Nos e Os Franceses G.freyre

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Etnográfica vol. 18 (3) (2014) Varia ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Andréa Borges Leão Nós e os franceses: Gilberto Freyre à prova de Adèle Toussaint-Samson ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Aviso O conteúdo deste website está sujeito à legislação francesa sobre a propriedade intelectual e é propriedade exclusiva do editor. Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digital desde que a sua utilização seja estritamente pessoal ou para fins científicos ou pedagógicos, excluindo-se qualquer exploração comercial. A reprodução deverá mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e a referência do documento. Qualquer outra forma de reprodução é interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casos previstos pela legislação em vigor em França. Revues.org é um portal de revistas das ciências sociais e humanas desenvolvido pelo CLÉO, Centro para a edição eletrónica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - França) ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Referência eletrônica Andréa Borges Leão, « Nós e os franceses: Gilberto Freyre à prova de Adèle Toussaint-Samson », Etnográfica [Online], vol. 18 (3) | 2014, posto online no dia 09 Outubro 2014, consultado no dia 10 Outubro 2014. URL : http:// etnografica.revues.org/3844 ; DOI : 10.4000/etnografica.3844 Editor: CRIA http://etnografica.revues.org http://www.revues.org Documento acessível online em: http://etnografica.revues.org/3844 Este documento é o fac-símile da edição em papel. © CRIA

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Nós e os franceses - de G. Freyre a

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  • Etnogrficavol. 18 (3) (2014)Varia

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    Andra Borges Leo

    Ns e os franceses: Gilberto Freyre prova de Adle Toussaint-Samson................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    AvisoO contedo deste website est sujeito legislao francesa sobre a propriedade intelectual e propriedade exclusivado editor.Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digitaldesde que a sua utilizao seja estritamente pessoal ou para fins cientficos ou pedaggicos, excluindo-se qualquerexplorao comercial. A reproduo dever mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e areferncia do documento.Qualquer outra forma de reproduo interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casosprevistos pela legislao em vigor em Frana.

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    Referncia eletrnicaAndra Borges Leo, Ns e os franceses: Gilberto Freyre prova de Adle Toussaint-Samson, Etnogrfica[Online], vol. 18 (3)|2014, posto online no dia 09 Outubro 2014, consultado no dia 10 Outubro 2014. URL: http://etnografica.revues.org/3844; DOI: 10.4000/etnografica.3844

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  • Ns e os franceses:Gilberto Freyre provade Adle Toussaint-Samson

    Andra Borges LeoO artigo analisa os usos das narrativas de viagens femininas na construo do modelo freyreano de interpretao da cultura brasileira. Com esse propsito, indaga as convergncias e contrastes entre os princpios de formao elencados por Gil-berto Freyre em Sobrados e Mucambos e a interpretao da sociedade brasileira no livro de Adle Toussaint-Samson, Uma Parisiense no Brasil. As notas da escritora francesa so uma das fontes de trabalho e inspirao do socilogo. Interessa mos-trar as tenses provocadas na recepo das ideias e prticas de escrita das viajantes oitocentistas. Ao focalizar a abordagem freyreana no manejo das fontes, o artigo reflete sobre a hiptese de um colonialismo de mo nica da Frana para o Brasil, a exemplo da reeuropeizao que toma os contatos e trocas transatlnticas to somente como influncias.

    PALAVRAS-CHAVE: Gilberto Freyre, Adle Toussaint-Samson, circulao transatln-tica, globalizao da cultura, sociologia das viagens e das viajantes.

    The French and us: Gilberto Freyre put to Adle Toussaint-Samsons test The article analyses the uses of feminine travel narratives in the construc-tion of the Freyrean model for the interpretation of Brazilian culture. The objective is to question the convergences and contrasts between the formation principles listed by Gilberto Freyre in Sobrados e Mucambos and the role of Brazilian society in Adle Toussaint-Samsons book, Uma Parisiense no Brasil. The French writers notes are one of the sources of inspiration and work of the sociologist. It is relevant to show the tensions caused by the reception of the ideas and the writings of the nine-teenth century travelers. As this article focuses on the Freyrean approach in han-dling sources, it also reflects the hypothesis of a one-way colonialism from France to Brazil, following the example of re-Europeanization, which holds the transatlantic contacts and exchanges only as influences.

    KEYWORDS: Gilberto Freyre, Adle Toussaint-Samson, transatlantic circulation, culture globalization, sociology of travel and travelers.

    LEO, Andra Borges ([email protected]) Universidade Federal do Cear, Brasil.

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    INTRODUO: O EXTICO E A AVENTURA, DESEJOS DE BRASIL

    O jornal parisiense Muse des familles de 1857-1858 anunciava a seus leitores uma das grandes novidades do sculo: a Europa e a Amrica estavam irre-mediavelmente ligadas pelo gnio cientfico da eletricidade.1 Os dois mundos podiam se comunicar por meio de cabos submarinos transatlnticos em uma extenso de at quatro mil quilmetros. Os cabos submarinos do telgrafo, argumentavam os editores do jornal, eram capazes de transmitir dados to velozmente de uma parte a outra do Atlntico que necessitavam apenas de trinta e cinco minutos.2

    A despeito da alta velocidade da circulao de informaes, orientando o futuro das relaes internacionais, as viagens de descobertas, aventuras e conhecimentos havia muito ligavam a Europa Amrica. No sculo XIX, as nar-rativas com as observaes sobre a natureza e os costumes de ndios e negros americanos, construdos como homens selvagens ou naturais, despertavam curiosidade por temas que causavam forte impacto social. Os danos da coloni-zao, a histria das ex-colnias espanholas e portuguesas, o debate religioso envolvendo a vigncia das prticas do canibalismo, a escravido do ndio e do negro, a inevitvel mestiagem e os processos de independncia nacional eram atualidades que no se encerravam nos debates das associaes cientficas. Esses temas conferiam ampla publicidade aos livros de viagem.

    Para um francs curioso dos trpicos, at mesmo a simples leitura das nar-rativas de viagem na imprensa a elas consagrada como o Muse des familles, Le tour du monde, Le magasin pottoresque desatava a imaginao, fazendo com que partisse em viagem, ainda que sem o descolamento necessrio aos que pas-savam pela experincia. A descoberta de personagens em movimento, homens e mulheres itinerantes seguindo ao encontro de terras de mulheres e homens exticos, podia levar o leitor a pr a modernidade e sua dinmica cultural prova das alteridades, mesmo as aventuras se desenrolando em espaos conhe-cidos ou j conquistados pela civilizao europeia.

    Uma verdadeira febre de viagens assolava a Europa oitocentista. A doena, nomeada pelos mdicos franceses de apodmalgie, levou o Dr. Descuret, em

    1 Uma primeira verso desse artigo foi apresentada no Grupo de Trabalho Pensamento Social no Brasil, reunido durante o 36. Encontro Anual da Anpocs Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais, em guas de Lindia, So Paulo, de 21 a 25 de outubro de 2012. O artigo resulta do desenvolvimento de minha pesquisa O Brasil juvenil francs: literatura de viagem e comrcio de livraria, vinculada ao projeto de cooperao internacional A circulao transatlntica dos impressos a globalizao da cultura no sculo XIX, coordenado por Mrcia Abreu, do Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas (Brasil), e Jean-Yves Mollier, da Univer-sit de Versailles Saint Quentin en Yvelines (Frana), aos quais sou, mais uma vez, grata. A pesquisa contou com o apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico).2 Muse des familles: Lectures du soir, 1857-1858, p. 378.

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    1841, no livro Mdicines des passions, a afirmar que a mania decorria da leitura do Robinson Cruso, o romance do ingls Daniel De Fe, lembra o historiador Sylvain Venayre (2006: 28). Esse romance foi to amplamente lido e traduzido que acabou inaugurando um gnero no comrcio de livraria, as robinsona-das. O gnero baseava-se tanto em histrias de heris nufragos e sobreviven-tes em ilhas desertas solitrios, em famlia, aristocratas, plebeus, civilizados, brbaros , como nas observaes cientficas.

