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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA NÚCLEO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA TERRA DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA MESTRADO EM GEOGRAFIA Paula Stolerman NOVA-MUTUM: A RECRIAÇÃO DO LUGAR DISCURSOS NA IMPLEMENTAÇÃO DA UHE - JIRAU Porto Velho 2014

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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA NÚCLEO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA TERRA

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA MESTRADO EM GEOGRAFIA

Paula Stolerman

NOVA-MUTUM: A RECRIAÇÃO DO LUGAR

DISCURSOS NA IMPLEMENTAÇÃO DA UHE - JIRAU

Porto Velho 2014

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Paula Stolerman

NOVA-MUTUM: A RECRIAÇÃO DO LUGAR DISCURSOS NA IMPLEMENTAÇÃO DA UHE - JIRAU

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Geografia, da Fundação Universidade Federal de Rondônia como requisito para obtenção do título de mestre em Geografia.

Orientador Prof. Dr. Josué da Costa Silva

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AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus queridos pais, Luiz (in memorian) e Telma Stolerman,

sempre um apoio para a vida, ao Mestrado em Geografia UNIR, pela oportunidade

em desenvolver esta pesquisa e ao meu orientador, Josué da Costa Silva, por seu

exemplo como pesquisador do que nos torna humanos. Agradeço também à parcela

de nossa sociedade que ainda crê que a educação é a cura para parte de nossas

dificuldades.

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...como nenhum de nós está fora ou além da geografia, da mesma forma nenhum de nós está totalmente ausente da luta pela geografia. Essa luta é complexa e interessante porque não se restringe a soldados e canhões, abrangendo também ideias, formas, imagens e representações.

Edward W. Said, em Cultura e Imperialismo

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RESUMO

Este trabalho é um estudo a respeito das relações com o lugar. O lugar em nosso estudo é permeado das subjetividades, vivências e sentimentos. A dissertação busca analisar de que forma sujeitos percebem os lugares em que viveram e como processaram a mudança brusca e perda deste lugar abruptamente, devido a remoção para um outro. Se trata do lugar para a comunidade de Mutum Paraná, atualmente vivendo na cidade de Nova Mutum, construída pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil, responsável pela construção da UHE Jirau, no rio Madeira. Questionamos sobre a possibilidade de recriar o lugar onde estas pessoas encontravam o conforto e abrigo, para além do qualitativo material e buscando o entendimento dos laços com os lugares e como estes mesmos laços contribuem para o entendimento destas pessoas sobre elas mesmas, sobre seus sentimentos, seus desejos, sua forma de viver. Trilhando o caminho da pesquisa numa perspectiva fenomenológica, valorizamos as subjetividades expressas nas narrativas compartilhadas pelos sujeitos colaboradores neste trabalho, assim como os discursos que permearam as ações dos sujeitos envolvidos da implantação da UHE Jirau.

Palavras-chave: Lugar, Narrativas, Deslocamento, Subjetividades, Barragem.

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ABSTRACT

This work is a study on the relationship with the place. The place is permeated our study of subjectivities, experiences and feelings. Our study aims to analise how individuals perceive the places in which their lives unfold and how processed the sudden change , the loss of this place abruptly and removal to another . This is the place for the community of Mutum Paraná , currently living in the city of Nova Mutum, built by the consortium Energia Sustentável do Brasil, responsible for the construction of HPP Jirau on the Madeira River . Inquired about the possibility of recreating the place where these people found comfort and shelter, in addition to the qualitative material and seeking the understanding of the links with the places and how these same bonds contribute to the understanding of these people about themselves, about their feelings, their wishes, their way of living. Treading the path of research, through the phenomenological perspective, we value the subjectivity expressed by the narratives that came from the people that participated on this studyso as we investigated the discourse that involveld the construction of Jirau dam.

Key Words: Place, Narratives, Displacement, Subjectivities, Dam.

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SUMARIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................... 10

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 14

CAPÍTULO 1: USINAS HIDRELÉTRICAS: MÚLTIPLOS SENTIDOS E INTERESSES ...... 22

1.1 Usinas Hidrelétricas e Desenvolvimento Sustentável ........................................................ 23

1.2 UHEs na Amazônia: Interesses Econômicos para quem? ............................................... 26

1.2.1 O Papel do PAC e outras Iniciativas Desenvolvimentistas para a Construção de

UHEs no Rio Madeira ................................................................................................................ 32

1.3 Hidrelétricas no Rio Madeira: mais um episódio de intervenção no Território ............... 34

1.3.1 O processo de Implementação das UHEs no Rio Madeira ....................................... 38

1.3.2 A Usina Hidrelétrica Jirau ................................................................................................ 44

CAPÍTULO 2: COMPREENDENDO O LUGAR MEDIANTE O DISCURSO ........................ 49

2.1 O discurso geográfico: algumas abordagens sobre ‘lugar’ ............................................... 50

2.2 O percurso metodológico trilhado para desvendar o sentido de ‘lugar’ na pesquisa ... 62

CAPÍTULO 3: DISCURSOS SOBRE O ANTES E O AGORA: DE MUTUM-PARANÁ À

NOVA MUTUM .................................................................................................................... 78

3.1 O Passado em Mutum-Paraná, o Presente em Nova Mutum .......................................... 79

3.1.2 Croqui: Mutum-Paraná e Nova Mutum ......................................................................... 86

3.2 Narrativas de Topofilia e de dissolução dos laços com o Lugar ...................................... 88

3.2.1 Dona Vilma ........................................................................................................................ 91

3.2.2 Senhor Normando ............................................................................................................ 96

3.2.3 Janet ................................................................................................................................. 102

3.3 Imagens e Narrativas ............................................................................................................ 107

3.3.1 Mutum-Paraná ................................................................................................................ 108

3.3.2 Nova Mutum .................................................................................................................... 112

CAPÍTULO 4: ANÁLISE GEOGRÁFICA DO DISCURSO SOBRE O LUGAR .................. 117

4.1 O discurso empresarial na construção da UHE Jirau ...................................................... 118

4.2 Diferentes percepções do Lugar ......................................................................................... 129

4.3 O Rio enquanto Lugar ........................................................................................................... 132

4.4 Os diferentes discursos sobre o Lugar ............................................................................... 144

CONSIDERAÇÕES ........................................................................................................... 151

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 161

ANEXOS ........................................................................................................................... 166

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APRESENTAÇÃO

Meus primeiros contatos com a Geografia na Universidade ocorreram no

PIBIC, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, onde atuei como

pesquisadora voluntária inserida no Projeto Cultura, Espaço e Representações das

Sociedades Amazônicas: Saber Popular e Memória de Populações Ribeirinhas, Um

Estudo Para a Sustentabilidade da Vida. Minha pesquisa ocorreu dentro do sub-

projeto A Experiência e o Lugar dos Ritos Judaicos. Estive sob a orientação do

Professor Doutor Josué da Costa Silva. O projeto iniciou no ano de 2010 e a entrega

do relatório final foi em 2011.

Durante este processo participei de encontros para a leitura de autores em

Geografia e também de outras disciplinas de Ciências Humanas, que deram

sustentação à minha pesquisa de iniciação científica. Isto ocorreu junto ao

GEPCULTURA - Grupo de Estudos e Pesquisas Modos de Vida e Culturas

Amazônicas, grupo de pesquisa ao qual passei a atuar como integrante

pesquisadora. Outra forma que busquei para afinar-me ao pensamento geográfico

foi frequentar como ouvinte duas disciplinas do curso de graduação em Geografia da

UNIR: metodologia da pesquisa em Geografia e Geografia Cultural, onde

acompanhei os debates promovidos em sala de aula.

Apesar de minha iniciação científica ter ocorrido atuando numa pesquisa em

Geografia, religião e lugar, paralelamente desenvolvia uma pesquisa na graduação

que buscava entender as repercussões sociais para uma comunidade atingida pela

instalação da Usina Hidrelétrica Jirau, no rio Madeira. Anteriormente ao PIBIC,

inclusive, eu participei de um Projeto de Extensão da Universidade – PIBEX no

período 2009-2010, em que trabalhei junto a comunidades que tiveram seus modos

de vida interrompidos em decorrência de mudanças trazidas pela construção das

barragens do Madeira.

Este projeto de extensão me levou a fazer contado com os moradores do

Distrito de Mutum Paraná, nucleamento urbano formado inicialmente em

consequência de esta localidade ter sido ponto de abastecimento de carga a ser

transportada pela E.F.M.M. Este distrito foi uma das áreas em que a população teve

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a necessidade de deixar suas moradias e modos de vida em consequência da

implantação das UHEs no rio Madeira.

Ingressei no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Geografia no ano de

2012 e pude verificar o benefício gerado por este contato anterior com a Geografia.

Obtive a graduação em Ciências Sociais e apesar de estas contribuírem para as

análises geográficas, cada uma das disciplinas na academia construiu sua

epistemologia particular e específica.

Nestes termos esclareço esta “mudança de rota” da pesquisa, que não se

tratou de ação aleatória, mas a consequência do amadurecimento da pesquisa

promovido pelas atividades do PIBIC e Grupo de Pesquisa relacionados à uma

identificação pessoal pela temática. Não há mais problemas em reconhecer que

atuamos com temáticas que despertam nosso interesse e a responsabilidade que

temos com os grupos humanos aos quais se referem nossas análises.

O Programa de Mestrado propiciou vislumbrar as possibilidades que os

diversos campos de interpretação dentro da Disciplina Geográfica podem suscitar e

qual direcionamento tomar a partir destas perspectivas, para a atuação na minha

pesquisa. Este vislumbre veio por meio das diversas disciplinas ofertadas pelo

curso.

Cada uma das disciplinas cursadas teve sua contribuição para a construção

desta dissertação. A disciplina Biogeografia não contribuiu de forma direta, mas

permitiu-me conhecer uma face da Geografia com a qual eu não teria contato caso

não houvesse a possibilidade de cursá-la. Esta disciplina contribuiu para minha

reflexão a respeito da forma como nossa sociedade busca construir diferentes

formas de compreender o que nos torna humanos assim como nossa pequenez em

relação ao sistema que é o planeta Terra. Além de Biogeografia, cursei as seguintes

disciplinas: Epistemologia da Geografia, Geografia e Gênero, Populações

Amazônicas e Sustentabilidade, e Geografia Cultural.

