Noiva Escura Laura Restrepo

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- Vistam-se bem e penteiem o cabelo, que vou levar vocês para conhecer o outro mundo - um dia Todos los Santos anunciou para Sayonara e suas quatro irmãs, Ana, Susana, Juana e pequena Chuza. Então puseram seus aprumados vestidos de organza - reservados para as festas pátrias ou religiosas - com babados e peitilho e longas saias enfunadas com forros de crinolina, como nuvens engomadas e coloridas: amarelo- pintinho o de Sayonara, rosa- algodão-doce o de Ana, o de Susana, azul-céu, verde-hortelã o de Juana e branco-neves- de-outrora o da pequena Chuza. Arrumaram o cabelo, escovaram os dentes e se perfumaram, calçaram meias e sapatos e saíram caminhando atrás da madrinha, endomingadas em plena terça-feira, por entre brenhas e matos que ameaçavam rasgar a organza e se enganchavam no cabelo estragando o penteado. Apesar de tudo, avançavam cuidadosas e elegantes como gente da roça quando vai à cidade assistir à missa, porque Todos los Santos Ihes avisara que, se queriam conhecer o outro mundo, tinham que chegar lá com dignidade. - Para que ninguém ouse ter pena de nós - advertiu. - Esse vestido pinica demais, madrinha - queixou-se Susana. - Pois agüente. Chegaram à cerca seguindo uma picada que Todos Ios Santos conhecia, desceram rente por um barranco e atravessaram um fio-d' água descalças para não molhar os sapatos, depois sentaram numas pedras para enxugar os pés, voltaram a calçá-Ias, pentearam-se de novo e afinal chegaram. - Aí está, vejam. Esse aí é o outro mundo - anunciou Todos Ios Santos diante de um ponto em que se desgarrara a densa trepadeira que ao longo do trajeto se prendia à cerca, e onde, devido a algum descuido na vigilância, não havia

Transcript of Noiva Escura Laura Restrepo

- Vistam-se bem e penteiem o cabelo, que vou levar vocês para conhecer o outro mundo - um dia Todos los Santos anunciou para Sayonara e suas quatro irmãs, Ana, Susana, Juana e pequena Chuza.

Então puseram seus aprumados vestidos de organza - reservados para as festas pátrias ou religiosas - com babados e peitilho e longas saias enfunadas com forros de crinolina, como nuvens engomadas e coloridas: amarelo-pintinho o de Sayonara, rosa- algodão-doce o de Ana, o de Susana, azul-céu, verde-hortelã o de Juana e branco-neves-de-outrora o da pequena Chuza. Arrumaram o cabelo, escovaram os dentes e se perfumaram, calçaram meias e sapatos e saíram caminhando atrás da madrinha, endomingadas em plena terça-feira, por entre brenhas e matos que ameaçavam rasgar a organza e se enganchavam no cabelo estragando o penteado. Apesar de tudo, avançavam cuidadosas e elegantes como gente da roça quando vai à cidade assistir à missa, porque Todos los Santos Ihes avisara que, se queriam conhecer o outro mundo, tinham que chegar lá com dignidade.

- Para que ninguém ouse ter pena de nós - advertiu.

- Esse vestido pinica demais, madrinha - queixou-se Susana.

- Pois agüente.

Chegaram à cerca seguindo uma picada que Todos Ios Santos conhecia, desceram rente por um barranco e atravessaram um fio-d' água descalças para não molhar os sapatos, depois sentaram numas pedras para enxugar os pés, voltaram a calçá-Ias, pentearam-se de novo e afinal chegaram.

- Aí está, vejam. Esse aí é o outro mundo - anunciou Todos Ios Santos diante de um ponto em que se desgarrara a densa trepadeira que ao longo do trajeto se prendia à cerca, e onde, devido a algum descuido na vigilância, não havia guardas armados para espantar os curiosos ou mal-intencionados.

Amontoadas umas contra as outras dentro de suas organzas coloridas, como caixas de bombons, as cinco meninas puderam olhar a cena melhor do que num camarote de primeira, os cinco rostos bem pegados à malha de arame da cerca para não enxergar quadriculado, tão arregalados os cinco pares de olhos puxados que chegavam a perder sua inclinação, e dali observaram algo que sua fantasia nem sequer tentara adivinhar: o mítico e impenetrável bairro Staff, onde a Tropical Oil Company tinha instalado e isolado o pessoal norte-americano que desempenhava cargos de direção, administração e supervisão, e que era uma réplica do Amerícan way of life em escala reduzida, como se tivessem cortado uma fatia de um confortável subúrbio de Fort Wayne, Indiana, ou de Phoenix, Arizona, para transplantá-la direto para o meio da selva tropical, com seus jardins e piscinas, seus gramados bem cuidados,

suas caixas de correio como casinhas de pássaros, o campo de golfe, a quadra de tênis e três dúzias de casas brancas, espaçadas, idênticas entre si, totalmente importadas, dos móveis dos quartos até a primeira telha e o último parafuso. Ao fundo e no alto da colina, dominando o bairro, erguia-se em pinho a chamada Casa Colina, residência do gerente-geral da companhia, com seus amplos espaços, seu hall, suas varandas e garagens.