    As mulheres europeias britnicas, francesas, espanholas e alems tam-bm percorriam o mundo e escreviam sobre suas experincias. Algumas, pou-cas, seguiam carreira de viajantes e exploradoras. Outras viviam suas aventuras em famlia, na companhia dos maridos e filhos, os conhecidos fazedores da Amrica. Mas o que estava em jogo, para as exploradoras e aventureiras, argu-menta Sylvain Venayre (2008: 102), no era somente a escrita das narrati-vas como modo de expresso de suas experincias, mas a publicao de livros quando regressavam e a chance de entrar para o cenrio intelectual de seus pases de origem. Para elas, abrir caminhos no mundo significava produzir conhecimentos. Alm do mais, os modelos e as prticas de viagem podiam ser classificados conforme as motivaes, as circunstncias e os destinos de cada viajante. H pontos em comum e tambm desacordos entre as orientaes da partida o desejo de aventura e de uma nova vida aps um infortnio, para a maioria; votos de religio, para as missionrias; e as expedies e estudos cien-tficos, para as acompanhantes de maridos.

    O livro Les grandes voyageuses, de Marie Dronsart, publicado em 1898 na Bibliothque des coles et des Familles da Librairie Hachette, de Paris, atribua s qualidades ditas naturais femininas a prudncia, a curiosidade, a intuio, a imaginao e a inteligncia na observao do detalhe a disposio das mulheres para a errncia e a partida. Marie Dronsart (1904 [1898]) visava o estabelecimento de um cnone que indicasse a figura da viajante clebre e a constituio de uma fortuna crtica para o gnero. Ao estabelecer um sistema de escolha e classificao, evidentemente, a autora silenciava e tornava invi-svel a trajetria de muitas outras mulheres. Para ela, o charme dos relatos devia-se ao critrio da antiguidade, passadas duas dcadas da publicao torna-vam-se pr-histricos. A busca do extico e as impresses da vida cotidiana, a incluindo a condio feminina, as distines entre classe e raa em socie-dades marcadas pela barbrie da escravido, eram os ingredientes principais das narrativas. Talvez por isso, muitas das viajantes costumavam falar de seus regressos como o despertar de um sonho e no publicavam suas lembranas to logo retornavam. Precisavam de um tempo para elaborar na escrita suas experincias.

    As estrangeiras que viveram no Brasil no sculo XIX estabeleceram pontos de observao em vrias partes e narraram cenas ntimas da dinmica patriar-cal em plena modernidade. A inglesa Maria Graham, autora do Dirio de Uma

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    Viagem ao Brasil (1956 [1824]), a alem Ina von Binzer, autora do livro epis-tolar Os Meus Romanos: Alegrias e Tristezas de Uma Educadora no Brasil (1982 [1887]) e a francesa Adle Toussaint-Samson, que escreveu o livro Uma Pari-siense no Brasil (2003 [1883]), so exemplos de intrpretes privilegiadas do dilema da formao brasileira.3 Por essa razo, tornaram-se fontes de inspira-o e trabalho para pensadores sociais como Gilberto Freyre.4

    Entre os livros que foram citados ou efetivamente lidos pelo socilogo na composio de sua trilogia sobre o patriarcado, encontram-se as memrias da francesa Adle Toussaint-Samson. Em um primeiro plano, este artigo reflete sobre a abordagem freyreana desses documentos e, com isso, busca compreen-der as afinidades seletivas que justificam a escolha e constituio de um corpus no pensamento social brasileiro dos anos 30. Considerado o propsito ini-cial, discute o modelo de interpretao apresentado por Freyre em Sobrados e Mucambos: Decadncia do Patriarcado Rural e Desenvolvimento Urbano, de 1936, e que trata especificamente do quadro de mudana no sculo XIX. A tese da reeuropeizao elaborada pelo socilogo nesse volume acaba sendo posta prova pelas descries que faz Adle do mesmo cenrio de renovaes. Inte-ressa ainda trazer tona as reaes provocadas nos contemporneos por Uma Parisiense no Brasil livro referenciado na obra polmica de Charles Expilly (1935 [1863]).

    Se os textos agrupados sob determinados temas, como as brasilianas, esto em uma ordem de sucesso e se inscrevem em longas cadeias de interpre-tao, h referncias compartilhadas entre o socilogo e a viajante. Afinal, foi ele que chegou a ela, no o contrrio. Mas, em funo de um posicionamento poltico face aos documentos, Freyre acaba por no enfrentar a complexidade da trama de sua produo emprica, deixando escapar as mltiplas conexes entre as culturas nacionais e as apropriaes de ideias por brasileiros nem sem-pre sedentos de novidades.

    A perspectiva na qual repousa o argumento elege os conceitos de circulao e apropriao cultural (Chartier 2008; Mollier 2003). Se lidas na perspectiva da articulao entre esses dois conceitos, as lembranas de Adle elucidam um dos princpios de formao da cultura brasileira: as travessias e contatos para alm dos oceanos entre indivduos, objetos e ideias (Chartier 2013). Assim, o encontro entre culturas, intensificado no sculo XIX com o comrcio de livros

    3 Um levantamento das viagens femininas ao Brasil no sculo XIX encontra-se no estudo pioneiro de Mriam Moreira Leite (1984).4 Gustavo Henrique Tuna chama a ateno para a importncia dos relatos de viagem na composio da obra de Gilberto Freyre, associando-os experincia de viajante do socilogo. Embora Tuna no tenha pesquisado especificamente os relatos das viajantes, vale consultar Viagens e Viajantes em Gilberto Freyre (2003). Maria Lcia Pallares-Burke e Peter Burke, no retrato intelectual que traam do socilogo, atribuem igualmente uma grande importncia ao relato de viagem na construo metodolgica de Freyre; consultar Repensando os Trpicos (2009).

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    e impressos, converteu as experincias de dependncia e dominao europeias em conquistas de autonomia.

    As memrias de Adle Toussaint-Samson foram produzidas no movimento das trocas internacionais. Ela mesma desempenhou o papel de transmissora cultural e seu livro nos convida a uma viagem que incorpora as polmicas e desacordos intelectuais entre franceses e brasileiros. Por isso mesmo, a tese da reeuropeizao desenvolvida por Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos (2003 [1936]) a sntese dos processos de influncia de uma matriz cultural consolidada e irradiante sobre outra em formao acaba sendo posta prova quando confrontada com o arquivo de imagens e autoimagens e todas as nuan-ces de interpretaes das viagens femininas.

    OS ARQUIVOS E AS FONTES: CIRCULAO TRANSATLNTICA DA CULTURA

    A produo intelectual que se configura no Brasil a partir do meado do sculo XIX deve muito ao comrcio de exportao de impressos e livros europeus e, em consequncia, a um movimento intenso e veloz de circulao internacional de ideias. No por acaso, o problema dos efeitos da importao dos modelos artsticos e literrios europeus na formao da cultura brasileira marca o pen-samento social da dcada de 1930. No centro das inquietaes dos intrpre-tes do Brasil encontram-se os vnculos entre uma cultura nacional em vias de constituio e as influncias provocadas por prticas culturais recriadas como projetos de conquista. Os impactos do movimento internacional das ideias no Brasil so, desse modo, enfocados sob o ngulo do transplante e da influn-cia quase sempre como imitao passiva. Desse modo, imprimir uma marca nacional que permitisse reconhecer nossa produo simblica como autntica estava na base do pensamento social.

    Gilberto Freyre, por sua vez, e de livro em livro, foi ajustando as complexas relaes entre a cultura brasileira e a europeia no par tutela-dependncia. Uma questo merece ser feita ao socilogo, partindo de sua prpria interpretao: o modelo das acomodaes dos antagonismos que se desenvolveu no patriar-cado tropical entre portugus, ndio e negro, senhor e escravo, pai e filho, homem e mulher, tradio e modernidade , tambm explicaria as tendncias de longo prazo, as disposies ntimas e as relaes de poder do par nacional--estrangeiro? Noutras palavras, qual a lgica da dominao cultural formulada no modelo analtico freyreano?