A contribuição da disciplina Epistemologia da Geografia deu-se pela

aproximação que gerou entre ideias para o desenvolvimento de minha pesquisa e a

abordagem fenomenológica da disciplina Geográfica. Nesta disciplina entramos em

contato com diversas abordagens possíveis para interpretar o espaço e como isto se

deu no decorrer do desenvolvimento científico. Especificamente as abordagens que

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permitem a compreensão dos lugares como construção simbólica foram as que

tomei para minha pesquisa.

As leituras em Geografia e Gênero permitiram visualizar os benefícios que

abordagens de outras disciplinas podem trazer para interpretações dentro do campo

da Geografia pois as múltiplas espacialidades dos diversos grupos sociais nos levam

a buscar um quadro de interpretação cada vez mais interdisciplinar. Além disso,

devido a temática de minha pesquisa busquei pensar em possibilidades para

investigações futuras a respeito das relações de gênero vivenciadas nos espaços

sociais de grupos atingidos pela construção de barragens.

Cursar a disciplina Populações Amazônicas e Sustentabilidade proporcionou

amadurecimento em minha pesquisa decorrente das leituras e discussões em sala

de aula com os colegas. Debatemos em torno das especificidades identitárias das

populações amazônicas em luta para garantirem o direito ao seu território tradicional

e específico, a respeito dos múltiplos sentidos para os termos sustentável e

sustentabilidade e como esta variedade polissêmica permite sua cooptação em favor

de grandes latifundiários ou empresas exploradoras dos recursos naturais, que não

garantem a continuidade e respeito aos modos de vida e de produção das

comunidades amazônidas.

Deste modo, a disciplina trouxe reflexão e também proporcionou conhecer

histórias de grupos sociais na Amazônia que, apesar de inicialmente travarem uma

disputa assimétrica no que se refere à possibilidade de terem seu direitos

garantidos, como a comunidade atingida por barragens, grupo que estudei,

conseguiram parcerias estratégicas que estão gerando condições para continuidade

do grupo de forma efetiva e eficaz. Caso dos Paeter Suruí, indígenas de Rondônia.

A Geografia Cultural trouxe-me possibilidades para novas dimensões da

pesquisa, trazendo contribuições para a busca do entendimento dos significados dos

lugares para as comunidades atingidas por grandes projetos de desenvolvimento.

Da mesma forma nesta disciplina fomos a campo e pude vivenciar abordagens

alternativas para interpretar as experiências dos lugares para os grupos sociais, na

medida em que participei da elaboração de um vídeo documentário com um casal de

moradores do Distrito de Nazaré, em Porto Velho.

Experiência marcante me fez recordar momentos que vivenciei em campo no

decorrer da minha pesquisa e frisou a importância de se manter o respeito àqueles

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sujeitos que fizeram parte e permitiram a elaboração da dissertação. Assim como

ficou explícito durante o curso, busquei respeitar as ideias e individualidades dos

sujeitos em minha pesquisa.

Ademais, durante o desenvolvimento desta pós-graduação pudemos

participar com trabalhos em eventos locais, nacionais e internacionais, como o III

Simpósio Nacional de Geografia Política, o X ENANPEGE – Encontro Nacional da

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia, o XIV EGAL -

Decimocuarto Encuentro de Geógrafos de America Latina. Também como resultado

de reflexões em disciplinas cursadas no Mestrado, elaboramos textos selecionados

para publicações em revistas. Estes trabalhos também foram elementos importantes

para a elaboração da presente dissertação.

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INTRODUÇÃO

A Geografia é uma disciplina que permite uma multiplicidade de abordagens.

Estudamos os solos, águas, climas, relevos, paisagens, territórios, lugares, as

pessoas. O percurso intelectual que moldou a disciplina geográfica espelhou

abordagens filosóficas em voga no seu tempo e atendeu ao modelo civilizacional

que impunha-se aos diferentes povos do globo. Com o passar das décadas vieram

os questionamentos, brotando da riqueza de estudos epistemológicos, intentando

compreender o espaço, as relações do homem com este espaço e que tipo de

experiência é possível vivenciar a Terra.

Nesta pesquisa queremos entender como repercutiu a mudança para uma

comunidade que foi removida de seu lugar de vivência devido a construção da usina

hidrelétrica Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Estas pessoas agora experienciam

outro modelo de assentamento, com diferentes características das que existiram

anteriormente à mudança. Fizemos entrevistas, fomos a campo, ouvimos as

pessoas removidas. Quisemos compreender como as narrativas destes sujeitos

colaboradores expressaram um discurso sobre o lugar.

Em termos de discurso, o Estado brasileiro apresenta os projetos hidrelétricos

à sociedade como ambientalmente benéficos e promotores do desenvolvimento. É

possível observar em filmes e outros mecanismos de propaganda a mensagem de

que a energia produzida por usinas que utilizam a força das águas é limpa e

renovável, o que as torna preferível em relação às usinas atômicas.

O que ocorre é que além das redes de vida compostas pela fauna e flora

abocanhadas pelo reservatório e demais partes constituintes da planta hidrelétrica, o

rio integra a vida social de comunidades ribeirinhas que dependem de suas águas

tanto materialmente, abastecendo suas roças, ofertando a pesca para alimentação e

comércio, promovendo o lazer, como para os processos de simbolização que dão

sentido a vida destas pessoas.

Noções de senso comum, em acordo com os ditames das esferas de maior

poder no Estado brasileiro, são reproduzidas inclusive nas ciências duras,

responsáveis pelos conhecimentos técnicos que erguem estes grandes monumentos

da engenharia, pois os estudos técnicos não consideram relevantes as perdas

simbólicas alavancadas pela interrupção de um trecho do rio que anteriormente

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atendia aos múltiplos usos das comunidades ribeirinhas, extrativistas e indígenas ali

presentes anteriormente às obras de construção da barragem.

Nestes termos, o complexo hidrelétrico do Madeira é apresentado

discursivamente à população brasileira como mecanismo de enfrentamento do

"apagão" ou risco de déficit. Segundo este argumento, algum impedimento para a

construção das usinas no rio Madeira aumentaria o risco de apagão1 no País, tendo

em vista que o Brasil necessita de 4 mil a 5 mil MW por ano de energia e

consequentemente, a redução de oferta energética seria um obstáculo ao

crescimento econômico, correntemente creditado como sinônimo de

desenvolvimento social.

A natureza compulsória da mudança, a mudança como obrigatoriedade de um

processo gerado pelas escolhas políticas e econômicas do Estado brasileiro,

evidencia-se nas narrativas dos que foram levados ao deslocamento, pelas

dificuldades que se tornaram aparentes. A comunidade de Mutum-Paraná, agora

remanejada, não consegue perceber-se enquanto sujeito da nova geografia imposta

pelo projeto de desenvolvimento, Nova Mutum.

Ademais propomos um estudo a respeito das relações com o lugar por meio

das vivências expressas nas narrativas dos sujeitos que deslocados de seu âmbito

de vivência, depuseram a respeito de suas vidas vivendo em outra localidade, para

onde foram removidos. Desta maneira tratamos do lugar enquanto núcleo

condensador de subjetividades, vivências e sentimentos.

Trata se do significado de lugar para a comunidade de Mutum Paraná,

atualmente vivendo na cidade de Nova Mutum, construída pelo consórcio Energia

Sustentável do Brasil, responsável pela UHE Jirau, no rio Madeira. Devido o

fechamento do reservatório da usina hidrelétrica, as pessoas foram deslocadas para

outro espaço, com características divergentes das vividas anteriormente por estes

sujeitos.

Em nossa pesquisa atribuímos a titularidade de cidade à Nova Mutum

mediante o entendimento de que esta é

[...] a célula-máter que atende às necessidades de uma população; tais necessidades variam em função da densidade demográfica, das

1 "Apagão" é um termo que designa interrupções ou falta de energia elétrica frequentes, como

blecautes de maior duração.

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comunicações e da economia da região, bem como do comportamento sócio-econômico de seus habitantes. Porém, cada uma dessas cidades constitui um caso específico quando se leva em conta sua função principal (SANTOS, 1981, p. 15).

Nova Mutum é uma cidade que tem como função atender aos funcionários do

consórcio ESBR e outras empresas envolvidas na obra assim como abrigar as

populações retiradas de seus lares devido a execução da barragem de Jirau.

Questionamos sobre a possibilidade de recriar o lugar onde estas pessoas

encontravam o conforto e abrigo, para além do qualitativo material e buscando o

entendimento dos laços com os lugares e como estes mesmos laços contribuem

para o entendimento destas pessoas sobre elas mesmas, sobre seus sentimentos,

seus desejos, sua forma de viver. Tratarmos do lugar que condensa a experiência, a

sensação, o mundo-vivido, a centralidade dos sentidos, a transmissão e troca

comunicacional e de significados e para tanto a pesquisa foi desenvolvida mediante

a abordagem fenomenológica.

Trilhando o caminho da pesquisa, mediante a perspectiva fenomenológica,

valorizamos as subjetividades expressas nas narrativas compartilhadas pelos

sujeitos colaboradores neste trabalho. Para compreendermos os sentidos e

percepções, sentimentos e sensações relacionados ao lugar foi necessário buscar

no mundo simbólico, que dá a tessitura para este tipo de abordagem.

As manifestações de agrado ou repulsa relacionadas ao lugar, modos de viver

num âmbito cotidiano, as representações como forma de expressão e comunicação,

atendem como fonte de investigação dos estudos que pretendem compreender o

que é experienciado de forma individual ou coletiva, assim como as formas de

representação pelas quais os grupos humanos atribuem significados ao espaço e

aos lugares onde vivem.

Aos textos que transcrevemos derivados de nossa experiência de campo,

mediante as entrevistas com os sujeitos levados a essa mudança em seu lugar,

convencionamos chamar de narrativas, pois compreendemos que estes sujeitos tem

uma história a ser contada relacionada ao lugar em que viveram e uma história a se

desenrolar no local atual de moradia e que de suas narrativas podemos

compreender que discursos construíram a respeito de seu lugar de vivências,

levando em conta a interação entre o pesquisador e os sujeitos colaboradores da

pesquisa.

