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    NOTAS SOBRE A MOBILIDADE DO CONHECIMENTO 1

    Naomar Almeida-Filho 2

    1. O mundo em que vivemos est cada dia maisinterconectado. Esta conectividade massiva e ampliada

    ocorre em paralelo globalizao econmica, nome de moda

    cunhado para a internacionalizao da produo,

    distribuio e consumo que marcou o final do Sculo XX. A

    macrotendncia da globalizao/internacionalizaocontinua hegemnica neste incio do novo sculo.

    2. A globalizao constitui parte e efeito de processosmacroeconmicos poderosos:

    avanos em tecnologia de informao, trans-nacionalizao de empresas, integrao internacional dos sistemas bancrios, externalizao de mercados de consumo, migrao da fora de trabalho, mobilidade da propriedade intelectual.

    3. A complexidade da sociedade contempornea, resultante demacroprocessos sociais emergentes, tem produzido efeitos

    estruturais:

    predominncia do simblico na economia; tecnologia como fora produtiva; acelerao e compresso do espao-tempo, mediada

    por dispositivos tecnolgicos;

    inter-articulao de saberes;1Interveno na VII Reunio da Mesa Redonda da Sociedade Civil Brasil

    Unio Europeia (CDES-CESE), Bruxelas, 22/janeiro/2013.

    2 Professor Titular do Instituto de Sade Coletiva da UFBA. Pesquisador2

    Professor Titular do Instituto de Sade Coletiva da UFBA. Pesquisador1-A do CNPq. Membro do Conselho de Desenvolvimento Econmico eSocial da Presidncia da Repblica do Brasil.

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    multi-inter-transdisciplinaridade; paradigmas alternativos de formao; conectividade aberta e massiva; hipermobilidade do conhecimento.

    4. Alm disso, da globalizao/mundializao tambmresultam conflitos de valores culturais e ideolgicos,

    especialmente nestes tempos da web, da internet, dos

    celulares e da cobertura global das telecomunicaes por

    satlite. Ao mesmo tempo, e talvez paradoxalmente, tem

    sido imputado globalizao:

    severas redues no bem-estar social de populaeshumanas localizadas,

    aumento de desigualdades entre pases e grupossociais,

    crescimento de movimentos nacionalistas efundamentalistas, muitos a partir de intolerncia de

    base religiosa,

    intensificao de conflitos tnicos, no-observncia de direitos humanos, desemprego estrutural, agresses ambientais, deteriorao do espao urbano, escalamento da violncia.

    5. No plano da cincia, tecnologia & inovao, redes de centrosde pesquisa, universidades, empresas, governos e

    organismos multilaterais tm sido muito ativos em

    estabelecer padres globais de convergncia intelectual,cientfica e tecnolgica.

    6. No plano da arte & cultura, observa-se poderoso processode padronizao internacional, submetendo valores,

    comportamentos e bens culturais locais a padres estticos

    estrangeiros. Tais padres e valores so dependentes de

    fontes centrais de legitimao cultural, cientfica e

    tecnolgica localizadas nos pases desenvolvidos,

    promotores de produtos, marcas e conceitos estruturadores

    de uma indstria cultural global.

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    7. Meu argumento nesta breve interveno que, em talcenrio, precisamos rever e talvez recriar o conceito de

    mobilidade do conhecimento, no s incorporando seus

    valores econmicos e polticos mas sobretudo priorizando

    sua capacidade de atuar como instrumento de integraopoltica, social e esttica entre pases, culturas e povos, em

    contraposio aos efeitos perversos da globalizao.

    8. Tomando como referncia conceitual o pensamento deMilton Santos, gegrafo-filsofo representativo de toda uma

    gerao de intelectuais crticos que refletiu o Brasil

    contemporneo, podemos situar a problemtica da

    mobilidade do conhecimento numa perspectiva crtica do

    multiculturalismo politicamente determinado e da

    disciplinaridade instrumental. Em sua obra seminal Poruma Geografia Nova (2002), Santos destaca dois conjuntos

    desses efeitos.

    a. Por um lado, o processo de mobilidade do conhecimentoproduz um universalismo emprico, padronizador de

    pautas e modelos de interpretao e construo do

    mundo, o que paradoxalmente fomenta sociodiversidade

    e etnodiversidade, em escala indita na histria humana.

    b. Por outro lado, contraditoriamente, dada a enormemobilidade e hiperconectividade providas pelas

    tecnologias de informao e comunicao formadoras do

    mundo contemporneo, os sujeitos alienam-se na

    proliferao de aberturas de conexes e no participam

    do mundo local dos territrios e, por isso, "[...] acabam

    por ver pouco da cidade e do mundo" (Santos, 2008,

    p.80).