    Se olhamos a figurao intelectual oitocentista de outro ngulo e formu-lamos o problema em outra perspectiva, as operaes de exportao de livros vinculadas a uma poltica de distribuio baseada na disseminao de pontos de venda pela Amrica do Sul ensejaram a transferncia de capital literrio para os pases de produo cultural ainda incipiente. No caso do Brasil, o que poderia ser um projeto de colonizao cultural, de pura e simples imposio

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    de bens de consumo, permitiu o acmulo de capital simblico necessrio autonomizao das letras, da cincia e de um conhecimento social j em vias de constituio. A presena dos estrangeiros em um pas que se abria moder-nidade s poderia criar um feixe de tenses entre as presses nacionais, que ensejavam o incmodo de um sentimento de inadequao nas apropriaes de ideias e bens europeus, e as tentaes de um cosmopolitismo provocadas nos intelectuais, artistas e escritores, e mesmo em um pblico mdio de bacharis e doutores, em contato com essas mesmas ideias, objetos e indivduos.

    Gilberto Freyre (2003 [1936]) no viu que essa tenso orientava as relaes intelectuais no sculo XIX. A circulao transatlntica dos impressos e objetos culturais resultava, para ele, em um movimento de reeuropeizao de nossos modos de vida e pensamento, iniciado com a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, com a abertura dos portos e o incremento do comr-cio de importao com navios estrangeiros. Observava-se, continua o socilogo, a expresso de um sentimento de superioridade a tudo o que fosse herana dos tempos coloniais. Essa progressiva ocidentalizao nacional enfrentava os costumes j tradicionais de uma primeira europeizao implantada pelos colonizadores ibricos no desenvolvimento da sociedade patriarcal. A tese, de enorme fortuna sociolgica, a de que o primado ibrico soube aclimatar nos trpicos uma cultura oriental sob a influncia do mouro, do judeu, dos rabes e dos negros africanos. A nacionalizao da cultura brasileira s podia resultar da assimilao das contribuies portuguesa, africana e indgena.

    Nada provocaria ruptura nessa tradio, nem mesmo as revoltas liberais que pontuaram o sculo, como a dos Mascates, em Pernambuco (1710). Os desequilbrios nas relaes de poder e na ordem social resultariam de len-tos processos de transio e convvio entre velhas e novas figuraes sociais. A temporalidade psicossocial, para Gilberto Freyre (1974 [1957]), superpe tempos contraditrios. Combinando durao e movimento, as formas do pas-sado insistiam em permanecer. Entretanto, a urbanizao do pas junto disse-minao dos valores ocidentais e dos costumes europeizados no novo equilbrio de antagonismos entre o sobrado e o mucambo, aos poucos, ia quebrando a acomodao secular entre o senhor e o escravo. lide Rugai Bastos (2006) chama a ateno para o fato de que as cidades e seus personagens tornam-se cenrios de novos conflitos que redefinem as hierarquias sociais e acentuam outros antagonismos. A ascenso do bacharel e do mulato por meio do estudo e aquisio de cultura livresca, em Coimbra, Paris, Inglaterra, ou mesmo em So Paulo, Olinda ou na Bahia, passa a ocupar o centro da cena.

    Abre-se uma razovel distncia entre os destinos desses personagens de diferenciao social e os da mulher e o da criana filho-famlia o par tirani-zado pelo homem patriarca. Eclodem conflitos entre o patriarcado rural e o prestgio das novas geraes de bacharis e doutores que ousaram atravessar o Atlntico em busca de conhecimentos. Divididos entre as presses nacionais e

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    o cosmopolitismo das trocas transatlnticas, quando retornavam eles traziam novas modas e doutrinas.

    Em todo o processo de falncia do patriarcado escravista e de transio para a modernidade brasileira, a unidade familiar a que mais se v alterada. A comear pelas regras de convvio. O modelo de gesto da intimidade, ou melhor, a gerncia do secreto tpica da civilidade burguesa, toma o lugar dos ritos modorrentos e coletivos da vida rural. Objetos da cultura burguesa tais como latas de biscoitos, foges de ferro, pianos de cauda, louas inglesas e os artigos de cutelaria, garfos e facas mesa, novidades da culinria, assumem a majestade dos sobrados e so utilizados por aqueles que se empenham em fazer o aprendizado da distino. Tambm mudam os modos de recreao. A leitura dos livros e impressos em outros idiomas passa a organizar o novo espao domstico. A posse de livros importados, principalmente os franceses de literatura, filosofia e poltica, os livros tcnicos, as cartas da Mme de Svign, as Fbulas de La Fontaine, o Emile e a Nouvelle Hlose, de Rousseau, o Esprit des Lois, de Montesquieu, os dicionrios e manuais de qumica, medicina, fsica, astronomia e zoologia, as narrativas de viagem, entre outros ttulos e gneros (Freyre 1960 [1940]: 277-279), era prova material e manifestao ntima, de acordo com o socilogo, das obrigaes da dependncia cultural brasileira.

    Na nova civilizao, as mulheres estrangeiras, governantas e professoras, passam a ser admitidas nas casas de famlia de norte a sul do Brasil. So elas que vo tomar o lugar das matronas e dos padres jesutas na educao das crian-as. Essas mulheres empenham-se em observar a dinmica social, as regras da casa e da rua, deixar por escrito suas impresses, afirmar uma dignidade auto-ral e transmitir ao mundo letrado suas experincias de vida publicando livros. A plasticidade das viajantes estrangeiras lhes conferiu o papel de protagonistas na reeuropeizao do convvio ntimo patriarcal brasileiro, alterando o estilo e a cultura dos demais personagens.

    [] o que nos faz voltar s governantas e institutrices para acentuar que tambm elas, na primeira metade do sculo passado talvez mais numerosas nas casas-grandes e nos sobrados patriarcais do norte do que nos do sul, exerceram a ao revolucionria que no deve de modo algum ser esquecida ou menosprezada (Freyre 2003 [1936]: 76).

    Maria Graham, a governanta da princesa Maria da Glria (Leite 1984), com todo o cuidado dos que tm acesso ao interior de uma casa e observam a vida alheia, o contorno dos objetos e os detalhes da intimidade, viu os mveis coloridos e orientais da China, da ndia, ainda resistindo moda ocidental de decorao dos sobrados, no Rio de Janeiro. Observou a sensualidade dos toques das mucamas, no cafun, em pleno convvio burgus de costumes. Nas cartas que escreveu sobre a rotina dos sobrados e fazendas, Ina von Binzer

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    acentuou as vantagens das professoras em relao aos comerciantes que se instalavam nas zonas martimas. De dentro da casa, essas mulheres descortina-vam toda a trama da famlia brasileira (Binzer 1982 [1887]: 95). A ponto de um grupo de irms sinhazinhas que formavam verdadeira santa inquisio, de to adultizadas e srias, junto aos meninos das fazendas de nomes romanos e imponentes, mesmo sendo filhos de pais de convices liberais, permitirem a Ina conhecer de perto a etiqueta e hierarquia que regia o conjunto das relaes sociais.

    Do mesmo modo, Adle Toussaint-Samson reconheceu a luta entre culturas e civilizaes de que se tornara palco a capital do Brasil. Suas notas escritas e fotografias sobre os mveis e arquitetura das casas atestam os parentescos e afinidades com os costumes e modas orientais, em pleno perodo de substitui-o de importaes. Os relatos das viagens de Arago, Debret, Southey, Kidder, Saint-Hilaire, Charles Expilly, DAssier e Ferdinand Denis tambm so refern-cias que no se esgotam nelas mesmas.

