NOTAS SOBRE JUROS E O CUSTO FINANCEIRO BRASIL · surpreendentemente, o custo de cap-taçªo de...

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2 CONTRAPONTO NOTAS SOBRE JUROS E O CUSTO FINANCEIRO BRASIL ' 2000, RAE - Revista de Administraçªo de Empresas / EAESP / FGV, Sªo Paulo, Brasil. RAE Light v. 7 n. 4 p. 2-3 Out./Dez. 2000 Jairo Saddi Mais uma vez, o tema juros volta à tona, ocupando espaço no debate nacional. Para muitos, nossos juros sªo escorchantes, abusivos e apenas alimentam lucros exorbitan- tes de banqueiros inescrupulosos. Segundo o Diretor do Banco Central, Luiz Fernando Figueiredo, existem trŒs fatores para determinar a redu- çªo dos juros ao consumidor na eco- nomia brasileira: Para reduzir as ta- xas, podemos estimular a concorrŒn- cia, encontrar formas de reduzir a inadimplŒncia e simplificar os im- postos e a regulamentaçªo. Preten- demos demonstrar que hÆ algo maior em questªo, a que denominaremos custo financeiro Brasil e que inclui os trŒs fatores apontados acima, mas nªo se limita a eles. Para tanto, Ø ne- cessÆrio definir juros e sua fundamen- taçªo jurídica e econômica. A primeira noçªo fundamental Ø a conceituaçªo de juros. Pontes de Miranda (1971) lembra que a pala- vra juros vem de jure, ablativo de jus, juris, o que significa direitos. Portanto, juros sªo, antes de mais nada, direitos ou o que Keynes (1964) denominaria direito do cre- dor no tempo. Ainda, Pontes de Miranda define juros como: o que o credor pode exigir pelo fato de ter prestado ou de nªo ter recebido o que se lhe devia prestar. Tal autor realça que, numa ou noutra espØ- cie, o credor foi privado do valor que deu ou do valor que teria a re- ceber e nªo recebeu, ressumbrando disso dois elementos conceituais dos juros, quais sejam: a) o valor da prestaçªo, feita ou a ser recebida; b) o tempo em que permanece a dí- vida, daí o cÆlculo percentual ou outro cÆlculo adequado sobre o valor da dívida para certo trato de tempo. Simplificadamente, os juros sªo prestados em coisas fungíveis, em- bora ordinariamente em dinheiro, e podem ser normalmente classifica- dos em remuneratórios e moratóri- os. Os primeiros sªo aqueles que re- sultam da manifestaçªo bilateral ou unilateral da vontade, geralmente tendo por fonte o contrato ou o acordo de vontades. JÆ os juros moratórios resultam do retardamen- to indevido no cumprimento daque- la obrigaçªo, isto Ø, da mora em sol- ver aquela avença. Uma vez estabelecidos esses con- ceitos bÆsicos, Ø fÆcil concluir que o juro Ø custo, ou seja, Ø insumo do Sistema Financeiro meio pelo qual os tomadores deficitÆrios (pessoas fí- sicas ou jurídicas) remuneram os agentes superavitÆrios. Sendo custo, Ø fÆcil perceber que sua composiçªo estÆ atrelada a inœmeros fatores, ma- tØrias-primas da indœstria financei- ra, numa analogia simplista: a) Preço do dinheiro: custo bÆsico como a moeda Ø bem fungível, hÆ de se estabelecer um patamar mínimo de oportunidade, ou seja, uma taxa mínima de referŒncia, que, em nosso caso, Ø taxa de poupança ou uma espØcie de pri- me rate, abaixo da qual ninguØm se dispıe a investir seus recur- sos. Por exemplo, nenhum ban- co conseguiria captar um centa- vo se oferecesse uma taxa menor do que a poupança: pelo mesmo risco, os agentes econômicos pre- ferem aplicar seus recursos na Caixa Econômica ou no Banco do Brasil, instituiçıes federais que nªo podem se tornar insolventes. b) Custo das restriçıes monetÆrias: o Banco Central obriga que parte dos depósitos sejam nele feitos, muitos sem qualquer tipo de re- muneraçªo, ou condiciona a apli- caçªo de determinadas linhas a determinados tipos de crØdito.

