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Nos últimos tempos, temos visto um crescente debate sobre o papel da universidade pública na sociedade. Propostas de várias ordens permearam o universo acadêmico e político, particularmente depois de 1989, quando caiu o muro de Berlim. Não coincidentemente, passaram em seguida cair outros muros de direitos sociais duramente conquistados ao longo de décadas, em especial, o da seguridade e mesmo os mais elementares direitos trabalhistas. Em um horizonte não muito distante, o muro de resistência a este modelo que é a universidade pública, com o compromisso com a ciên- cia e por extensão a sociedade, cairia, era somente uma questão de tempo. Afinal, valia a máxima da mão invisível de Adam Smith e o pressuposto regulatório do mercado. Talvez com esta tese, nunca estivemos por um fio, e este projeto ser implementado em sua plenitude. As consequências, inimagináveis. Curiosamente, o presente trabalho de Claudia Sabia, foi elaborado entre duas quedas e rupturas. Era um alerta; embora pouco tempo depois de sua finalização, cairia o muro do neoliberalis- mo. As máximas até então postas como paradigmas de um fim da história, aparentemente, foram derrotadas. Portanto, este livro remete a um debate datado? Muito pelo contrário. A pesquisa de Claudia nos oferece uma reflexão desafiadora sobre alguns aspectos mercadológicos em curso sobre formas ocultas da privatização da universidade públi- ca, algumas vezes realizada de forma dissimulada; noutras, nem tanto, mas atentando aos princípios básicos de uma instituição pública. Isto se faz através de convênios de cooperação, mas que, estão a serviço de empresas e grupos. Evidente, isto não acontece de forma aleatória; está presente em seu bojo; sendo que, muitos docentes que advogam estes pressupostos e que ofendem nossa inteligência, estão igualmente associados a um projeto de universidade vincu- lada ao mercado. Os tempos podem ser outros, mas a quinta coluna da privatização por esta via de cooperação não foi superada; muito pelo contrário, ainda encontra surpreendentes apoios internos e que se traduzem na questão da produtividade contábil em questionáveis instrumentos de avaliação como o lattes e ou a implementação do ensino a distância. Enfim, é oportuna esta reflexão e com ela, ponderar sobre os compromissos futuros de qual mo- delo de universidade legaremos as próximas gerações. O presente livro de Claudia Sabia é um esforço nesta linha de re- flexão e também de ação; mais que tudo, necessário. Caminhemos com ela. Paulo Ribeiro da Cunha Docente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, campus de Marília.

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Nos últimos tempos, temos visto um crescente debate sobre o papel da universidade pública na sociedade. Propostas de várias ordens permearam o universo acadêmico e político, particularmente depois de 1989, quando caiu o muro de Berlim. Não coincidentemente, passaram em seguida cair outros muros de direitos sociais duramente conquistados ao longo de décadas, em especial, o da seguridade e mesmo os mais elementares direitos trabalhistas. Em um horizonte não muito distante, o muro de resistência a este modelo que é a universidade pública, com o compromisso com a ciên-cia e por extensão a sociedade, cairia, era somente uma questão de tempo. Afinal, valia a máxima da mão invisível de Adam Smith e o pressuposto regulatório do mercado. Talvez com esta tese, nunca estivemos por um fio, e este projeto ser implementado em sua plenitude. As consequências, inimagináveis.Curiosamente, o presente trabalho de Claudia Sabia, foi elaborado entre duas quedas e rupturas. Era um alerta; embora pouco tempo depois de sua finalização, cairia o muro do neoliberalis-mo. As máximas até então postas como paradigmas de um fim da história, aparentemente, foram derrotadas. Portanto, este livro remete a um debate datado? Muito pelo contrário. A pesquisa de Claudia nos oferece uma reflexão desafiadora sobre alguns aspectos mercadológicos em curso sobre formas ocultas da privatização da universidade públi-ca, algumas vezes realizada de forma dissimulada; noutras, nem tanto, mas atentando aos princípios básicos de uma instituição pública. Isto se faz através de convênios de cooperação, mas que, estão a serviço de empresas e grupos. Evidente, isto não acontece de forma aleatória; está presente em seu bojo; sendo que, muitos docentes que advogam estes pressupostos e que ofendem nossa inteligência, estão igualmente associados a um projeto de universidade vincu-lada ao mercado. Os tempos podem ser outros, mas a quinta coluna da privatização por esta via de cooperação não foi superada; muito pelo contrário, ainda encontra surpreendentes apoios internos e que se traduzem na questão da produtividade contábil em questionáveis instrumentos de avaliação como o lattes e ou a implementação do ensino a distância. Enfim, é oportuna esta reflexão e com ela, ponderar sobre os compromissos futuros de qual mo-delo de universidade legaremos as próximas gerações. O presente livro de Claudia Sabia é um esforço nesta linha de re-flexão e também de ação; mais que tudo, necessário. Caminhemos com ela.

Paulo Ribeiro da CunhaDocente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, campus de Marília.