    Para Freyre (2003 [1936]: 446), o processo de reeuropeizao das elites e estratos mdios ensejou desdobramentos. O principal deles foi a mstica do contato franco-brasileiro, o francesismo ou afrancesamento como reao ao exotismo tropical construdo pelos viajantes franceses e agravado, no sculo XIX, por um sentimento de superioridade. Assim, o contato franco-bra-sileiro era mantido por meio de um jogo de imagens e autoimagens, desde a inveno francesa do bom selvagem ao contraponto brasileiro do afrancesa-mento, mais tarde construdo pelos pensadores sociais.

    No modelo freyreano, a eficcia da civilizao europeia que se impunha aos trpicos era medida pela produo de crenas e mistificaes em brasileiros sedentos de novidades. Ao lado dos artistas, mestres artesos e tcnicos ingle-ses, franceses e alemes, sobressaa a figura do europeu branco e monopoliza-dor, a exemplo dos que se destacaram no comrcio de importao, disputando mercado com os produtos orientais, rabes e chineses. Uma dessas figuras foram os livreiros-editores parisienses que se instalaram na corte do Rio de Janeiro na segunda metade do sculo. O mais importante entre eles, Baptiste-Louis Garnier, ao lado de Aillaud, Garroud, Briquiet e Laurrane, ilustrou a vocao expansionista do comrcio de livros europeu, observa Jean-Yves Mollier (1988). Se Baptiste Garnier, editor de Jos de Alencar e Machado de Assis, entre outros escritores nacionais, inventou um pblico leitor brasileiro, seria porque em Paris, onde se situava a matriz da livraria, os editores colhiam os frutos da reforma da instruo universal e, por conseguinte, da massificao do pblico leitor (Mollier 1999). Em decorrncia de tudo isso, os livreiros engajavam-se na produo em grande escala e na exportao para fora do mercado europeu.

    Da leitura de Sobrados e Mucambos, pode-se afirmar que os caminhos para os homens do livro foram abertos, anteriormente, pelos tcnicos, artesos, mecnicos, pedreiros e pasteleiros, aougueiros e pequenos comerciantes de

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    vrios gneros, levas de imigrantes europeus que vieram reeuropeizar a vida e a paisagem social brasileira. Esse processo deve ser buscado no apenas na alta cultura difundida no livro, assinala Freyre, mas na transmisso de novas tcni-cas de produo e negcio. o caso da atuao do engenheiro francs Louis--Lger Vauthier, difusor das ideias polticas de Charles Fourier e Saint-Simon e construtor de pontes, estradas e imponentes edifcios no Recife, capital da provncia de Pernambuco.

    Em 1937, um ano aps a publicao de Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre ganha de presente do amigo Paulo Prado o manuscrito do dirio ntimo do engenheiro Vauthier, que residiu no Recife de 1840 a 1846, ocupando o cargo de chefe da Repartio de Obras Pblicas. O que mais lhe chamou aten-o no manuscrito foram as informaes sobre a atuao tcnica, no comrcio e na indstria, dos imigrantes franceses da primeira metade do sculo (Freyre 1960 [1940]: 30). Freyre decidiu, ento, fazer um esboo da figura de Vauthier acompanhado de um ensaio sobre a sua atuao em Pernambuco, aps a edi-o do dirio pelo Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Em 1940, o livro do socilogo contendo esboo e ensaio publicado no nmero 26 da coleo Documentos Brasileiros, da Editora Jos Olympio. Esta publicao acontece em plena era Vargas, lembra Claudia Poncioni (2010: 24), quando as impresses dos viajantes oitocentistas cumpriam papel importante na cons-truo de estratgias identitrias. Freyre, j famoso e empenhado na escrita de uma obra de interpretao do Brasil, redigiu ainda o prefcio e as notas expli-cativas de uma nova edio do dirio de Vauthier, em 1960. Para uma melhor compreenso do trabalho do socilogo sobre o manuscrito pode-se afirmar, com Antonio Dimas (2010: 31), que Freyre inovou no mtodo de investigao ao se debruar sobre o documento virgem, jogando luz sobre um texto feito para no ser publicado.

    Na introduo do dirio de Vauthier, o socilogo explica que o primeiro passo na constituio de um corpus documental que permitisse o conhecimento das atividades tcnicas dos imigrantes europeus foi o exame dos anncios e editoriais dos jornais que circularam durante o reinado de Pedro I e o perodo da Regncia. No Arquivo Pblico do Estado de Pernambuco, na Repartio de Viao e Obras Pblicas e na Biblioteca, Freyre buscou documentos oficiais, manuscritos relativos a oramentos de projetos e obras direcionados ativi-dade do engenheiro. Foram muitos os obstculos pesquisa, a situao dos arquivos era bem precria, lamenta-se o socilogo. Mas graas a uma rede de relaes intelectuais localizou os documentos. Afonso Arinos de Melo Franco trouxe de Paris fotografias, cartas e anncios de jornais do arquivo privado de Vauthier e Honrio Rodrigues levantou fontes no Instituto Histrico do Rio de Janeiro.

    Gilberto Freyre abre a introduo com um comentrio sobre seu mtodo de trabalho: o mtodo seguido foi o histrico-social, de procurar destacar as

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    repeties, ou melhor, as recorrncias, ou as regularidades de significao socio-lgica. E estas, quanto mais intensamente estudadas numa regio, melhor (1960 [1940]: 34). A declarao sobre os protocolos da pesquisa regional os desdobramentos do objeto esto ligados histria de Pernambuco , ao lado das referncias tericas, orientou a escolha e interpretao dos documentos. O procedimento de seleo, classificao e anlise dos documentos sobretudo correspondia s referncias tericas do socilogo, em grande parte adquiridas na formao de base nas universidades americanas dos anos 1920.

    Em seguida, Freyre desenvolve a tese da transmisso tcnica entre franceses e brasileiros, protagonizada pelos primeiros artesos e, depois, pelos profissio-nais especializados em certa influncia francesa no Brasil. No caso, a influn-cia, cujos protagonistas so os agentes da cultura, foi marcadamente de ordem tcnica. O engenheiro francs seria um ponto de apoio histrico com caracte-rsticas gerais, tpicas, regularidades suscetveis de anlise sociolgica.

    O socilogo tem em vista que a histria da influncia francesa a histria da presena e ao dos franceses no Brasil: as ligaes que construram e as ideias que transmitiram. Recebemos dos franceses sobretudo o gosto pelo tra-balho manual, por meio da tcnica e do comrcio. Depois, por meio da cincia, da literatura e das artes. No se deve perder de vista que a tcnica e o comr-cio se acompanhavam de ideias que nos chegavam por transculturao ou transplante. Os agentes da cultura francesa operavam uma certa pedagogia, cujo efeito era o de impressionar um povo atrasado. No caso de Louis-Lger Vauthier, tratava-se da propagao da doutrina socialista.

    Mas, o que constitui um aparente paradoxo que a irradiao da cultura francesa no Brasil se deu, antes de tudo, pela assimilao do ndio durante os primeiros contatos. Freyre prossegue argumentando que os pontos de contato com a Frana na formao social brasileira se deram de trs modos: por meio do contrabando de madeira; dos aventureiros, nos sculos XVI e XVII; e dos missionrios e cientistas ilustres.

    Maria Lcia Pallares-Burke (2005), na biografia intelectual de Gilberto Freyre, discute o processo de concepo da trilogia do socilogo: Casa-Grande & Senzala (2013 [1933]), Sobrados e Mucambos (2003 [1936]) e Ordem e Pro-gresso (1974 [1957]). A autora adentra os arquivos ntimos de Freyre, estuda a sua biblioteca particular, os documentos da juventude, as crnicas publicadas no Dirio de Pernambuco e as anotaes no dirio-memria, a fim de refazer os caminhos metodolgicos do socilogo. Em primeiro lugar, assinala Maria Lcia, Freyre marca uma distino por trazer o ensaio para a sociologia, fruto de uma longa formao universitria no exterior. O jovem Gilberto conheceu o ensaio ainda no curso de Andrew Joseph Armstrong, na Universidade ame-ricana de Baylor. Foi o gosto pelo gnero convertido em protocolo de escrita que o levou ao aprendizado e ao interesse pela rotina da vida. Pallares-Burke procura ligar as prticas aparentemente desconexas, esparsas e descontnuas

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    das leituras de Freyre preferncia pela escrita ensastica e a uma possvel aber-tura da sua criatividade. O relacionamento com os livros e os modos de l-los, nesse caso, orientariam o mtodo relativamente casual de seleo e anlise das fontes de trabalho. Pode-se concluir, ento, que a interpretao do socilogo corresponderia a esse modo peculiar de ler os indcios do passado.