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RAE Light � v. 7 � n. 4 � p. 2-3 � Out./Dez. 2000

Jairo Saddi

Mais uma vez, o tema �juros�volta à tona, ocupando espaço nodebate nacional. Para muitos, nossosjuros são escorchantes, abusivos eapenas alimentam lucros exorbitan-tes de banqueiros inescrupulosos.Segundo o Diretor do Banco Central,Luiz Fernando Figueiredo, existemtrês fatores para determinar a redu-ção dos juros ao consumidor na eco-nomia brasileira: �Para reduzir as ta-xas, podemos estimular a concorrên-cia, encontrar formas de reduzir ainadimplência e simplificar os im-postos e a regulamentação.� Preten-demos demonstrar que há algo maiorem questão, a que denominaremos�custo financeiro Brasil� e que incluios três fatores apontados acima, masnão se limita a eles. Para tanto, é ne-cessário definir juros e sua fundamen-tação jurídica e econômica.

A primeira noção fundamental éa conceituação de juros. Pontes deMiranda (1971) lembra que a pala-vra juros vem de jure, ablativo dejus, juris, o que significa �direitos�.Portanto, juros são, antes de maisnada, direitos � ou o que Keynes(1964) denominaria �direito do cre-dor no tempo�. Ainda, Pontes deMiranda define juros como: �o que ocredor pode exigir pelo fato de ter

prestado ou de não ter recebido oque se lhe devia prestar.� Tal autorrealça que, numa ou noutra espé-cie, o credor foi privado do valorque deu ou do valor que teria a re-ceber e não recebeu, ressumbrandodisso dois elementos conceituaisdos juros, quais sejam:a) o valor da prestação, feita ou a

ser recebida;b) o tempo em que permanece a dí-

vida, daí o cálculo percentual ououtro cálculo adequado sobre ovalor da dívida para certo trato detempo.

Simplificadamente, os juros sãoprestados em coisas fungíveis, em-bora ordinariamente em dinheiro, epodem ser normalmente classifica-dos em remuneratórios e moratóri-os. Os primeiros são aqueles que re-sultam da manifestação bilateral ouunilateral da vontade, geralmentetendo por fonte o contrato ou oacordo de vontades. Já os jurosmoratórios resultam do retardamen-to indevido no cumprimento daque-la obrigação, isto é, da mora em sol-ver aquela avença.

Uma vez estabelecidos esses con-ceitos básicos, é fácil concluir que ojuro é custo, ou seja, é insumo do

Sistema Financeiro � meio pelo qualos tomadores deficitários (pessoas fí-sicas ou jurídicas) remuneram osagentes superavitários. Sendo custo,é fácil perceber que sua composiçãoestá atrelada a inúmeros fatores, �ma-térias-primas� da indústria financei-ra, numa analogia simplista:a) Preço do dinheiro: custo básico

� como a moeda é bem fungível,há de se estabelecer um patamarmínimo de oportunidade, ou seja,uma taxa mínima de referência,que, em nosso caso, é taxa depoupança ou uma espécie de pri-me rate, abaixo da qual ninguémse dispõe a investir seus recur-sos. Por exemplo, nenhum ban-co conseguiria captar um centa-vo se oferecesse uma taxa menordo que a poupança: pelo mesmorisco, os agentes econômicos pre-ferem aplicar seus recursos naCaixa Econômica ou no Banco doBrasil, instituições federais quenão podem se tornar insolventes.

b) Custo das restrições monetárias:o Banco Central obriga que partedos depósitos sejam nele feitos,muitos sem qualquer tipo de re-muneração, ou condiciona a apli-cação de determinadas linhas adeterminados tipos de crédito.

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Tais custos devem se refletir tam-bém na taxa, já que o banco re-passa esse custo para o tomadorfinal.

c) Custos operacionais: eles envol-vem desde o custo de agências,pessoal, segurança, etc. até ocusto da contingência legal (ris-cos de o banco não receber, porexemplo).

d) Cunha fiscal: os impostos inci-dentes sobre o crédito.

