No último minuto

download No último minuto

of 6

Transcript of No último minuto

  • 7/25/2019 No ltimo minuto

    1/6

    Sergio Sant'anna

    No Ultimo Minuto

  • 7/25/2019 No ltimo minuto

    2/6

    sergio Sant'Anna, carioca, 35 anos, com.,.ou a publi-car textos com 0grupo da revista Estoria, em Belo H ...rizonte. L a mesmo se formou e depois foi holsista doInstituto de Ciencias Politicas da Universidade de Paris.

    Em 1969 publicou 0primeiro livro de contos, 0 so-brevivente, pelo qual foi escoIhido como representantebrasileiro no International Writing Program, da Univer-sidade de Iowa, EUA, no perlodo 70/71.

    Em 1973, pela Editora Civiliza~iio Brasileira, lan~useu segundo livro - Notas de Manfredo Rangel, Repor-ter (A Respeito de Kramer), vencedor do Premio Gni-maries Rosa, do Concurso do Parana, para 0 tnelhor Ii -vro de contos do ano.

    Em 1975, ainda pela Civiliza~io Brasileira, saiu s~primeiro romance, Conlirsoes de Rallo (Uma autobiogra..lia imaginaria). Em 1977 sai, pela mesma editora, seu se-gundo romance, Simulacros.

    Fora isso, sergio Sant'Anna tern publicado texto.

    em diversos 6rgiios nacionais e estrangeiros como 0 Pas

  • 7/25/2019 No ltimo minuto

    3/6

  • 7/25/2019 No ltimo minuto

    4/6

    nele, vai oele. Mas grito oao se escuta na arquibancada nem

    na TV. E 0 Lula e 0 zagueiro-central da s e l e < ; a o e , e ntre e u eele, eles preferem me queimar, "Vai nele, vai nele"} eu estOll

    gritando, por precau~"o. Porque ninguem pode acreditar numajogada dessas. E 0 Luia vai so pra garantir a saida da bola.Ele nao entra duro no lance, naQ entra com fe. 0 Canhotinhochega ja rotalmente sem pernas, no lim daquele pique, masainda bate na bola de canhota, exatamente sobre a linha deUndo. E cai Ia em cima dos fotografos.

    E urn chute rasteiro, urn centro chocho e eu grito: "dei~xa". Eu fechei 0 angulo direitinho e caio na bola. Eu sintoa bola nos meus bra~os e no peito. E sei que a torcida vaigritar e aplaudir, desabafando 0 nervosismo, naquele Ultimoataque do jogo. Eu tenho a bola segura com firmeza contrao peito e, de repente, sinto aquele vazio no corpo. Eu estou

    agarrando 0 ar. A bola escapando e penetrando bern de mansinho no gal. A bola nao chega nem a alcan~ar a rede; elafica paradinha ali, depois da linha fatal. E eu pulo desespe-radamente neIa, puxando a bola Ia de dentro. Mas e tardedemais, todo mundo ja viu que foi gal. 0 estadio explode e ecomo se minha cabe~a estourasse. Eu vejo e ou~o aquilo tudo:o time deles se abra~ando, a zoeira da multidao, os foguete,e 0nosso time que parte pra cima do juiz, numa tentativa imi-

    til de anular 0gol. Eu ou~o e vejo aquilo, mas e como se tudoestivesse muito longe de mim, sem nenhuma tela~ao comigo.

    EM CAMARA LENTA - 0 ponta-esquerda deIes, 0 Canho-tinho, esta Ionge da bola que parece imposslvel que consigaalcan~a-Ia. 0 Tiiio, nosso zagueiro-direito, ate parou depOlsque foi batido na corrida. Ele fica olhando Ia de longe, comas maos nas cadeiras. E 0 Canhotinho corre. 0 passe foi taolongo que mesmo em video-tape, ja sabendo do jogo, a gentecusta a se convencer que ele chegara a tempo de tocar na bola.Entiio me vern, agora, essa sensa~ao absurda de que ainda podeacontecer tudo diferente, eu corrigir minha falha. Me da von-tade de gritar mals-forte com 0Luia ou sair eu mesmo do gol,

    qualquer coisa assim. Mas 0

    Luia demora uma enormidade prair no Canhotinho. E quando vai, e todo frouxo e displicente.E sai aquele chute fraquinho, inteiram.nte sem angulo. A bolapassa num espa~o diminuto, entre 0 p.! do Lula e a linha de

