NOV 2018 | MAI 2019 · Revista do MPC doutrina QUEM CONTROLA O CONTROLADOR? NOTAS SOBRE ALTERAÇÃO...

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NOV 2018 | MAI 2019 NÚMERO 09 | ANO V ISSN 2359-0955

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  • NOV 2018 | MAI 2019

    NMERO 09 | ANO VISSN 2359-0955

  • MINISTRIO PBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO PARAN

    R. Minist. Pub. Contas Est. Paran - Curitiba n. 9 - nov. 2018 / mai. 2019

    REVISTA DO MINISTRIO PBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO PARAN

  • Revista do MPC

    Revista do Ministrio Pblico de Contas do Estado do Paran/ Ministrio Pblico de Contas do Estado do Paran. - n. 9, (2018) - _ Curitiba: Ministrio Pblico de Contas do Paran, 2018.

    Semestral

    Resumo em portugus e ingls

    Disponvel em http://www.mpc.pr.gov.br/revista

    1. Administrao pblica Paran Peridicos. 2. Finanas pblicas Paran Peridicos. 3. Controle externo - Paran Peridicos. 4. Paran Ministrio Pblico de Contas do Estado do Peridicos. I. Ministrio Pblico de Contas.

    CDU 336.126.55(816.5)(05)

    Opinies e conceitos emitidos nos artigos, bem como a exatido, adequao e procedncia das citaes bibliogrficas, so de exclusiva responsabilidade dos autores, no refletindo, necessariamente, o posicionamento do Ministrio Pblico de Contas do Estado do Paran.

    CONSELHO EDITORIALFLVIO DE AZAMBUJA BERTI PresidenteMICHAEL RICHARD REINER Vice-PresidenteKTIA REGINA PUCHASKI Vice-Presidente ANGELA CASSIA COSTALDELLO MembroLIDA GRAZIAN PINTO MembroFABRCIO MACEDO MOTTA MembroHELENO TAVEIRA TORRES MembroINGO WOLFGANG SARLET MembroJUAREZ FREITAS MembroMARCO ANTONIO CARVALHO TEIXEIRA MembroMARCOS ANTNIO RIOS DA NBREGA MembroMARIA PAULA DALLARI BUCCI MembroRODRIGO LUS KANAYAMA MembroVANICE LIRIO DO VALLE Membro

    Organizao: RENATA BRINDAROLI ZELINSKI E RACHEL SANTOS TEIXEIRAProjeto Grfico: NCLEO DE IMAGEM DO TCE/PRDiagramao: NCLEO DE IMAGEM DO TCE/PRCapa: NCLEO DE IMAGEM DO TCE/PR

    Ministrio Pblico de Contas do Estado do Paran Secretaria do Conselho EditorialPraa Nossa Senhora da Salete, s/n Centro Cvico Curitiba PR

    Contato [email protected] - Tel (41) 3350-1640

    http://www.mpc.pr.gov.br/

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    sumrio

    Editorial ...................................................................................................................... 7

    Doutrina ................................................................................................................... 12QUEM CONTROLA O CONTROLADOR? NOTAS SOBRE ALTERAO NA LINDB .............................. 12Fernando Facury Scaff

    A NATUREZA JURDICO-CONSTITUCIONAL DO PROCESSO DE CONTROLE EXTERNO DA ADMINISTRAO PBLICA NO BRASIL E A AUSNCIA DE PADRONIZAO/SISTEMATIZAO DOS REGULAMENTOS PROCESSUAIS: ENSAIOS DE UMA UNIFORMIZAO PROCESSUAL LUZ DOS MODELOS ITALIANO, PORTUGUS E ESPANHOL ............................................................................... 30Glaydson Santo Soprani Massaria

    A SEGURANA JURDICA E O CONTROLE LUZ DE NOVOS CONCEITOS DA LINDB: UMA RELEITURA DO DEVER DE MOTIVAO DO AGENTE PBLICO ......................................................... 57Marclio Barenco Corra de Mello e Tatiana Alves Nunes Guerreiro Pereira

    A NOVA LINDB E O CONTROLE EXTERNO: UMA BREVE REFLEXO SOB A TICA DA ANALISE ECONMICA DO DIREITO ..................................................................................................................... 69Lus Filipe Vellozo Nogueira de S e Robert Luther Salviato Detoni

    O ATIVISMO DE CONTAS EM PROL DO SISTEMA DE CONTROLE INTERNO: UMA PROJEO CONCRETIZADORA DA EFICINCIA DOS RGOS MUNICIPAIS COMO ESSENCIAIS BOA GOVERNANA ........................................................................................................................................ 80Gabriel Guy Lger e Aila Tamina Martins Pereira

    Pareceres Ministeriais Selecionados .................................................................. 102

    Orientaes para Envio de Artigos ..................................................................... 124

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    editorial

    O ano 2018 teve uma grande movimentao no direito administrativo e financeiro.

    Foi com a alterao da lei de introduo s normas do direito brasileiro (LINDB), porm, que os maiores debates se instalaram, at mesmo antes da promulgao da legislao modificativa, que introduziu novas regras hermenuticas para as esferas administrativas, controladora e judicial, especialmente no que se refere segurana jurdica na aplicao do direito pblico e na delimitao de responsabilidades de agentes pblicos (Lei Federal 13.655/18).

    Nesse sentido, o temor do enfraquecimento do controle, especialmente por parte dos Tribunais de Contas, encontrou ressonncia no veto presidencial alguns dos dispositivos mais controversos, guardando-se, porm, o direcionamento que as novas regras intencionavam imprimir.

    Nada mais natural, portanto, que a presente edio da Revista do Ministrio Pblico de Contas dedique-se to relevante temtica.

    ***

    Inaugurando os trabalhos, o Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de So Paulo (USP), Fernando Facury SCAFF, demarca em seu QUEM CONTROLA O CONTROLADOR? NOTAS SOBRE ALTERAO NA LINDB uma viso positiva acerca da novel legislao, no sem antes remarcar criticamente a desnecessidade de tais normas se houvesse, de fato, uma cultura constitucional slida em nosso pas. Em cuidadosa exegese dos novos dispositivos, o autor, fixo nas premissas de que o direito que controla o poder (e, portanto, as normas em exame tm tambm a funo de controlar o controle exercido sobre quem aplica o direito) e que a punio no deve ganhar peso distinto da preveno (controle e responsabilidade so instrumentos do princpio republicano, e no seu objetivo ou seu fundamento), ressalta o potencial prtico que essas normas tm para a consecuo da segurana jurdica no direito pblico brasileiro.

    ***

    Desenvolvendo tema que parece estar ganhando os primeiros contornos de positivao tambm na novel alterao da LINDB (cujos termos reportam-se, claramente, a uma diviso tripartite das decises e processos em judiciais, administrativos e de contas), o Procurador do MPC-MG e ex-integrante da magistratura, Glaydson Santo Soprani MASSARIA, no artigo A NATUREZA JURDICO-CONSTITUCIONAL DO PROCESSO DE CONTROLE EXTERNO DA ADMINISTRAO PBLICA NO BRASIL E A AUSNCIA DE PADRONIZAO/ SISTEMATIZAO DOS REGULAMENTOS PROCESSUAIS: ENSAIOS DE UMA UNIFORMIZAO PROCESSUAL LUZ DOS MODELOS ITALIANO, PORTUGUS E ESPANHOL acaba por apresentar, aps consistente fundamento e anlise do direito comparado, a existncia de um verdadeiro processo de contas autnomo, como subespecie do processo jurisdicional, cujos contornos certamente devero conduzir qualquer tentativa futura, no direito ptrio, de formatao de um Cdigo de Processo de Contas Nacional.

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    Retomando-se com veemncia o tema da segurana jurdica e da motivao das decises estatais, o tambm Procurador do MPC-MG, Mestre e Doutorando em Cincias Jurdicas Publicistas pela Universidade do Minho, Marclio Barenco CORRA DE MELLO, juntamente com a Analista de Controle Externo (TCE-MG) Tatiana Alves Nunes Guerreiro PEREIRA, abordam, no estudo intitulado A SEGURANA JURDICA E O CONTROLE LUZ DE NOVOS CONCEITOS DA LINDB: UMA RELEITURA DO DEVER DE MOTIVAO DO AGENTE PBLICO, um conjunto de conceitos jurdicos que agora ganham novos contornos e negritos. Partindo de uma revigorada noo do princpio da motivao das decises, em que se vedam motivaes decisrias vazias, apenas retricas ou principiolgicas, sem anlise prvia de fatos e de todos os seus impactos, revelam os autores a preocupao dos novos dispositivos em estabelecer padres diferenciados na considerao de validade de atos pblicos editados em razo do interesse pblico, adotando a lei certo pragmatismo para a resoluo de distores.

    ***

    J em A NOVA LINDB E O CONTROLE EXTERNO: UMA BREVE REFLEXO SOB A TICA DA ANALISE ECONMICA DO DIREITO, o advogado Lus Filipe Vellozo NOGUEIRA DE S e Robert Luther Salviato DETONI, ambos Auditores de Controle Externo (TCE-ES) e mestres em Economia, estabelecem a premissa econmica do direito como mtodo para examinar as alteraes da LINDB e seus impactos sobre a atividade dos Tribunais de Contas, especialmente no que se refere necessidade de ponderao quanto alocao de recursos, devendo o agente pblico interpretar e aplicar o direito levando em conta as consequncias de suas decises.

    ***

    Encerrado a seo doutrinria desta edio, o Procurador do MPC-PR, Gabriel Guy LGER, especialista pela cole Nacional de la Magistrature ENM e cole Nationale dAdministration ENA, em conjunto com Aila Tamina Martins PEREIRA, tratam, em densa monografia acerca do ATIVISMO DE CONTAS EM PROL DO SISTEMA DE CONTROLE INTERNO: UMA PROJEO CONCRETIZADORA DA EFICINCIA DOS RGOS MUNICIPAIS COMO ESSENCIAIS BOA GOVERNANA, sobre a misso dos Tribunais de Contas na avaliao de conformao do controle interno ao ordenamento jurdico, com especial destaque ao princpio da eficincia, objetivando uma urgente e necessria requalificao do sistema de controle interno municipal.

    ***

    No tpico Pareceres Ministeriais Selecionados, importantes estudos esto referenciados em resposta a consultas formuladas pela Administrao Pblica ao TCE-PR, destacando-se, por fim, a cota ministerial lanada por ocasio do exame das contas anuais do Governo do Estado do Paran, exerccio de 2017, cujas concluses recomendaram a sua desaprovao.