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Aos textos institucionais, propagandísticos e de divulgação oriundos dos

mecanismos de comunicação do consórcio ESBR convencionamos chamar de

discursos pois buscamos compreender o posicionamento desse consórcio como

sujeito social mediante a interpretação dos textos que constituíram o material de

comunicação escrita divulgado pela empresa.

Organizamos o trabalho em capítulos e os desdobramos em sub itens para

uma melhor visualização e compreensão do procedimental da pesquisa. No primeiro

capítulo construímos a contextualização de nossa pesquisa. Nos apoiamos em

artigos e livros que abordam a problemática da construção de usinas hidrelétricas e

suas repercussões para o mundo social que vive em lugares que são eliminados

devido a construção destes projetos da engenharia.

No primeiro capítulo nos centramos na questão da problemática envolvendo

projetos hidrelétricos e sociedade. Atualmente, estas obras são apresentadas à

nossa sociedade como ambientalmente benéficas e promotoras do

desenvolvimento. O senso comum, presente inclusive nas ciências duras,

responsáveis pelos conhecimentos técnicos que erguem estes grandes monumentos

da engenharia, não consideram as perdas simbólicas alavancadas pela interrupção

de um trecho do rio que anteriormente atendia aos múltiplos usos das comunidades

ribeirinhas, extrativistas e indígenas ali presentes anteriormente às obras de

construção da barragem.

Neste capítulo abordamos como o potencial hidroelétrico dos rios Amazônicos

foi inventariado. Neste sentido, as escolhas do Estado brasileiro para a intervenção

nos rios priorizaram medidas que historicamente beneficiaram o grande capital. A

exploração do potencial hidrelétrico na Amazônia, mesmo apresentada pelo discurso

oficial como mecanismo para o desenvolvimento do país, mais que isso visou

atender a um projeto das nações industriais que no passado organizou globalmente

as economias dos Estados, no período pós Segunda Guerra Mundial.

Após esta descrição mais ampla, apresentamos interesses e motivações que

orientaram os estudos de viabilidade para a construção de usinas hidrelétricas no

Rio Madeira, assim como reações das populações locais e da sociedade, que se

posicionaram de forma contraditória, onde agentes sociais ligados a grupos

poderosos economicamente e politicamente defendiam a instalação das usinas no

Madeira, enquanto povos tradicionais, com o apoio de Organizações não

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governamentais, da Igreja Católica e outras entidades e os movimentos sociais,

como o Movimento dos Atingidos por Barragens, criticavam as inconsistências

presentes nos projetos de barramento.

Concluindo este capítulo trazemos para a discussão a usina hidrelétrica Jirau

de forma individualizada, pois as questões que envolvem o lugar de interesse em

nossa pesquisa estão conectadas diretamente a instalação desta usina. As pessoas

com suas narrativas sobre o lugar, assim como os discursos institucionais que

respaldaram as obras da planta hidrelétrica, estão inscritos no processo de

deslocamento das pessoas que viviam no Distrito de Mutum-Paraná. Esta localidade

encontrava-se situada em uma área tomada pelo reservatório da UHE Jirau.

No capítulo 2 objetivamos compor as bases teóricas e a metodologia que

nortearam nossa pesquisa. Iniciamos com um breve texto sobre a formação da

disciplina Geográfica e em que medida a relação das pessoas com o lugar vivido já

se fazia presente nos primeiros trabalhos de caráter geográfico. Os estudos

fenomenológicos a respeito dos lugares, no entanto, vieram mais tarde, de forma

destacada na década de 1970, no século passado.

Isto exposto, trazemos as questões da fenomenologia para nosso projeto, na

medida em que queremos estas referências pela necessidade de compreendermos

como ocorreu a experiência de recriação do lugar para as pessoas deslocadas pela

UHE Jirau para Nova Mutum, onde a comunidade de Mutum-Paraná, removida do

lugar de sua vivência, constrói outras experiências.

Recorremos a autores que definiram e discutiram o conceito de lugar na

Geografia, em um viés fenomenológico. Porém, consideramos também importante

apresentar outras interpretações para esta categoria de análise geográfica para que

ficasse evidenciado o motivo de nossa escolha pelo caminho da fenomenologia.

Em nossa pesquisa, estudamos o lugar da experiência e do mundo vivido. A

compreensão deste lugar vem por meio das narrativas que obtemos junto aos

narradores colaboradores, moradores de Nova Mutum que viviam em Mutum-Paraná

antes da construção da UHE Jirau. Para ir ao encontro deste lugar da experiência,

fez-se imprescindível o trabalho de campo, descrito neste capítulo, norteado pelo

método fenomenológico.

Neste capítulo também apontamos autores com os quais dialogamos para

construirmos nossas análises e achados de pesquisa. Eles aparecem devido à

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pertinência e relevância para a temática de pesquisa. A Geografia nos permitiu uma

discussão interdisciplinar, frutífera para contribuir nas pesquisas fenomenológicas a

respeito da categoria de análise em Geografia ‘lugar’.

Também em vista de enriquecer a compreensão sobre os discursos e o lugar,

tratamos de descrever o lugar vivenciado antes do deslocamento, o Distrito de

Mutum-Paraná e o lugar para onde estas pessoas foram deslocadas, a company

town2 Nova Mutum, no terceiro capítulo.

Em nosso trabalho de campo, além de conversas com moradores gravamos o

número de 11 entrevistas. Trazemos neste capítulo três narrativas como expressão

destas narrativas coletadas em nosso trabalho de campo, que em seu total

compuseram um banco de dados para a pesquisa. Estas três narrativas transcritas

integralmente no corpo da dissertação foram consideradas significativas para

compreendermos as experiências vividas no lugar atualmente, por estas vidas

deslocadas. Junto a isso, neste capítulo temos imagens e trechos de narrativas,

para auxiliar nossa interpretação e ilustração das questões de pesquisa.

Desta forma passamos ao quarto capítulo, onde explicitamos a importância de

compreendermos as formas discursivas. Em nossa pesquisa, os discursos são

práticas sociais e formas de agir no mundo que posicionam os agentes sociais de

forma diferenciada em relação ao mundo social.

Neste sentido vimos que diferentes discursos apresentam-se para disputar no

mesmo campo de simbolizações onde se inscreve o lugar em nossa pesquisa.

Observamos a disputa de significações sobre o lugar nas formas de representa-lo

pelo consórcio construtor da UHE Jirau, Energia Sustentável do Brasil, e a forma

como o lugar é sentido e vivido pelos moradores remanejados para Nova Mutum.

Neste capítulo estão as análises construídas com as bases conceituais

expostas nos capítulos anteriores e nas experiências vividas no trabalho de campo.

Neste capítulo expomos as características mais significativas para a representação

do lugar em vista das narrativas que pudemos obter assim como a representação

destas narrativas como um discurso das pessoas sobre o lugar de suas experiências

vividas em Nova Mutum. Da mesma forma, as narrativas que remetem a elementos

da memória constituem um discurso sobre o lugar vivo na memória, o lugar do ser.

2 Este termo será explicado mais adiante no trabalho.

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Em oposição ao lugar expresso no discurso de nossos narradores, trazemos

os discursos expressos pelos recursos jornalísticos do consórcio ESBR. Expomos

então os diferentes discursos sobre o lugar, refletindo a luta pela significação do

lugar enquanto aporte simbólico do viver.

Desta forma discorre nosso trabalho até chegarmos às considerações, onde

expomos de que maneira pudemos responder nossos questionamentos iniciais de

pesquisa e como estas perguntas foram sendo desdobradas para novas perguntas e

possibilidades de investigação.

A pertinência da pesquisa se tornou atualíssima visto que vivenciamos a

maior cheia documentada do rio Madeira, provocando a remoção de milhares de

famílias de seus lares, fala-se em mais de 25 mil pessoas desabrigadas, perdas

materiais e o isolamento do Estado do Acre.

Sabemos que a instalação de duas usinas hidrelétricas no Madeira não são a

causa desta cheia, pois se verificou uma precipitação de chuvas superior as médias

já conhecidas em sua bacia de captação, além do agravamento do derretimento de

gelo proveniente dos Andes porém, como é possível verificar em decisão constando

nos autos de processo nº 2427-33.2014.4.01.4100 da Ação Civil Pública, publicado

em Diário Oficial na data de 13 de março de 2014, tendo como réus o Instituto

Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o consórcio

Energia Sustentável do Brasil S/A – ESBR, e o consórcio Santo Antônio Energia

S/A.

A Justiça Federal considerou as UHEs Santo Antônio e Jirau responsáveis

pelo agravamento da situação de alagamento e transbordamento, pois conforme o

texto da referida Ação Civil Pública, os impactos ambientais não decorreram apenas

da subida de nível do rio Madeira no ano de 2014, mas estão relacionados à área de

Influência dos reservatórios das usinas de Santo Antônio e Jirau, que superou as

previsões dos estudos prévios elaborados pelos consórcios construtores, assim

como foi subdimensionado o impacto sobre a infraestrutura e a sociedade presentes

na região.

Deste modo, o assunto das mudanças provocadas devido à construção das

barragens do rio Madeira, tanto ocorridas subjetivamente ou objetivamente

permanecem como fonte de interesse para a ciência Geográfica e para um

entendimento mais denso a respeito do alcance destes projetos e que se pese

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melhor em que medida estas obras são indispensáveis ou não ao desenvolvimento

do país.

Nesta pesquisa, que abordou a recriação de um lugar de vivência para as

pessoas que habitavam Mutum-Paraná, os impactos causados da UHE Jirau foram

sentidos imediatamente, pois o Distrito foi inteiramente removido devido sua

localização estar inscrita inteiramente na área de influência direta da UHE.

