Nós, Os Que Nos Incendiamos

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NÓS, OS QUE NOS INCENDIAMOS

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É a última noite do século 20: 31 de dezembro de 2000. Num acerto de contas com sua história pessoal, um amargurado homem se entrelaça com a história recente do Brasil.

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São Paulo 2010

NÓS,OS QUE NOS INCENDIAMOS

Artur Maia

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Copyright © 2010 by Editora Baraúna SE Ltda

Capa e Projeto GráficoAline Benitez

RevisãoPriscila Loiola

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

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M184n Maia, Artur Nós, os que nos incendiamos / Artur Maia. - São Paulo : Baraúna, 2010. ISBN 978-85-7923-238-1 1. Ditadura militar - Brasil - Ficção. 2. Romance brasileiro. I. Título.

10-5032. CDD: 869.93 CDU: 921.134.3(81)-3

04.10.10 15.10.10 022042 ______________________________________________________________

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Aos cinco cavaleiros do Apoclipse, que ultrapas-samos, quase incólumes, mais de vinte anos desde que nos conhecemos.

A todos os amigos e amigas que, de uma forma ou outra, me inspiraram.

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O pó que somos todos Os que nos viram nos incendiarE se incendiaram conoscoE viraram também o pó.O resto, o desgoverno, a lentidão, o nom sense...

(Do poema “Pó”, de Artur Maia— 1991)

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Mauro — 31 de dezembro de 2000 — 22:00 hrs— São Paulo

Era o fim do século, do ano, do dia; era o fim de uma enorme parte de mim. Isso retumbava em minha cabeça ao enfiar o canudo na entrada do nariz, mirar o canudo na ponta da carreira e aspirar a cocaína com a maior força possível. Ato contínuo, levantei a cabeça com força e vi, não sem um certo espanto, minha cara no espelho.

Quando eu era criança, meus pais evangélicos garan-tiam: o mundo não chega ao século vinte e um!. Os pas-tores da igreja me completavam o terror trovejando pala-vras apocalípticas nos púlpitos, de onde emergiam anjos portando trombetas a prenunciarem fogo e enxofre. Eu corria, corria, mas os anjos sempre me alcançavam: para todo o sempre arderás nas chamas do inferno!

Acordava repleto de suor. Ouvi falar que estes eram pesadelos próprios de quem estava crescendo. O mundo não ia acabar, isto é besteira de crentes, dizia-me um tio meio ateu. No entanto, na boca do século vinte e um, eu era um adulto na meia idade e, mesmo assim, o mundo estava acabando.

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Querendo escapar da angústia que me assomava, fugi. Saí do banheiro e dei de frente com a imensidão de luz do ambiente, uma lanchonete na Zona Leste de São Paulo. Sorri para o garçom um sorriso simpático ao pedir a quarta dose de uísque.

Sou agora um cara estacionado há horas numa mesa de bar. Cheirei, sim, cheirei. Mais que isso, bebi. Muito! Sei lá o que é bebida, o que é cocaína nessa hora...

Voltei para a mesa onde estivera desde as oito, pedin-do uma, duas, três doses de uísque, até que, antes da quarta dose, a vontade de mijar e a ilusória vontade de colocar as ideias em ordem me fizeram correr para o banheiro.

O quarto uísque veio mais gelo que malte; dei-lhe uma golada máscula para aplacar a garganta seca. Tambo-rilei os dedos na mesa, levemente preocupado com ban-deiras, mas percebi que ninguém reparava em mim. A maioria já estava pra lá da quarta ou quinta, gargalhando alguns, outros desopilando rancores acumulados ao lon-go do ano.

Dois sujeitos entraram numa discussão infindável sobre se o século vinte estava acabando naquele dia ou se acabara no ano anterior:

— O século terminou em 1999, meu.— O século termina em 2000, mano.— É em 99!— É em 2000!Importante, para mim, é que terminara o dia, como

todos os trezentos e sessenta e cinco outros dias termina-ram, com uma sensação de alívio por não ter de aguentá-lo mais. Tomei mais um gole voraz de uísque e pensei em mais

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uma carreira. Achei melhor não, podia começar a morder os lábios e torcer os dedos, descarrilar paranoias. Melhor não! Tudo o que queria naquele momento era me isolar. Cercar-me. Ficarmos eu e minhas dores dialogando.

