Nota sobre Aty Guasu e Simpósio de Intelectuais Guarani e Kaiowá

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Relato de experiência: comitiva da UFMG, UFAM, INCT Inclusão, INCT Brasil Plural e Associação Brasileira de Etnomusicologia participa do I Simpósio de Pós-Graduados, Pesquisadores e Lideranças da Aty Guasu Guarani, Ñandeva e Kaiowá, na TI Arroio Korá (Paranhos-MS). “Basta de genocídio” “Aqui é a nossa vida, nosso lar e a nossa sobrevivência. Queremos a demarcação do nosso tekoha” Reunidos entre os dias 20 e 22 de setembro de 2012 em Arroio Korá, terra indígena recentemente retomada na região de Paranhos, Mato Grosso do Sul, um grupo de aproximadamente 300 Guarani, Ñandeva e Kaiowá, de diversos tekoha guasu, fizeram depoimentos e deliberaram sobre a grave situação em que se encontram. Acuados pela ameaça de pistoleiros, assassinos de aluguel contratados como “seguranças” por fazendeiros da região, os guarani, Ñandeva e Kaiowá enfrentam toda sorte de injustiças. A principal é o assassinato impune de importantes líderes e intelectuais indígenas que historicamente lutaram por seus direitos, principalmente o da demarcação de suas terras tradicionais de modo a garantir a preservação de seu modo de vida, suas plantações para subsistência, seus roçados de milho, mandioca, batata, feijão, amendoim e arroz. São recorrentes ainda ordens de despejo, ameaças de morte, torturas, estupros, sequestros, dentre outras agressões. Arroio Kora. 21/09/2012. Foto: Luciana de Oliveira

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Relato de experiência: comitiva da UFMG, UFAM, INCT Inclusão, INCT Brasil Plural e Associação Brasileira de Etnomusicologia participa do I Simpósio de Pós-Graduados, Pesquisadores e Lideranças da Aty Guasu Guarani, Ñandeva e Kaiowá, na TI Arroio Korá (Paranhos-MS), 21 a 22/09/2012

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Relato de experiência: comitiva da UFMG, UFAM, INCT Inclusão, INCT Brasil Plural e Associação Brasileira de Etnomusico logia participa do I Simpósio de Pós-Graduados, Pesquisadores e Lidera nças da Aty Guasu Guarani, Ñandeva e Kaiowá, na TI Arroio Korá (Paranhos-MS).

“Basta de genocídio” “Aqui é a nossa vida, nosso lar e a nossa sobrevivência.

Queremos a demarcação do nosso tekoha”

Reunidos entre os dias 20 e 22 de setembro de 2012 em Arroio Korá, terra indígena recentemente retomada na região de Paranhos, Mato Grosso do Sul, um grupo de aproximadamente 300 Guarani, Ñandeva e Kaiowá, de diversos tekoha guasu, fizeram depoimentos e deliberaram sobre a grave situação em que se encontram. Acuados pela ameaça de pistoleiros, assassinos de aluguel contratados como “seguranças” por fazendeiros da região, os guarani, Ñandeva e Kaiowá enfrentam toda sorte de injustiças. A principal é o assassinato impune de importantes líderes e intelectuais indígenas que historicamente lutaram por seus direitos, principalmente o da demarcação de suas terras tradicionais de modo a garantir a preservação de seu modo de vida, suas plantações para subsistência, seus roçados de milho, mandioca, batata, feijão, amendoim e arroz. São recorrentes ainda ordens de despejo, ameaças de morte, torturas, estupros, sequestros, dentre outras agressões.

Arroio Kora. 21/09/2012. Foto: Luciana de Oliveira

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Preocupados e solidários com essa situação, a etnomusicóloga Rosângela de Tugny da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e representante do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino e na Pesquisa (INCTI); a jornalista e antropóloga Luciana de Oliveira (UFMG); o documentarista e mestrando em Comunicação Social Bernard Belisário (UFMG) e a antropóloga Deise Lucy Oliveira Montardo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), representante do INCT Brasil Plural, da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET) e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). A iniciativa ocorreu após o contato da equipe da UFMG com a causa dos Guarani e Kaiowá por ocasião do 44º Festival de Inverno aos quais se somaram os esforços da antropóloga Deise Lucy que realizou seu trabalho de campo na região de Amambai e Pirajuy, tendo como interlocutora privilegiada a xamã Odúlia Mendes. Odúlia faleceu antes de poder retornar ao território onde nasceu e tekoha tradicional de seu povo, o Guaiviry (Ponta Porã, MS), pelo qual lutou durante toda sua vida. Foi companheira, esposa, de Nízio Gomes, assassinado quando da retomada do Guaiviry, em 18.11.2011. A comitiva foi acompanhada por Nereu Schneider, advogado especialista em direito indígena, e participou do evento com o intuito de somar esforços e apoio técnico da universidade à luta dos Guarani, Ñandeva e Kaiowá. As professoras e pesquisadores estiveram no Guaiviry, testemunhando também ali a luta dos guarani pelo seu território.

Estrada de acesso ao Arroio-Kora. Foto: Nereu Schneider

O I Simpósio de Pós-Graduados e Lideranças Guarani, Ñandeva e Kaiowá promovido no âmbito do projeto “Levantamentos in loco para mapear, avaliar e denunciar a violência

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praticada contra as famílias indígenas do povo Guarani e Kaiowá no MS”, aprovado no edital 2012 do Fundo Brasil de Direitos Humanos, com o objetivo de traçar junto com os indígenas da região um panorama dos danos por eles sofridos e discutir alternativas. Para tanto o projeto prevê a formação de uma equipe multidisciplinar que realizará visitas programadas a 20 acampamentos em conflito – 3 visitas por ano – e acompanhará os serviços de segurança, saúde, educação e proteção aos direitos humanos prestados pelas instituições públicas em cada um deles. As lacunas percebidas serão transformadas em demandas ao poder público no decorrer do trabalho de visitação e, ao final do programa de visitas, uma grande reunião acolherá depoimentos para aprofundamento da discussão coletiva e encaminhamentos, dando as bases para criação de uma associação formal de representação dos interesses do grupo. A organização do simpósio se deu no bojo dos primeiros passos do projeto somado à necessidade urgente de fazer frente às últimas ameaças perpetradas em Arroio Korá.

Com imensurável capacidade de concentração, escuta e deliberação, os participantes, homens, mulheres, jovens, idosos e crianças, protagonizaram o encontro e acompanharam a tudo o que era dito com uma disciplina verbal e corporal admirável. Foram dois dias e meio de intensos debates em que todos, durante jornadas de até 12 horas de duração, de forma aparentemente impassiva e atenta, escutaram-se reciprocamente nos relatos sobre a situação dos diversos tekoha. Nem mesmo os disparos de tiros que puderam ser ouvidos no decorrer do Simpósio - não obstante a afirmação dos fazendeiros ante a Procuradoria da República de Ponta Porã em 25 de setembro de 2012, de que seus "seguranças" não portam armas – foram capazes de quebrar a concentração dos presentes. Todos se mostraram pessoas com uma justa consciência do alijamento de seus direitos, além de marcadas pelo sofrimento da perda de seus entes, da fome e da falta de boas condições de saúde e educação. Dois jovens relataram todos os depoimentos, em caligrafia impecavelmente bela, cujos resultados já foram parcialmente publicados no facebook da Aty Guasu (http://www.facebook.com/aty.guasu?fref=ts). A condução do simpósio negou todos os estigmas sobre os índios brasileiros que circulam no imaginário social: seu forte protagonismo, seu modo acolhedor e receptivo e sua consciência sobre os danos sofridos na situação de injustiça são contrapontos às imagens da cooptação, da passividade, da alienação, da selvageria, da insignificância e, nos piores casos, da inexistência.

As forças opressoras aos povos Guarani, Ñandeva e Kaiowá, são poderosas do ponto de vista político, econômico e simbólico. O estado brasileiro de Mato Grosso do Sul concentra um conjunto de atividades produtivas no segmento do agronegócio que têm lhe garantido um crescimento econômico vertiginoso, mas acompanhado da destruição de seu patrimônio natural e humano. Dentre as forças poderosas estão fazendeiros de commodities como a soja, o gado, a madeira de eucalipto e a cana, e suas associações de interesses – dentre as quais se destaca a Federação da Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul (Famasul) –, empresas multinacionais do ramo de papel e celulose, açúcar e etanol, extração mineral que atuam por meio do lobby e de pressões sobre os poderes do Estado de modo a garantir condições para sua expansão desenfreada. O rastro de destruição ambiental deixado pela atuação econômica salta aos olhos. Nos 900 quilômetros de viagem que a comitiva percorreu entre Campo Grande, Paranhos, Amambai, Ponta Porã, Dourados e de retorno a Campo Grande testemunhou a desolação dos campos na entressafra, período em que os empresários da agricultura

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perscrutam o mercado para saber o que lhes renderá mais e em menor prazo: soja ou cana de açúcar. A comitiva conheceu também os odores do temido subproduto da cana de açúcar, o vinhoto, tão agressivamente tóxico, que já se tornou motivo de queixa até dos plantadores de soja. A paisagem parece desértica. As imensas extensões de terras desmatadas oprimem as retinas, o cheiro do refugo das usinas de etanol invadem perigosamente o olfato e, de modo invisível, os pesticidas e químicos usados para “proteger” as lavouras, contaminam lençóis freáticos, rios e a saúde daqueles que dependem dessa água.

Estrada que liga Amambai a Ponta Porã. Foto: Luciana de Oliveira

Não menos opressora, é a forma como a sociedade envolvente cria mecanismos para se apropriar dos parcos recursos que entram nas aldeias, especialmente a renda de aposentados. Só para citar um exemplo, não é incomum que os donos de supermercados das cidades vizinhas às aldeias estabeleçam o seguinte arranjo de exploração dos indígenas: colocam um transporte à disposição para recolher os aposentados nas aldeias, "auxiliam" os indígenas no saque de seu benefício, tomam pra si o dinheiro e "disponibilizam" os produtos do seu mercado aos indígenas que pegam as mercadorias de acordo com sua necessidade, o que raramente chega à dois terços do que lhes foi tomado pelos comerciantes, que "gentilmente" transportam os indígenas de volta à sua aldeia.

O Estado também atua de forma opressora. Seja pela omissão, seja pela atuação equivocada. Em conversa com uma antropóloga recém-contratada pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), ela disse estar preparando estudos quantitativos para comprovar dados empíricos que expressam que a política pública do governo federal do Bolsa Família tem sido a causa do aumento nos índices de alcoolismo e suicídio entre indígenas da região. Esta

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colocação expressa o preconceito arraigado dentro dos órgãos estatais e um culpado desconhecimento de trabalhos acadêmicos já produzidos em torno destes temas complexos. Segundo relatos, há agentes da Funai e da Sesai que atestam que não vão entrar em áreas de conflito sem a polícia. Mas como podem trabalhar com a causa indígena dos Guarani, Ñandeva e Kaiowá, e não trabalhar em área de conflito? Se o papel da Funai é proteger os direitos indígenas, o que dizer de funcionários que se negam a ajudar, ou pior, que participam indiretamente (ou diretamente, como vem sendo investigado atualmente no caso do assassinato de Nízio Gomes) dos assassinatos e emboscadas compartilhando com os fazendeiros e pistoleiros informações sobre os acampamentos e aldeias. Portanto, a situação inspira cuidados e desconfiança com relação aos funcionários governamentais, políticos e até mesmo com os chamados “patrícios”, trabalhadores por vezes infiltrados nas aldeias, e de funcionários que também correm riscos ao relacionar-se com os índios. Duas funcionárias da Sesai e um representante da Funai-MS foram os únicos que a equipe testemunhou fazerem-se presentes no Seminário no Arroio Korá.

Entrada do tekoha Arroio Kora. Foto: Luciana de Oliveira

Dentre as necessidades levantadas pelas lideranças presentes, destacam-se: a demarcação e homologação das terras indígenas, acionando forças nacionais para garantir o respeito a tais demarcações; proteção do Estado às lideranças indígenas ameaçadas pelos pistoleiros; o registro dos depoimentos tanto para a consulta no futuro quanto para poder