Atualmente a área onde se localizava o Distrito de Mutum-Paraná é uma das

partes mais críticas do alagamento da BR 364, provocado pela maior cheia

documentada do Rio Madeira que na data de 5 de Abril de 2014 atingia a cota de

19,4 metros acima de seu nível normal, superando substancialmente a marca da

cheia histórica do ano de 1997, de 17,5 metros a cima de seu nível normal. Devido

ao cobrimento total da auto pista pelas águas do madeira, o tráfego para o Estado

do Acre foi paralisado, isolando seu contato por via terrestre do resto do país.

Diante destas transformações em curso e das consequências visíveis da

instalação destas duas barragens instaladas no Alto Madeira, nossa pesquisa

encontrou apoio nos debates com os colegas e professores nas disciplinas do

Mestrado em Geografia. Nossas discussões contribuíram tanto para uma

abordagem dos planejamentos políticos direcionados para a temática de nosso

estudo como as exposições de seminários de colegas, onde vimos múltiplos

sentidos para o lugar onde as populações amazônidas criam e recriam seus modos

de vida.

O seguinte estudo buscou entender de que forma sujeitos percebem os

lugares em que desenrolam suas vidas e como processam a mudança brusca, a

perda deste lugar e a remoção para um outro. Também buscamos compreender

como foram construídos diferentes discursos sobre o lugar. Refletimos para

compreender se existe a possibilidade de recriar o que foi experienciado, vivido por

um grupo de indivíduos em um lugar.

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CAPÍTULO 1: USINAS HIDRELÉTRICAS: MÚLTIPLOS SENTIDOS E

INTERESSES

STOLERMAN, Paula. Terreno de uma residência em Mutum Paraná. Distrito de Mutum Paraná. Imagem digital, 2011.

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1.1 Usinas Hidrelétricas e Desenvolvimento Sustentável

De forma generalizada a construção de barragens em todo o mundo

redundou em consequências negativas ambientais e sociais para os grupos

atingidos por este tipo de projeto, como exposto no Relatório Final da Comissão

Mundial de Barragens (WORL COMMISSION ON DAMS – WCD, 2000). Esta

Comissão foi constituída após anos de intensos debates promovidos por

associações de grupos atingidos, Organizações Não Governamentais (ONGs), e

outros grupos de participação ativa no questionamento da forma como ocorre a

implantação destes projetos para a geração de energia e suas consequências

sociais e ambientais.

A luta destes grupos conseguiu trazer à tona a necessidade de se

estabelecerem parâmetros para redução das perdas materiais e simbólicas dos

grupos humanos que são removidos dos lugares onde vivem em decorrência da

construção das barragens. Passaram-se mais de dez anos da entrega do Relatório

da WCD, porém poucos avanços ocorreram para garantir a manutenção dos modos

de vida, das possibilidades de subsistência e das referências simbólicas das

pessoas removidas.

Podemos pensar as lutas que levaram a redação deste relatório a respeito

das consequências da construção de barragens também como parte de um

movimento maior que colocou a questão ambiental no rol de preocupações das

sociedades industrializadas, vulgarizando o termo desenvolvimento sustentável. A

ideia de desenvolvimento sustentável possibilitou atrelar a preservação ambiental à

manutenção de atividades e lucros das empresas poluidoras.

Assim como foi necessário criar critérios para garantir que as grandes

indústrias poluidoras reduzissem seus danos ao ambiente, também foi preciso

formular mecanismos para garantir as populações instaladas nos lugares cobiçados

por grandes projetos de desenvolvimento condições de manutenção de seus modos

de vida. No caso da construção de barragens, os grupos atingidos denunciavam as

especificidades de suas perdas, confirmadas pelos pesquisadores que elaboraram o

Relatório da WCD.

A exploração da natureza permaneceu sem barreiras proibitivas legais ou

regulação específicas até aproximadamente a década de sessenta do século

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passado. As questões de degradação da natureza não faziam parte das agendas de

ação dos países, sendo estas consideradas apenas um custo pequeno em vista da

manutenção do ritmo de produção industrial das nações.

Além disso, permaneciam invisíveis os grupos sociais que mais sofriam as

consequências negativas da extinção de florestas e contaminação do ambiente e

das águas, notadamente populações de periferias, grupos étnicos ou outros grupos

chamados de populações tradicionais, que em razão de sua situação de

subalternidade em relação aos grupos de maior poder representativo nas esferas

decisórias dos países, não eram considerados relevantes no momento de instalação

de plantas industriais ou usinas hidrelétricas, termelétricas e outro tipo de objeto

característico do processo industrial e poluidor o ambiente.

Foi no ano de 1962, que Rachel Carson publicou a obra “Silent Spring”

[Primavera Silenciosa], denunciando o dano ambiental provocado pelo uso de

pesticidas nos campos agrícolas. Este livro promoveu uma grande comoção por

parte da sociedade norte-americana e partir disso, parcelas da população

estadunidense iniciaram a pressão sobre dirigentes políticos, a fim de regulamentar

e coibir o uso indiscriminado de agrotóxicos. A questão ambiental passou a ser

internalizada pela sociedade industrializada como um foco de preocupação e

justificativa para as ações e tomadas de decisão nos planos político, jurídico,

científico (ACSELRAD, 2010).

A dinâmica de exploração dos recursos naturais passou por uma espécie de

crise de legitimidade, no entanto era necessário manter o sistema em operação.

Como forma de justificativa, os próprios agentes de degradação passaram a levantar

o discurso ambientalista. Isto ficou evidenciado na postura do empresariado a partir

da entrega do “Relatório Nosso Futuro Comum” no final do ano de 1987, pela

comissão mundial sobre meio-ambiente e desenvolvimento da ONU.

Devido à pressão externa criada, as nações em processo de industrialização,

ou países em desenvolvimento, também começaram a instituir programas e formular

uma legislação que regulasse o uso dos recursos ambientais e o limite para sua

exploração. No caso do Brasil, a legislação ambiental começou a moldar-se bem

antes disso, a partir do ano 1934, onde foi instituído o Código das Águas e o Código

Florestal.

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As empresas acusadas de degradarem o ambiente, inclusive as responsáveis

pela construção de grandes barragens, passaram a utilizar um discurso

“ambientalizado” (Lopes, 2004), não se posicionando mais como agentes da

poluição, destruidoras do meio ambiente, mas sim como promotoras de

desenvolvimento sustentável.

A produção de energia por meio da hidroeletricidade, quando tomada pelo

discurso que atrela preservação natural às praticas capitalistas, é apresentada de

forma generalizada para a população como energia limpa, não poluente. O que fica

omisso nesse caso, é que como demonstraram estudos já publicados, os

reservatórios das barragens, os chamados lagos, produzem altas emissões de

metano, um gás efeito estufa, devido ao material orgânico em decomposição que

ficou submerso pela área alagada.

Segundo Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da

Amazônia (INPA), os gases de efeito-estufa produzidos pelos lagos das barragens,

especialmente o metano,

[...] tem um impacto muito maior sobre o efeito estufa por cada tonelada. É vinte e cinco vezes maior por cada tonelada de gás se comparado com o gás carbônico. Qualquer transformação do carbono em metano gera mais impacto, e a culpa dessa emissão é da hidrelétrica. O reservatório funciona como uma fábrica de metano. A água dentro do lago acaba formando camadas, uma mais fria no fundo e outra mais morna em cima. É formada uma divisória que não permite a mistura dessas duas camadas. A água do fundo fica sem oxigênio, e tudo o que apodrece lá vira metano, não gás carbônico. Grande parte desse metano sai pelas turbinas das usinas. Essa água está sob pressão, o que faz mais gás ser absorvido pela água. Quando a água passa pela turbina e sai pelo ar livre com menos pressão, o gás vai saindo e é muito metano. Meus cálculos mostram que as usinas da Amazônia, Balbinas, Tucuruí, Curuauna e Samuel emitem mais gases de efeito estufa do que seria emitido para a geração de energia com combustíveis fósseis. Isso tem que ser considerado nos cálculos de efeito estufa e na decisão de se construir ou não usinas (FEARNSIDE, 2009, acesso em 08/10/2011).

No caso das Usinas Hidroelétricas no Rio Madeira, o discurso ambientalizado

do empresariado foi reafirmado pelas escolhas técnicas para a produção energética.

Na época do leilão, foi largamente propagandeado que a tecnologia a ser utilizada,

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usina a fio d’água com turbinas bulbo3, proporcionaria menor dano ambiental devido

a formação de um reservatório menor. Aparentemente vantajosa, esta escolha

técnica na verdade ocorreu por questões de economia no projeto e nunca antes se

testou esta tecnologia em um rio com a carga de sedimentos aproximada a presente

no rio Madeira.

Os projetos hidrelétricos atualmente são apresentados à nossa sociedade

como ambientalmente benéficos e promotores do desenvolvimento. O senso

comum, presente inclusive nas ciências duras (hard Science), responsáveis pelos

conhecimentos técnicos que erguem estes grandes monumentos da engenharia,

não consideram as perdas simbólicas afirmadas pela interrupção de um trecho do rio

que anteriormente atendia aos múltiplos usos das comunidades ribeirinhas,

extrativistas e indígenas presentes no local onde ocorrerá a obra de construção da

barragem.

1.2 UHEs na Amazônia: Interesses Econômicos para quem?

Usinas hidrelétricas são construções que tem por objetivo gerar eletricidade

utilizando a energia das águas dos rios. Elas podem variar em tamanho e em

potência de geração de energia elétrica, mas em ambos os casos, repercutem em

mudanças irreversíveis nos locais onde são instaladas. Ademais, as UHEs, também

constituem-se em palco de disputas simbólicas pelos lugares escolhidos para sua

construção.

Mais de cem anos se passaram desde a construção das primeiras barragens

e atualmente estão em funcionamento algumas mega-barragens, como denominado

por Sevá (2008). São usinas hidrelétricas que produzem milhões de KW, como a de

Itaipú, com potência de 14 milhões de KW. Atualmente, estes projetos direcionaram

seus caminhos para os rios Amazônicos, e as obras que inauguraram este modelo

3 A unidade geradora tipo Bulbo é composta por uma turbina hidráulica [...] de eixo horizontal

acoplada a um gerador [...] também horizontal que se encontra dentro de uma cápsula metálica estanque (bulbo) totalmente imersa no fluxo hidráulico. (http://www.furnas.com.br/arqtrab/ddppg/revistaonline/linhadireta/rf318-bulbo.pdf) acesso em 22/08/2013. Este modelo de turbina é utilizado para a produção de energia em quedas menores. No caso do Madeira, isso foi usado para defender a ideia de que o reservatório seria igual ao leito do rio quando na época de cheia.