— O senhor vai querer mais alguma coisa? Estamos pra fechar. O senhor sabe, os funcionários querem passar o Ano Novo com a família — o garçom tentava ser mini-mamente complacente.

Não, não quero nada, tive ímpetos de urrar, não quero sua simpatia interessada, não quero sua atenção comissionada, não sou um desses bêbados solitários que ficam puxando assunto com o garçom.

— A saideira e a conta, por favor — respondi com uma exagerada educação para a hora e o lugar.

Olhei em volta. Finalmente o ano acabou, gritou um sujeito duas mesas atrás da minha. Acabara o século, meu caro, tive ganas de responder. Acabara, para mim, senhores, dia após dia, minuto após minuto, segundo após segundo, todo o meu desejo de viver.

Final de século, de ano, de mês, tudo combina. Fi-nal de um casamento, de um plano, qualquer plano, tudo combina. O relógio do bar aponta dez e meia. É o fim de um ciclo, o do relógio dando, célere, mais uma inútil volta, o do meu corpo envelhecendo, cada vez mais nau-seabundo, evitando checar a real situação a se espatifar pela minha cara já desfalcada de qualquer coisa que seja eu um sujeito disposto a dar respostas:

— E aí, casou?— Casei.— Filhos?

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— Um.— Separou?Separei-me. Na verdade, isolei-me. Sendo mais dra-

mático ainda, exilei-me de um país aonde até então vivia. Somos, somente nós, eu e minhas chagas. Cheiram mal, provavelmente afaste quem pretenda se aproximar.

Apartei-me de tudo e nada me sobrou. Cá estou, sozinho, na noite de reveillon mais esperada do século.

Sua ex-posa? Foi passar o Ano Novo na Europa, Pa-ris, parece. Ela adora essas coisas chiques, a vadia. Filho? Ah, o menino foi junto. Tem quantos anos? Cinco, acho. Como assim, acho? É seu filho e você não sabe? Não, não tenho certeza. Ele nasceu em 94, não, em 95, então tem cinco anos, é isso, cinco anos. Não vai curtir o final de ano? A família, pais, irmãos, parentes? Devem estar por aí, numa praia, numa destas mesas de final de ano. Não, não vou. Por quê? Não tô a fim, não tô.

O celular toca. Sem ao menos olhar o número, des-ligo. Entendam de uma vez: não há mesa nem festa, por mais produzida, que eu deseje frequentar. Nada há que me sirva, nem presença que me console. Comigo estão apenas fantasmas me assombrando. Quero esperar a noite findar definitivamente, e, com ela, o mês acabar, e depois disso, terminarem o ano e o século, a ponto de eu tam-bém me encerrar e encerrar a história terminal de minha vida, invólucra em planos, contratos, poses para fotos e anedotas para os outros rirem por mera educação.

— Mauro?— Ahn?— Você é o Mauro, lá do Olavo?

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— Olavo?— O Olavo Bilac.Sou, não sou, quer dizer, não sei. Ao dar por mim,

quem estava na minha frente era o Osni, o Osni do Ola-vo, o Osni de quase vinte anos atrás.

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O Osni— 1983

O Osni era o cara mais bonito do Olavo. O Olavo é que não era nada bonito, um prédio espalhafatoso no alto da rua mais alta do bairro. Víamos o Olavo lá de baixo, do começo da ladeira, e a enormidade medonha dele, somado a nossa preguiça adolescente, dava-nos uma enorme vontade de não ir.

Pior era encarar o Olavo à noite, como fazíamos. No meio da ladeira tinha o boteco do Bigode e uma música, às vezes samba, às vezes funk, convidando-nos à cabula. A gente dava um suspiro, olhava para os malas do boteco do Bigode, decidia que não queria ser exatamente como eles e se deixava engolir pela Escola Estadual de Segundo Grau Olavo Bilac.

Quase todos trabalhávamos durante o dia. A maio-ria dos garotos era office-boy. As meninas, recepcionis-tas, balconistas no comércio do bairro, poucas com em-pregos melhores, auxiliares de alguma coisa no centro da cidade, por exemplo.

Lá estava eu, na maior má vontade do mundo, e lá estava o Osni a fazer e refazer seu papel de bem ama-