    Freyre lia de tudo, desde obras de filosofia e histria aos romances popula-res do sculo XIX, sistematicamente de modo assistemtico (Pallares-Burke 2005: 112). No se pode perder de vista, lembra a escritora, que Freyre estava empenhado em criar um novo estilo, em escrever obras diferentes das consa-gradas. Por diversas vezes, mostrou-se confiante, para no dizer orgulhoso, de suas leituras contraditrias. O apreo ao perspectivismo remete relao com a verdade e a prova, que mediada pelo gosto e pelas afinidades na esco-lha aleatria de certos aspectos do passado.5

    Uma das fontes privilegiadas de Gilberto Freyre para a reconstituio da dinmica patriarcal e a elaborao do modelo da reeuropeizao so os ann-cios publicitrios nos jornais os de venda de escravos, modas, utenslios domsticos, artigos de importao, livros e impressos em geral. No se pode desconsiderar a importncia da imprensa peridica na busca dos vestgios do tempo. As mensagens nos jornais (os editoriais, notcias e anncios), no entanto, no se explicam por si mesmas e muito menos encerram tudo sobre o passado, como afirma Tania Regina de Luca (2011). Quando tomadas iso-ladamente escondem os diversos interesses postos em jogo nas publicaes, as estratgias comerciais e lutas de afirmao simblica dos produtores e, no caso de Freyre, as circunstncias de ordem poltica que porventura possam ter orientado a escolha e interpretao dessas fontes de pesquisa. Para que os anncios da venda de escravos estudados por Freyre (2010 [1963]) se tor-nassem objetos de histria social e antropologia cultural inaugurando uma nova cincia como ele pretendia, a anunciologia , no poderiam ser tomados na sua transparncia. E mais, se os efeitos da difuso dos anncios na cultura brasileira so importantes chaves de interpretao oferecidas pelo socilogo, nem por isso a dinmica social que regulava a imprensa peridica oitocentista se tornaria visvel logo ao primeiro olhar.

    O mesmo tratamento isolado foi dado aos livros das viajantes. Freyre no procurou estabelecer vnculos entre as narrativas e muito menos buscou com-preender as condies sociais de suas circulaes. Talvez no tenha sido do seu interesse a ampliao do corpus documental de sua pesquisa estendendo-o aos

    5 Consideraes fundadas na leitura de Maria Lcia Pallares-Burke e Peter Burke (2009: 111). Os autores observam que Freyre, por diversas vezes, assumiu seu impressionismo, reivindicando uma margem de liberdade de criao para a sua obra concebida como ensaio. Seu mtodo ligava-se, por exemplo, em Casa-Grande & Senzala, escrita de uma histria ntima (da o apego aos detalhes), apesar de todas as possibilidades de trabalho abertas pela leitura dos documentos coloniais.

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    catlogos das editoras francesas no Brasil, aos ttulos de uma coleo de via-gem, aos indcios que levassem mania que provocavam nos leitores europeus e muito menos dirigir perguntas aos percursos de publicao das viajantes e aos sucessos e reaes que provocavam entre os leitores brasileiros. Na obra monumental de Gilberto Freyre, as narrativas de viagem so utilizadas como preciosas fontes de informao e ilustrao, mas poderiam tambm ter sido apropriadas como objetos de anlise. O socilogo no observou as regularida-des e variaes entre elas.6 Quem sabe por esse motivo, quase tornou invisveis as lembranas de Adle Toussaint-Samson, citando-as muito rapidamente na bibliografia de Sobrados e Mucambos e deixando na sombra a atuao de trans-missora cultural da escritora, to importante para o estudo dos contatos entre o Brasil e a Frana quanto a do engenheiro Louis-Lger Vauthier.

    Foi necessria a passagem de muitos anos para que Mriam Moreira Leite (1984), em estudo pioneiro sobre a condio feminina no sculo XIX, confe-risse legitimidade s impresses de Adle, do mesmo modo e valor que s ano-taes e estudos dos diplomatas, artistas e cientistas naturais estrangeiros, sem insistir na dicotomia que hierarquiza os objetos do passado entre cannicos e ordinrios.

    LEITURAS DE ADLE TOUSSAINT-SAMSON: CONTROVRSIAS NO ESPELHO

    Na companhia de Jules, o marido nascido no Brasil de pais franceses e que mais tarde se tornaria professor de dana da famlia imperial, e do filho pequeno, Adle deixou a Europa por motivos financeiros. A viagem da famlia durou 12 anos. Os Toussaint viveram no Rio de Janeiro de 1850 a 1862.

    Uma vez instalada e aps contrair e curar-se de uma febre amarela, Adle passou a dar aulas de francs e italiano. Com isso, adentrou a famlia patriarcal, olhando de perto os ntimos detalhes dos usos, costumes e regras de convi-vncia. A atividade de educadora orientou as notas de suas impresses (Leite 1984: 24). Enquanto elemento de ligao entre os estrangeiros e a populao

    6 Cabe fazer um breve comentrio sobre a importncia estratgica das notas na obra freyreana. Assim como o espao da dedicatria, que revela as relaes de clientela e patrocnio, crdito e recomen-dao, o espao da nota vai alm da simples referncia ao texto. Seria interessante tomar as operaes investidas nesses espaos marginais, notas ao final de cada captulo, como objetos de discusso, o que evidentemente foge s intenes e aos limites deste artigo. nas notas que Gilberto Freyre dialoga seriamente com os documentos, refletindo sobre as decises, escolhas e interpretaes do material da pesquisa. Por meio das notas, compreendemos melhor a constituio do corpus, as reflexes tericas e metodolgicas. Ao final de cada captulo de Sobrados e Mucambos, Freyre cria o efeito de um debate intelectual face aos interessantssimos livros de viagem ao Brasil, com os dos franceses DAssier, Louis Freycinet, Paul Gaffarel, Charles Reybaud, entre outros. Mais uma charada que o astuto socilogo nos arma: problematizar os usos dos documentos nas notas para no comprometer a escrita na forma de ensaio.

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    nativa, o exerccio profissional um dos pontos de definio das viagens como gnero, observa Magda Sarat (2004).

    Se partirmos da relao entre o ttulo e o contedo, a narrativa de Adle se refere questo racial feminina e apresenta um estudo das mulheres enquanto categorias psquicas que formam o quadro mental da famlia brasi-leira: as ndias nas fazendas, as escravas negras das cidades e as empregadas mestias, categoria definida como meio-termo entre dona-de-casa e criada ( Toussaint-Samson 2003 [1883]: 133). Todas essas mulheres so represen-tadas em relao s senhoras brancas, brasileiras e estrangeiras, e, evidente-mente, em relao ao patriarca, a incluindo outras figuras sociais do mando, como os feitores das fazendas.

    Sobre a constituio racial do brasileiro, a viajante no foge ao padro dos estudos da poca e reproduz a tese corrente da mestiagem como um dos fatores de instabilidade e enfraquecimento da raa. A tese da escravido como um mal necessrio economia agrcola do pas tambm reproduzida. Do mesmo modo, sublinha a hospitalidade inata aos habitantes do pas tropi-cal. Como no se tratava da publicao dos resultados de uma viagem oficial de estudos, Adle no se preocupa em preparar nas suas lembranas uma lio de casa sobre a experincia racial nos trpicos, as impresses so descritas sob o impacto da descoberta. O prlogo que antecede a narrativa da parisiense leva a crer que ela se dava conta de que lhe faltava legitimidade, ante seus compa-triotas, para falar sobre as formas de convivncia nos trpicos.

