“Nós vamos lutar até o fim até quando o último índio ... · “Nós vamos lutar até o fim...

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1 “Nós vamos lutar até o fim até quando o último índio resistir!” (Tuxaua Jacir, Makuxi, coordenador do CIR) Homologação da Raposa Serra do Sol, já! Por Arizete Miranda Dinelly csa e Fernando López sj A homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol está tornando-se uma das maiores polemicas do governo Lula. A homologação desta terra em área continua - e não em “ilhas” - é essencial para a sobrevivência e reprodução sociocultural dos povos indígenas da região. O próximo 19 de Abril, dia nacional do Índio, será uma data crítica para que o Governo Lula não fique mais “sobre o muro” e tome posição clara em favor destes povos que votaram nele. Se a homologação da Raposa Serra do Sol não sair a credibilidade de Lula e seu Governo serão seriamente atingidas no âmbito dos povos indígenas, dos setores populares e de muitas das pessoas que, com a esperança de cambio e mudança, votaram nele. A terra indígena “Raposa Serra do Sol” (RSS) está localizada no nordeste do Estado de Roraima, na fronteira com Guiana e Venezuela. Sua extensão é de 1.678.800 Ha. Nela habitam 15 mil indígenas que pertencem aos povos Macuxi, Wapichana, Ingaricó, Taurepang e Patamona organizados em um total de 170 aldeias. Esses povos ainda conservam suas línguas e muitas tradições culturais. É importante saber que a população total do Estado de Roraima é de 324.397 habitantes (IBGE: Censo 2000); deles, uns 40.000 são indígenas pertencentes a nove povos diferentes. Com o grito de guerra “Homologação, já!” e o lema "Terra Livre: Vida e Esperança", iniciou a 33ª Assembléia Geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), realizada nos dias 6-10/fevereiro/2004, na aldeia Maturuca da Raposa Serra do Sol. Participaram 1.300 pessoas. A maioria eram lideranças indígenas da região dos povos: Macuxi, Wapichana, Ingaricó, Taurepang, Wai-wai, Waimiri-Atroari, Yanomami, Patamona, Yekuana. Também estiveram pressentes lideranças de outros povos da Amazônia (Tukano, Sateré-Mawé, Guarani, Patamona, Galibi) e alguns aliados/as e amigos/as de distintos países (Brasil, Itália, Alemanha, Venezuela, Espanha e Canadá), mostrando suas solidariedade, compromisso e carinho pelos povos indígenas. O tuxaua Jacir, Macuxi, coordenador do CIR, nas palavras iniciais da 33ª Assembléia acolheu os participantes e deu seu recado ao Presidente Lula: Vocês são nossos amigos que vieram de longe... Por isso estamos contentes. Por isso temos motivo para festejar, mesmo que o presidente Lula não tenha assinado a Homologação em área contínua de nossa terra indígena Raposa Serra do Sol. Justo um ano antes, na 32ª Assembléia do CIR (Pium, fevereiro/2003) e na festa da comemoração dos “26 anos de Decisão” (Uiramutã, abril/2003), as

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“Nós vamos lutar até o fim até quando o último índio resistir!”

(Tuxaua Jacir, Makuxi, coordenador do CIR)

Homologação da Raposa Serra do Sol, já! Por Arizete Miranda Dinelly csa e Fernando López sj

A homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol está tornando-se uma das maiores polemicas do governo Lula. A homologação desta terra em área continua - e

não em “ilhas” - é essencial para a sobrevivência e reprodução sociocultural dos povos indígenas da região. O próximo 19 de Abril, dia nacional do Índio, será uma

data crítica para que o Governo Lula não fique mais “sobre o muro” e tome posição clara em favor destes povos que votaram nele. Se a homologação da Raposa Serra do

Sol não sair a credibilidade de Lula e seu Governo serão seriamente atingidas no âmbito dos povos indígenas, dos setores populares e de muitas das pessoas que, com

a esperança de cambio e mudança, votaram nele.

A terra indígena “Raposa Serra do Sol” (RSS) está localizada no nordeste do Estado de Roraima, na fronteira com Guiana e Venezuela. Sua extensão é de 1.678.800 Ha. Nela habitam 15 mil indígenas que pertencem aos povos Macuxi, Wapichana, Ingaricó, Taurepang e Patamona organizados em um total de 170 aldeias. Esses povos ainda conservam suas línguas e muitas tradições culturais. É importante saber que a população total do Estado de Roraima é de 324.397 habitantes (IBGE: Censo 2000); deles, uns 40.000 são indígenas pertencentes a nove povos diferentes.