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de grande porte em construção na região são as duas usinas do Rio Madeira, Santo

Antônio e Jirau.

As experiências dos lugares, a destruição destes e sua possível recriação,

assim como discursos que permeiam estas experiências vividas estão imersas em

processos de mudanças territoriais que ocorre em uma escala global que não pode

ser ignorada por nosso estudo. No caso que apresentamos como nosso tema de

investigação, devido a natureza da pesquisa, centralizamos a busca em

compreender o lugar, tanto como a experiência vivida quanto como construção

teórica da Geografia.

No entanto, como forma de aporte para uma melhor compreensão sobre o

tema estudado por aqueles que futuramente lerão este trabalho, iniciamos com uma

breve contextualização sobre mudanças estruturais já ocorridas e passamos às

transformações territoriais no Alto Rio Madeira, desencadeadas pela construção das

Hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio.

Mesmo que não busquemos a compreensão geográfica por meio da

interpretação das categorias de análise espaço e território, estas, como instrumento

de investigação do geógrafo, não podem ser integralmente ignoradas, visto que

somos permeados por uma dinâmica intensa social, cultural e histórica, que não nos

permite vislumbrar uma separação estanque entre estas formas de análise por

estarem imersas em processo que nos tornam humanos e permitem-nos tentar

entender melhor a experiência da vida no espaço e na terra.

Nesse sentido, localizamos o assunto de nossa pesquisa inicialmente da

forma como participante de um conjunto de ações que compõe um território, sendo

os agentes deste conjunto de ações conhecidos como o Estado composto por suas

esferas decisórias, as instituições civis, as empresas, os sistemas jurídicos que

normatizam estas leis, os modelos de regulamentação, os hábitos e costumes, as

formas culturais (CAVALCANTE, 2008). Em adição a isso, devemos sinalizar que a

noção de território é associável teoricamente à noção de sujeitos da ação, no

sentido em que o território é construído socialmente, materializando uma expressão

coletiva partilhada socialmente (CASTRO, 2006).

Desta forma, indicamos a ocorrência de divergências entre os atores sociais

envolvidos com as esferas decisórias, representando interesses do estado brasileiro,

e os interesses de sujeitos que tem seu cotidiano diretamente atrelado a

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determinada porção do território destinada a uma (re)funcionalização diferente da

que usualmente estão habituados. Cavalcante explicita este processo na medida em

que:

[...] em grande parte da Amazônia, pela construção de grandes obras [...] os locais são (re)funcionalizados para o atendimento aos interesses e demandas externas à região. Em cada período de transformação geográfica as atividades estiveram e ainda estão ligadas à exploração dos recursos naturais com fluxos e refluxos populacionais, atraídos na perspectiva de trabalho quanto às explorações dos recursos no seu auge. Desta forma muitos lugares de vivência das populações que tradicionalmente os ocupam vão sendo desmantelados para atender à outra função, que se adequa a interesses internacionais (2008, p. 92).

Este processo de (re)funcionalização não é recente. A partir do século XVI já

era possível verificar os esforços para a colonização e incremento econômico da

Amazônia, mas não com a expressividade característica dos projetos instalados no

século XX. Relatórios militares do século XIX já indicavam uma preocupação para

avaliar a viabilidade do aproveitamento das fortes e rápidas águas do rio Madeira

para sua utilização econômica (ALMEIDA, p. 16), mas a partir da década de 40 do

século XX a atitude governamental intervencionista se intensificou, levando em

consideração as diferentes necessidades enfrentadas pelo Estado brasileiro,

referentes à exploração de seus recursos territoriais.

O inventario formal do potencial hidrelétrico da região Amazônica remonta a

processos de reconfiguração econômica ditados por organismos financeiros

multilaterais, espacialmente a partir da década de 50. O Banco Mundial e o FMI -

Fundo Monetário Internacional, passaram a interferir nas ações pró-

desenvolvimento, viabilizando com investimentos a criação de indústrias de base, o

que na América do Sul ficou conhecida como “substituição de importações”

(BERMANN et al, 2010).

Segundo Bermann (2010), a política energética brasileira veio atender ao

projeto de desenvolvimento que definiu o papel dos países periféricos na economia

mundial no pós II Guerra Mundial. Neste momento, segundo o autor, foi estabelecido

um novo padrão de acumulação capitalista.

Neste sentido, o Estado brasileiro passou a atuar com ações

desenvolvimentistas mais intensamente na Amazônia na década de 1940, onde

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estabeleceu o primeiro plano para a valorização econômica da região, baseado no

artigo 199 da constituição federal outorgada em 1946.

Foi criada a SPVEA, Superintendência do Plano de Valorização Econômica

da Amazônia, a primeira agencia de desenvolvimento regional brasileira,

especialmente preparada para executar o planejamento estatal para a região. A

SPVEA foi substituída na década de 1960 pela Superintendência de

Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), sendo esta última extinta no segundo

mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (LEMOS, 2010).

Os governos militares intensificam a aprovação de projetos que tinham por

objetivo otimizar a integração da região amazônica com o sistema econômico

mundial. O Estado passou a apresentar discursivamente as escolhas para a

Amazônia como uma necessidade da própria região, bem exemplificados pelo lema

“integrar para não entregar” (BERMANN, 2010).

Anteriormente a década de 1970 predominaram os planos para o

desenvolvimento econômico da Amazônia baseados na “concessão de incentivos

fiscais para a realização de investimentos” (LEMOS, 2010, p.3), onde se buscou a

organização do território equilibrando a ocupação do espaço levando em

consideração a existência de espaços densamente povoados e outros por sua vez

vazios.

Dando continuidade a este processo, na década de setenta, o Estado

formulou um novo padrão para o planejamento da Amazônia, onde foi pretendido

integrar o território por meio de grandes projetos, que mobilizassem força de

trabalho, capital, recursos naturais. Estes, como afirma Lemos (2010, p. 4)

consumaram uma nova regionalização imposta pelos projetos especiais (grandes usinas hidrelétricas, complexos industriais portuários, complexos mínero-metalúrgicos etc.) que tornaram-se os geradores e gestores das novas regiões. Num processo contraditório de nacionalização/transnacionalização, o Estado brasileiro associou-se a corporações transnacionais para intervir no território, excluindo do processo toda a sociedade, especialmente a sociedade local.

Além disso, também na década de 1970, ocorre a crise mundial do petróleo,

onde os custos deste recurso “forçaram” a migração de indústrias dos países

desenvolvidos que consomem grandes quantidades de energia, as chamadas

eletrointensivas ou energo-intensivas (BERMANN, 2002), para os subdesenvolvidos,

incluindo o Brasil.

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Neste contexto, coube aos países periféricos, como o Brasil, a produção e

exportação de matérias primas, com pouco valor agregado, mas que consomem

muita energia. No caso da Amazônia, estão presentes atualmente indústrias que

produzem aço e alumínio para exportação.

Desta maneira, entende-se que a utilização da hidroeletricidade como

mecanismo priorizado de produção de energia no Brasil, relaciona-se às escolhas

políticas dos governos, que visam uma maior inserção do país na economia

capitalista mundial, da forma como era ditado pelos bancos multilaterais.

Os rios amazônicos entraram na distribuição de papéis econômicos apenas

pelo seu potencial hidrelétrico criando, segundo Bermann (2010, p. 2), “as pré-

condições para a apropriação dos recursos naturais na Amazônia: por um lado, a

disponibilidade de minérios, e por outro, os recursos hídricos monopolizados para a

produção de energia elétrica”.

Como explica Lemos (2010):

Em 1972 foi criada a Eletronorte (Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A.) pela Lei 5.824, de 14/11/1972, como empresa regional controlada pela Eletrobrás, o que viabilizou a realização de estudos hidroenergéticos e o planejamento e execução dos grandes empreendimentos hidrelétricos com enormes impactos econômicos, sociais e ambientais. Sua criação está associada à construção do complexo minero-metalúrgico Albrás-Alunorte, para dar suporte energético à produção de alumínio, sob o domínio de investidores japoneses. [...] Este período consagra a hidreletricidade como novo padrão energético para a região, instituindo os Grandes Projetos Hidrelétricos como Tucuruí, Balbina e Samuel [...] (LEMOS, 2010, p. 04)

A partir da década de 1990, iniciou acelerado processo de privatização no

Brasil, onde foi incluindo o setor de produção e distribuição de energia elétrica.

Recomendada e promovida pelo Banco Mundial (mais intensamente) e outras

agências multilaterais, a reestruturação do setor elétrico implicou em uma série de

mudanças na legislação brasileira, limitando a participação e controle decisórios

referentes a este setor (VAINER, 2007).

Dando continuidade às políticas econômicas do governo anterior, as escolhas

do governo nacional primam pelo modelo de geração energética pela exploração de

recursos hídricos e dessa maneira, o governo incentiva a implantação de projetos

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hidrelétricos. O governo de Lula, através do PAC - Plano de Aceleração do

crescimento, implementou

(...) um projeto de crescimento econômico segundo uma lógica neo-desenvolvimentista, ancorado na expansão do crédito para grandes empresas e na realização de grandes obras intensivas em uso dos recursos naturais. O Brasil assume mais uma vez o papel de fornecedor de matéria-prima e energia para os países do Norte e novos mercados em expansão, num processo definido por alguns como de “reprimarização” da economia. (ACSELRAD, 2010, p. 14)

No governo que sucedeu ao de Lula, a presidente Dilma Rousseff, não

modificou as premissas para o modelo de desenvolvimento editado para o país,

anteriormente levado a cabo por Lula, recrudescendo medidas que garantem aos

investidores a participação em projetos de infraestrutura.