    146

    fundo. E eu caio nela corretamente, como manda 0 figurino, 0

    corpo todo protegendo a bola. A bola que vern de mansinho, emcamara lenta. Essa eu nao deixo passar, eu nao posso deixar

    passaro

    Eu agarrei a bola, ela esta segura nos meus bra~os e nomeu peito. N6s vamos ser campeiies. Eles param 0 tape s6 pramastrar isso: como eu estou tranquilo com a bola. Neste ins-

    tante, nos ainda somas os campeoes do Brasil. Mas eles poem

    o tape de novo pra rodar. ainda mais Ientamente do que an-

    tes. E a bol a, c om o se tivesse or~a propria, escorrega numpequeno VaG entre 0 meu peito e 0 bra~o. E roia devagarinho,chorando, pra dentro do go!. Al eu dou aquele saito ridiculoe puxo a bola outra vez. 0 comentarista diz que eu fui cataras penas do frango.

    CANAL 3 - Sao vinte e dois minutos do primeiro tempO.Minha muIher senta ao meu lado e diz pra eu desligar a tele-visao e me esquecer daquilo tudo. "Amanha e outro dia", eladiz. Amanha e outro dia, eu penso. Eu you sair na rua ever.meu retrato em todos os jornais dependurados nas bancas: eu

    me preparando pra defender aque!e chute; eu com a bola nasmaos; eu com a bola perdida e ja entrando no gol. Eu, 0cuI-

    pado da derrota. Eu, frangueira, se nao falarem 0

    pior: queeu estava vendido.Aos vinte e seis minutos, nos inauguramos a marcador.

    Nos estamos jogando pelo empate e ainda fazemos 0 primeirasol. Eu estou praticando boas defesas e garantindo 0 placarda primeira etapa. Se a gente ganha 0 campeonato, posso ate

    ir para a sele~ao. Porque goleiro e tambem questao de sorte,de estar em evidencia. Voce entra na onda, sai sempre nos jor-

    nais e acaba na seIe~ao. Do contrario, pode agarrar ate tijoladaque eles nao te convocam.

    Terminou 0 primeiro tempo. Na minha entrevista com 0

    locutor volante, eu digo que se Deus quiser nos garantiremos

    o urn a zero e que, se depender so de mim ja estamos de faixa.

    Depois eu des~o as escadas do vestiario, sob os aplausos da

    torcida. Eu aceno discretamente para os torcedores, que gri~tam urn pouco cedo: "h campeao, e ca mp ea o" . .

    Quando vai come~ar 0 segundo tempo, minha muIher aper-ta miIlha mao e fica me olhando assim meio de lado. Eu digo

    147

  • 7/25/2019 No ltimo minuto

    5/6

    pra eia ir dormir. Niio quero a piedade de ninguem. Entiioela sai em silencio da sala. Logo depois e a hora do penalti.o Mateus dribia urn e entra na area. 0Luia vern e aterra elepor tras. Ninguem vai discutir esse penalti, que foi claro mes-mo. Isto e pior pra mim, porque Ia no dube eles nao teriionenhuma queixa contra a juiz e sabr a tudo pro m eu l ado, aonda inteira.

    Em penalti, a gente escolhe 0 canto e agarra se tiver sor-teo Eu pulo para 0 canto direito e 0 Jair chuta tambern PG can-

    to direito, mas com fort;a demais e rasteiro e rente a

    trave.Urn a urn. Sao tres minutos do per1odo final e eu you ter defechar 0 gol por quarenta e dois minutos. 0 time deIes, pre-cisando da vit6ria, vai partir todo pra cima da gente. E n6scom aquela tatka suicida, recuando pra garantir a eropate.

    E e u fic o la , debaixo dos paus, por quarenta e urn m i-nutos. Eu esto', pegando tudo e ha aquela bola que eu agar-to nos 1J~5 do Jair e aquela outra que eu espalmo pta corner,

    chutada pe10 Canhotinho no anguio. Mas disso tudo eles naovao se Iembrar. Teria sido melhor pra mirn que eu engolisselogo urna daquelas bolas diHceis. Eles cornentariam que eraindefensavel. Mas eu estou defendendo tudo, nurna das me-Ihores atu31;oes de minha carreira. Mas eles nao vao nem que-rer saber. Se aquela ultima bola naD entrasse, fles diriam que

    eu era 0

    melhor goleiro do Brasil. Mas a bola entrou e elesdir ao que e u sou frangueiro.