    Adle tem em vista que uma das caractersticas inatas do brasileiro no suportar servir, o que, a seus olhos, explicaria o desprezo ao trabalho manual e um orgulho que tocava a animalidade:

    Como dizia h pouco, uma brasileira coraria em ser surpreendida em uma ocupao qualquer, pois professam o mais profundo desprezo por tudo que trabalha. O orgulho do sul-americano extremo. Todo mundo quer ser senhor; ningum quer servir. No se admite, no Brasil, outra profisso que no a de mdico, de advogado ou de negociante atacadista (Toussaint- -Samson 2003 [1883]: 157).

    Ambas as caractersticas, indolncia e orgulho, beiravam zonas de perigo. possvel que estivesse empenhada em satisfazer o pblico leitor francs cheio de expectativas em relao ao exotismo tropical. A representao do mistrio e poder de seduo da mulher brasileira, da negra em particular, igualmente beirava uma zona de perigo, o que poderia nutrir ainda mais a curiosidade e o desejo de aventura de homens franceses j bastante informados sobre o Brasil:

    Quanto raa brasileira, mistura de sangue europeu, americano e afri-cano, tem toda a indolncia crioula, fraca, abastardada, muito inteligente

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    e no menos orgulhosa. evidente que ao comrcio com os negros que se deve em parte a deteriorao dessa raa. As negras, com seus ardores afri-canos, estiolam a juventude do Rio de Janeiro e de suas provncias. H em seu sangue um princpio acre que mata o branco (Toussaint-Samson 2003 [1883]: 100).

    Na perspectiva de Adle, o princpio acre que mata o branco no se redu-ziria a questes de pigmentao da pele ou a atributos fsicos, mas a poderes de seduo. A entrega da brasileira ao homem branco no aparecia como metfora de um encontro amoroso e alienao total que resultaria na feliz colonizao racial pelo casamento. Em se tratando da mulher negra, imaginada como ani-mal carnvoro sujeito a toda sorte de condenao moral, a relao sexual no venceria o estranhamento, superaria as diferenas e muito menos apresentaria bons frutos de mestiagem. Fiel s referncias europeias, a parisiense compara as escravas negras s espanholas em poder de atrao, assim como as damas brasileiras que apreciavam a dana nacional do lundu, que todo mundo deve acompanhar estalando os dedos como castanholas, para bem marcar-lhe o ritmo (Toussaint-Samson 2003 [1883]: 106). No lundu, o homem no faria mais que girar em torno das danarinas perseguindo-as nos seus movimentos de gata. As negras Minas, para a viajante, eram as que mais se assemelha-vam s europeias; a cintura arqueada, o busto saliente, o andar desembaraado sempre acompanhado de um movimento de quadris bem provocante, embora marcado por certa altivez, como o da espanhola (Toussaint-Samson 2003 [1883]: 82).

    Se orientarmos as notas sobre a sexualidade das brasileiras em Uma Pari-siense no Brasil para o tema do processo civilizador analisado por Norbert Elias (2011) e transpusermos este para a singularidade dos trpicos, como fez Ricardo Benzaquem de Arajo, descortina-se, no sculo XIX, um dos pon-tos de mutao entre a dinmica familiar dos sobrados e a das casas-grandes coloniais: a extrema moderao que parece definir a relao entre homens e mulheres dentro dos sobrados (Arajo 1994: 118). De acordo com o histo-riador, a progressiva emancipao dos escravos restringia, paulatinamente, os objetos das paixes e promiscuidades do homem patriarca, transformando as normas de convvio no sentido de uma maior necessidade do autocontrole e das obrigaes. As orgias anteriormente praticadas com as escravas so deslo-cadas para as zonas de prostituio. A monogamia torna-se modelo de famlia. Desse modo, redefine-se o equilbrio dos antagonismos da autoridade patriar-cal em relao mulher, agora romanticamente idealizada, franzina ou lan-gue (Freyre 2003 [1936]: 212), para a qual destina-se uma etiqueta e uma literatura, e em relao ao filho precocemente envelhecido e pronto a atraves-sar o Atlntico a fim de tornar-se bacharel ou doutor. Nesse processo de refrea-mento dos afetos e conteno dos impulsos sexuais, as senhoras dos sobrados,

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    voltando a Freyre (2003 [1936]: 218), foram as que mais se influenciaram pela novidade das modas e costumes franceses. A reeuropeizao, a urbanizao e a sofisticao da vida pelo contato com ideias e produtos importados afetou sobretudo o corpo da mulher brasileira, que se tornara modelado.

    Alm dos espetculos da violncia, seja no trato familiar ou na punio aos escravos, diverso e emoo eram tudo o que os editores parisienses exigiam de efeitos para a publicao dos manuscritos dos viajantes ao Brasil, adverte Adle no prlogo do seu livro. No registro das impresses cotidianas da ordem escravocrata, a parisiense, como Gilberto Freyre anos aps, devia muito s lei-turas de Charles Expilly.

    Em 1852, Expilly partiu de Marseille rumo ao Rio de Janeiro, permane-cendo no Brasil por dez anos. Em 1862, de volta Frana, comea a publicar artigos polmicos sobre o trfico da emigrao e da colonizao no Brasil. No mesmo ano sai o livro Le Brsil, tel quil est, citado larga por Adle, e que tem como continuao Les femmes et les moeurs du Brsil, publicado em 1863, abordando especificamente a condio social e racial feminina. Em 1935, com o ttulo As Mulheres e os Costumes no Brasil, o livro de Expilly entra na cole-o Brasiliana, dirigida por Fernando de Azevedo para a Companhia Editora Nacional, dois anos aps a publicao de Casa-Grande & Senzala. Na edio brasileira, o tradutor e prefaciador de Expilly, Gasto Penalva, justifica ao leitor a publicao de obra que causara tanto escndalo. O nico valor da traduo era documental, no sentido de um material que reflete o passado, ainda que na viso de olhos deformados por estrabismo (1935: 7). Vale acrescentar, no entanto, que os brasileiros liam os livros de Expilly no origi-nal francs, uma vez que eram publicados na Frana e chegavam ao Brasil na livraria Garnier.

    As impresses narradas em Le Brsil, tel quil est no correspondiam ao que Expilly denunciava como propaganda entusiasmada do governo brasileiro na imprensa francesa. Talvez por essa razo o livro no tenha sido bem acolhido na Revue des Deux Mondes, nos jornais de Marseille, Lyon, Bordeaux e, com-plementa Expilly (1935 [1863]), mesmo nos jornais da Blgica e de Buenos Aires. Todos o acusavam de ter carregado nas tintas. Em um dos captulos mais ferinos, o viajante traa o perfil do imigrante francs no Rio de Janeiro. Os que exerciam atividades comerciais na Rua do Ouvidor, tida como o corredor chic da moda, das mulheres elegantes e coquettes, das livrarias e da cultura parisiense, Expilly acusa de astuciosos e desleais. As migraes dos bem-sucedidos, cheios de dvidas, justificavam-se por desejos de aventura e conquista, moralmente condenveis pelo viajante (1935 [1863]: 266). Orgulhosos, parvenus e pouco escrupulosos, os comerciantes deviam suas fortunas a negcios fraudulentos associados escravido. Havia quem seduzisse os clientes com a coquetterie das esposas. A polcia, como medida de segurana, continua Expilly (1935 [1863]: 231), costumava publicar nos jornais por trs dias consecutivos listas com os

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    nomes das pessoas que partiam para o exterior, com a indicao do navio e do destino, a fim de advertir o pblico das possveis fugas de devedores.