As Usinas Hidrelétricas na Amazônia estão inseridas em uma intersecção de

contextos, porém nunca explicitamente revelados pelo estado brasileiro. Um dos

aspectos que garantem sua importância se relaciona ao modelo de desenvolvimento

imposto aos países sul americanos e a necessária instalação de infraestrutura para

a otimização da circulação dos commodities, como a soja, produzida no Estado de

Rondônia e destinada majoritariamente à mercados internacionais.

Podemos também observar, diante de uma perspectiva evidenciada por David

Harvey (2001), que:

Continuamente, (...) o capitalismo se esforça para criar uma paisagem social e física da sua própria imagem, e requisito para suas próprias necessidades em um instante específico do tempo, apenas para solapar, despedaçar e inclusive destruir essa paisagem num instante posterior do tempo. (HARVEY, 2001, p. 150)

Desta maneira, as Usinas Hidrelétricas na Amazônia enquadram-se em uma

nova movimentação/adaptação espacial do capitalismo englobando espaços que

anteriormente se destinavam a mecanismos produtivos que não necessariamente se

enquadram na lógica da acumulação, como é o caso da produção para a

subsistência das populações quilombolas e ribeirinhas.

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1.2.1 O Papel do PAC e outras Iniciativas Desenvolvimentistas para a

Construção de UHEs no Rio Madeira

A Usina Hidrelétrica (UHE) Jirau é, juntamente com a UHE de Santo Antônio,

um dos principais projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do

Governo Federal, sendo este, um programa que é discursivamente apresentado

como sendo voltado ao investimento, pelo Estado brasileiro, “em projetos essenciais

para o desenvolvimento, enquanto aumentam os incentivos para que a iniciativa

privada faça o mesmo”4, segundo a secretaria de comunicação da Presidência da

República.

Os críticos deste direcionamento desenvolvimentista advertem ser o PAC

parte de um projeto maior, que juntamente com a IIRSA estão

[...] concentrados na ampliação e articulação de projetos de infra-estrutura em escala continental com vistas a potencializar a subsidiaridade da economia regional frente aos mercados internacionais, com o aumento de escala e produtividade das atividades hegemônicas no continente controladas e/ou voltadas para este (GARZON, 2009, p. 151).

Assim, estas iniciativas para o investimento em obras de infraestrutura de

grande escopo, como as UHEs do Madeira, viabilizadas pelo investimento do PAC

na Amazônia, estão em conformidade à expansão das atividades do agronegócio,

da atividade de exploração madeireira e de mineração justamente para servirem

como mecanismo de facilitação de escoamento destes produtos de alto interesse

internacional.

As consequências menos visíveis destes grandes projetos já podem ser

vislumbradas por uma breve observação às localidades onde estão instaladas as

hidrelétricas, mas são pouco divulgadas para outras áreas do país. Estas

consequências estão diretamente ligadas a essas obras, como o aumento das taxas

de gravidez precoce, aumento de doenças sexualmente transmissíveis, prostituição,

trabalho escravo e tráfico humano, o que é facilitado pelas áreas fronteiriças da

região Amazônica (CARVALHO, 2009, p. 211).

4 “Estamos Vivendo Um novo Brasil” disponível em www.presidencia.gov.br/secom

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Desta maneira, o Estado brasileiro permanece como principal agente do

crescimento econômico nacional, atuando via PAC. Porém esses investimentos vêm

atender aos interesses das grandes empresas internacionais e internacionalizadas,

onde o governo nacional associou seu poder interventor nos estados e municípios,

que usualmente não tem planos consistentes de desenvolvimento, incitando o que

foi chamado por Almeida (2009) de “PAC do P”, o Programa de Aceleração do

crescimento Privado”, garantindo o retorno financeiro dos investidores com

empréstimos cedidos pelo BNDES.

Como pontua Carvalho (2009, p. 184), o BDES não tem só atuado em

empreendimentos em território nacional como em outros países na América do Sul:

O BNDES tem sido decisivo para ampliar a influência do Brasil na América do Sul, através da concessão de empréstimos a governos e empresas da região. Isto porque ao [...] Estado brasileiro interessa, por um lado, que as obras de infraestrutura previstas pela IIRSA nos países vizinhos, que se articulam com as do PAC e que são fundamentais à inserção do nosso país no mercado global, sejam executadas integralmente; por outro, que esse processo também contribua para abrir as economias sul-americanas às empresas brasileiras, associadas ou não a grandes grupos econômicos do exterior.

Como expusemos anteriormente, existem interesses internacionais para o

aumento de oferta de energia no Brasil, pois esta energia garante a reprodução do

modelo atual de exportação de produtos de pouco valor agregado, como os

produzidos nas indústrias energointensivas de alumínio, assim como garante às

empreiteiras, bancos e demais interessados, que a construção destes

empreendimento permanecerão em voga, gerando lucro contínuo.

Para garantir o apoio hegemônico da população à construção das barragens

do Madeira, o discurso quanto à possibilidade de um apagão foi difundido pelas

mídias, governantes, empresariado local atrelado a parlamentares, que por meio da

campanha “usinas já” incutiu no imaginário da população o medo, gerando

incertezas pela possível falta de energia, além de promover a crença de que a

instalação destes projetos traria uma oferta maior de empregos e a instalação de

diversos tipos de indústria.

Em Rondônia, ficou mais evidente o dissenso entre o discurso propagado de

forma generalizante e ações subjacentes muitas vezes não esclarecidas, pois

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atrelado às usinas, está o linhão responsável por transportar a maior porção de

energia produzida pelas UHEs Santo Antônio e Jirau para o sudeste do país. O qual

foi leiloado em separado, tornando-se mais um impedimento para o controle social

deste tipo de obra.

As manifestações contrárias a este modo de exploração dos rios amazônicos,

expressas em debates, em fóruns, publicações e críticas consistentes orientadas por

diversas pesquisas na área acadêmica, não surtiram efeito no plano decisório

governamental pois a revitalização do projeto de construção de barragens na

Amazônia, reiniciado com as usinas do Madeira, está em plena atividade e

atualmente, O Brasil possui 26 usinas hidrelétricas planejadas e algumas já em

construçã.

1.3 Hidrelétricas no Rio Madeira: mais um episódio de intervenção no Território

As duas hidrelétricas projetadas e em avançado estágio de construção no

leito do rio Madeira estão situadas em uma porção do Rio denominada Alto

Madeira5. Esta nominação compreende o trecho do rio a partir dos seus formadores,

rios Beni e Mamoré, seguindo por suas cachoeiras, até a cachoeira de Santo

Antônio, na cidade de Porto Velho. Seguindo seu curso, o Rio Madeira à jusante da

cidade de Porto Velho até sua foz no Rio Amazonas, já no Estado do Amazonas, é

chamado de Baixo Madeira (CAVALCANTE, 2008).

As mudanças desencadeadas pela construção de duas usinas hidrelétricas no

Alto Rio Madeira não são as primeiras intervenções do Estado brasileiro em

conivência a outros agentes que promoveram transformações nos lugares de vida

das pessoas. Esta área onde se localiza o Distrito de Mutum-Paraná já presenciou

outros momentos onde sua localização foi valorizada em vista do potencial

econômico, não se atentando para o tipo de relações humanas que ocorriam

5 A UHE Santo Antônio também está localizada no Alto Madeira, mas não abordamos sua

problemática nesta de pesquisa, mesmo que as duas causem impactos coordenados e associados. Como explicou Cavalcante (2008, p.10), os impactos das duas usinas não são sentidos uniformemente pelo território, mas ao serem estudados de forma individualizada, por cada um dos empreendimentos, facilitaram às usinas o controle sobre os declarados impactos de cada uma delas, restringindo a área de responsabilização sobre danos derivados de sua atuação. Em oposição a isso estão as comunidades que têm suas vidas e lugares transformados por estas obras, que não conseguiram vislumbrar de forma clara como ocorrerão as mudanças.

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concomitantemente aos processos políticos e econômicos que moveram os

interesses do Estado.

Os territórios na Amazônia, ao qual o lugar de nosso estudo está inscrito, vem

passando por uma série de modificações, no que tange à criação de um montante

de projetos de infraestrutura como hidrovias, rodovias, usinas hidrelétricas, erigidos

para atender as dinâmicas econômicas nacionais e internacionais, assim como

garantir os interesses de ordem militar sobre o território brasileiro.

Seguindo o processo que solidificou as bases financeiras, técnicas e

institucionais para a industrialização nacional, o que ocorreu entre as décadas de

1930 e 1950 do século XX (LEMOS, s/d), ações de intervenção na Amazônia

atenderam ao discurso de integração nacional e desenvolvimento, afirmando

discursivamente o protagonismo amazônico como elemento fundamental para a

solução de problemas externos à região e ao país (CAVALCANTE, 2008). Desta

maneira, o Estado brasileiro voltou olhos ao território Amazônico como potencial

área de expansão de capital, processo este que se perpetua até os dias atuais.

Antes disso, devemos atentar para as formas de ocupação das terras na

Amazônia, após a chegada dos europeus. A organização de vilas e povoados

deveu-se pela utilização dos rios como primeiras redes de transporte de pessoas e

produtos, onde prevaleciam os interesses comerciais sobre as drogas do sertão.

A área compreendida em nosso estudo, a região do Alto Madeira, sofreu forte

adensamento populacional em fins do século XIX ao início do século XX (1840

1910), durante o ciclo da borracha. Este produto passou a ser fortemente cobiçado

pelos mercados internacionais, gerando expectativas de lucros fantásticos. Os

atrativos para coleta da seringa promoveram mudanças na

[...] economia amazônica, que tinha como base anterior as especiarias extraídas da floresta, que desde os fins do século XVIII entrara em decadência. A desestruturação do sistema de exploração de mão de obra, implantado pelos missionários religiosos, criou uma situação de estagnação econômica na região. Alguns produtos do extrativismo, ainda assim, continuaram importantes, como o cacau. A agricultura, por sua vez, recebeu incentivos, especialmente na época pombalina, com a organização das companhias de comércio. Com o advento da borracha, a economia regional ressentiu-se da escassez de mão de obra, mormente se levarmos em conta a dificuldade de se estruturar a produção com base na mão de obra indígena local (ANTONIO FILHO, 2010, p. 189).

