurativa, (convencionalmente) realista, mas sim totalmente
abstrata e vaga. De concreta s o redemoinho das equaes de palavras que Beckett nos dispe.
As foras exteriores citadas logo no segundo pargrafo desse texto esto representadas principalmente pela sua namorada atual, Clia.
A prostituta, que sonha em sair das zonas escarlates e coloca a condio de que para continuar com ela o (ainda que hesitante)
decididamente apaixonado, Murphy v s ruas procurar um meio de vida, um trabalho. Meio de vida que na cabea murphyana
corresponde a praticamente um meio de morte. Na sua mente essa assertiva no exagero. Murphy parece no brincar, apesar de toda
a narrativa de Beckett ter o humor negro como um dos principais caminhos a ser trilhado. exatamente dessa contradio que nasce o
estranhamento, e dele surge o cmico.
Depois de muito se esquivar, Murphy vai s ruas e encontrando o almejado sonho de Clia, um trabalho, desaparece sem deixar pistas.
Do outro lado da histria o narrador nos coloca a par da procura incessante dos amigos dependentes de Murphy, cada qual com sua
necessidade nica. E a que esto Neary, o pitagrico, Cooper, um aspirante a detetive alcoolista que no senta, Wylie, um generoso
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suspeito, Srta. Counihan, antiga amante, e em um ncleo separado, a prpria Clia, catatnica. Isso nos lembra algo deEsperandoGodot obra-prima de Beckett para o teatro , onde se tem uma trama paralela ao protagonista, mas totalmente voltada a ele.
Diferentemente da pea, a vida secreta de Murphy agora prestando servios num hospcio , ainda perseguida e analisada longe dos
olhos dos seus colegas, compondo assim um romance que possui duas histrias independentes, a de Murphy e a de seus amigos.
Narrador desapegado
Apesar de a discreta manipulao do narrador, ele no se coloca como o sabe tudo onisciente da histria, mesmo que cada voz de
personagem seja claramente Beckett trazendo seus discursos mirabolantes, brincando com as palavras em malabarismos, quase que
desapegado dos personagens. Trata-se de uma costura bem-feita pelo autor, na qual os personagens so explorados individualmente
mesmo quando dialogando entre si, ou participando de uma mesma passagem. Em certo captulo, Cooper est seguindo Clia, mas
Clia no percebe e continua procurando outro personagem desse livro, o seu av Kelly. Nessa cena presenciamos a magia de
Beckett concatenando com perfeio o contraceno, combinando as incertezas individuais de cada um, narrando duas histrias: a de
quem persegue e a de quem seguido ao entardecer de um dia, no demonstrando nenhuma dependncia entre as personagens, mas
criando complementos bem-vindos ao enredo.
Interessante tambm notar as personagens mulheres de Beckett neste romance. So consideravelmente o que chamam de fceis, mas
no gratuitamente predveis. Donas de seus corpos e dinheiro vendem-se sem muito apreo ou at desfrutam romances e no-
romances. Todos os personagens, alis, tm esse clima amistoso diante de espinhos, mortes, tristezas, ou seus contrrios, J que a vida
no mais que figura e fundo diria Neary, o pitagrico. Figura e fundo que juntos, segundo a psicologia de Gestalt enaltecida nas
entrelinhas deste romance, tornam-se um elemento diferente da figura ou do fundo pronta para ser refletida entre eles e aos leitores.
Uma grande conversa sobre o nada e o tudo desenvolvida em Murphy. A lgica da civilizao, de uma coerncia estabelecida e
mecnica, posta em xeque por Beckett, que aponta o mundo, a roda da fortuna que conhecemos, como algo desinteressante para
alguns, porque alm dela podem existir e existem outras rodas, outros mundos, infernos e cus.
Livro da Cosac Naify, com psfcio de Nuno Ramos e notas de Fbio de
Souza Andrade
Fragmentos:
Por sobre o mrmore da mesa, Neary estendeu as mos na direo de Wylie, que as tomou num xtase de compaixo (...). Em
presena de tamanho sofrimento, Wylie sentiu-se mais puro que em qualquer outro instante desde sua segunda comunho (...).
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Desvencilhar a mo de uma presso solidria uma operao que requer um tato to refinado que Neary, muito sabiamente
desistiu de tentar. (pgina 43)
Sua cama de criana tinha uma grade alta por toda a volta. O sr. Willoughby Kelly chegava, cheirando forte a bebida, se
ajoelhava, segurava as barras com as duas mos e olhava atravs, para ela. Ento, ela o invejava, e ele a ela. s vezes, ele
cantava. (pgina 182)
As celas acolchoadassuperavam em muito qualquer tipo de paraso interior que jamais fora capaz de conceber. As trs
dimenses, ligeiramente cncavas, eram to primorosamente proporcionadas que quase no se fazia sentir a ausncia de uma
quarta. O cinza-ostra terno e luminoso do forro pneumtico, almofadando cada centmetro quadrado do teto, das paredes, docho e da porta, dava colorao de verdade ao fato de que ali se estava prisioneiro do ar. A temperatura era tal que s a
completa nudez podia lhe fazer justia. () Dentro dos estreitos limites da arquitetura domstica, jamais fora capaz de
conceber uma representao mais crvel do que continuava a chamar, incansavelmente, de pequeno mundo. (pgina 141)
A srta. Carridge no tirou um centavo do bolso, nem um centavo. Foi a polcia, e no ela, que chamou o mdico e teve,
portanto, de arcar com os honorrios. O prejuzo sangrento a seu magnfico assoalho de linleo foi amplamente coberto pelo
ms de aluguel adiantado que o velho pagara na vspera. Sara-se muitssimo bem da coisa como um todo. (pgina 107)
Apiedade da srta. Carridge no conhecia limites, desde que no se tratasse de esmolas. (pgina 120)
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