    Do mesmo modo, saltava aos olhos de Adle o abrasileiramento das com-patriotas francesas. To logo ascendiam, as europeias, pouco importando se pobres ou enriquecidas, esqueciam suas lnguas de origem e contratavam mucamas, embaralhando as peas do jogo da civilizao para deixar entrever todo o processo de interiorizao do modo de vida colonial. Por isso, quando os casais franceses retornavam, comenta a viajante, costumavam levar algu-mas curiosidades do Brasil, como crianas negras. A parisiense conta a histria de um garoto de cinco anos que ao chegar em Paris tiritava tanto com o frio em um canto da lareira da casa que seus pais adotivos o faziam beber copos cheios de aguardente para se aquecer. Ao fim de seis meses, o pequeno faleceu. Da mesma famlia francesa, Adle recorda-se:

    Fui recebida, minha chegada, na casa de um ex-latoeiro e sua mulher, parvenus em toda a fora do termo, que eram bem divertidos! O marido, um homem corpulento, usando brincos, no podia dizer uma palavra sem acompanh-la de um erro de pronncia, e s abria a boca para falar de sua riqueza e de seus escravos. Quanto sua mulher, muito robusta tambm, como dizia, pavoneando-se em sua poltrona com um vestido decotado, que mostrava o que ela devia esconder com cuidado, interrompia sua partida de cartas para gritar a todo instante, negrinha! Passa-me o leque! negrinha! D-me a caixa de rap! negrinha! Traze-me um copo dgua! negrinha! Apanha o meu leno, e principalmente esse leno, ela o lanou ao cho mais de vinte vezes durante a reunio, para ter o prazer de fazer uma negrinha de sete a oito anos, acocorada a seus ps, apanh-lo outras tantas vezes ( Toussaint-Samson 2003 [1883]: 86).

    E assim a cultura europeia ia se colocando prova da vida selvagem. As impresses de Adle confrontadas perspectiva da reeuropeizao apresen-tada por Freyre tornam difcil saber quem influenciava quem. Esse o ponto no qual a parisiense pe prova a tese da influncia europeia como imitao passiva. As lembranas de Adle chamam a ateno para as variaes rec-procas das imitaes. Nas tendncias de longo prazo, disposies ntimas e relaes de poder do par nacional-estrangeiro, se um reproduz as inovaes do outro costumes, objetos e tudo o mais indispensvel vida nas cidades , o outro realiza sua integrao assimilando a experincia colonial em acentuado declnio. Como elemento de diferenciao social, os franceses no Rio de Janeiro no correspondiam exclusivamente figura do branco monopolizador, mas de uma classe caixeiral de pequenos comerciantes dispostos a tudo pela integrao.

    Tampouco escapou ao olhar atento da viajante a crueza das espanholas, as que aproximavam, no debate da sexualidade feminina, as diferenas tropicais

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    da Europa. Essas mulheres abrasileiravam-se de modo to patriarcal que che-gavam a ponto de espancar seus escravos:

    Tnhamos uma vizinha, na Rua do Rosrio, no andar superior, uma seora (senhora) espanhola que tinha a seu servio trs ou quatro escravos. Todo dia, cenas horrveis aconteciam acima de nossas cabeas. Pela mais leve omisso, pela menor falta de um deles, a espanhola os chicoteava ou dava-lhes golpes de palmatria, e ouvamos as pobres negras lanarem-se a seus ps, gritando Perdo senhora! Mas a implacvel patroa jamais se dei-xava enternecer, e dava sem piedade o nmero de golpes que julgava dever dar. Aquelas cenas faziam-me um mal horrvel (Toussaint-Samson 2003 [1883]: 97).

    Um dia, continua a narradora, os golpes de chicote da espanhola se fizeram acompanhar de gritos to dilacerantes e insurportveis de ouvir que a levaram a perguntar ao marido como se dizia em portugus a palavra bourreau, que ele prontamente traduziu por carrasco. Adle, ento, subiu as escadas correndo, abriu a porta da espanhola, enfrentou-a jogando-lhe na cara sua primeira palavra pronunciada em portugus carrasco. O horror ao espetculo da escra-vido, aos leiles de homens, mulheres e crianas, viso das mscaras de ferro, dos golpes de chicote, das cangas no pescoo e s cenas de barbrie sob o sol de fogo do pas tropical, somado s epidemias de febre-amarela e cruel-dade nas relaes familiares, a remetiam aos contos de terror de Hoffmann.

    No retorno a Paris, Adle levou uma forte dose de perplexidade ante a descoberta do sistema patriarcal e escravocrata brasileiro, lembra Jacqueline Penjon (2005). Talvez por denncia da condio racial descreveu as mulatas brasileiras como tipos fortes e viris. Adle no deixa de tropear no esteretipo da mulher sensual, embora compare a posio das senhoras brancas, sobretudo as que residiam nas fazendas, com a das escravas domsticas. Adle tambm se refere ao Brasil como um livro aberto da natureza. A exuberncia da beleza tropical, os perigos das florestas, o fascnio do corcovado, os aspectos instruti-vos da vegetao, so traos recorrentes.

    Em meio s controvrsias que provocaria no espelho ptrio, Adle Toussaint-Samson abriu seu livro de lembranas situando-se como autora face aos editores franceses. O manuscrito de Uma Parisiense no Brasil foi, por diver-sas vezes, rejeitado tanto pelos jornais como pelas casas de edio, s conhe-cendo a luz da publicidade em 1883, aps uma visita do Imperador Pedro II a Paris, embora tenha sido composto em 1870, no retorno a Frana. Cabem questes retrospectivas: por que interditar a palavra da viajante? Que perigos representava? Tudo leva a crer que a sua liberdade de expresso enfrentava a censura exercida sobre as mulheres que ousavam publicar seus relatos de via-gem sem a companhia autoral dos maridos. Maria Inez Turazzi, no primoroso

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    ensaio crtico ao livro de Adle, nos conta um pouco dos caminhos de sua his-tria editorial, relacionando-os famlia imperial brasileira:

    Em abril de 1881, Ad. Toussaint enviou ao imperador Pedro II um exem-plar de seu livro Les chemins de la vie (Paris: E. Dentu, 1880), um estudo de costumes que viria a ser premiado pela Acadmie Franaise. Gnero muito em voga na poca, um outro exemplar da obra foi tambm oferecido pela autora princesa Isabel. [] Adle agradeceu a Pedro II a acolhida que ela e o marido tiveram no Brasil (Turazzi 2003: 26).

    Interessava aos editores franceses a publicidade de um recheio do Brasil, um drama de aventuras nas florestas virgens entre ndios canibais e animais ferozes, de preferncia, com 300 pginas. Face a essas e outras contingncias do mercado, deve-se imaginar a preocupao de Adle em perder a atualidade de suas impresses. Ela tinha urgncia em pass-las o mais rapidamente pos-svel para o livro, a fim de divulg-las e abrir um debate, ao menos na colnia brasileira residente em Paris.

    Adle nutria um desejo de veracidade e imparcialidade, razo pela qual fez acompanhar seu texto de fotografias de caboclos, mulatos, praas e igrejas, assinadas por artistas do tamanho de George Leuzinger, Revert H. Klumb e Cristiano Jr. Ela acreditava no direito de escrever sobre o que pensava e encon-trar os seus verdadeiros leitores, Eu digo aquilo que eu vi, em oposio ao puro exerccio da imaginao destinado a entreter e provocar fortes emoes em franceses que nunca na vida tinham visto o mar, uma mulher ou uma planta tropical. Tampouco Uma Parisiense no Brasil produziu mistificaes em brasileiros afrancesados. A identificao com a verdade e a irreverncia do estilo, que provocaram tantas reaes no pblico leitor, Adle diz ter herdado do pai, Joseph-Isidore Samson, conhecido ator da Comdie-Franaise, embora Charles Expilly, sua fonte de consulta, cumpra a respeito importante funo.