Por um bom tempo, as cinco irmãs contemplaram tudo aquilo boquiabertas e, como não viam ninguém lá dentro, pensaram que o outro mundo era um lugar enfeitiçado e deserto como o castelo da Bela Adormecida. Parecia que seus habitantes tinham partido de repente, sem tempo para levar os objetos de sua vida. Uma toalha abandonada ao lado da piscina, a água translúcida ainda agitada por um nadador ausente, um velocípede tombado, como se a criança que o montava tivesse caído e saído correndo em busca da mãe, um cortador de grama à espera do homem que acabava de entrar na casa para tomar um copo de água. Objetos que brilhavam com luz própria, sem estrear, poderosos como fetiches, donos de um bem-estar que não está nas pessoas que os usam, mas neles mesmos.

- Aqui não mora ninguém, madrinha? - perguntou Sayonara em voz baixa, temendo espantar a miragem, mas nesse instante surgiu do nada o homem do cortador de grama, ligou a máquina e começou a trabalhar.

- O que esse homem está fazendo, madrinha? - perguntou Susana.

- Cortando a grama.

- Para levar para os bichos?

- Não, ele corta porque gosta de cortar.

- Que homem mais esquisito ... - disse Ana. - E por que essa pobre gente está presa atrás da grade?

- Os presos somos nós, que estamos aqui fora, porque eles podem sair, mas nós não podemos entrar.

- E por que não podemos entrar?

- Porque eles não deixam, porque têm medo de nós.

- E por que têm medo de nós?

- Porque somos pobres e morenos e não falamos inglês.

- Mas as casas também estão enjauladas, olhe lá, madrinha - disse Juana -. não dá para sair pela porta nem pelas janelas.

- Isso aí é uma tela de arame, para os mosquitos não entrarem.

- Os mosquitos não podem entrar? E os outros bichos também não?

- Só os cachorros.

- E os cachorros podem sair?

- Podem, se os donos abrirem a porta para eles.

- Que é que aquela mulher está fazendo? - perguntou Ana ao ver a dona da toalha parecer e se deitar numa espreguiçadeira.

- Vai tomar sol.

- Tomar sol? Então ela deve ter o sangue frio. Machuca me falou que as lagartixas ficam no sol para se esquentar, porque têm o sangue frio.

- Não é isso. Ela quer tomar sol para ficar morena.

- Para quê - disse Sayonara -, se eles não gostam de gente morena? ...

- Não é fácil entender esse povo - disse Todos los Santos.

- Eles não nasceram aqui. São norte-americanos.

- E o que eles vieram fazer aqui?

- Vieram tirar petróleo do terreno.

- Para quê? - perguntou Juana.

- Para vender, oras.

- Ah! Então é bom negócio vender o terreno sem petróleo?

- Que é que aquelas duas lá estão fazendo? - perguntou

Ana apontando para uma dupla de mulheres que conversavam junto à porta de uma casa.

- Estão conversando em inglês.

- Então como se entendem?

- Porque sabem falar inglês, oras. Lá dentro ninguém fala espanhol.

- Alguém devia ensinar para eles ...

Um grupo de crianças entrou na piscina, um homem começou a lavar seu carro, uma mulher desenrolou uma mangueira e começou a dar banho no cachorro. A pequena

Chuza olhava tudo embasbacada, sem perder um detalhe, mas não perguntava nada porque a pequena Chuza nunca abria a boca.

- Lavam cachorros, lavam crianças, lavam carros ... - disse Juana. - Que gente mais limpa! Onde eles se sujam tanto, se aí dentro não tem sujeira?

- Não tem sujeira porque limpam tudo.

- Mas para que limpam tudo, se não tem sujeira? ..

- Bom, para se distrair e matar o tempo, até poderem voltar para o seu país.

- Olhe, madrinha, estão descalços! Eles não têm sapatos?

- Têm, sim. Eles andam descalços porque gostam, e deixam os sapatos dentro de casa. - Para não sujar?

- Pode ser.

- E se sujarem os pés?

- Eles lavam, que nem o cachorro.

- E para que eles lavam o cachorro? - perguntou Ana, que nunca na vida tinha visto ninguém lavar um cachorro.

- Para tirar o cheiro.

- Os cachorros deles cheiram muito mal?

- Todos os cachorros cheiram do mesmo jeito.

- Eu ouvi dizer uma coisa - disse Sayonara. - Quem me contou foi o senhor Manrique. Ele falou que o chão de algumas casas é coberto de lã, como os carneiros.

- Isso aí já é esquisito demais! - gritou Susana. - Deve ser mentira de Sayonara ...

- É verdade - confirmou Todos los Santos. - São casas acarpetadas.

- Que gente mais doida!

- E aqueles lá, que é que eles estão fazendo, madrinha? - perguntava Juana puxando sua saia.

- Estão jogando um jogo chamado tênis.

- Mas se não são crianças ... Por acaso os grandes também

jogam, também brincam?

- Claro - disse Susana, fazendo-se de entendida. - E ganha quem pegar a bola com a mão.

- Não, ganha quem consegue jogar a bola mais longe com a raquete - corrigiu Todos los Santos. - A raquete é aquela cesta achatada que eles têm na mão.

- E aí dentro, no bairro Staff - quis saber Ana -, as pessoas também morrem?

- Morrem, sim. A morte é a única que entra aí dentro quando bem entende.