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Concomitante a valorização do látex, no Nordeste brasileiro, a emergência de

conflitos de ordem fundiária adicionou-se a grande seca que provocou a mortalidade

de cem a duzentas mil pessoas nesta região. Esta população deslocou-se para as

cidades litorâneas, em busca de meios de sobrevivência e um dos recursos

oferecidos pelo Estado foram políticas governamentais que fomentaram a migração

para a Amazônia, num contingente de 600 a 800 mil pessoas, gerando mão de obra

imediata para os seringais.

Para transpor as cachoeiras do rio Madeira e escoar a produção de látex,

desenrolou-se o programa para a construção da estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Após imensas dificuldades e tentativas frustradas, o empreendimento foi concluído

em 1912, num trajeto que ligou a cidade de Porto Velho à Guajará-Mirim. No rastro

da ferrovia se estabeleceram vilas, os entrepostos onde a maria fumaça recebia o

carregamento para o transporte.

Desta forma, a EFMM foi a primeira grande obra de infra-estrutura que

promoveu mudanças significativas no território e consequências para a experiência

dos lugares onde se instalou, devido a presença de novos agentes que atuaram

atraídos pela seringa como funcionários da ferrovia, seringalistas, seringueiros,

trabalhadores do estrangeiro, comerciantes para adicionar a presença indígena

local.

Mas a lucratividade da produção gomífera amazônica entrou em decadência a

partir do retorno vindo do plantio de seringueiras na Ásia, desencadeando o

abandono da produção de borracha como alternativa econômica para a nação. A

estagnação gerada com a queda da competitividade do látex brasileiro afetou o Alto

Madeira, no entanto, a produção de látex foi novamente aquecida na década de

1940 do século XX, devido à necessidade da indústria belicista em plena atividade

nos anos de II Guerra Mundial.

Novamente o mercado da borracha esfriou findada guerra e a atividade da

estrada foi encerrada totalmente em 1972 (CAVALCANTE, 2008), devido ao

abandono6. A Estrada de Ferro ainda voltou à atividade como passeio turístico em

6 O decreto nº 58.501, de 25 de Maio de 1966, em seu Artigo 1º declara: “Entra em processo de

erradicação, a partir da publicação do presente decreto, a estrada de Ferro Madeira-Mamoré”. Para

tanto este feito tem como um pressuposto: “Considerando que a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré,

por ser linha férrea antieconômica, deverá ser suprimida, tão logo se construa a rodovia federal substitutiva; (disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D58501.htm, acesso em 12/02/2014)

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1981, num trecho de 7 quilômetros mas esta atividade também foi totalmente

abandonada no ano 2000. A estagnação provocada pelo término da principal

atividade produtiva pressionou a população para nova migração.

Parte das pessoas que permaneceu, passou a viver da extração do ouro no

rio Madeira, pois a partir do final da década de 1970 e início da de 1980 esta passou

a ser a principal atividade econômica no Alto Madeira. Efetuada no trecho entre a

cachoeira de Santo Antônio até a cachoeira de Ribeirão, localizada após o Distrito

de Abunã, a mineração do ouro trouxe novas transformações no território e nas

relações entre as pessoas, assim com a emergência de diferentes sentidos para os

lugares.

A permanência de pessoas nos distritos de Jaci-Paraná, Mutum-Paraná e

Abunã se viabilizou devido a abertura da BR 364, em 1960 Com isto, a população

destas localidades passou a depender do movimento criado pela rodovia e no caso

de Abunã permanece assim até os dias atuais. (Mutum-Paraná e Jaci-Paraná

tiveram suas atividades diretamente modificadas pela implantação da usina

Hidrelétrica Jirau). A abertura desta rodovia adequou-se ao planejamento para a

exploração mais efetiva de áreas no Estado de Rondônia, fomentada pela “caravana

da Integração Nacional” (FIORI, 2012).

As atividades econômicas e a exploração dos recursos naturais presentes na

área correspondente a nosso estudo, encontravam-se majoritariamente voltadas ao

setor madeireiro e à pecuária, antes da instalação da UHE Jirau. Estes setores da

produção ganharam destaque a partir dos anos 90 e, continuaram a ser o principal

fator de expansão acelerada em Jaci-Paaná e Mutum-Paraná, intensificando o

desmatamento nestes distritos.

Refletindo sobre estes diferentes momentos do desenrolar histórico, foi

possível pensar nos processos de tecnificação. A tecnificação refere-se à ação de

atores no território usualmente hegemônicos nas disputas econômicas e políticas

que juntamente com o Estado atuam para a apropriação do espaço mediante a

implantação de projetos de engenharia e infraestrutura, possibilitando uma

comunicação mais fluida entre as esferas nacional/global e o local.

Como demostrou o estudo de Cavalcante (2008), sobre as possíveis

consequências deste novo momento de tecnificação do Alto Madeira, com a

construção de duas barragens para a produção de hidroeletricidade,

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[...] as hidrelétricas refletem positivamente para os atores que têm suas atividades em expansão, pois, dão a eles perspectivas para ampliação do capital (grandes pecuaristas, sojicultores e madeireiros). Este cenário exibe uma tendência à substituição da floresta que, somado a tecnificação do território pela combinação das redes de circulação e energia (hidrovia/hidrelétricas), possibilitará a atração de outras atividades relacionadas aos setores capitalizados como a agricultura mecanizada e às industrias condições estruturais. Enquanto que, para moradores antigos, pescadores e garimpeiros terão a interrupção em suas atividades cotidianas (2008, p. 89).

A instalação de Usinas Hidrelétricas é apontada pelo Governo Federal

Brasileiro como a mais adequada, ambientalmente inclusive, para a produção de

energia demandada nacionalmente, dando continuidade ao posicionamento de

governos anteriores ao atual.

1.3.1 O processo de Implementação das UHEs no Rio Madeira

Em meados de 1971 o Ministério de Minas e Energia já havia identificado a

possibilidade de construção de hidrelétricas nas cachoeiras de Santo Antônio e

Teotônio. No entanto, os primeiros estudos realizados na área foram feitos entre os

anos de 2001 e 2002, pela Eletronorte. Estes estudos tiveram como relevância

definir a localização do futuro empreendimento, no entanto o projeto não fora levado

à diante essa época.

A instalação de Usinas Hidrelétricas no rio Madeira foi permeada de

controvérsias de ordem técnica e conflitos envolvendo as populações locais,

atingidas pelas barragens, movimentos sociais como o MAB, o Sindicato dos

Trabalhadores da Construção Civil e os consórcios responsáveis pelo

empreendimento.

O Chamado Complexo do Madeira faz parte do PAC-Programa de Aceleração

do crescimento, lançado pelo Governo Lula. O discurso governamental apresenta o

programa como uma série de investimentos em infraestrutura, aliados a medidas

econômicas, com o objetivo de promover os setores produtivos do país e beneficiar

socialmente a população. No entanto, seus críticos apontam para um movimento de

vantagens e facilitações para o setor privado, que não necessariamente trarão o

"desenvolvimento" das regiões.

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As pesquisas para a produção de energia elétrica usando as águas do rio

Madeira iniciaram ainda na década de 60 do século XX, Os estudos visavam criar

mecanismos para suprir falta de fornecimento energético em território amazônico. A

empresa responsável por estes estudos iniciais foram concentrados na cachoeira de

Samuel, no rio Jamari e nas cachoeiras Santo Antônio, Teotônio e Jirau. Como

sinalizou Nunes (2004), muitas vezes os grandes empreendimentos, por

despertarem uma série de polêmicas e reações negativas de setores da sociedade

devido aos revezes sociais e ambientais de sua implementação, são fragmentados

em projetos de porte menor, para que aos poucos sejam assimilados.

Estas críticas em muito se apoiam na omissão que ocorre referente à

informações que atestam ser o projeto de construção de das Usinas Hidrelétricas no

rio Madeira parte de um empreendimento mais amplo, que tem por objetivo conectar

as áreas na América do Sul consideradas enclaves para o livre escoamento de

suprimentos como a soja e outros commodities para os mercados externos. Neste

sentido além das usinas, existe o projeto de construção de eclusas7 e mais duas

barragens rio a cima, uma binacional e uma totalmente em território boliviano, com a

intenção de tornar esta extensão do rio navegável.

As discussões para o aproveitamento hidrelétrico retornam em 1997, quando

foi apresentado o “Termo de Referência para os Estudos de Impacto Ambiental e

Relatório de Impacto Ambiental” referentes ao projeto de “Construção e Operação

de um complexo Hidrovia/Hidrelétricas no Alto Rio Madeira”. Posteriormente, veio a

ser apresentado um estudo prevendo três barragens à montante de Porto Velho,

capital do estado de Rondônia que foi denominado “Projeto Usinas

Hidrelétricas/Eclusas do Alto Madeira”. As três usinas, instaladas na cachoeira de

Santo Antônio, cachoeira de Jirau e cachoeira Esperanza, sendo esta última em

território boliviano, teriam a capacidade de gerar mais de 7.000 MW de energia. Este

projeto visava principalmente criar condições de navegação para o trecho

encachoeirado do rio, e em segundo plano a geração de energia.

A esta época a UHE Samuel já operava, suprindo as necessidades

energéticas do estado de Rondônia, que vivia um surto de industrialização

7 . [Eclusa] é um dispositivo utilizado nas barragens para vencer o desnível causado pela mesma,

fazendo com que o tráfego das embarcações possa ser realizado. As eclusas das barragens também têm um papel importante no transporte realizado nas hidrovias. Tais construções funcionam como uma espécie de escada ou elevador para embarcações que desejam transpor um desnível num curso de água (http://www2.transportes.gov.br/bit/04-hidro/barra-eclu.html. Acesso em 12/03/2014).

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demandando esta energia. O atendimento energético foi suficiente apesar de sua

construção não ter permitido melhorias na vida das populações que residiram na

área por mais de 30 anos (NUNES, p. 154, 2004). Até os dias atuais muitos destes

atingidos não receberam qualquer tipo de indenização por suas perdas materiais e

imateriais.