Os juros, como qualquer merca-doria � e eles não passam de umamercadoria �, sofrem os efeitos daoferta e da demanda, lei imutável danatureza econômica: se há mais gen-te querendo comprar juros, o preçosobe, caso contrário, ele cai. É na-tural que haja um certo componenteconcorrencial no processo, e a con-centração do Sistema Financeiro éinegável, mas, por si só, a alegaçãode que inexiste concorrência no Sis-tema Bancário não procede � tantoque o maior banco brasileiro pordepósitos, o Bradesco, é líder comcerca de 16% do mercado. A con-corrência deve aumentar, e é a issoque os bancos estrangeiros estão sepropondo, alguns, inclusive, ofere-cendo mais benefícios para o con-sumidor de crédito. Ainda há restri-ções em demasia à entrada de no-vos players e ocorre também umacerta �tropicalização dos bancos es-trangeiros�, que se adaptam aos bra-sileiros, e não vice-versa. Enfim, emqualquer lugar do mundo, há umacerta concentração no Sistema Fi-nanceiro pela própria natureza dovolume e da escala necessários parase operar a intermediação financeira.

Por oportuno, uma nota sobre atão falada limitação constitucionaldos juros: a limitação constitucio-nal dos juros, cuja proposta deemenda já passou pela Comissão deConstituição, Justiça e Cidadania noSenado, já que o próprio SupremoTribunal Federal determinou a com-pleta regulamentação do art. 192 da

Constituição, está em vias de se tor-nar extinta. Sem a emoção que tempor hábito balizar esse assunto, a li-mitação constitucional dos juros éprejudicial ao processo de formaçãode poupanças, obriga o Banco Cen-tral a praticar uma política monetá-ria passiva e impede eventuais ajus-tes conjunturais, que passam a serrealizados apenas por intermédio depolítica fiscal. Se não bastassem taisconsiderações de ordem macroeco-nômica, há também, pelo menos,quatro razões para se impedir limi-tação de juros, quais sejam:a) evitar erros na formulação de

expectativas dos agentes econô-micos quanto à inflação futura,o que, na prática, suprimirá a li-berdade do mercado de formartaxas de juros prefixadas;

b) impedir o repasse de custos ad-ministrativos e outros ônus naconcessão do crédito, o que re-presenta a inviabilidade das ope-rações de crédito com o varejo eo consumidor final;

c) evitar o repasse do componente derisco, que poderá significar o fimda oferta de crédito para os seg-mentos que não puderam dar ga-rantias consideradas adequadasou suficientes pelos emprestadores;

d) impedir repasse de empréstimosexternos no âmbito do SistemaFinanceiro, já que, certamente,haverá conflito de leis na esferado direito privado, pelo fato detal limitação de juros não encon-trar guarida no mundo hodierno.

Há um componente essencial as-sociado aos custos � e que já foimencionado �, que é o risco. Nãosurpreendentemente, o custo de cap-tação de crédito para pessoas jurí-dicas é menor do que o de pessoasfísicas. Não que todas as empresassejam melhores pagadores do queseus indivíduos, mas há um proble-ma de assimetria informacional: osbancos ainda não estão suficiente-mente preparados para conceder

corretamente crédito a pessoas físi-cas apenas com meros avais ou, emoutras palavras, eles não dispõem deinformações suficientes para redu-zir as taxas e preferem, assim, man-ter-se com mais gordura (especial-mente se há demanda) do que arris-car seus capitais.

Finalmente, é digno de nota quetodos somos �gananciosos�. O fitodo banqueiro, como o de qualquerempresário, é o lucro, o retorno so-bre seu investimento. Ninguém cor-re riscos à toa. As taxas estão ele-vadas porque há um excesso de cus-tos e tributos sobre a taxa de capta-ção, e não por outra razão. Muitosbanqueiros prefeririam emprestarmais com juros menores, desde queseu risco fosse também menor.

Nossa versão à cobrança imo-derada de juros não é nova. Desde1933, com a famosa Lei da Usura(Decreto 22.626), o assunto passoupor várias constituições. Se há abu-sos acima de taxas de mercado � eé evidente que há �, temos um pro-blema de direito de consumidor,não de direito econômico. O anti-go Hamurabi ordenou que todosque infringissem a Lei da Usura se-riam queimados vivos em óleo fer-vente. Consta que faltou até óleo fer-vente devido à paralisação da eco-nomia. Saibamos distinguir juros,abusos, custos e oferta de moeda. m

Jairo Saddi é Advogado (USP),Administrador (EAESP/FGV), Doutor emDireito Econômico pela USP, Professor e

Coordenador do Curso de Direito do InstitutoBrasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC).

E-mail: [email protected]

KEYNES, John Maynard. A treatise on money.Cambridge : Cambridge University Press, 1964.

PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Priva-do. 3. ed. Rio de Janeiro : Borsoi, 1971. t. XXIV.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS