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1. O presente texto serviu de base inicial e aproximada à intervenção na «Mesa relações entre Galiza /Trás-os-Montes», celebrada às 10 H. do 13 de Maio de 2006, Casa da Eira Longa, em Vilar, Boticas.Libera-se no blogue Quantasletras para um rio, sob licença Creative Commons 3.0 BY-NC-SA, emNovembro de 2010.
Somos os que devemos e estamos os que queremos, nesta
convocatória aberta a todas as raças, a todos os credos, sexos, mas
especialmente aos mais próximos, aos mais íntimos a este espaço,
para nestes Dias de Criação conseguirmos recriar o encontro com
o nosso imediato corpo social. Todas as noites, todos os dias,
alguém nasce para a miséria, afirmou Blake, e parece que o nosso
corpo social só tenha crescido durante séculos para essa miséria,
para o desencontro obrigado de fora. Será que o nosso corpo (no
modo de falar, não no que fala) pode continuar a sonhar na nossa
língua, pode seguir a ser o nosso corpo no modo de falar, sem a
proximidade das partes...? Há um corpo de pulmões e membros,
de sentidos e dedos, de centenares de pêlos e miles de poros. Um
corpo que é uma pátria, a pátria mais entranhada que cada ser é, e
para que respire, ande, sinta e toque, para que viva e esteja
acordado a uma vida mais feliz e plena, dois pulmões lhe darão
mais ar, duas pernas lhe abrirão mais horizonte, os sentidos
todos, os dedos, pêlos, poros, quanta mais saúde tenha mais corpo
será. O nosso corpo privado e o corpo público da Galiza, no que lhe
resta de identidade própria, anda mutilado e desencontrado nas
suas peças, à cuja memória é acordado em empreendimentos e
olhares como este –em que muitos e muitas insistimos para que
nós, os Gálatas (1)
carlos quiroga
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aconteçam todas as vezes que possível seja. A teoria já está
afirmada, está-o por nossa parte desde Castelao, desde Murguia.
Falta ir efetivando mais e mais na pragmática do real, na prática
do dia a dia, até que o costume arrume definitivamente a ideia de
fronteira, que psicologicamente ainda se resguarda em restos na
cabeça de cada corpo privado, e do corpo coletivo todo, de uma
Galiza que mutilada pode ser ainda acordada a um mais amplo
respirar, a mais alargados horizontes a percorrer, corpo vivo a
sentir renovado sangue a lhe correr por dentro.
Somos os que devemos e estamos os que queremos, nesta
convocatória aberta, e tem todo o sentido estarmos aqui. Porque
aqui é o lugar de sermos o cerne de nós. Porque o espaço
transmontano não é Portugal, ou há outro Portugal que não é o
espaço transmontano e não é tão o cerne de nós, mesmo sendo
também cerne. O espaço transmontano é o íntimo espaço galego ou
o espaço galego é o íntimo espaço de Portugal que é o
transmontano. Em Portugal, no outro Portugal, como no Brasil,
Angola, e por aí fora, também podemos ser, e somos. Mas menos
intimamente. Porque do mesmo modo que interessou menos aos
galegos a parte torguiana onde este espaço se acha em estado mais
oculto ou contaminado –como a obra diarística onde a vertente de
documento histórico, subsidiário de uma História com maiúscula,
no que atinge à comunidade nacional portuguesa, a do outro
Portugal, interessou menos porque não falava do íntimo de nós–,
assim nos interessa mais como galegos estar aqui para sentirmo-
nos mais em intimidade.
E, por falarmos no mundo de Torga e na sua escrita –que tem
todo o sentido estando como aqui estamos–, também é fácil para
os galegos, para além doutros apriorismos, identificar-se não só
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2. Rubem Braga, «Miguel Torga também fala do Cachoeiro», in JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º40. Lisboa, 31 de Agosto de 1982.
3. Clara Crabbé Rocha, O Espaço autobiográfico em Miguel Torga, Almedina, 33, Coimbra, 1977, p. 178.
4. Fernão de Magalhães Gonçalves, «Miguel Torga: um trágico cepticismo», in JL - Jornal de Letras,Artes e Ideias, n.º 75. Lisboa, 13 de Dezembro de 1983.
neste espaço, mas também, e especialmente, no seu por vezes
violento realismo, no trabalho duro e no tipo de vida que nele
decorre, e por isso mesmo também nas tarefas do emigrante
honrado que a ele se furta, tarefas como “carregar o moinho,
mungir as vacas que davam leite para a casa, tratar dos porcos, ir
buscar os cavalos da cocheira ao pasto, limpá-los e arreá-los,
rachar lenha, varrer o pátio e atender a freguesia, etc.”, que
aconteciam longe mas por tratar-se do que se tratava
aproximavam o longe, o longe inclusive de “um Brasil belo e bruto,
que ele sofreu e soube retratar no livro A Criação do Mundo”(2),
aproximava-se o conjunto das designações à contiguidade galega
no plano da escrita, sem que importe muito o paralelo de Agarez,
as metonímias geográficas(3) ou as presenças reais do espaço
transmontano. Era n’ A Criação do Mundo, e não importava a
origem, a distância, como hoje não importa nestes «Os Dias da
Criação».
Mas por estarmos onde estamos a homenagem tem mais
sentido. Torga. Condenado Adolfo que foi abraçar nomes dos amos
dos galegos antes de abraçar os filhos que tinha tão próximos. Até
isso perdoamos. E aderimos. A adesão é sincera porque é a raiz
que às vezes os galegos também odeiam. Aderem. Talvez com
menos entusiasmo à poesia. Os diferentes tipos de discurso aí
presentes, do teológico ao cósmico e ao sociológico(4), as diversas
atmosferas de ar existencialista ou emotividade repentina, a
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5. Moisés Espírito Santo, A Religião Popular Portuguesa, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990 (a 1ª edição é de1984 em A Regra do Jogo, Edições, Lda., Lisboa).
consciência literária evidenciando-se, os conflitos do homem com
Deus e com a natureza, o assunto moral e o assunto social
passando num sentimento trágico da vida posto em discurso
poético, enfim, tudo isso que é igual ao outro Torga, mas mais
complexo e noutro registo distanciador, causa o mesmo efeito que
o pólo documentalista na obra diarística. A mesma Natureza, o
mesmo Espaço, mas com a lente da máquina muito mais levantada
e com filtros depuradores de maior poder, ao ponto de abstrair
para a sua elementaridade reconhecível nos seus elementos.
Aderimos, pois, onde a proximidade do mundo recriado e a
sua depuração literária leve, a manter a autenticidade universal,
atingem o equilíbrio. No percurso etnológico e sociológico que
Moisés Espírito Santo realiza à volta do território do eixo Braga-
Porto(5), a descrição dos elementos culturais e míticos podem ser
reconhecidos em continuidade quase exata no repertório
camponês imediato da Galiza, apesar de integrado oficialmente
num estado político diferente. Mais do que a experiência religiosa
popular que aí se analisa, reconhecemos as mesmas crenças
tradicionais, as mesmas fórmulas para resolver conflitos na
sociedade aldeã, o mesmo todo que formam a religião e a magia e
a superstição, o mesmo matiz na afloração dos arquétipos, a
mesma simbolização da natureza e das coisas, os mesmos mitos e
sonhos coletivos, o mesmo predomínio da família matrifocal, as
mesmas condições e história de pobreza extrema e emigração,
enfim, o mesmo mundo. Um mundo que, de recuarmos muito no
tempo, ocuparia um espaço de conformação maior à atual, que
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6. Moisés Espírito Santo, Origens Orientais da Religião Portuguesa seguido de Ensaio sobre ToponímiaAntiga, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988, p. 349.
7. Ibidem.
8. O texto bíblico, mencionado por Moisés Espírito Santo, fala da aliança no ano 160 a. C. entre JudasMacabeu, chefe de Israel, e os Romanos, que teriam mantido grandes guerras com os Gálatas, queseriam os habitantes da Galécia ou Galácia, nome comum aos habitantes da outra Galácia da ÁsiaMenor.
explicaria os nomes de sítios como Galegos e Galiza na toponímia
do centro do país(6):
Percebe-se melhor Torga assim percebido. Como afirma o
próprio Espírito Santo, com sabedoria bem terrena,
A distinção entre a Galiza do norte e a Lusitânia é
moderna e arbitrária. Os geógrafos antigos, entre os quais
Estrabão, nunca situam a Lusitânia e a Galécia nas mesmas
fronteiras: ora a Galécia vem até ao Sul, ora é a Lusitânia
que vai até ao Norte. Galegos, habitantes da Galécia, parece
terem sido outrora os habitantes de toda a faixa costeira
desde o Tejo aos confins da Galiza.(7)
O eixo Braga-Porto é diferente do Coimbra-Viseu e ainda hoje
articula o território português em dois pólos. Moisés Espírito
Santo segue nisto José Mattoso no seu Portugal Medieval, mas os
seus estudos sobre religiões e tradições acabam por também
provar. E até na análise da Toponímia Antiga acha confirmação. A
de que a Galiza se liga com este espaço, o de Torga. O espaço dos
Galegos, todos nós agora e aqui, os que aparecemos em I Macabeus
8:1-4 como Gálatas(8). Tem todo o sentido estarmos aqui, nós, os
Gálatas todos. Porque aqui é o lugar de sermos o cerne de nós,
para que o mundo se invente hoje e a partir de hoje sabendo quem
somos, e não importe já mais donde a gente proceda para estes «Os
Dias da Criação».
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Finalmente, e para além desta lírica inicial, poderia ser de
utilidade aludir às tentativas épicas, desenvolvidas com custos
dramáticos, que no último quartel do século XX se desenvolveram,
e continuam a tentar desenvolver, por parte de muitas associações
como AGAL, assim como por empenhamentos mais particulares,
no sentido de uma aproximação da Galiza e Portugal, como modo
fundamental de manter a própria identidade. Mas, para não ser
conversa cansativa, e porque algumas pessoas já disso podem
estar informadas, talvez seja preferível deixar esta parte para o
diálogo aberto e posterior que entre todos nós se há de dar
–chamando essas recordações se imprescindíveis.