    Boa leitura!

    MICHAEL RICHARD REINERProcurador do MPC-PR e coordenador da presente edio

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    QUEM CONTROLA O CONTROLADOR? NOTAS SOBRE ALTERAO NA LINDB

    Fernando Facury Scaff1

    RESUMO

    O texto analisa aspectos da funo exercida pelo controle em nossa sociedade e comenta cada qual dos artigos introduzidos pela Lei 13.655/18 LINDB - Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/42). Conclui afirmando que a alterao foi benfica para a aplicao do direito pblico brasileiro, aumentando a segurana jurdica, e se caracterizando tambm como uma forma de controlar o controlador.

    Palavras-chave: Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro - LINDB, Lei 13.655/18, controle financeiro e oramentrio, controle do controlador.

    ABSTRACT

    The text analyzes aspects of the function exercised by the control in our society and comments each articles introduced by Law 13655/18 to LINDB - Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657 / 42). It concludes by stating that the amendment was beneficial to the application of Brazilian public law, increasing legal security, and also being characterized as a way to control the controller.

    Keywords: Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro - LINDB, Lei 13.655/18, financial and budgetary control, to control the controller.

    1. NOTAS SOBRE CONTROLE E RESPONSABILIDADESurgiu no horizonte normativo um bom debate acadmico na seara do direito financeiro, envolvendo temas fundamentais para a interpretao e aplicao de suas normas, em razo da alterao efetuada na LINDB - Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro, que o mesmo e velho Decreto-lei 4.657/42, antigamente conhecido como Lei de Introduo ao Cdigo Civil, que apenas mudou de nome pela Lei 12.376/10. O texto sob anlise a Lei 13.655/18, que introduziu novos artigos quela norma.

    1 Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de So Paulo USP e Professor da Universidade Federal do Par - UFPA. Scio do escritrio Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimares, Pinheiro e Scaff Advogados.

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    Sob certo aspecto o debate se insere na velhssima questo sobre quem controla o controlador. Montesquieu, em sua obra O Esprito das Leis, de 1748, afirmava que o ideal de funcionamento do Estado, que o poder freie o poder, pois, a experincia eterna mostra que todo homem que tem poder tentado a abusar dele; vai at onde encontra limites2. Esse um debate importantssimo para a democracia e, mais ainda, para o efetivo exerccio republicano de controle do poder. No pode existir em um Estado Republicano e Democrtico de Direito poder sem controle, nos moldes do sistema de freios e contrapesos criado pelo direito constitucional norte-americano.

    Nas sociedades atuais quem controla o poder no apenas outro poder, mas o direito, tendo por base a Constituio. Se houvesse uma verdadeira cultura constitucional em nosso pas, a alterao efetuada seria desnecessria, pois redundante. Registra-se certo mal-estar civilizacional na leitura do texto, pois, subjacente a ele, identifica-se um pas conflagrado, onde no mais se respeita a autoridade administrativa, e no qual todos so culpados at prova em contrrio. As normas aprovadas apontam frmulas para dar mais segurana jurdica sociedade, no meio de toda essa conflagrao. Em um pas onde fossem respeitadas as leis e os atos administrativos, essa alterao normativa seria desnecessria. Mas o direito um produto cultural e labora sobre a realidade existente, o que torna a alterao efetuada no s relevante, como tambm necessria.

    Comparato assinala, com preciso, que a ideia de controle est associada de poder, que possui diversas dimenses, dentre elas a poltica, a econmica, a religiosa, a moral e a tcnica. E alerta que a questo no envolve apenas dominao, mas tambm influncia. E arremata que o problema fundamental da economia moderna no mais a titularidade da riqueza, mas o controle sobre ela3, pois, atualmente, nas macroempresas capitalistas, ningum sabe, a rigor, quem so as pessoas que detm o controle em ltima instncia, pois as mltiplas participaes do capital diretas, indiretas ou cruzadas constituem um emaranhado inextrincvel, ou cadeia sem fim4. Considerando a enormidade de inter-relaes quotidianas da atividade privada envolvendo o poder pblico, a anlise do controle pblico e social do Estado de suma importncia para o bem comum e, observando os efeitos financeiros, para a identificao de um oramento republicano5, seja na fase de elaborao, na de execuo ou na de controle.

    Michel Foucault publicou em meados da dcada de 70 do sculo passado uma obra com o ttulo Vigiar e Punir6, em que analisa a mudana no sistema prisional francs desde o sculo XVIII at a contemporaneidade. O livro inicia descrevendo em mincias uma cena ocorrida em 1757, na qual ocorre a dolorosa aplicao de uma pena corporal a um indivduo o que inclui seu sucessivo esfolamento, esquartejamento e

    2 MONTESQUIEU. O esprito das leis. Trad. Fernando Henrique Cardoso e Lencio Martins Rodrigues. Braslia: UnB, 1982. p. 186 e ss.3 COMPARATO, Fbio Konder. O poder de controle na Sociedade Annima. 2. ed. So Paulo: RT, 1977. p. 01-04.4 COMPARATO, Fbio Konder. Poder poltico e capitalismo. Boletim de Cincias Econmicas, v. LVII, tomo I, p. 1115-1144, especialmente p. 1133 (em homenagem ao Prof. Dr. Antnio Jos Avels Nunes). Coimbra: Coimbra Ed., 2014.5 Para a compreenso do conceito, ver SCAFF, Fernando Facury. Oramento republicano e Liberdade Igual. Belo Horizonte: Frum, 2018.6 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da priso. 33. ed. Traduo Raquel Ramalhete. Petrpolis: Vozes, 1987.

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    morte na fogueira que teria cometido o crime de parricdio, e prossegue seu relato at os dias atuais, com a criao das prises e outras formas de cumprimento da pena. A grande questo da obra : o que levou o sistema penal francs a mudar seu paradigma?

    Uma das vrias concluses que a mudana ocorreu porque a sociedade se humanizou ao longo do tempo, e o Rei, que tudo podia na fase absolutista, perdeu poder. A lgica exposta acerca da punio remanesce at os dias atuais, porm com um perfil mais benevolente, pois busca corrigir e reformar as pessoas, e no apenas puni-las de forma pessoal. E, alm disso, busca no s punir, mas tambm vigiar como uma forma de evitar as punies, atravs de maior controle sobre as pessoas.

    O ponto central da instigante obra de Foucault o sistema prisional, demonstrando a busca da humanidade por reformar o homem, no apenas por meio de punies, mas, at mesmo, pela coero que um eficaz sistema de vigilncia exerce sobre as pessoas. O que antes era apenas punir, passou a ser tambm vigiar, para prevenir as punies. O vigiar, sob diversas formas e em diversos mbitos, passou a ser uma forma de coero social como preveno das condutas delituosas, que, caso venham a ocorrer, necessitam de punio.

    Tal entendimento pode muito bem ser aplicado ao direito financeiro, pois estruturado no apenas sob uma tica punitiva que existe e deve ser aplicada, quando a conduta se revela fora dos padres estabelecidos pelas normas em vigor , mas tambm sob uma tica preventiva, de vigilncia, visando controlar os indivduos e as instituies que tm sob sua guarda o dinheiro pblico para que no cometam delitos financeiros contra o Tesouro o que se caracteriza como crime contra a sociedade, e no mais contra o Rei.

    No direito financeiro estes dois aspectos so usualmente denominados de controle, como um corolrio de vigilncia, e responsabilidade, como uma consequncia punitiva em razo da conduta ilegal adotada.

    Tais institutos jurdicos de direito financeiro permitem averiguar a efetividade do princpio republicano e tambm podem ser dirigidos para a busca da elaborao e do cumprimento de um oramento republicano. Como menciona Elida Graziane Pinto, eis o ponto em que entra o segredo da esfinge oramentria: como decifrar a capacidade de os operadores do Direito controlarem os oramentos pblicos em bases jurdico-constitucionais?7

    Controlar e responsabilizar financeiramente as pessoas no faz parte nem dos fundamentos (art. 1, CF) e nem dos objetivos fundamentais (art. 3, CF) da repblica brasileira, mas so essenciais em razo da funo que exercem. No se pode dizer que fundamento ou objetivo de algum pas controlar algum em razo de seus atos, ou responsabiliz-lo em razo de alguma irregularidade financeira, mas so institutos

    7 PINTO, Elida Graziane. Financiamento dos direitos sade e educao Uma perspectiva constitucional. Belo Horizonte, Frum, 2015. p. 21.

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    necessrios e importantssimos para que se possa atingir os objetivos estabelecidos, com base nos fundamentos existentes mas no so, em si, finalidades buscadas por uma sociedade. E nem podem s-lo, sob pena de subverter toda a estrutura, transformando o que instrumental o controle e a responsabilidade em objetivo. Tampouco tais funes esto inseridas em um contexto de oramento republicano, em cujo cerne est a justia distributiva atravs do oramento, pela correlao entre as capacidades financeiras, contributiva e receptiva. Talvez em uma estrutura de Estado Policial se poderia afirmar que controlar e responsabilizar sejam objetivos do Estado, porm no o que deve ocorrer sob a gide da Constituio brasileira de 1988.

    A funo de controlar e de responsabilizar corresponde a de corrigir as condutas financeiras que forem adotadas pelas pessoas e instituies, pblicas e privadas, na busca de uma liberdade igual para todos. Corrigir condutas no pode ser equiparado ao objetivo final de uma trajetria. Exatamente por isso que no fazem parte do oramento republicano, mas so institutos nsitos sua efetividade, pois visam corrigir rotas e at mesmo punir eventuais irregularidades financeiras ocorridas ou prestes a acontecer.

    Controlar e responsabilizar, no sentido financeiro, so duas funes correlatas tarefa de vigiar e punir exposta no mbito de tutela das liberdades por Foucault , e que deve ser aplicada de forma isonmica em uma sociedade, sem que possam existir pessoas ou situaes privilegiadas de nenhuma espcie ou natureza.

    Controle um instrumento tipicamente republicano, pois quem assume incumbncias pblicas tem que prestar contas de seus atos ao povo, pois trabalha em funo do povo. Para tanto, necessrio haver um sistema de controle que verifique a adequao das condutas de conformidade com o prescrito pela Constituio e demais normas. E isso ocorre por meio do sistema de controle pblico e social estabelecido pela Constituio.

    Controle um termo amplo que abrange diversas funes, dentre outras, as atividades de auditoria, de fiscalizao, de autorizao, de sustao ou de impedimento realizao de atos que estejam sendo praticados. Cada um desses termos possui conotao prpria.