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O Estado capitalista tradicionalmente denomina depúblicas as suas universidades. Se tomarmos pública como coisa

do povo, temos de reconhecer que essas universidades não sãopúblicas, mas estatais. São estatais, porquanto instituições do Estadocapitalista e, desse modo, funcionais à ordem social burguesa.Contudo, é inegável que as instituições desse tipo, dadas suaspeculiaridades, bem como o modus operandi do Estado, apresentamum perfil de socialização ou até de democratização de relaçõessociais que as diferencia das organizações privadas e, notadamente,da empresa capitalista. Porém, esta característica não é fixa, variandoconsideravelmente segundo as sucessivas fases por que passam ocapitalismo e a luta social.

A universidade estatal desenvolveu-se por toda a primeirametade do século XX. Entretanto, somente quando se verificouuma inflexão de alcance mundial na correlação de forças das classessociais, em favor dos trabalhadores, é que os conceitos deinstituições estatais das universidades e, em geral, do próprio Estadose alteraram significativamente, enunciando a emergência daspolíticas do welfare state.

Vários fatores se conjuminaram para suscitar o welfare, que,na periferia do mundo capitalista, se articulou com odesenvolvimentismo. Todavia, um fator crucial que modificou acorrelação das forças de classes foi a súbita formação, no imediatopós-guerra, de um bloco de países com a URSS à frente. Este

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insólito mundo novo autodenominado socialista postou-se peranteo capitalismo como um concorrente real. No campo militar, comouma força limitadora das ações imperiais dos EUA, sobretudo. E,no campo social, como uma influência política e ideológica, cujaatração residia no postulado de que a sociedade deveria se organizarpara atender às necessidades humanas e não para o lucro dascorporações privadas, o que passava pela socialização da produçãoe da riqueza.

O welfare levou a cabo uma série de reformas que trataramde incorporar de modo significativo elementos de socialização osquais estavam dando visibilidade ao socialismo histórico e geravamexpectativas nas massas trabalhadoras. Foi, assim, com a universidadepública, que o ensino público ou a saúde pública, dentre outrasatividades, foram então criados, melhoradas ou ampliados segundoesse diapasão.

Sob o welfare, a universidade pública em absoluto deixou defuncionar como um dos fatores requeridos pela reprodução ouacumulação do capital. Contudo, é fato que a dimensão socializadanas universidades públicas beneficiava trabalhadores e estudantes.

O vínculo entre educação, pesquisa e capital sempre foi real.No entanto, na universidade pública, esse vínculo encontrava-seconsideravelmente mediado em decorrência do modo defuncionamento da universidade A existência de certa autonomiapedagógica e científica possibilitava que boa parte de professorese estudantes cultivasse algo próximo a uma concepção iluministada razão ou busca do conhecimento.

Nesse ambiente, medrou na universidade certo espírito deautossuficiência com base no ofício intelectual. Mas, de qualquermodo, a inexistência de uma intervenção capitalista mais incisiva eunilateral também possibilitou o afloramento de uma práxis quepodemos denominar uma concepção embrionária, mas real de serviço

público. Assim, segundo essa visão, em princípio a universidade deveser de ensino, pesquisa e extensão. Deve promover um ambientede liberdade, para que professores, estudantes e funcionáriospossam se organizar e exprimir-se livremente. Os conhecimentosnela produzidos devem permanecer livres e à disposição dopúblico. O ensino deve ser gratuito e a gestão deve ser democrática,com base em eleições e colegiados.

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Nos anos oitenta do século passado, a política do welfare foidando lugar ao neoliberalismo capitalista. Tal como ocorrera depoisda guerra, isso se deveu, sobretudo, a uma nova inflexão nacorrelação de forças entre o capital e o trabalho, em âmbito mundial.Não obstante, desta vez, de signo inverso à anterior, o que conduziuà decrepitude do welfare e à empolgação do neoliberalismo. E talcomo naquela primeira inflexão, os países socialistasdesempenharam, nessa trama, um papel crucial. No primeiromomento considerado, porque irromperam quase queabruptamente na geopolítica mundial como força ativa eantagonista do capitalismo e, no segundo, porque sucumbiram,ampliando drasticamente a liberdade de ação do capital.

Dessa forma, por toda parte, na vigência do mercadocapitalista expandido à escala global, as proposições de socializaçãoe democracia substantiva deram lugar às proposições demercantilização geral da vida social e à democracia liberal, as quais,num curto espaço de tempo, se constituíram no pensamentohegemônico.

Nas universidades estatais, no Brasil, as consequências dessanova dobradura histórica não tardaram. Porém, a mudança deparadigma é um processo que demanda certo tempo e, em geral,em meio a resistências ou lutas encetadas por trabalhadores eestudantes.

É nesse contexto de mudança que se situa esta pesquisa deCláudia P. P. Sabia, intitulada A mercantilização da universidade.

Como assinalamos, o modelo de universidade pública vigenteaté a década de 80 engendrou a concepção de serviço público, ouseja, certo conjunto ainda limitado, mas significativo, de práticas evalores que, transcendendo a dimensão estatal, situam-se no campoda democracia e da socialização do ensino e da ciência. Essaconcepção, com certeza heteróclita, que coabita com outras visões,não necessariamente dominante na universidade, mas, seguramenteimportante, é a que serve de referência à autora, para indagar-se arespeito da política promotora da cooperação entre a UNESP eas empresas privadas, ou mesmo públicas.

Embora tendo como foco a realidade concreta da UNESP,esta investigação não está por isso limitada, uma vez que muitasoutras universidades públicas vêm praticando políticas análogas e

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provavelmente com maior alcance do que se observa na UNESP.Desse modo, o presente estudo coloca em evidência vários aspectosda vida universitária, no presente momento. Porém, no nossoentender, dois merecem destaque.

De maneira surpreendente, a autora constata que, não obstantea abertura institucional visando à promoção da cooperaçãouniversidade e empresas, o montante total de recursos implicadosem cooperação dessa natureza é modestíssimo, tendo-se em contao orçamento da universidade. O fenômeno não parece decorrer,todavia, da falta de interesse do coletivo de pesquisadores pelacooperação. O mais provável, portanto, é que o fracodesenvolvimento dessa cooperação decorra, isto sim, da falta deinteresse da própria iniciativa privada, como já o indicaram outraspesquisas, na medida em que a economia brasileira, notadamentea industrial, segue amplamente dependente das tecnologias ecorporações estrangeiras, cujos interesses não são precisamente odesenvolvimento do serviço público, no país.

Embora pouco expressiva do ponto de vista quantitativo, acooperação existente não deixa de ter sua importância para auniversidade. Isso advém de outra constatação realizada pela autora.Sob o neoliberalismo capitalista, a classe dominante nem sempretem interesses em simplesmente desmantelar a universidade pública,como ocorreu em certos países, na América Latina. Outra variante,que parece ser a vigente no Brasil até o momento, promove aexpansão das instituições privadas – hoje já amplamente dominantesno país –, ao mesmo tempo em que trata de realizar uma espécie deprivatização branca da universidade. Isto significa promover, emseu interior, as práticas mercantis e o curso do dinheiro de formamolecular. Ou, dito de outro modo, comparativamente ao modeloanterior, trata-se praticamente de re-fundar a universidade, não pormeio de privatização institucional no plano jurídico-formal, mascolocando seus trabalhadores e estudantes, bem como os serviçospor ela gerados, numa linha de subordinação muito mais direta,profunda e abrangente em relação ao capital e sua operatória.

É nesse sentido que a cooperação da UNESP com asempresas é significativa, visto que, conforme apurado na pesquisa,o modo como essa cooperação vem sendo praticada soma-se àsoutras forças impulsionadoras de privatização branca, em curso

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na universidade, potenciando, portanto, os procedimentos adversosao serviço público.

Investigando a posição dos dirigentes da organização sindicaldos docentes, a respeito dessa cooperação, a pesquisadora encontrouuma rejeição total. Por nossa parte, em princípio, acreditamos que essetipo de cooperação possa ser útil para o desenvolvimento do serviçopúblico, observado prioritariamente esse desenvolvimento. No entanto,tendo em vista a legislação vigente sobre o assunto, assim como osprocedimentos que envolvem as deliberações referentes a esse assunto,na universidade, pensamos que a rejeição manifestada pelos dirigentessindicais se justifica. Este é um ponto em que a pesquisa traz preciosacontribuição, mostrando uma legislação omissa, que atua na práticacomo facilitadora e estimuladora de um empreendedorismo privadointerno, em conluio com fundações privadas, as quais apenas em teseaí estão para a promoção do serviço público.

Nas condições de vigência da hegemonia do capital, é difícil suporuma universidade autárquica completamente alheia ao aparelho industrialdominante. A cooperação com setores voltados para outros desígniosque não o serviço público pode, portanto, ser necessária e desejável. Istodemanda, contudo, processos de deliberação conscienciosos, quenormatizem e controlem os convênios de cooperação, visando aresguardar primariamente o serviço público. Esses procedimentos sãoatualmente falhos na UNESP e, como indicou a investigação, sãoprovavelmente falhos em outras universidades públicas, porqueapresentam metodologias semelhantes de gestão. Mas a correção desseproblema, sob o ponto de vista do serviço público, ainda que possívelno contexto atual dos processos decisórios nas universidades,provavelmente só se realizará satisfatoriamente se professores, docentese funcionários conseguirem visualizar, propor e batalhar por estruturase processos de gestão muito mais democráticos. Para tanto, é necessárioque se transcenda o republicanismo parlamentarista censitário que hojepreside o funcionamento de colegiados, se promova a crítica doassalariamento capitalista que lhes serve de base e se coloque no horizontedo devir histórico a autogestão democrática de docentes, funcionários eestudantes, sob os auspícios da associação do trabalho.

Candido Giraldez VieitezSociólogo, docente do Programa de Pós-graduação em Educação da

Faculdade de Filosofia e Ciências, da UNESP, campus de Marília.