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compartilhar com o mundo a mensagem de luta; o planejamento das ações dos indígenas para garantir recursos e condições a serem exigidas das autoridades competentes, especialmente da Funai. Grande destaque foi dado ao papel do professor, da escola e da formação acadêmica para qualificação das reivindicações e conhecimento cada vez mais profundo dos direitos. Há também a importante contribuição dos registros e da difusão da informação – ou de contra-informação – nas redes sociais que se difundem pelo mundo levando a causa Guarani, Ñandevá e Kaiowá, para além das fronteiras vigiadas da mídia oficial hegemônica. Aliás, é preciso destacar que há outra força opressora, quiçá mais poderosa que todas as demais e estrategicamente usada para ocultar a questão do escrutínio público em âmbito local e nacional: a invisibilidade. Na experiência da viagem ao Simpósio, após percorrermos aproximadamente 1.000 km de ida e volta entre Campo Grande e as terras indígenas visitadas, em um estado onde habitam 44 mil Guarani e Kaiowa, o segundo maior grupo indígena do país, e o segundo maior fora da Amazônia, num território pouco denso populacionalmente, percebemos como eles foram tornados invisíveis por um preconceito construído no cotidiano. Um quadro de contornos tão flagrantes de violação de direitos humanos mereceria maior visibilidade para que pudesse ser de fato objeto de atenção da população brasileira, de autoridades governamentais, das universidades, dos movimentos sociais e de atores internacionais.

As lideranças ameaçadas foram tomadas de esperança pela portaria governamental número 2.169, de 19/09/2012, lida no encontro, que garante segurança e proteção governamental via Polícia Federal e Força Nacional de Segurança Pública nas áreas de conflito entre indígenas e fazendeiros no Mato Grosso do Sul. Foi também lida uma carta da presidente da Funai, Marta Maria Azevedo, que destacou a preocupação do órgão com a grave situação de conflito no Mato Grosso do Sul, porém alega não ter recursos financeiros necessários para apoiar a realização da Aty Guasu por limitações orçamentárias

E quanto à presença da Universidade? Diante do que foi visto e ouvido, o que nos toca? O que podemos fazer? Desde o início, a ideia é a de que universidade tem o poder de amplificar uma luta. Sabemos que esse tipo de conflito coloca em cheque não somente o lugar cidadão dos sujeitos indígenas – isso a história se encarrega de apontar – mas também o próprio valor do conhecimento acadêmico. Afinal, qual é o valor do que a universidade produz sobre os efeitos e malefícios de certo tipo de técnica e produção econômica? Qual é o valor do conhecimento científico para o modelo de desenvolvimento que vem sendo assumido pelo Estado brasileiro? Qual é o valor do que a universidade produz sobre os amplos tipos de conhecimento que se encontram nas aldeias indígenas sobre a biodiversidade, sobre técnicas de cura e sobre preservação ambiental? Geólogos, antropólogos, sociólogos, ambientalistas, engenheiros, historiadores, advogados vêm procurando, muitas vezes em vão, agir e colocar conhecimentos técnico-científicos à disposição para a ação governamental bem como para o debate e a decisão política dialogada. Por outro lado, o modelo de conhecimento que sustenta o agronegócio tem se originado em qual modelo de universidade? Pensando nisso, algumas ações e encaminhamentos podem e devem com urgência ser realizados: a organização de encontros acadêmicos nacionais na Universidade Fede ral de Grande Dourados, trazendo professores e pesquisadores de todas as regiões do país para conhecerem de forma

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mais próxima a situação, sensibilizarem-se e conviv erem com ela, ocuparem a cidade ; potencializar ações de comunicação, documentação, registro para garantir a visibilidade da causa Guarani, Ñandevá e Kaiowá para o resto do país, para as cidades próximas das aldeias, para as autoridades governamentais e outros agentes da sociedade civil; realização de caravanas multidisciplinares com o objetivo de criar parcerias de apoio técnico nas diversas frentes necessárias para fazer face à opressão: profissionais do direito, jornalistas, antropólogos, cineastas, médicos.

De nossa parte, acreditamos que essa é uma contribuição que a universidade tem o dever de dar de modo a interromper esse ciclo vicioso de abusos e omissões perpetrados contra esse povo: impunidade dos assassinatos, destruição ambiental, preconceito étnico dentro de órgãos do estado dando direcionamentos escusos às políticas públicas, omissão da mídia pelo apagamento e pela difusão do preconceito racial a que são expostos, sem que a real situação e história do país nesta região seja divulgada e informada à população. Essa é uma proposta que concerne a todos aqueles que acreditam na preservação da diversidade cultural como pré-condição para a construção de experiências potentes do comum e salvaguarda de saberes fundamentais para nossa existência. Entendemos que a Universidade concentra um contingente de especialistas e interessados que podem ajudar a intervir assertivamente para que essa situação seja revertida o mais rápido possível, afinal a matéria desse apelo são o direito e a vida de homens e mulheres. Essa foi a razão de nossa participação.