    Por exemplo, auditar possui um escopo mais amplo do que fiscalizar, pois implica na comparao de procedimentos e no dilogo para correo de rotas, enquanto fiscalizar implica na identificao de eventuais irregularidades e punio dos atos realizados. Eventuais incorrees identificadas pelo sistema de auditoria podem gerar relatrios de inconformidade e recomendaes para a correo dos procedimentos, mas sem punies; j o sistema de fiscalizao, quando identifica uma inconformidade, aplica punies.

    Outras funes inseridas na atividade de controle so as de autorizao e as de sustao ou de impedimento da prtica, ou para a prtica de certos atos. V-se isso, por exemplo, nas atribuies do Conselho Administrativo de Defesa Econmica

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    CADE, que um rgo de controle econmico8, pois no s fiscaliza como tambm autoriza determinados procedimentos empresariais, como fuses e aquisies, caso identificadas algumas hipteses especficas tendentes dominao de mercados.

    Por outro lado, a Receita Federal do Brasil, que tambm exerce certa forma de controle sobre a arrecadao tributria, tem por funo fiscalizar, e, quando identifica uma irregularidade, aplica penalidades, mbito de estudo do direito tributrio sancionador9. A Receita Federal do Brasil no realiza auditoria, no sentido de recomendao de procedimentos a serem adotados com vistas correo de condutas; identificada uma irregularidade, aplica uma punio.

    Existe tambm a fiscalizao policial sobre a sociedade, que deve ser realizada visando sua proteo, e que alcana um sem-nmero de atividades, desde a fiscalizao de fronteiras at as atividades de combate a incndios (art. 144, CF).

    O Poder Judicirio exerce controle, e no fiscalizao, pois a ele incumbido o poder de julgar as condutas praticadas em desconformidade com o ordenamento jurdico.

    Papel peculiar possui o Ministrio Pblico, pois exerce o controle de diversas formas, dentre elas, o controle externo da atividade policial (art. 129, VII, CF), promovendo o inqurito civil e a ao civil pblica, para a proteo do patrimnio pblico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III, CF), e promovendo e defendendo o interesse das populaes indgenas (art. 129, V), dentre vrios outros, que podem ser exercidos no mbito judicial e extrajudicial.

    A Constituio determina expressamente que o Estado fiscalize diversas atividades: art. 174; art. 175, I; art. 197; art. 225, II; art. 236, 1; art. 21, VIII; art. 23, IX, dentre outras.

    Enfim, sem nenhum intuito de esgotar o tema, aponta-se a existncia do amplo poder de controle que o Estado possui sobre as atividades que ele prprio exerce direta ou indiretamente e sobre as desenvolvidas pelas empresas privadas, pelos indivduos e pela sociedade como um todo.

    O controle financeiro e oramentrio no Brasil foi atribudo pela sociedade, atravs da Constituio, a vrios rgos, dentre eles o Tribunal de Contas, que tem, dentre suas funes, a de auxiliar o Poder Legislativo nessa misso.

    preciso ter muita cautela para que o sistema de controle financeiro no sufoque o desenvolvimento das aes governamentais, pois, caso haja desequilbrio, pode acarretar o desinteresse dos cidados na participao poltica ativa, ocasionando o temor relatado h milnios por Plato: o maior castigo para quem se furta obrigao de governar vir a ser governado por algum pior do que ele10.

    Em face da quantidade de controles financeiros, vrios deles excessivamente formais, o cidado pode ser levado a se afastar da participao ativa na poltica em

    8 Nesse sentido, ver: AGUILLAR, Fernando Herren. Controle social de servios pblicos. So Paulo: Max Limonad, 1999.9 Para esse estudo ver: COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e prtica das multas tributrias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.10 PLATO. A Repblica. Traduo Carlos Alberto Nunes. Belm: Universidade Federal do Par, 1976. p. 70 (Livro I, 347-c).

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    razo dos riscos a que fica exposto, dentre eles, o de vir a ser objeto de uma gama de aes judiciais ao longo de sua existncia, tendo que comprovar sua inocncia cuja presuno no Brasil atual, infelizmente, est em declnio. No raro um gestor pblico, eleito ou no, alvo de um sem-nmero de aes judiciais acusando-o de improbidade, e ele levar anos para dar conta da soluo de todas elas, tendo sua honra e seu patrimnio expostos sob a espada de Dmocles da Justia e da imprensa.

    Filgueiras e Avritzer apontam para o fato de que foram 51 leis aprovadas entre 1990 e 2009 sobre controle e combate da corrupo, e o resultado foi a criao de barreiras para a cooperao institucional, posio defensiva das gerncias, lentido de procedimentos e processos administrativos, pouca criatividade na inovao gerencial e maior conflituosidade entre os rgos da mquina administrativa, e que tudo isso resultou em maior burocratizao e na recorrncia da corrupo, com maior impacto na opinio pblica11. Em razo disso que se identifica um verdadeiro apago das canetas, pelo receio que as autoridades administrativas passaram a ter de decidir e ser apenadas pelos rgos de controle. Daniel Goldberg relata um fato ocorrido com ele:

    H poucas semanas, um regulador confidenciou ao executivo de uma concessionria que a companhia fazia jus a um aumento de tarifa, mas que ele no poderia conced-la porque os rgos de controle iriam massacr-lo. Outras concessionrias, por no terem cumprido seus cronogramas de investimento, estavam tendo redues de tarifa o contraste entre o aumento para uns e a reduo para outros inevitavelmente levaria a uma ao dos rgos de controle. Explicou o regulador: No Brasil ps Lava Jato, ningum quer correr o risco de ser visto beneficiando uma empresa de infraestrutura... Para minha surpresa, o executivo sequer mostrou indignao ao contrrio, disse entender a situao do regulador, que sugeriu uma jogada ensaiada. Procurem a Justia: por favor me obriguem a conceder o aumento, pediu, numa cena que beira o realismo fantstico.12

    inegvel que devam existir controles financeiros sobre o Estado, mas realizados de forma substancial, com os olhos voltados persecuo das finalidades pretendidas, e no de maneira meramente formal e procedimental, e de modo a que no venham a ser excessivos, prejudicando a participao ativa das pessoas na poltica.

    O controle financeiro deve ser exercido tendo por baliza o princpio da legalidade13, e no os cnones morais ou polticos daquele que o exerce. Isso deveras importante, pois o que rege a convivncia em sociedade so as normas jurdicas, e no a moral individual ou coletiva no expressa em normas, ou, ainda, a opo poltica individual de quem detm essa espcie de poder em nome da sociedade. O direito que deve reger o controle, e no a moral ou a poltica. Pode parecer acaciano, mas sempre necessrio recordar essas lies bsicas, muitas vezes esquecidas ao longo da existncia.

    11 FILGUEIRAS, Fernando; AVRITZER, Leonardo. Corrupo e controles democrticos no Brasil. In: CARDOSO JR., Jos Celso; BERCOVICI, Gilberto (orgs.). Repblica, democracia e desenvolvimento contribuies ao Estado brasileiro contemporneo. Braslia: IPEA, 2013. p. 226.12 GOLDBERG, Daniel. O Brasil est parando. Entenda por qu. Como combater a corrupo sem paralisar o Governo. Disponvel em https://braziljournal.com/o-brasil-esta-parando-entenda-por-que, ltimo acesso em 08 de outubro de 2018.13 SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. So Paulo: Malheiros, 2010. p. 749.

    https://braziljournal.com/o-brasil-esta-parando-entenda-por-que

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    J a noo de responsabilidade diz respeito s consequncias do ato, que, caso seja irregular, ensejar punio. O vocbulo responsabilidade est voltado para a ideia de sano, como resposta a um ato irregular, na linha do que acima foi definido semelhana de vigiar, como uma forma de controlar, e punir, como um instrumento de responsabilizar quem cometeu o ilcito.

    responsvel quem pratica o ato, ou, sendo obrigado a realiz-lo, se omite em o fazer. A singela pergunta quem o responsvel por isso? nos leva ao liame relacional entre quem adotou (ou deixou de adotar) aquele ato ou conduta, que pode ter consequncias positivas ou danosas. Sendo a conduta danosa, o indivduo ou a instituio causadora do dano dever ser responsabilizado(a).

    A responsabilidade jurdica envolve diversos aspectos, pois necessrio perquirir: 1) pelo sujeito ativo do ato de infrao normativa; 2) pelo sujeito passivo atingido pela infrao; 3) pelo nexo causal entre infrator e infrao; 4) pelo prejuzo ocasionado; 5) pela sano aplicvel e 6) pela reparao14.

    A identificao de incorrees e desvios, ensejando a responsabilizao, decorre do sistema de controle. Este que dever estar alinhado para a identificao das irregularidades existentes e para indicar quem o responsvel pelo ato infrator, bem como pelas penalidades a serem aplicadas.

    Para a aplicao do princpio republicano, importa destacar que a apurao de responsabilidade por atos infracionais Constituio e demais leis deve alcanar a todos, de forma igual, na exata dimenso das atribuies que lhes tiverem sido incumbidas pelo ordenamento jurdico, independente de cargo, funo, sexo, status, dimenso do dano15 ou qualquer outro diferencial que possa ser imputado para desqualificar sua responsabilidade. A noo que deve presidir a imputao de responsabilidade de que todos so iguais perante a lei, e que esta deve ser aplicada a todos. Qualquer hiptese de imputao seletiva de responsabilidades, visando afast-las, laborar contra o princpio republicano.

    Nesse sentido, as possibilidades de responsabilizao so infinitas, e existe todo um direito sancionador para regular a matria, que atua em diversos mbitos supraindicados: financeiro, poltico, patrimonial, penal, administrativo, econmico etc.

    A LC 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, dispe amplamente sobre controle, e, em algumas partes, sobre responsabilidade, usando este vocbulo no sentido de punir.

    Na verdade, a expresso responsabilidade utilizada na Lei de Responsabilidade Fiscal tem a lgica de uso responsvel, prudente e adequado dos recursos pblicos. Isso fica muito claro em seu art. 1, que menciona ser a responsabilidade na gesto fiscal uma

    Ao planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilbrio das contas pblicas, mediante

    14 Nesse sentido, CRETELLA JNIOR, Jos. O Estado e a obrigao de indenizar. So Paulo: Saraiva, 1980. p. 08.15 Estes aspectos podem ser considerados para a dosimetria das penas, jamais para afastar a responsabilidade pelas infraes.

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    o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obedincia a limites e condies no que tange a renncia de receita, gerao de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dvidas consolidada e mobiliria, operaes de crdito, inclusive por antecipao de receita, concesso de garantia e inscrio em Restos a Pagar.

    Esse rol de condutas arroladas na Lei de Responsabilidade Fiscal demonstra que seu contedo muito mais voltado para o controle (no sentido de vigiar), do que para o sentido de responsabilidade como instrumento de punio embora esta exista na Lei. Todos os aspectos envolvendo medidas de carter prudencial evidenciam isso.

    Feitas as explanaes conceituais, constata-se que controle e responsabilidade so instrumentos do princpio republicano, e no seu objetivo ou seu fundamento, e que devem agir de forma substancial, e no meramente formal, respeitadada a segurana jurdica.

    2. NOTAS SOBRE A ALTERAO NA LINDBComo sabido, a Lei 13.655/18 decorreu do Projeto de Lei 7.448/17, de autoria do senador Antonio Anastasia, fruto de anteprojeto elaborado por um grupo de juristas liderado pelos professores Carlos Ary Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto. Seu texto alterou a LINDB para nela introduzir regras hermenuticas para as esferas administrativa, controladora e judicial, alm de disposies acerca da responsabilidade patrimonial do servidor pblico, sendo muito positivo, pois necessrio harmonizar a interpretao do direito, tendo em vista a segurana jurdica.

    Seguindo a regra de que o direito que controla o poder, tais normas se caracterizam como uma forma de controlar no s quem aplica o direito, mas tambm quem tm a funo de controlar o controle exercido sobre quem aplica o direito. a mxima da legalidade que se impe, e no a moral ou o desejo do seu aplicador, ou seja, no se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa o direito probe isso, e no h razo para ser diferente nas decises administrativas, judiciais e de controladoria.

    bem verdade que essa alterao ainda mantm diversos conceitos jurdicos indeterminados, e que sua redao poderia ser mais precisa, porm isso no afasta sua aplicabilidade e, inegavelmente, contribui para trazer mais segurana jurdica do que o sistema possua antes de sua edio.

    O novel art. 20 determina que:

    Nas esferas administrativa, controladora e judicial, no se decidir com base em valores jurdicos abstratos sem que sejam consideradas as consequncias prticas da deciso. Pargrafo nico. A motivao demonstrar a necessidade e a adequao da medida imposta ou da invalidao de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possveis alternativas.

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    Uma leitura mais apressada da norma pode levar a crer que se tenha trazido para dentro do direito o consequencialismo jurdico, que Basile Christopoulos16 conceitua como:

    Num conceito estrito de consequencialismo, apenas a consequncias deveriam ser relevantes para julgar uma determinada ao. Em todos os casos, no h uma resposta unssona sobre quais so os resultados que devem ser considerados, como e por qu.

    \No parece ser esse o contedo da norma. No se v no texto nada que obrigue o administrador a pautar sua deciso observando suas consequncias, havendo apenas o dever de motivao da deciso, que uma decorrncia do Estado de Direito e apresente as consequncias de seus atos. Frmulas genricas, como a de que decido com base no interesse pblico devem ser motivadas e devidamente justificadas na lei para que seja possvel sociedade avaliar as efetivas razes daquele ato. E mais, tornou-se imprescindvel que na justificao embasada nas normas seja apresentada a anlise das consequncias possveis advindas daquela opo decisria.

    Na atividade advocatcia tributria j tive a oportunidade de me deparar com um Auto de Infrao acerca de tributos aduaneiros fundamentado no Manifesto Comunista de Marx e Engels a mais pura verdade, embora parea um texto de Franz Kafka.

    O texto do art. 20 no contm nenhuma obrigao de decidir de forma consequencialista, o que equivaleria ao despautrio tributrio acima relatado. O que ele introduz uma obrigao de motivar e justificar o ato administrativo praticado, na linha do art. 93, IX da CF17 e o art. 11 do NCPC18, ambos dirigidos ao Poder Judicirio, que apontam para a necessria fundamentao legal, e no ideolgica, que todos os julgamentos devem ter. Isso passa a ser tambm necessrio para as decises administrativas e de controladoria, pois suas decises devem ser motivadas, observando, dentre outros aspectos, a necessria justificao acrescida da anlise relativa s suas consequncias. No basta fundamentar que est decidindo de acordo com o interesse pblico, ou visando o bem comum, ou para a preservao ambiental. imperioso que o administrador ou o controlador passe a fundamentar sua deciso justificando-a legalmente em concreto, e indicando as possveis consequncias que adviro caso no a tivesse adotado, ou mesmo, as que ocorrero em face de sua adoo.

    Usando a conceituao adotada por Basile, isso no obriga que apenas a consequncias deveriam ser relevantes para julgar uma determinada ao. Para que haja efetivo controle dos atos administrativos e de controladoria necessrio fundamentar de forma qualificada, justificando a adoo daquela deciso. 16 CHISTOPOULOS, Basile Georges Campos. Oramento Pblico e controle de constitucionalidade. Argumentao consequencialista nas decises do STF; Editora Lumen Juris Direito. Rio de Janeiro. 2016. p. 49.17 CF 88, art. 93: IX - todos os julgamentos dos rgos do Poder Judicirio sero pblicos, e fundamentadas todas as decises, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presena, em determinados atos, s prprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservao do direito intimidade do interessado no sigilo no prejudique o interesse pblico informao.18 NCPC: Art. 11. Todos os julgamentos dos rgos do Poder Judicirio sero pblicos, e fundamentadas todas as decises, sob pena de nulidade.

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    necessrio fundamentar e justificar o motivo pelo qual aquela alternativa foi adotada, com anlise das consequncias que dela decorrero.

    O art. 21 segue a mesma linha de exigir que haja a efetiva motivao da deciso efetuada, como se verifica em seu texto:

    Art. 21 - A deciso que, na esfera administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidao de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa dever indicar de modo expresso suas consequncias jurdicas e administrativas. Pargrafo nico. A deciso a que se refere o caput dever, quando for o caso, indicar as condies para que a regularizao ocorra de modo proporcional e equnime e sem prejuzo aos interesses gerais, no se podendo impor aos sujeitos atingidos nus ou perdas que, em funo das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.

    Aqui se destaca o pargrafo nico, que determina a obrigao de justificadamente indicar as condies para que ocorra a regularizao de modo proporcional e equnime, de tal modo que no ocorram nus ou perdas anormais ou excessivas. De certa forma, reafirma o que consta do art. 20, e aplica a proporcionalidade no mbito do direito sancionador administrativo e financeiro.

    De certo modo, identifica-se tal determinao no art. 805 do NCPC19, que determina que a execuo seja feita pelo modo menos gravoso ao executado. Isso j vem sendo adotado no mbito judicial h muito, pois expresso no art. 620 do velho CPC. No caso, a determinao para que ocorra a proporcionalidade da sano.

    Como acima expresso, necessrio reduzir a nfase punitivista no mbito do controle, mantendo-o muito mais na funo de vigiar do que na de punir. Caso seja necessrio impor penas, que sejam aplicadas de modo proporcional ao dano ocasionado.

    O caput do art. 22 trata mais especificamente da hermenutica a ser aplicada ao direito pblico:

    Art. 22 - Na interpretao de normas sobre gesto pblica, sero considerados os obstculos e as dificuldades reais do gestor e as exigncias das polticas pblicas a seu cargo, sem prejuzo dos direitos dos administrados. 1 Em deciso sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, sero consideradas as circunstncias prticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ao do agente. 2 Na aplicao de sanes, sero consideradas a natureza e a gravidade da infrao cometida, os danos que dela provierem para a administrao pblica, as circunstncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente. 3 As sanes aplicadas ao agente sero levadas em conta na dosimetria das demais sanes de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.

    19 Quando por vrios meios o exequente puder promover a execuo, o juiz mandar que se faa pelo modo menos gravoso para o executado.

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    adequada a determinao do caput, estabelecendo a necessidade de levar em conta a realidade na exegese das normas, em especial as que se referem s polticas pblicas. Um exemplo pode bem ilustrar o caso. O Ministrio Pblico pleiteou e obteve provimento judicial para que as escolas de certo Estado criassem turmas especiais para receber crianas com deficincias. Pode parecer uma deciso a merecer o aplauso geral, porm vai contra uma poltica pblica vigente, adotada pelo Estado e recomendada por uma pliade de profissionais especializados na matria, que no adotam polticas educacionais segregacionistas, que se concretizam atravs de turmas especiais, mas de incluso, que visam integrar as crianas com deficincias nas turmas comuns, facilitando a convivncia entre desiguais.

    O que se l no texto a busca da impregnao do ato administrativo por dados fticos, que devem ser expostos na motivao, a qual deve ser clara e pblica, no sendo suficiente declarar que se decide com base no interesse pblico necessrio motivar e justificar legalmente, luz dos fatos evidenciados, com os olhos voltados s consequncias da deciso adotada. Como acima referido, trata-se de um texto que, em tempos normais, seria considerado incuo e despiciendo, mas nos dias que correm travada uma batalha acerca de sua vigncia.

    Os pargrafos do art. 22 tratam de dosimetria das penas, algo como critrios atenuantes e agravantes para serem levados em considerao nas decises proferidas.

    O art. 23 est embasado no princpio da segurana jurdica, o que cedio no mbito constitucional:

    Art. 23. A deciso administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretao ou orientao nova sobre norma de contedo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, dever prever regime de transio quando indispensvel para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equnime e eficiente e sem prejuzo aos interesses gerais.

    A segurana jurdica est espalhada no texto constitucional, sendo fundamental a leitura de duas obras de referncia na matria, de Heleno Taveira Torres20 e de Humberto vila21. No caso, a irretroatividade das leis corolrio do ato jurdico perfeito22, pois, havendo interpretao ou orientao nova administrativa acerca de determinada norma ou procedimento, no possvel determinar sua aplicao retroativa. Sobre o tema, ver a obra de Rubens Limongi Frana, que afasta qualquer dvida a respeito23.

    A inovao est em determinar que haja obrigatoriamente um regime de transio para serem adotadas as novas regras, o que positivo em vrias situaes concretas.

    20 Torres, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributrio e Segurana Jurdica: metdica da segurana jurdica do Sistema Constitucional Tributrio. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.21 vila, Humberto. Segurana jurdica: entre permanncia, mudana e realizao no direito tributrio. 2 ed. So Paulo: Malheiros Editores, 2012.22 CF, art. 5, XXXVI - a lei no prejudicar o direito adquirido, o ato jurdico perfeito e a coisa julgada;23 FRANA, Rubens Limongi. Direito intertemporal brasileiro. 2. ed. So Paulo: RT, 1968.

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    No sendo estabelecida tal transio, e ela sendo necessria, nada mais seguro do que no retroagir e ainda determinar a aplicao gradual da norma s situaes em curso. Por certo ela dever ser aplicada s novas situaes ainda no iniciadas.

    Infelizmente foi vetado o pargrafo nico desse artigo, assim grafado:

    Pargrafo nico. Se o regime de transio, quando aplicvel nos termos do caput, no estiver previamente estabelecido, o sujeito obrigado ter direito a negoci-lo com a autoridade, segundo as peculiaridades de seu caso e observadas as limitaes legais, celebrando-se compromisso para o ajustamento, na esfera administrativa, controladora ou judicial, conforme o caso.

    A ideia seria a criao de uma espcie de negociao entre o administrado e a autoridade administrativa, que, ao fim e ao cabo, poderia resultar em nada alm do direito de negociar no de se obter um regime de transio. Esse aspecto da norma teria por base o direito de petio, ou seja, requer-se o que bem entender, e o administrador deferiria ou no, com base no direito posto. O veto acabou com essa possibilidade, que parecia alvissareira e consta em outras normas, como, por exemplo, nas que regulam as licitaes, com a possibilidade de negociao de preo com o vencedor24.

    O novel art. 24 est assim grafado:

    Art. 24. A reviso, na esfera administrativa, controladora ou judicial, quanto validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produo j se houver completado levar em conta as orientaes gerais da poca, sendo vedado que, com base em mudana posterior de orientao geral, se declarem invlidas situaes plenamente constitudas. Pargrafo nico. Consideram-se orientaes gerais as interpretaes e especificaes contidas em atos pblicos de carter geral ou em jurisprudncia judicial ou administrativa majoritria, e ainda as adotadas por prtica administrativa reiterada e de amplo conhecimento pblico.

    Trata-se de uma questo de direito intertemporal, pois obriga que na anlise do caso concreto sejam levadas em considerao as orientaes gerais da poca em que ele ocorreu e se consolidou. Parece uma proposta bvia, que em vrias reas do direito so consideradas bastante assentes, fruto do brocardo jurdico tempus regit actum (o tempo rege o ato). Nenhuma novidade. O problema est na anlise dos fatos e na identificao do que seria o entendimento dominante poca em que ocorreram. Isso impe estabilidade, integridade e coerncia no ordenamento jurdico, validando os efeitos da posio ento dominante para o tempo em que os atos foram praticados. No mbito judicial tal procedimento obrigatrio para os Tribunais, na forma do art. 926 do NCPC25. Observe-se que tal preceito est alinhado com o do art. 23 da LINDB, que probe a retroao da modificao de interpretao jurdica.

    24 Lei 10.520/02, art. 4, XVII.25 Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudncia e mant-la estvel, ntegra e coerente.

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    Claro que existem reas de conflito, como por exemplo, nas situaes fticas no consolidadas, quando no se tratar de ato jurdico perfeito, mas de direitos de aquisio sucessiva ou direitos a termo, aspectos analisados por Limongi Frana h dcadas26, com foco no ato jurdico perfeito, que, inclusive, possui amparo constitucional (art. 5, XXXVI). Cada caso concreto necessitar de anlise especfica para identificao dos fatos a serem enfrentados pelo direito.

    O texto do art. 25 foi integralmente vetado, e constata-se que sua aplicao seria muito complexa, pois envolve direito processual e eficcia da sentena:

    Art. 25. Quando necessrio por razes de segurana jurdica de interesse geral, o ente poder propor ao declaratria de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, cuja sentena far coisa julgada com eficcia erga omnes. 1 A ao de que trata o caput ser processada conforme o rito aplicvel ao civil pblica. 2 O Ministrio Pblico ser citado para a ao, podendo abster-se, contestar ou aderir ao pedido. 3 A declarao de validade poder abranger a adequao e a economicidade dos preos ou valores previstos no ato, contrato ou ajuste.

    Pelo que se depreende da redao, o intuito seria a propositura de uma ao declaratria que o ente pblico interpor para obter a declarao de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa. S em pases com baixa estima por seus administradores se poderia pensar em algo semelhante, uma vez que inverte toda a lgica de validade do ato administrativo. A inspirao local, tudo indica, advm da ADC Ao Declaratria de Constitucionalidade, monstrengo introduzido na Constituio pela EC 03/93, prevendo, inclusive, os mesmos efeitos sentenciais. Outra inspirao parece ser a Ao Civil Pblica. Tratava-se de uma opo jurdico-poltica a adoo dessa alternativa, concedendo ao ente pblico o direito de ir ao Judicirio para defender suas decises; porm, foi vetada. Na prtica, vrias das decises proferidas j desembocam no Poder Judicirio, levadas pelas partes privadas envolvidas; o que se propunha era a permisso para que a Administrao Pblica tambm o pudesse fazer, a fim de conceder maior segurana jurdica ao procedimento a ser adotado. Tudo indica que, caso tivesse sido aprovada, tal permisso normativa levaria a uma judicializao sem fim, com paralizao administrativa ainda maior do que a atual aquilo que se denomina apago das canetas poderia ser levado ao paroxismo.

    O art. 26 detalha de forma mais minudente como podem ocorrer os termos de compromisso com a Administrao Pblica:

    Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurdica ou situao contenciosa na aplicao do direito pblico, inclusive no caso de expedio de licena, a autoridade administrativa poder, aps oitiva do rgo jurdico e, quando for o caso, aps realizao de consulta pblica, e presentes razes de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislao aplicvel, o qual s produzir efeitos a partir de sua publicao oficial.

    26 FRANA, Rubens Limongi. Direito intertemporal brasileiro. 2. ed. So Paulo: RT, 1968.

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    1 O compromisso: I buscar soluo jurdica proporcional, equnime, eficiente e compatvel com os interesses gerais; II (vetado); III no poder conferir desonerao permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientao geral; IV dever prever com clareza as obrigaes das partes, o prazo para cumprimento e as sanes aplicveis em caso de descumprimento.

    Essa norma visa coibir aquilo que, em diversas reas de interligao entre o poder pblico e os particulares identificado como um verdadeiro pavor decisrio por parte de autoridades administrativas, e que vem sendo conhecido como uma espcie de apago das canetas. Conheo relatos de servidores pblicos sendo ameaados caso autorizassem o licenciamento ambiental de determinado empreendimento. Para essas situaes, a norma proposta benfica, pois amparar o servidor pblico incumbido de realizar o ato administrativo, salvaguardando-o desse tipo de ameaas.

    preciso dar mais segurana jurdica aos servidores pblicos, a fim de que as ameaas a que esto constantemente sujeitos sejam minoradas. Deve-se recuperar a autoridade da Administrao Pblica nesse sentido.

    Alm do veto aplicado ao inciso II do 1, que estabelecia a possibilidade de transao quanto a sanes e crditos, foi tambm vetada a possibilidade de a Administrao Pblica recorrer diretamente ao Poder Judicirio para consolidar ainda mais a segurana jurdica envolvida. O texto vetado possua a seguinte redao:

    2 Poder ser requerida autorizao judicial para celebrao do compromisso, em procedimento de jurisdio voluntria, para o fim de excluir a responsabilidade pessoal do agente pblico por vcio do compromisso, salvo por enriquecimento ilcito ou crime.

    O veto visou evitar mais ampla judicializao da matria, o que adequado, porm reduziu a possibilidade de segurana jurdica na anlise do tema.

    Entendo como alvissareiro o art. 28 da norma, a despeito dos vetos apostos aos seus pargrafos. O que dele restou foi o caput, assim grafado:

    Art. 28. O agente pblico responder pessoalmente por suas decises ou opinies tcnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

    No adequado que o Tesouro Pblico arque com as despesas de ressarcimento de danos em razo de atos praticados de forma dolosa. O servidor que age com dolo deve ser diretamente responsabilizado por isso. Identificar o dolo um problema, mas que se consegue fazer a partir da anlise do caso concreto, existindo forte amparo no direito sancionatrio, penal e administrativo, para apurao desse tipo de condutas. Desnecessrio dizer, por bvio, que para a apurao desse tipo de conduta devem ser respeitadas todas as garantias processuais, dentre elas a da ampla defesa e do contraditrio.

    Problema maior a identificao do que seja erro grosseiro, conceito indeterminado, que traz um halo de incertezas muito mais amplo. Claro que, uma vez identificado,

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    o que requer uma apurao especfica e com respeito s garantias processuais, o causador do dano deve ser pessoalmente responsabilizado.

    O 1, que foi vetado, em muito auxiliaria na identificao do que seria um erro grosseiro, pois estava assim redigido:

    1 No se considera erro grosseiro a deciso ou opinio baseada em jurisprudncia ou doutrina, ainda que no pacificadas, em orientao geral ou, ainda, em interpretao razovel, mesmo que no venha a ser posteriormente aceita por rgos de controle ou judiciais.

    Mesmo tendo sido vetada essa disposio, parece adequado supor que sua conceituao venha a ser usada doutrinariamente para subsidiar o conceito a ser utilizado na anlise do caso concreto.

    Logo, se a deciso for fundamentada, mesmo que em decises jurisprudenciais no pacificadas, e com base doutrinria, no haver erro grosseiro.

    No mesmo sentido, os 2 e 3, igualmente vetados, traziam preceito muito favorvel ao servidor pblico cuja conduta viesse a ser enquadrada na hiptese prevista no caput, pois ampararia sua defesa judicial atravs da advocacia pblica:

    2 O agente pblico que tiver de se defender, em qualquer esfera, por ato ou conduta praticada no exerccio regular de suas competncias e em observncia ao interesse geral ter direito ao apoio da entidade, inclusive nas despesas com a defesa. 3 Transitada em julgado deciso que reconhea a ocorrncia de dolo ou erro grosseiro, o agente pblico ressarcir ao errio as despesas assumidas pela entidade em razo do apoio de que trata o 2 deste artigo.

    Nesse sentido, o veto aposto a esses dois pargrafos foi nefasto, pois o servidor ter que arcar s suas expensas com a defesa. Isso ruim e dificultar a ultrapassagem do apago das canetas. Se esse servidor precisasse se defender em juzo, as despesas com sua defesa seriam pagas pelo Errio. Se fosse comprovado judicialmente o dolo ou o erro grosseiro, o servidor indenizaria os gastos pblicos efetuados; caso contrrio, nada gastaria. O texto no diferenciava o servidor-bagrinho do servidor-tubaro todos teriam direito ao custeio de sua defesa. Isso alcanaria desde o motorista-servidor pblico, que dirige um carro pblico e se envolve em uma coliso de trnsito, at o Presidente da Repblica. Os pargrafos poderiam ter excludo aqueles que exercem certas funes, mas no o fez e foram vetados na ntegra.

    O art. 29 trata da possibilidade de ser realizada consulta pblica em caso de edio de certos atos normativos, o que, como mencionado, uma faculdade bem-vinda, e no uma obrigao.

    Art. 29. Em qualquer rgo ou Poder, a edio de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organizao interna, poder ser precedida de consulta pblica para manifestao de interessados, preferencialmente por meio eletrnico, a qual ser considerada na deciso.

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    1 A convocao conter a minuta do ato normativo e fixar o prazo e demais condies da consulta pblica, observadas as normas legais e regulamentares especficas, se houver.

    Esta norma muito bem vinda, e labora na linha do que determina o Decreto 8.243/14, que instituiu a Poltica e o Sistema Nacional de Participao Social. Traz maior transparncia ao processo decisrio, desde que seja dada ampla publicidade s audincias quando forem realizadas.

    Foi vetado o 2 desse artigo, que assim dispunha:

    2 obrigatria a publicao, preferencialmente por meio eletrnico, das contribuies e de sua anlise, juntamente com a do ato normativo.

    No se justifica o veto aposto. Tal prescrio ampliaria a justificativa pela adoo do ato e aumentaria a publicidade e a transparncia, que bem poderiam ter sido privilegiadas.

    Por fim, o art. 30 muito mais um repto, uma conclamao, do que uma verdadeira norma com efeitos cogentes:

    Art. 30. As autoridades pblicas devem atuar para aumentar a segurana jurdica na aplicao das normas, inclusive por meio de regulamentos, smulas administrativas e respostas a consultas. Pargrafo nico. Os instrumentos previstos no caput tero carter vinculante em relao ao rgo ou entidade a que se destinam, at ulterior reviso.

    O texto determina que as autoridades pblicas devam atuar para aumentar a segurana jurdica na aplicao das normas o que de todo benfazejo. Agir com transparncia e obedecendo s suas prprias determinaes uma medida para ampliar a segurana jurdica.

    Um exemplo vale mais do que mil palavras. Veja-se o acrdo 2375/2018 do TCU, assim ementado:

    Direito Processual. Julgamento. Fundamentao. Princpio do livre convencimento motivado. No h direito adquirido a determinado entendimento ou aplicao de determinada jurisprudncia do TCU, devendo prevalecer, em cada julgamento, a livre convico dos julgadores acerca da matria. (grifos apostos).

    O Cdigo de Processo Civil de 1973, j revogado, dispunha em seu art. 131 que o juiz apreciar livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstncias constantes dos autos, ainda que no alegados pelas partes; mas dever indicar, na sentena, os motivos que lhe formaram o convencimento. A norma versava expressamente sobre o princpio do livre convencimento motivado.

    O CPC/2015, ora vigente, passou a dispor em seu artigo 371 que o juiz apreciar a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicar na deciso as razes da formao de seu convencimento. Ou seja, no

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    basta alegar livre convencimento, necessrio que, em face das provas constantes dos autos, seja exposta sua motivao, de forma justificada, embasando-a na lei e, a partir da vigncia da LINDB, por fora dos arts. 20 e 21, deve-se tambm expor as possveis consequncias decorrentes das decises adotadas. A partir da se poder aumentar o controle, inclusive sobre os atos dos controladores.

    A ideia de livre convico negativa, pois gera muita incerteza jurdica, conforme aponta Lenio Streck27. necessrio se ater ao direito, em especial, porm no exclusivamente, ao direito normatizado. Livre convencimento implica em dizer que a deciso de acordo com o que pensa o magistrado ou a composio eventual da Corte, mngua de justificao legal e das consequncias do ato o que inadequado.

    3. CONCLUSOA alterao efetuada na LINDB ampliou a segurana jurdica no direito pblico brasileiro, reforando o respeito pelo princpio da legalidade e reduzindo a incerteza em sua aplicao. Trata, fundamentalmente, da hermenutica jurdica a ser aplicada s normas de direito pblico, que alcana as esferas administrativa, controladora e judicial, alm de regular a responsabilidade dos servidores pblicos que agem com dolo ou cometem erros grosseiros.

    uma imposio jurdica para controlar, atravs do direito, no s os aplicadores diretos das normas, no mbito administrativo, mas tambm quem controla sua aplicao, seja nos Tribunais de Contas, seja no Poder Judicirio. , assim, a afirmao de uma forma de controle dos controladores.

    4. REFERNCIASAGUILLAR, Fernando Herren. Controle social de servios pblicos. So Paulo: Max Limonad, 1999.

    VILA, Humberto. Segurana jurdica: entre permanncia, mudana e realizao no direito tributrio. 2 ed. So Paulo: Malheiros Editores, 2012.

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    27 STRECK, Lenio et al. O fim do livre convencimento motivado. Florianpolis: Emprio do Direito, 2018.

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    A NATUREZA JURDICO-CONSTITUCIONAL DO PROCESSO DE CONTROLE EXTERNO DA ADMINISTRAO PBLICA NO BRASIL E A AUSNCIA DE PADRONIZAO/SISTEMATIZAO DOS REGULAMENTOS PROCESSUAIS: ENSAIOS DE UMA UNIFORMIZAO PROCESSUAL LUZ DOS MODELOS ITALIANO, PORTUGUS E ESPANHOL

    Glaydson Santo Soprani Massaria1

    RESUMO

    O presente artigo objetiva anunciar as condies tericas indutoras de um conjunto normativo processual nico em mbito nacional e demonstrar a necessidade de se promover as mudanas legislativas para alcanar-se a padronizao/sistematizao dos regulamentos processuais no Brasil. Para o alcance do objetivo proposto, relevante analisar a natureza jurdica constitucional e a fragmentao dos ritos processuais originados da profuso de normas regulamentadoras do exerccio das funes do Tribunal de Contas, editadas por cada Ente federado brasileiro, bem como expor os problemas efetivos e potenciais que se apresentam no curso do processo de controle externo, sobretudo a inobservncia do princpio da segurana jurdica e o constante desrespeito s garantias constitucionais do contraditrio e da ampla defesa. Sob tal perspectiva, buscaremos demonstrar que os padres normativos processuais aplicveis ao Tribunal de Cuentas Espaol, Tribunal de Contas Portugus e Corti dei Conti Italiana (que so nacionais e sujeitos a uma norma processual uniforme) podero ser utilizados como parmetro na anlise dos sistemas normativos processuais que regulamentam o funcionamento dos Tribunais de Contas brasileiros (que no so nacionais e esto sujeitos a normas processuais editadas no mbito dos entes federados aos quais esto vinculados) na construo de um Cdigo de Processo de Contas Nacional.

    Palavras-chave: Arts. 22, I, 71, 73 e 163, V, da Constituio Federal de 1988 - Controle Externo - Regulamentos Processuais - Cdigo de Processo de Contas Nacional - Tribunal de Contas - Tribunal de Cuentas Espaol - Tribunal de Contas Portugus - Corti dei Conti Italiana.

    ABSTRACT

    The present article aims to announce the theoretical conditions that lead to a single procedural normative set at national level and demonstrate the need to promote legislative changes in order to achieve the standardization / systematization of procedural regulations in Brazil. In order to achieve the proposed objective, it is relevant to analyze the constitutional legal nature and the fragmentation of procedural rites originating from the profusion of regulatory norms for the exercise of the functions of the Court of Auditors, published by each Brazilian federal entity, as well as to expose the actual and potential problems that are presented in the

    1 Procurador do Ministrio Pblico de Contas do Estado de Minas Gerais. Atuou como Procurador-Geral do Ministrio Pblico de Contas do Estado de Minas Gerais, Juiz de Direito do Estado da Bahia, Assessor do Auditor-Geral do Estado do Esprito Santo e Auditor do Esprito Santo. Especialista em Direito Pblico pela Universidade do Esprito Santo - UNESC e pela Faculdade de Direito de Vila Velha. Especialista em Auditoria pela Universidade de Braslia - UNB. Contato: [email protected].

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    course of the external control process, above all the non-observance of the principle of legal certainty and the constant disrespect to the constitutional guarantees of the advarsarial sistem and full defense. From this perspective, we will try to demonstrate that the procedural normative standards applicable to the Spanish Court of Auditors, Portuguese Court of Auditors and Corti dei Conti Italiana (which are national and subject to a uniform procedural standard) can be used as a parameter in the analysis of proceduralrules governing the operation of the Brazilian Audit Courts (which are not national and subject to procedural rules issued by the federated entities to which they are bound) in the construction of a National Accounts Process Code.

    Keywords: Arts. 22, I, 71, 73 and 163, V, of the 1988 Federal Constitution - External Control - Procedural Regulations - National Accounts Process Code - Court of Accounts - Spanish Court of Accounts - Portuguese Court of Auditors - Corti dei Conti Italiana.

    1. INTRODUOA Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 imps a qualquer pessoa natural ou jurdica, pblica ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores pblicos ou pelos quais o Ente pblico responda, ou que, em nome deste, assuma obrigaes de natureza pecuniria o dever de prestar contas perante o Tribunal de Contas. Diante disso, qualquer pessoa que se enquadre na situao delineada pode ser chamada a responder perante o Tribunal de Contas.

    No exerccio de suas competncias jurisdicionais (art. 73), o Tribunal de Contas detm o poder de julgar as pessoas antes mencionadas, e caso reconhecida a prtica de condutas ilegais na gesto dos recursos pblicos, imputar as sanes definidas em lei, dentre as quais as penas de multa, de perda do cargo pblico, de inabilitao para o exerccio de cargo em comisso ou funo de confiana e de perda de direitos polticos, alm de condenar devoluo de valores quando derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuzo ao errio pblico.

    Para exercer seu Poder/Dever, o Tribunal de Contas deve seguir um roteiro processual que observe as garantias fundamentais (art. 5o), em especial: a garantia do contraditrio e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (LV), a durao razovel do processo (LXXVIII), a publicidade dos atos processuais (LX) e assistncia jurdica integral e gratuita aos que comprovarem insuficincia de recursos (LXXIV).

    Ocorre que no Brasil o modelo federativo s avessas (centrfugo) permitiu, diante da omisso da Unio em aprovar um Cdigo Processual regulamentador do exerccio das competncias dos Tribunais de Contas, que cada ente federado editasse seus prprios atos normativos regulamentadores do processo de contas, que nem sempre respeitam as garantias constitucionais supracitadas.

    Diante da profuso de ritos processuais, poucos so aqueles que se aventuram a doutrinar sobre o tema, gerando assim escassez de debates acadmicos sobre a

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    temtica. Alm disso, a falta de uniformidade processual torna deletria a tentativa de se construir um alinhamento de compreenso sobre a forma pela qual deve uma lei nacional ser aplicada. Em regra, os Tribunais de Contas acabam divergindo muito e inexiste instrumento jurdico que assegure uma terceira via em busca da melhor interpretao, ou seja, no existe um real duplo grau de jurisdio.

    No bastasse isso, a falta de um Cdigo de Processo de Contas nacional e cogente muitas vezes permite que os Tribunal de Contas decidam a partir de caminhos processuais dissociados dos ditames constitucionais que, ao desaguarem no Poder Judicirio, so declarados nulos.

    Como bem delineado por Antnio Cluny2, a responsabilizao individual impe o respeito s garantias constitucionais de natureza procedimental e processual que jamais podem ser afastadas a pretexto de alcanar maior eficcia e eficincia. Encontrar instrumentos jurdicos simples e claros e definir prticas capazes de conferir eficcia e eficincia ao processo de responsabilizao pela m gesto dos recursos pblicos, sem prejudicar a efetividade, devem constituir uma linha permanente de reflexo, estudos e reforma do sistema.

    Posto isso, v-se de extrema relevncia a construo de um Cdigo de Processo de Contas de nvel nacional.

    Destaca-se que os modelos italiano, espanhol e portugus estabelecem parmetros processuais que se harmonizam com a Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, que, se adotadas pelos Tribunais de Contas brasileiros, contribuiriam para alcanar seus objetivos constitucionais, preservando a essncia constitucional dos interesses pblicos primrios e secundrios, do princpio da segurana jurdica e das garantias constitucionais do contraditrio e da ampla defesa em sua conotao material.

    Em sntese, a polmica que envolve o tema justificada pelo fato de inmeros doutrinadores, a partir de diversas bases tericas, chegarem a resultados absolutamente dspares. Tais bases tericas (daqueles que so a favor ou contra a autonomia do processo de contas) sero expostas ao longo do artigo, sendo o ponto de partida a explorao dos sistemas que regem ou regeram o(s) processo(s) e os contextos histricos e sociais nos quais estavam inseridos.

    No contexto, o estudo empreendido buscar demonstrar que o processo deve ser visto como uma garantia contra os abusos estatais, sendo a lei processual de contas um necessrio complemento do texto constitucional e no da lei substantiva. Ou seja, a lacuna deve ser colmatada por lei processual que concretize os valores constitucionais e afaste o erro psicolgico de acreditar que uma mesma pessoa possa exercer funes dspares, como acusar, defender e julgar 3.

    2 CLUNY, Antnio. Responsabilidade Financeira e Tribunal de Contas Contributos para uma Reflexo Necessria. 1 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2011. 292p.3 GOLDSCHMIDT (1935, p.351) apud NOGUEIRA, Marco Aurlio; CHAGAS, Guilherme Castelhone. A iniciativa probatria do julgador luz da Constituio Federal. De Jure Revista Jurdica do Ministrio Pblico do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, vol. 14, n. 25, p. 323-359, jul./dez. 2015.

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    2. O PROFUSO MODELO PROCESSUAL DE CONTROLE EXTERNO DAS CONTAS PBLICAS NO BRASIL

    Apesar da existncia secular do Tribunal de Contas no Brasil, muito pouco se produziu no campo doutrinrio nacional sobre o processo regulador de suas atividades, em especial pela ausncia de um modelo normativo central de carter impositivo a todos os entes federados, ou seja, um cdigo nacional de processo de contas.

    Uma investigao jurdica-histrica permite delinear os elementos que conduziram ao profuso modelo processual de controle externo das contas pblicas no Brasil por parte dos Tribunais Contas.

    Tal omisso legislativa, ao que parece, mesmo aps o advento da Emenda Constituio n 40, de 2003, que deu nova redao ao inciso V do art. 1634, vem se sustentando na anlise estanque da competncia privativa da Unio para legislar sobre direito processual prevista no inciso I do art. 225 da Constituio da Repblica Federativa do Brasil (1988), ou seja, interpretando-o no contexto do prprio inciso e restringindo-a ao processo judicial.

    Observe-se que se negou uma anlise sistemtica da Constituio da Repblica Federativa do Brasil (1988), qual seja, a combinao entre o inciso I do art. 22, o inciso V do art. 163 e os artigos 716 e 737, da qual inevitavelmente decorreria a concluso no sentido de que o exerccio da jurisdio pelo Tribunal de Contas na fiscalizao financeira da administrao pblica exige uma norma processual editada pela Unio, qual seja, o cdigo de processo de contas.

    A literatura dirigida ao controle externo exercido pelos Tribunais de Contas, quando no silente sobre o aspecto processual objeto da presente pesquisa, o aborda de forma extremamente lacunosa e desconexa. A ttulo de exemplo, Celso Antonio Bandeira de Mello, em sua obra Curso de direito administrativo8, dedica apenas 7 (sete) pginas (p. 967-974) abordagem do controle externo a cargo do Tribunal de Contas, nos quais se restringe basicamente a parafrasear os artigos constitucionais.

    Como dito inicialmente, diante da profuso de ritos processuais editados pelos Entes Polticos da Federao brasileira (Unio, 26 Estados, Distrito Federal e 2 Municpios), 4 Art. 163. Lei complementar dispor sobre:V - fiscalizao financeira da administrao pblica direta e indireta; (Redao dada pela Emenda Constitucional n 40, de 2003)5 Art. 22. Compete privativamente Unio legislar sobre:I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrrio, martimo, aeronutico, espacial e do trabalho;6 Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, ser exercido com o auxlio do Tribunal de Contas da Unio, ao qual compete:(...)II - julgar as contas dos administradores e demais responsveis por dinheiros, bens e valores pblicos da administrao direta e indireta, includas as fundaes e sociedades institudas e mantidas pelo Poder Pblico federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuzo ao errio pblico;(...)VIII - aplicar aos responsveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanes previstas em lei, que estabelecer, entre outras cominaes, multa proporcional ao dano causado ao errio;(...)X - sustar, se no atendido, a execuo do ato impugnado, comunicando a deciso Cmara dos Deputados e ao Senado Federal;(...)7 Art. 73. O Tribunal de Contas da Unio, integrado por nove Ministros, tem sede no Distrito Federal, quadro prprio de pessoal e jurisdio em todo o territrio nacional, exercendo, no que couber, as atribuies previstas no art. 96.8 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32 ed. rev. e atual. So Paulo: Malheiros, 2014. 1150p.

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    poucos so aqueles que se interessam em doutrinar sobre o tema, gerando assim escassez de debates acadmicos sobre a temtica. Alm disso, a falta de uniformidade processual torna deletria a tentativa de se construir um alinhamento de compreenso sobre o adequado rito processual a ser aplicado. Em regra, os Tribunais de Contas acabam divergindo muito e inexiste instrumento jurdico que assegure uma terceira via em busca da melhor interpretao, ou seja, no existe um real duplo grau de jurisdio.

    3. A CONCEPO DOUTRINRIA ACERCA DA NATUREZA JURDICA-CONSTITUCIONAL DO PROCESSO DE CONTROLE EXTERNO

    Dentre os poucos autores que se dedicaram a escrever sobre a natureza jurdico-constitucional do processo de controle externo da Administrao Pblica no Brasil e a ausncia de padronizao dos regulamentos processuais, h enormes contradies que as tornam quase insuperveis. Tais contradies, em regra, ora decorrem dos reflexos da teoria processual tradicional, que considera o processo como propriedade da justia, ora da natureza do processo no mbito do Tribunal de Contas.

    Jorge Ulisses Jacoby Fernandes teve a oportunidade de perfilhar o caminho para a construo de um modelo processual uniforme, perpassando em parte pelas problemticas tecidas neste artigo (segurana jurdica, razovel durao do processo, contraditrio e ampla defesa), chegando inclusive a apresentar proposta de modelo normativo para se alcanar uma soluo. No entanto, adotou como marco terico a jurisdio como exclusiva do Poder Judicirio e a teoria pura da tripartio de Poderes, o que o levou a peregrinar em direo a proposies de remodelamento absoluto do sistema de controle externo, no qual o Tribunal de Contas passaria a integrar o Poder Judicirio.

    Em sua pesquisa, Jacoby adverte que No Brasil, em vrias normas, inclusive na Constituio Federal, perlustra a idia de que o Tribunal de Contas tem funo judicante, fato que s no se consuma porque no integra, sob o aspecto formal, o Poder Judicirio e registra a posio de Alfredo Buzaid no sentido de que o Tribunal de Contas ora atua como rgo auxiliar do Congresso, ora como corporao administrativa autnoma, delegado do Legislativo e, at auxiliar do Judicirio, nunca, porm, Corte Judicante ou Corte de Justia9.

    Celso Antonio Bandeira de Mello discorda da teoria processual tradicional, na esteira do pensamento do jurista austriaco Merkel e do italiano Carnelutti, afirmando que o processo, por sua prpria natureza, pode dar-se nas funes legislativa e administrativa.

    O reconhecimento de que haver sempre um iter inclusivo de comeo, meio e fim necessrio, de direito, para o despertar e o concluir das manifestaes estatais levou autores da maior qualificao intelectual

    9 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Regime de controle jurisdicional de contas publicas. Braslia: MP/TCDF, 1998. 65 p. p. 22-27.

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    a reconhecerem que processo e procedimento10 no so patrimnio exclusivo, monoplio (...) da funo jurisdicional. Existem tambm nas funes legislativa e administrativa, permitindo at que se fale, hoje, em um Direito Processual Administrativo.11

    Vale observar que Merkel admite o processo judicial e o administrativo e Carnelutti reconhece a figura do processo em cada uma das funes pblicas legislativa, jurisdicional e administrativa, o que traz alerta para o uso das expresses: processo judicial e processo jurisdicional.

    Merkel, autor a quem se atribui o mais relevante papel no exaltar-lhe a importncia em anlise referenciada ao Direito Administrativo, servia-se da terminologia processo para denominar tal itinerrio sequencial. Este notvel mestre, j em 1927, demonstrava com incontendvel lgica e inobjetvel procedncia que o processo no fenmeno especfico da funo jurisdicional, mas ocorre na presena da lei, da sentena e do ato administrativo. So suas as seguintes palavras: Todas as funes estatais e, em particular, todos os atos administrativos so metas que no podem ser alcanados seno por determinados caminhos. Assim, a lei a meta a que nos leva a via legislativa e os atos judiciais e administrativos so metas a que nos conduzem o procedimento judicial e o administrativo. Pouco alm, aduziu: A teoria processual tradicional considerava o processo como propriedade da justia, identificando-o com o procedimento judicial (...) no sustentvel esta reduo, porque o processo, por sua prpria natureza, pode dar-se em todas funes estatais (...). Linhas acima observara que o fenmeno processual existe quando o caminho que se percorrre para chegar a um ato constitui aplicao de uma norma jurdica que determina, em maior ou menor grau, no apenas a meta, mas tambm o prprio caminho, o qual, pelo objeto de sua normao, apresenta-se-nos como norma processual.[...]Carnelutti igualmente disse que o processo no privativo da funo jurisdicional, assim como tambm no o o procedimento, ambos se estendendo ao campo das funes legislativa e administrativa. Bartolom Fiorini, outrossim, afirma que de a muito est superada a ideia de que as noes de processo e procedimento so prprias da rbita judicial. Aplicam-se a todas as funes do Estado. Royo Villanova observa que todas as funes do Estado no apenas tm de aplicar o Direito substancial, mas devem faz-lo segundo certos trmites e formas, de maneira a que a legalidade se realize por inteiro [...]12

    Realmente apresenta-se extremamente complexo desvinciliar-se da teoria que dominou por dcadas apregoando ser o processo ligado to somente jurisdio em seu sentido judicial (na vertente especfica civilista liberal), motivo pelo qual muitos elementos da nova compreenso necessitam ser aperfeioados, dentre eles os contornos da jurisdio, pois, um dos equvocos encontrados na doutrina,

    10 O autor adota a expresso processo e procedimento como sinnimos. (...) Quanto a ns, tendo em vista que no h pacificao sobre este tpico e que em favor de uma milita a tradio (procedimento) e em favor de outra a recente terminologia legal (processo), daqui por diante usaremos indiferentemente uma da outra.. MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32 ed. rev. e atual. So Paulo: Malheiros, 2014. 1150p. p.500.11 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32 ed. rev. e atual. So Paulo: Malheiros, 2014. 1150p. p. 501.12 Idem. Ibdem. p.501-502.

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    a partir do reconhecimento da existncia de uma processualidade ampla, foi o de, aparentemente objetivando ampliar o alcance do processo, restring-lo ao processo judicial, administrativo e legislativo.

    Visivelmente a fonte dessa limitao encontra-se na interpretao da diviso das funes do Estado, feita por uma parte relevante da doutrina, em legislativa, administrativa e jurisdicional (no sentido de judicial), seguindo, assim, o modelo tripartite de Montesquieu. Nessa linha apresentam-se os escritos de Celso Antonio Bandeira de Mello:13

    (...) Comece-se por dizer que funo pblica, no Estado Democrtico de Direito, a atividade exercida no cumprimento do dever de alcanar o interesse pblico, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessrios conferidos pela ordem jurdica.Em nosso tempo histrico, no mundo ocidental, prevalece esmagadoramente na doutrina a afirmao de que h uma trilogia de funes no Estado: a legislativa, a administrativa (ou executiva) e a jurisdicional. (...)Com se sabe, as funes legislativas, administrativas (ou executivas) e judiciais esto distribudas, entre trs blocos orgnicos, denominados Poderes (...) Dentro desta construo ideolgica, que ganhou enorme e proveitosa aceitao, fundamental dividir-se o exerccio desta aludida funo entre diferentes rgos. Sem embargo, nos vrios Direitos Constitucionais positivos e assim tambm o brasileiro sua distribuio no se processa de maneira a preservar com rigidez absoluta a exclusividade de cada rgo no desempenho da funo que lhe confere o nome. (...)

    Miguel Seabra Fagundes, por sua vez, ressalta que a diviso das funes estatais, correspondente existncia de trs rgos, hoje adotada por quase todas as organizaes polticas e alerta para o fato de que frequentemente se recrimina o publicista do Esprito das leis, vista dos defeitos que a diviso de poderes (...) convertida em separao irracional tem acarretado14.

    Gustavo Binen Bojm, em nota de atualizao da doutrina de Miguel Seabra Fagundes, alerta que o princpio da separao dos poderes merece releitura diante de um novo Estado, entendendo-se que tal preceito, muito mais que postulado da cincia poltica, norma jurdica, e como tal deve ser interpretada. Por outro lado, a separao de poderes possui ainda um ncleo duro essencial.15

    Miguel Seabra Fagundes avana sobre a temtica da jurisdio versus administrao para tecer o seu ponto de vista diferenciador luz da tripartio dos poderes.

    Em tese que ofereceu a debate na VII Conferncia Interamericana de Advogados (So Paulo, 1954), Celestino S Freire Baslio, reportando-se concepo de Roger Bonnard, segundo a qual a funo judicante se caracteriza pela remoo das situaes contenciosas surgidas a

    13 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32 ed. rev. e atual. So Paulo: Malheiros, 2014. 1150p. p. 29-32.14 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administravos pelo Poder Judicirio. Atualizao at 2010 Gustavo Binen Bojm. 8 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010. 537p. p.3, Nota de rodap 2.15 Idem. Ibidem. p. 6

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    propsito da atuao dos direitos subjetivos, pondera: no no surgimento da situao contenciosa, pela defesa de um direito subjetivo, que se apia a funo jurisdicional, como quer Bonnard mas em outro elemento de valor intrnseco muito maior, qual seja o da natureza da eficacidade do ato administrativo, essa aptido do fato para produzir, em virtude de seus requisitos, efeitos jurdicos, e tambm do evento em converter-se em situao jurdica final ato jurdico no conceito de Carnelutti. (grifamos)E conclui que o exerccio da funo jurisdicional reside na declarao de eficacidade do ato jurdico ou na sua negao. Esse o contedo material de que a situao contenciosa mero procedimento.16 (grifamos)[...]O procedimento do Estado, por meio da funo jurisdicional, muito se assemelha, como elemento de individualizao da lei, ao que praticado por meio da funo administrativa. A funo jurisdicional, tanto quanto a administrativa, determina ou define situaes jurdicas individuais. A primeria vista ela se confundiria com a Administrao como funo realizadora do direito, pois que o ato jurisdicional tipicamente um ato de realizao do direito pela individualizao da lei. Expressa a vontade do Estado, pelo preceito normativo, todos os atos destinados a faz-la so, sem dvida, atos de execuo, quer os que aparecem como resultados do exerccio da funo administrativa, quer os decorrentes da atividade jurisdicional. Mas o momento em que chamada a intervir a funo jurisdicional, o modo e a finalidade, por que interfere no processo realizador do direito, que lhe do os caracteres diferentes. O seu exerccio s tem lugar quando exista conflito a respeito da aplicao das normas de direito, tem por objetivo especfico remov-lo, e alcana sua finalidade pela fixao definitiva da exegese.17

    [...]Embora o exerccio da funo jurisdicional no coincida em tudo com as atribuies do Poder Judicirio, rgo do poder pblico que lhe corresponde nominalmente na estrutura do Estado, seguindo a marcha para a autonomia progressiva dos elementos incumbidos de distribuir justia que bem se pode acompanhar o seu lento processo de cristalizao. [...] Na Inglaterra, como na Frana, primeiro se manifesta a separao das funes do Estado em dois ramos (legislao e administrao) [...] Quando Montesquieu expende a teoria da diviso dos poderes, ainda as instituies inglesas da poca, nas quais se inspirou, no continham, nitidamente, a tripartio dos poderes pblicos. [...] A distribuio da justia se tornou ento autnoma e comeou a existir a jurisdio como funo do Estado, com papel distinto no processo executivo do direito. [...].18

    Jos dos Santos Carvalho Filho leciona que a cada um dos Poderes de Estado foi atribuda determinada funo.

    Entretanto, no h exclusividade no exerccio das funes pelos Poderes. H, sim, preponderncia. [...]Por essa razo que os Poderes estatais, embora tenham suas funes normais (funes tpicas), desempenham tambm funes que

    16 Idem. Ibidem. p.12. Nota de rodap 11.17 Idem. Ibidem p. 13-15.18 Idem. Ibidem p.14. Nota de rodap 14.

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    materialmente deveriam pertencer a Poder diverso (funes atpicas), sempre, bvio, que a Constituio autorize.O Legislativo, por exemplo, alm da funo normativa, exerce a funo jurisdicional quando o Senado processa e julga o Presidente da Repblica nos crimes de responsabilidade (art. 52, I, CF) ou os Ministros do Supremo Tribunal Federal pelos crimes de responsabilidade (art. 52, II, CF). [...] (grifamos)[...][...] A funo jurisdicional tpica, assim considerada aquela por intermdio da qual conflitos de interesses so resolvidos com o cunho de definitividade (res iudicata), praticamente monopolizada pelo Judicirio, e s em casos excepcionais, como visto, e expressamente mencionados na Constituio, ela desempanhada pelo Legislativo. [...] onde no h a criao de direito novo ou soluo de conflitos de interesses na via prpria (judicial), a funo exercida, sob o aspecto material, a administrativa.19

    O Tribunal de Contas, por disposio constitucional exerce funo jurisdicional20, no sendo nem administrativa nem judicial. Se num primeiro momento era razovel a insero do controle das contas pblicas no contexto da Administrao, a evoluo do sistema constitucional gerado pelas drsticas mudanas sociais ocorridas nas ltimas trs dcadas impe uma necessria releitura, impulsionada por um fenmeno idntico ao que ocorreu com a funo judicial.

    3.1. A PROCESSUALIDADE DO TRIBUNAL DE CONTAS

    A par da j aparente contradio entre limitar as divises de funes com atrelamento a cada uma delas o exerccio por um Poder especfico e afirmar que no h rigidez absoluta quanto a exclusividade de cada rgo no desempenho da funo que lhe confere o nome21, decorre um segundo equvoco de grande relevncia para o presente estudo, o de inserir a processualidade do Tribunal de Contas no processo administrativo, quando por expresso da Constituio da Repblica Federativa do Brasil (1988) o Tribunal de Contas rgo dotado de jurisdio, sendo, portanto, rgo jurisdicional, tal como o Poder Judicirio, com o qual no se confunde, nem o integra.

    Pontes de Miranda j alertava para a funo jurisdicional do Tribunal de Contas, reconhecendo-lhe atributos judiciais, desde a Constituio de 1891, independente de sua posio entre Poderes.

    O Tribunal de Contas, segundo a Constituio de 1891, (...) Tratava-se, pois, d