    9. A antinomia local versus global emergiu de um crescimentorpido do comrcio de informao, em todos os nveis, daindstria cultural e de entretenimento ao mercado cientfico

    e tecnolgico de marcas e patentes. A chamada sociedade

    do conhecimento funda-se sobre uma relao dialtica entre

    elementos e processos estruturantes da conjuntura

    conceitual contempornea ou, nos termos miltonianos, da

    ideologia do mundo moderno (Santos, 2002).

    a. Primeiro, a emergncia de uma nova realidade pelacompresso do espao-tempo, viabilizada pelo

    aperfeioamento e disponibilizao dos meios detransporte.

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    b. Segundo, nesse caso mediada pela ampliao datelemtica, estabelece-se uma hiperconectividade

    individual e institucional indita na histria humana.

    c. Terceiro, para dar conta da complexidade crescentedas relaes sociais na sociedade contempornea,surgem condies de possibilidade para a hegemonia

    de um pensamento complexo, em lugar do referencial

    linear cartesiano, simplificador da realidade concreta.

    10. Milton Santos (2000, p.21) traz como hiptese que aemergncia de socio-etno-diversidade no territrio local

    possibilita a produo de novos discursos, novas

    singularidades, onde a solidariedade incessantemente

    criada pela contigidade das relaes inter-pessoais diretas.

    Nos territrios locais, as mltiplas temporalidades e

    singularidades dos pobres das metrpoles e dos rinces

    rurais isolados, contrapostos ao tempo veloz da

    globalizao, vo compondo o tecido social de um futuro

    solidrio. Somente do lugar emergir uma "outra

    globalizao" (Santos, 2000), politicamente responsvel e

    eco-sustentvel, contrapondo-se globalizao perversa e

    predatria baseada na expanso descontrolada do capital e

    do consumo. Esta a raiz do otimismo poltico miltoniano:

    a perverso padronizadora do cotidiano pela globalizao contraposta pela singularizao do lugar (Santos, 2010).

    11. De fato, a tecnocincia hegemnica e a estruturainstitucional dela decorrente tem se mostrado insuficiente

    para o enfrentamento das novas e complexas questes

    colocadas pelo multiculturalismo, pela ampliao da

    democracia e pelos desafios da sustentabilidade, que

    impuseram novos arranjos de campos de saberes e prticas.

    12.

    Considerando o processo de globalizao, o espao-tempocomprimido, as pautas simblicas unificadas e a crescente

    diversidade multicultural do mundo, propostas de

    renovao profunda das instituies de conhecimento

    necessitam de slida e consistente teoria crtica da

    sociedade e da cultura (Sousa-Santos, 2004). Nesse sentido,

    a partir da reflexo sobre o fenmeno do multiculturalismo

    como fundo e fundamento da contemporaneidade, podemos

    derivar conceitos mais ampliados e radicais como, por

    exemplo, etnodiversidade, epistemodiversidade e inter-

    transdisciplinaridade.

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    13. Na segunda metade do sculo XX, a multiplicao deaportes disciplinares sobre objetos e temticas

    convergentes, a busca de interfaces e conexes entre

    disciplinas cientficas e a experimentao de trnsitos de

    sujeitos e discursos entre campos de conhecimentodistintos permitiram a conformao de alternativas viveis.

    O primeiro desses efeitos tem sido designado como

    multiculturalismo e o segundo tem assumido uma feio

    contraditria ao conhecimento herdado, de base

    especializada, indicando perspectivas ps-disciplinares para

    sua superao no marco da inter-transdisciplinaridade

    (Sousa-Santos, 2004).

    14. Nesta era de mundializao, multiculturalismo,aquecimento global, realidade virtual, movimentos sociaisexpandidos e democracia direta em tempo real, no cabe

    reforar fronteiras disciplinares nem fomentar instituies

    de conhecimento baseadas no totalitarismo da unidade

    cognitiva. Para abordar esse conjunto de questes

    inquietantes, precisamos retomar a noo de

    etnodiversidade como interessante e til para repensar a

    base conceitual das instituies de conhecimento,

    reforando suas referncias epistemolgicas, tecnolgicas e

    pedaggicas na direo de uma democracia cognitiva, nosentido dado por Boaventura de Sousa Santos (2004).