    Em 1866, Expilly publicou um opsculo intitulado La verit sur le conflit entre le Brsil, Buenos-Ayres, Montevideo et le Paraguay, que foi muito mal recebido entre os intelectuais brasileiros. Intrometendo-se em questo poltica delicada, Expilly construiu uma imagem diversa da que os brasileiros tinham deles mes-mos. Antonio Pinto Jnior, Joo Carlos Mor e Cruz Lima no tardaram em lhe dar uma resposta.

    No mesmo ano, Joaquim Antnio Pinto Jnior publica O Charlato Carlos Expilly e a Verdade sobre o Conflito entre o Brasil, Buenos Aires, Montevido e o Para-guay. Este livro tomado como uma defesa da honra nacional. Pinto Jnior acusa o francs de falsear as estatsticas e atribuir ao desejo de conquista impe-rial a abertura do comrcio fluvial para o Mato Grosso, uma das mais impor-tantes e ricas provncias. Expilly atribua ao governo o medo de sublevaes no centro-oeste, a exemplo das revoltas de independncia de Pernambuco e do

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    Rio Grande do Sul. Outro alvo da reprovao de Pinto Jnior o modo como o viajante se intrometia no tema da escravido. A forma da abolio competia apenas aos brasileiros, por ser questo de poltica interna. Tudo levava a crer que Expilly estimulava uma sublevao dos escravos, afirma Pinto Jnior. Joo Carlos Mor, no livro Antes de Tudo a Verdade: Reflexes sobre a Brochura do Sr. Charles Expilly, publicado em 1868 pela Tipografia Rio-Grandense, em Porto Alegre, tambm no poupa crticas ao viajante. rigoroso quando acusa o francs de ter vivido entre as camadas inferiores da corte e de no ter conse-guido posio intelectual, sendo obrigado a fazer negcio com os fsforos, no qual tambm foi mal sucedido.7 Para Mor, a civilizao estava em curso no Brasil, apesar das atrocidades e barbries da guerra cometidas nas vistas do imperador.

    Cruz Lima foi mais longe, alfinetando Expilly e outros viajantes. Escreveu em francs, indicando os caminhos da recepo de seu texto Rponse un article de la Revue de Deux Mondes sur la Guerre du Brsil et du Paraguay, publicado por Laemmert, em 1869, no Rio de Janeiro.

    Em meio a tanta polmica nos dois lados do Atlntico, o livro de Adle no poderia ter uma boa acolhida na imprensa brasileira. Em 1883, no mesmo ano da publicao na Frana, as notas de reparao do professor Antonio Estevo da Costa Cunha, tradutor para a edio brasileira, so francamente desfavor-veis. Ela se defende: Afirmei que o brasileiro era indolente; nada mais falso: garantem-me que cheio de energia. Anunciei que era orgulhoso: eleva-se um clamor geral contra essa afirmao, e todos os jornais do Rio de Janeiro pem--me no ndex (Toussaint-Samson 2003 [1883]: 50).

    Na Frana, as memrias de Adle, precedidas da publicao de alguns tre-chos no jornal Le Figaro (Turazzi 2003: 30), no entraram na clebre coletnea Les voyageuses au XIX sicle, de Amlie Chevalier. Isso significa que ela no tinha lugar na ordem dos critrios de formao de um cnone para a literatura de viagem como gnero, caso da j citada obra de Marie Dronsart.

    Adle entrou em confronto consigo mesma ao desfazer a autoimagem fran-cesa a fim de interpretar a sociedade brasileira. A m companhia e pssima reputao intelectual de Charles Expilly pode explicar algumas das reaes adversas ao seu livro. Une parisienne au Brsil, avec photographies originales foi publicado em Paris pela editora de Paul Ollendorf, um amigo do pai da autora. Como apndice, o livro traz os poemas Cano do exlio, de Gonalves Dias, e O escravo, de Fagundes Varela. Pouco tempo depois, Adle traduzia Jos de Alencar e continuou escrevendo at morrer, sempre em contato com a lngua portuguesa. A viajante faleceu no dia 12 de outubro de 1911, com 82 anos, aps muito sofrimento, queimada pelas brasas da lareira de sua casa.

    7 Charles Expilly trabalhou como representante comercial da fbrica de fsforos do primo j estabe-lecido no Brasil, o que lhe permitiu viajar pelas outras provncias do Imprio.

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    CONCLUSES: UMA SOCIOLOGIA DAS VIAGENSE DAS VIAJANTES AINDA POR FAZER

    A dinmica material da cultura brasileira envolve complexas redes de atuaes, locais e globais, e deve ser apreendida em todas as variaes da experincia histrica, matizando o argumento da invaso de produtos e ideias estrangei-ras. Nada poderia impedir as travessias de obras e autores, aclimatando-se, difundindo imagens e autoimagens, transformando-se por meio de inusitadas apropriaes.

    O ponto de vista de Gilberto Freyre sobre a formao brasileira por demais conhecido: a circulao atlntica da cultura resulta em movimento de reeuro-peizao de nossos modos de vida e pensamento. Dialogando com essa tradi-o, o artigo props um retorno ao sculo XIX, momento de inovaes tcnicas e avanos educacionais nos pases europeus. Os efeitos imediatos dessas inova-es e avanos impulsionaram as conexes intelectuais e o que hoje se entende como mundializao emergia no curso de processos mais alargados, temporal e espacialmente.

    As estratgias dos editores franceses em propagar em grande escala a litera-tura de viagem mostraram-se eficazes ao atingir sucessivas geraes de leitores. Passado o modismo e a atualidade do gnero, os livros das viajantes, inicial-mente destinados ao pblico europeu, inauguraram um corpus documental para pensadores sociais de outras geraes. Alm do mais, enquanto a edio francesa investia no incipiente mercado brasileiro, a exemplo da atuao dos livreiros Garnier, a natureza e a histria do Brasil iam sendo construdas nas impresses e relatos de viagens, abrindo polmicas nos dois lados do Atlntico.

    Com relao ao uso documental das viagens, ao menos haveria uma linha de continuidade entre Vauthier e Adle, ainda que as lembranas da parisiense no tenham sido apreciadas por Jos Olympio e outros estrategistas das cons-trues identitrias na Era Vargas, nem se prestassem montagem poltica do regionalismo a partir da atuao dos franceses em Pernambuco. As impresses de Adle Toussaint-Samson no caberiam no projeto de construo de uma histria regional ou, o que ainda mais plausvel, as imagens de homens e mulheres estrangeiros que construiu, os compatriotas que se abrasileiravam, em boa medida inspiradas na obra polmica de Charles Expilly, no correspon-deriam ideia da reeuropeizao como influncia ou imitao.

    Um estudo das observaes de uma parisiense no Brasil e a sua apropriao por Gilberto Freyre, considerando os modelos de investigao e a elaborao das interpretaes decorrentes, sugere reflexes sobre a produo e os usos de fontes documentais tanto por autores clssicos, como, quem sabe, por uma sociologia das viagens e das viajantes ainda por fazer. Refiro-me a uma via de anlise que levasse em conta as ordens das narrativas, as redes de atuaes e a construo de autorias femininas a histria de suas legitimidades e processos

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    de consagrao , as condies de produo e circulao dos livros somadas s converses do escrito em prticas sociais nas variaes histricas da leitura.

    Na montagem da sua trilogia, Gilberto Freyre visitou as Brasilianas de Oliveira Lima, em Washington, foi Biblioteca Nacional de Lisboa, Biblio-teca da Universidade de Stanford, aos arquivos coloniais da Bahia e do Rio de Janeiro, leu manuscritos nas colees privadas, entre outros espaos de pes-quisa (Bastos 2006). Porm, se ampliasse um pouco mais seus documentos teria estudado as prticas culturais em duplo sentido, em uma perspectiva mais globalizada.

    O distanciamento de Adle e a proximidade de Freyre em relao ao conhe-cimento de um mesmo objeto, a sociedade brasileira, mereceria ser de alguma forma problematizado.

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