Com o grito de guerra “Homologação, já!” e o lema "Terra Livre: Vida e Esperança", iniciou a 33ª Assembléia Geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), realizada nos dias 6-10/fevereiro/2004, na aldeia Maturuca da Raposa Serra do Sol.

Participaram 1.300 pessoas. A maioria eram lideranças indígenas da região dos povos: Macuxi, Wapichana, Ingaricó, Taurepang, Wai-wai, Waimiri-Atroari, Yanomami, Patamona, Yekuana. Também estiveram pressentes lideranças de outros povos da Amazônia (Tukano, Sateré-Mawé, Guarani, Patamona, Galibi) e alguns aliados/as e amigos/as de distintos países (Brasil, Itália, Alemanha, Venezuela, Espanha e Canadá), mostrando suas solidariedade, compromisso e carinho pelos povos indígenas.

O tuxaua Jacir, Macuxi, coordenador do CIR, nas palavras iniciais da 33ª Assembléia acolheu os participantes e deu seu recado ao Presidente Lula:

Vocês são nossos amigos que vieram de longe... Por isso estamos contentes. Por isso temos motivo para festejar, mesmo que o presidente Lula não tenha assinado a Homologação em área contínua de nossa terra indígena Raposa Serra do Sol.

Justo um ano antes, na 32ª Assembléia do CIR (Pium, fevereiro/2003) e na festa da comemoração dos “26 anos de Decisão” (Uiramutã, abril/2003), as

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esperanças dos indígenas no recém empossado Presidente Lula eram muito grandes. Nas faixas, canções e discursos, um só pedido ao Presidente Lula: “Homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol!”. Na ocasião o tuxaua macuxi Orlando, do Uiramutã, manifestou:

Esperamos confiantes em Lula porque nas eleições que ele se apresentou, a gente sempre trabalhou e votou acreditando nele. Por fim, hoje, conseguimos que Lula chegue a ser Presidente, o nosso

Presidente que conduze o nosso Governo. Digo nosso Presidente e nosso Governo porque nós sempre tivemos essa grande fé em que Lula na frente do governo vai conseguir ajudar para que nosso povo se liberte da escravidão... Esperamos que Lula não só apóie os povos indígenas senão a todos os povos do Brasil, aos pobres que vivem sem terra, sem casa, sem trabalho, sem nada. Nós temos a grande fé que esse será um governo que vai libertar os pobres do Brasil da escravidão.

Depois de um ano de governo Lula a homologação não tem saído e as coisas complicaram-se ainda mais. Por isso, o contexto da 33ª Assembléia foi forte, não só pela história de luta e sofrimento acumulada, mas também pela frustração e desencanto que se começa gerar e, sobretudo, pelos últimos fatos acontecidos na região:

No dia 24/12/2003 o Ministro de Justiça, Márcio Thomaz Bastos, anunciava publicamente que a homologação, em área continua, da Raposa Serra do Sol sairia em janeiro/2004. O anuncio no cumprido (uma vez mais!) pelo Ministro de Justiça, trouxe como conseqüência a reação violenta dos setores e políticos anti-indígenas do Estado de Roraima. Eles organizaram um grupo de indígenas que, na madrugada do dia 06/janeiro/2004, invadiram e depredaram a Missão Surumu onde funcionava um centro de formação de lideranças indígenas acompanhado pelos Missionários da Consolata (Igreja Católica). Três missionários foram seqüestrados como reféns: o padre brasileiro Ronildo Pinto França, o padre colombiano César Avellaneda e o irmão espanhol Juan Carlos Martinez (coordenador da Missão). Também foram pegos na ocasião um grupo de jovens estudantes de Manaus (AM) que faziam uma experiência de convívio solidário com as comunidades indígenas da região. No dia 9/janeiro/2004 são liberados os três missionários.

Em fevereiro/2003, Dom Jaime, Presidente da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), visitou oficialmente a Igreja Católica de Roraima para conhecer seus problemas e desafios. Na comunidade de Maturuca ouviu as denuncias apresentadas pelas lideranças indígenas da região. Dias depois, Dom Jaime manifestou, profeticamente, as impressões de sua visita:

“Fiquei impressionado com a realidade de Roraima. A Igreja de Roraima é uma Igreja Martirial! Como Igreja temos que fortalecer nosso compromisso e apoio a esta sofrida e violenta realidade”.

É importante esclarecer que o processo de homologação formalmente é simples, consiste no ato legal do Presidente assinar um documento que ratifica o fato da Demarcação da Raposa Serra do Sol executado pelo Ministério da Justiça no ano 1998 (Portaria 820/98). Cinco anos há que a homologação espera na mesa do Presidente sua assinatura: primeiro do Sr. Fernando Henrique Cardoso – de quem era difícil esperar que assiná-se – e agora, do Sr. Luis Inácio Lula da Silva, em quem tantas esperanças foram depositadas.

Frente aos fatos da invasão de Surumu e seqüestro dos missionários varias lideranças indígenas se pronunciaram na 33ª Assembléia. O próprio tuxaua Dionísio da região de Surumu manifestou:

Desde janeiro nós vivemos em clima de muita tensão. Ninguém consegue trabalhar. Os índios enganados pelos arrozeiros, fazendeiros e políticos não sabem o que estão fazendo. Eles são pagos

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para dizer que não querem a homologação em área continua; que querem a terra dividida em ilhas. Eles não pensam no futuro de seus filhos... Invadiram a escola Surumu onde estudam nossos filhos. Destruíram tudo e carregaram toda a alimentação que nós levamos para que nossos filhos possam estudar e preparar-se melhor para fortalecer nosso povo.

Já são mais de 30 anos de sofrimento e luta contra fazendeiros, garimpeiros, militares, arrozeiros e políticas corruptos anti-indígenas. 30 anos exigindo que o governo reconheça definitivamente seus direitos ancestrais sobre a terra tradicional e faça que ela seja respeitada e não mais invadida por aqueles que só buscam ganhar e explorar os recursos naturais e as populações indígenas. A Sra. Lavina, Coordenadora da Organização das Mulheres Macuxi, conta sua experiência:

30 anos atrás a situação de nosso povo era muito sofrida. Éramos escravos dos brancos. Muitos fazendeiros e garimpeiros usavam os índios para trabalhar nas fazendas e nos garimpos, pagando-lhes com bebidas alcoólicas. Nossos homens não faziam mais roças, nem iam pescar, nem trabalhavam mais. Só viviam bêbados e jogados no chão. Nas fazendas e garimpos os brancos faziam sempre muita festa onde levavam nossas filhas para dançar, embebedá-las e logo engravidá-las... Os brancos nos enganavam e nós aceitávamos tudo o que nos davam a troca das nossas meninas... Naquela época o gado dos brancos invadia e destruía nossas roças, por isso nós passávamos fome... Esse foi durante muitos anos nosso sofrimento.

Para os povos indígenas a terra é fundamental para sua sobrevivência e reprodução sociocultural. A terra tradicional é o lugar onde moram seus antepassados, os espíritos que dão vida e sentido a toda a existência e cosmovisão. Por isso a terra é sagrada, é Mãe que deve ser cuidada e defendida. Assim o denunciou o tuxaua Orlando:

Nossa Mãe Terra está triste e sendo contaminada pelos não-índios. Os garimpeiros, fazendeiros e arrozeiros lucraram com nossas riquezas, enriqueceram-se explorando o nosso trabalho, nossa terra, nossos bens e recursos naturais. Eu pergunto as autoridades: E ainda vão dar indenização para eles? Não deveria ser o contrário? Não deveríamos ser nós os indenizados pelo uso e maltrato que eles fizeram da nossa mãe-terra? Nós exigimos nossos direitos, exigimos respeito. Eu

sofro desde criança nas mãos dos fazendeiros. Hoje já estou velho e não vejo muita mudança. Até quando nós vamos ter que agüentar essa violência e discriminação? Como será o amanhã das nossas crianças? Estamos muito preocupados. Queremos ajuda dos nossos amigos para conseguir que o Presidente Lula homologue, em área contínua, nossa terra. Não queremos nossa Mãe-Terra dividida em ilhas!

A proposta dos grupos e políticos anti-indígenas da região é demarcar em “ilhas” a terra indígena. Permitindo assim a instalação de municípios, quartéis, garimpos, fazendas, etc. dentro das terras tradicionais. Com isso continuaria o processo de violência, exclusão e extermínio dos povos indígenas da região, que são constantemente acusados de ser um “empecilho para o desenvolvimento do Estado de Roraima”. A demarcação em “ilhas” seria a morte cultural e física desses povos. A experiência de outras regiões, onde os interesses econômicos e políticos venceram fechando em “ilhas” às populações indígenas, confirma o dito. A própria violência sofrida pelos indígenas da Raposa Serra do Sol nestes 30 anos mostra que a proposta em “ilhas” defendida por garimpeiros, fazendeiros, militares e políticos anti-indígenas, levaria em poucos anos ao extermínio, destas populações indígenas. Nestes anos, conseqüência do conflito com os invasores da terra, já foram

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registrados na Raposa Serra do Sol mais de 22 homicídio, 21 tentativas de homicídio, 54 ameaças de morte, 51 agressões físicas, 80 casas destruídas, 71 prisões ilegais, 5 roças destruídas... “Legalizando-se a invasão” com a homologação em “ilhas”, o governo do Presidente Lula estará legalizando o extermínio destes povos.