    15. Na construo das instituies de conhecimento de novagerao, precisaremos de uma franca abertura etno-

    epistemolgica, viabilizada mediante uma perspectiva meta-

    inter-trans-disciplinar. Porm, para que isso efetivamente

    ocorra, as instituies renovadas tero que se envolver em

    movimentos simultneos de incorporao da globalidade e

    de peculiaridades regionais, produzindo conhecimentos

    adequados aos contextos e formando indivduos capazes dedar conta das tarefas de compreender e intervir nessa

    realidade complexa e cambiante.

    16. Em suma, parece pertinente considerar que as sociedadescontemporneas avanadas cada vez mais se definem por

    sociodiversidade, etnodiversidade, epistemodiversidade,

    comunicabilidade ou, como preferem alguns, democracia,

    multiculturalismo, interdisciplinaridade, mobilidade.

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    17. Mas uma questo crucial nos pede urgncia na conjunturaatual do Brasil: como pagar a dvida social da excluso

    cognitiva de grande parte da populao brasileira? Algumas

    respostas: reconhecimento da realidade scio-econmica

    inqua e adversa, reviso transparente de um contextohistrico doloroso, exposio ampla diversidade cultural

    do pas e do mundo, imerso em planos de prticas

    concretas, transgresso de papeis sociais e pedaggicos,

    transposio de fronteiras disciplinares. Tais respostas

    justificam a prioridade radical dada Educao (no sentido

    de formao de sujeitos crticos da cultura, da sociedade e

    dos paradigmas vigentes) no mbito das polticas pblicas

    nacionais.

    18. Para isso, devemos ser criativos para descobrir sadas eresponsveis para concretizar transformaes, atuando na

    realidade brasileira e no contexto internacional, a cada dia

    tornando realidade novas estratgias e prticas de

    transformao, num processo franco de recriao

    institucional, sem perder a competncia cientfica,

    tecnolgica e praxiolgica (Sousa-Santos & Almeida Filho,

    2008). Sem preconceitos e com imaginao, precisamos

    tornar a rede brasileira de instituies produtoras e

    difusoras de conhecimento (universidades, centros depesquisa, laboratrios, parques tecnolgicos, academias e

    sociedades cientficas e culturais), por um lado, em um

    patrimnio nacional radicalmente pblico, de fato

    aproprivel pelas classes populares brasileiras, e, por outro

    lado, em uma plataforma de internacionalizao dos setores

    produtivos, de promoo de modelos de desenvolvimento

    sustentvel e de integrao da populao brasileira na

    sociedade planetria.

    19. Neste momento, gostaria de recomendar a esta MesaRedonda a continuidade do dilogo sobre a questo da

    mobilidade do conhecimento, desdobrando-o em temticas

    pertinentes organizadas numa pauta preliminar (a ser

    enriquecida e ajustada no prprio processo de debates e de

    negociao):

    a. Conceitos de mobilidade de conhecimento;b. Conceitos de propriedade intelectual;c. Mobilidade de produtores de conhecimento

    (formadores, pesquisadores, criadores);

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    d. Modelos de mobilidade de estudantes e trainees;e. Marcos de transferncia de tecnologia;f. Convergncia de modelos de formao acadmica,

    cientfica e tecnolgica.

    20. Esta interveno expressa a esperana de que, em vez deinstrumento poltico e ideolgico utilizado para abrir novos

    mercados econmicos, alvos de insidiosa invaso cultural-

    industrial, a mobilidade internacional de conhecimentos,

    saberes, tcnicas, produtos culturais, bens simblicos e

    valores estticos pode ser um caminho para o

    desenvolvimento social com solidariedade, justia e bem-

    estar.

    Referncias Bibliogrficas:

    SANTOS, Milton. Por uma outra globalizao: do pensamento

    nico conscincia universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

    SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. So Paulo: Hucitec,

    2002.

    SANTOS, Milton. Tcnica, espao e tempo: globalizao e meio

    tcnico-cientfico informacional. 2. ed. So Paulo: Hucitec, 2008.

    SANTOS, Milton. O lugar e o cotidiano. In: SOUSA-SANTOS, B.;MENESES, M.P. (Orgs.) Epistemologias do Sul. So Paulo:

    Cortez, 2010.

    SOUSA-SANTOS, Boaventura. Conhecimento Prudente para uma

    Vida Decente. So Paulo: Cortez, 2004.

    SOUSA-SANTOS, Boaventura; ALMEIDA-FILHO, Naomar. A

    universidade no sculo XXI: para uma universidade nova. Lisboa:

    Almedina, 2008.