    o tempo passando, minuto por minuto. Eu ou~o aquelebaruIho todo da torcida e e incr1vel como a alegria pode setransformar em tristeza tao de repente. Eu penso, tamhem, comoa vida se decide a s vezes num centimetro de espat;o au numafra~ao de segundo. E me volta aquela Ioucura, a sensa~ao depoder modificar urn destino ja cumprido, fazer tudo diferente.Ir naqueia bola de outro jeito, espaIma-Ia para corner, mesmosem necessidade. Aquilo e bola pra agarrar lirrne, mas se euponho p,a escanteio ninguem vai redamar depois que a gentefor campeao. Eles diriio que e nervosismo de final de cam-peonato, justifidvel ate num grande goleiro. Jogar aqueia holapr a escanteio. .

    o meia-armador deles, 0 Luiz Henrique, pega aquela so-bra do Breno, aquele presente, e lan~a em profundidade paraa ponta esquerda. Ele lan~a a hola pra ninguem. 0 Canhotinho e que vai de ra~do e teirnoso. Naquela correri. maluca

    148

  • 7/25/2019 No ltimo minuto

    6/6

    chegando da rua em meio aos foguetes. Chegando dos pontosmais diversos da cidade.

    ~ uma rebatida da defesa deIes, depois de urn ataque inu-til nosso. Mas ninguem responsabilizara os atacantes por naoterem marcado mais gois. Eles responsabilizarao 0 goleiro.

    ~ uma rebatida da defesa deles. A bola vern alta e caicom 0 B re na, que m ata e la no pei to e poe no ter re no. Mas

    ele perde 0 controle do baIao, que para nos pes do Luiz Hen-rique. ~ 0 ultimo minuto, a Ultima oportunidade deles. 0

    passe e executado imediatamente e sem muita consciencia.Apenas uma esticada, forte demais, para a ponta esquerda. 0Canhotinho bate 0 Tiao na corrida e penetra veIozmente nonosso campo, buscando aquela bola perdida. 0 Canhotinho vernnuma carreira tal que, ao bater com 0 pe esquerdo na bola, emrima da linha, voa sobre os fot6grafos.

    Eu grirei para 0 LuIa:. "vai nele, vai nele". 0 Lula foiatrasado e meu grito nao foi ouvido por mais ninguem. Elesnunea sabedio que eu tentei.

    A bola vern rasteira e fraca. ~ uma defesa que ja prati-quei muitas vezes, todo goleiro ja praticou. A gente cai, por

    reflexo, sobre a bola e protege ela no peito e nos bra~os eabaixa a cabe~a. Porque pode aparecer algum atacante adver-sario, chutando tudo pela frente. ~ uma bola acil. Eu tenho

    certeza que ela esta segura, quando, na verdade, ja escapoude minhas maos e cruzou a linha de gol.

    EM CAMARA L ENTA - Os movimentos do Canhotinho sao des-

    coordenados, naquela corrida Ienta. Ele quase trope~a nas prO.prias pernas e ja perdeu 0 equillbrio quando bate 0 pe esquer-do na bola. 0 Lula quase fechou 0angulo de chute, mas dei-xou aquele pedacinho de terreno, entre ele e a linha de fundo.~ por onde a bola passa. Aquela bola que vern rasteira, tiiofraea e mada que pareee, em camara lenta, nunea chegar a sminhas maos. Aquela bola que finalmente chega e some sob 0meu corpo. E que depois, como se por urn capricho pr6prio,escapa de mim e vai mansamente para dentro da meta.

    Eles voltam a camara uma por~iio de vezes. Aquela bolaque sai de dentro do gol e volta aos meus bra~os e dal aoCanhotinho e dele de volta ao Luiz Henrique. Aqueia bolaque sai de novo dos pes do Luiz Henrique e roia para a pon-

    150

    ta esquerda e ate a linha de fundo, onde 0 Canhotinho bateneia todo torto e de esquerda e dal aos meus bra~os e depoispra dentro do gol.

    Eles repassam uma por~ao de vezes a jogada. ~ urn golimportante, gal de conquista de campeonato. Como se tivesse

    side marcado dezenas de vezes. Como se fosse repetir-se para

    sempre, igual a urn pesadelo.~ uma rebatida da defesa deles. A bola vern alta e cai

    para 0 Breno, nosso medio-apoiador. Ele mata eia no peito,poe no terreno e al perde 0 domlnio da bola. Ela sobra, en-tao, para 0 meia-armador deIes, 0 Luiz Henrique. 0 LuizHenrique, no desespero, estende urn passe forte e longo para .a ponta esquerda. 0 Canhotinho acredita na jogada e partena corrida ...

    151