Também a presença de quartéis em área indígena é fortemente questionada pelas lideranças indígenas da região. O tuxaua Orlando colocou os problemas que o quartel construído na sua aldeia do Uiramutã está gerando e exigiu sua saída:

Os índios não foram consultados para fazer os quartéis dentro das suas terras. Por isso, não aceitamos o quartel do Uiramutã. O quartel tem que sair de dentro de nossa área indígena Raposa Serra do Sol. O quartel já gerou muitos problemas para nós. Os militares não respeitam nossas autoridades tradicionais nem nossos costumes. Os militares não respeitam nossas filhas... Quantos casos há de meninas indígenas engravidadas por militares que depois de fazer a sujeira vão embora sem assumir nada... Por tudo isso o quartel do Uiramutã tem que sair de aqui!

Também o líder Yanomami, Davi Kopenawa, se manifestou fortemente sobre o assunto:

Em nossa terra indígena Yanomami tem vários quartéis. Em Surucucu, na fronteira com Venezuela, tem quartel e está criando problemas. Em Aguaris tem quartel. Em Maturaca tem quartel e todos estão criando problemas para nosso povo Yanomami. Nos Yanomami não queremos quartel na nossa terra. O quartel é coisa de branco; que os brancos façam quartel na terra dos brancos. Yanomami estão preocupados porque vai crescendo e crescendo quartéis nas terras indígenas. Nós Yanomami estamos revoltados por isso. Em Surucucu os militares fizeram quartel dizendo que era para vigiar e defender a fronteira. Eles levaram mais de 60 soldados e não levaram mulheres deles. Os soldados mexeram com

nossas mulheres Yanomami. Eles fizeram sujeira com nossas mulheres. Enganaram elas dando-lhes comida, oferecendo-lhes alguma coisa: faca, camisa, sabão... Depois fizeram filho nelas e as deixaram com doenças... Nós Yanomami estamos revoltados por isso. Mas isso não acontece só aqui na nossa terra Yanomami. Os militares estão acostumados a mexer com as índias do Brasil. Os abusos sexuais dos militares com índias acontecem em muitas áreas indígenas do Brasil. Que eles usem as mulheres deles e respeitem nossas mulheres!

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Todos esses fatos e violências já tinham sido varias vezes apresentadas pelos líderes indígenas às autoridades nacionais e internacionais, denunciando o Governo do Estado de Roraima pela violação reiterada dos direitos indígenas. Em fevreiro/2003, na 32ª Assembléia Geral CIR, foram levantadas novamente muitas dessas denuncias frente às autoridades civis e militares convidadas. A Dra. Débora, da 6a Câmara Federal, ouviu às denuncias feitas e respondeu:

Não é a primeira vez que vocês estão denunciando estes fatos. Já faz tempo (anos!) que as denuncias foram feitas e até agora não foram tomadas providencias. Vocês têm o direito de exigir que se faça justiça. Muitas das denuncias feitas por vocês mostram ações criminosas do Estado de Roraima e por isso, o Estado deve ser punido.

Com a homologação da Raposa Serra do Sol muitos dessas injustiças e violência contra os povos indígenas da região terminarão. Esperava-se que a homologação desta terra fosse um dos primeiros atos do Presidente Lula... Será que agora, o Presidente Lula vai esquecer o que prometeu quando era candidato e militante do Partido dos Trabalhadores (PT) e vai ser cúmplice do Governo de Roraima, na violação dos direitos ancestrais dos povos indígenas da Raposa Serra do Sol? No dia 19/Abril/2004, Dia do Índio, o Presidente e seu Governo têm a possibilidade de “sair de cima do muro” e ser coerentes com os sonhos dos povos e setores populares que acreditaram e votaram nele. Ficando “sobre o muro” ou pulando na direção errada, as conseqüências podem ser irreparáveis...

Hoje, com tantos anos de luta, resistência e insurgência, os indígenas da Raposa Serra do Sol estão mais fortes, mais amadurecidos e capazes de exigir seus direitos e fazer que sejam cumpridos e respeitados. Já os índios estão cansados de esperar e são firmes na sua posição. Assim o expressou o tuxaua Jacir:

As autoridades sempre dizem: “Eu vim aqui para escutar”, “Vamos buscar solução devagar...”. Enquanto isso os políticos, arrozeiros, garimpeiros, militares e invasores de nossas terras vão se organizando e planejando o jeito de acabar com nós, índios. Assim não dá mais minha gente! Vamos resolver já!

O tuxaua Jacir concluiu a 33ª Assembléia afirmando cheio de convicção e determinação:

Nós vamos lutar até o fim, até quando o último índio resistir!