Logo após anúncio do Governo Federal de que as Hidrelétricas do Rio

Madeira seriam construídas, atores sociais, a favor e contra o empreendimento, se

mobilizaram. Os que estavam a favor fazendo marketing pesado a respeito das

obras e os opositores, compostos por entidades que eram contra ou que queriam um

posicionamento diferente do Estado, evidenciando o caráter incerto de barrar um rio

com as características do Madeira.

Para demonstrar sua insatisfação, a população local que se mobilizou,

juntamente com ONGs e movimentos sociais articularam fóruns, debates, além da

presença massiva dessa parcela da população na audiência pública sobre as

barragens do Madeira, na qual expressaram argumentos consistentes de oposição

ao projeto. Contudo, a maior porção da população ficou omissa a respeito dos

impactos que seriam causados pela construção das Hidrelétrica de Santo Antônio e

Jirau.

Em junho de 2006 foi enviada ao então Presidente da República, Luiz Inácio

Lula da Silva, por parte das organizações sociais, uma carta se posicionando contra

o represamento e pedindo que o Governo Federal reconsiderasse a ideia de levar

adiante tais obras. Evidentemente isso não ocorreu e as obras continuaram.

Contudo, na carta os opositores ao barramento do Madeira afirmavam que este ato

provocará danos irreversíveis sobre a diversidade do local, afetando a pesca, uma

das principais atividades econômicas da região e que os impactos negativos -

sociais, ambientais e econômicos - de tais obras poderão ser observados ao longo

de todo o curso do Madeira, atingindo até mesmo o rio Amazonas.

No final do ano de 2007, ocorreram novas tentativas de impedir as obras. A

organização Amigos da Terra - Amazônia Brasileira ajuizou no dia 5 de dezembro

uma Ação Civil Pública na Justiça Federal, pedindo a suspensão do leilão da Usina

Hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira. A ação da entidade se fundamentou

no parecer com o qual o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais

Renováveis (IBAMA), justificou a concessão da Licença Prévia, assim como nos

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dados oficiais que comprovam uma explosão de desmatamento na área de

influência.

Paralelamente, no dia 10 de dezembro, militantes de movimentos sociais

ocuparam a sede da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) numa tentativa

de impedir que se realizasse o leilão da Usina de Santo Antônio, uma das peças do

Complexo Madeira. A manifestação foi reprimida pela polícia, resultando na prisão

de sete manifestantes. No final, as duas usinas - Santo Antônio e Jirau - foram

leiloadas, demonstrando que o governo Lula não se interessou em ouvir ou mesmo

considerar as demandas da população que vive nas áreas a serem inundadas,

incluindo ribeirinhos.

Antes mesmo de serem conhecidas como Usinas Hidrelétricas Santo Antônio

e Jirau, já existiam estudos que informavam o quão lucrativo e vantajoso seria um

empreendimento desses em Rondônia. Os estudos de viabilidade ambiental e social

dos empreendimentos não utilizaram os dados de pesquisadores locais, como as

pesquisas executadas no âmbito da Universidade de Rondônia, que conta com

especialista que estudam a calha do rio Madeira há décadas. Da mesma forma os

conhecimentos tradicionais que em muito informam sobre o comportamento

hidrológico, da fauna e outros aspectos fundamentais para uma construção deste

porte não foram consideradas relevantes pelos estudiosos dos empreendimentos.

A responsabilidade de construir este empreendimento ficou para o consórcio

de empresas vencedor do leilão, SAE. A concessionaria Santo Antônio Energia foi

composta pela união das seguintes empresas:

Cemig (10%)

Andrade Gutierrez (12,4%)

Odebrecht Energia (18,6%)

Caixa FIP Amazônia Energia (20%)

Eletrobrás Furnas (39%)

O investimento total será de R$ 9,5 bilhões. Haverá 44 turbinas do tipo bulbo,

cuja operação praticamente não exige a formação de reservatórios, segundo a

informação do consórcio8 (http://www.santoantonioenergia.com.br).

8 Esta é a justificativa do Consócio construtor, que alega redução de danos ambientais. Porém, sabe-

se que a deposição de sedimentos fará com que gradualmente a cota do reservatório se eleve (http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2014/314/barragens-e-inundacoes-no-rio-madeira). Acesso

em 23/06/2014).

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No caso da UHE Jirau o consórcio Energia Sustentável do Brasil (ESBR) é

responsável pela construção, manutenção, operação e venda da energia a ser

gerada pela usina. A empresa, formada pela

GDF Suez (60%)

Eletrosul (20%)

Chesf (20%)

venceu o leilão de concessão organizado pela Aneel em 19 de maio de 2008.

No ano de 2011, a UHE Jirau conseguiu provação, por todos os órgãos

competentes, sem estudos fundamentados consistentes para a ampliação da

capacidade instalada da barragem, passando de 44 para 50 unidades geradoras

(3.750 MW) (http://www.energiasustentaveldobrasil.com.br). Posteriormente a GDF

Suez vendeu uma participação de 20% na usina hidrelétrica de Jirau para a empresa

japonesa Mitsui & Co. Ltd, conforme publicado no jornal Estadão em 13/05/2013. A

Suez permanece a majoritária e atualmente os acionistas são percentualmente

GDF SUEZ (40%),

Eletrosul (20%),

Companhia Hidroelétrica do São Francisco - Chesf (20%) e

Mizha (20%).

O projeto é financiado com capital dos acionistas e recursos do BNDES -

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, por meio de financiamento

direto e repasse do FI-FGTS - Fundo de Investimento do Fundo de Garantia por

Tempo de Serviço e do FNO. Para utilizar o recurso do FGTS, o Governo Federal

teve que mudar a legislação, pois este fundo foi criado especificamente para

beneficiar o trabalhador e não investimentos deste tipo.

Aliando-se ao discurso governamental, as empresas responsáveis por estes

empreendimentos da hidroeletricidade, corroboram a versão de que a energia seria

gerada de forma limpa, com danos reduzidos ao meio ambiente e adicionalmente,

promoveria ações para o desenvolvimento local.

Além das justificativas referentes à necessidade de produção de energia

elétrica para “abastecer o desenvolvimento" brasileiro, devemos também apontar

que as UHEs do Madeira são parte de um conjunto de obras de infraestrutura

condicionadas pela IIRSA, a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional

Sul-Americana.

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No endereço eletrônico do Ministério do Planejamento, a IIRSA é apresentada

como

[...] ações conjuntas para se impulsionar o processo de integração política, econômica e social da América do Sul, incluindo a modernização da infraestrutura regional e ações específicas para estimular a integração e o desenvolvimento de sub-regiões isoladas. (http://www.planejamento.gov.br).

A IIRSA em seu formato para implementação, se moldou de forma final no

encontro entro os 12 países da América do Sul em Brasília, no ano 2000, atendendo

ao chamado do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), da CAF

(Corporação Andina de Fomento) e do FONPLATA (Fundo de Desenvolvimento da

Bacia do Prata).

Os planejadores da IIRSA tem como meta mais audaciosa a integração que

contemple o continente sul-americano de norte a sul, se utilizando do sistema de

transporte hidroviário. Mas para alcançar este objetivo, é necessário desmanchar

alguns entraves naturais (pois para estes planejadores a natureza é um atrapalho

aos desígnios do crescimento econômico), com projetos de infraestrutura que

tornem alguns rios como o Meta (Colômbia) navegáveis. Além disso, será preciso

intervir para que a região do Pantanal brasileiro possibilite a interligação das bacias

Amazônica e do Prata.

Uma alternativa apontada pelo governo brasileiro para facilitar este fluxo de

modificações no espaço que tem como objetivo alcançar a integração do continente

para mais habilmente escoar a produção, especialmente de soja e outros produtos

de pouco valor agregado, é a instalação do Complexo Madeira, que potencializará

diversos projetos previstos pelos eixos de integração Interoceânico Central,

Multimodal do Amazonas e Peru-Brasil-Bolívia (CARVALHO, 2004, p. 45).

Estima-se que, quando construídas as eclusas, este complexo, quando

concluído, viabilizará a operação de uma hidrovia industrial para a navegação de

barcaças, que provavelmente terá a extensão de 4.200 km. Dessa maneira permitirá

o escoamento de mercadorias como soja, madeira e minerais para fora da região

amazônica, a partir dos portos do Atlântico e do Pacífico.

Estas construções, eleitas protagonistas como ações para garantir a produção

de energia elétrica no país, não são descritas em sua total abrangência de

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significado, visto que para além das necessidades nacionais, as usinas hidrelétricas

do Madeira fazem parte de um projeto internacional de conexão do continente sul-

americano. Garzon (2008) denuncia que

O Governo omite que essas usinas fazem parte de um projeto de um corredor hidroviário e rodoviário que, em forma de cunha, interconecta a Amazônia Ocidental aos portos do Pacífico. Trata-se do “Eixo Peru-Brasil-Bolívia”, da Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), concebida pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) como um pacote de empreendimentos viários e energéticos e de aparatos (des) regulatórios, para estabelecer uma nova forma de gestão do território sul-americano, e da Amazônia em particular. O eixo em questão é composto pelos seguintes grupos de projetos: a) dois grupos de interligação rodoviária, incluindo a Rodovia Interoceânica que sai de Assis Brasil no Acre chegando até Juliaca e demais portos do sul do Peru; b) um grupo de interconexão hidroviária e energética, o Complexo Madeira, composto por 4 hidroelétricas, Santo Antonio, Jirau, Ribeirão e Cachuela Esperanza, uma hidrovia rio acima e uma linha de transmissão (GARZON, 2008, p. 40) .

Enquanto há essa omissão de informação, o complexo hidrelétrico do Madeira

é discursivamente indicado como mecanismo de enfrentamento do apagão.

Segundo este argumento, algum impedimento para a construção das usinas no rio

Madeira aumentaria o risco de falta de energia no país, tendo em vista que o Brasil

necessita de 4 mil a 5 mil MW por ano de energia (PEGO & CAMPOS NETO, 2007,

p.6).

Na perspectiva de otimização dos corredores de expansão de redes

econômicas transnacionais, as características geográficas da Amazônia são

visualizadas como entraves para o desenvolvimento e empiricamente vem se

verificando a anulação dos povos e comunidades tradicionais nas tomadas de

decisão no que concerne a agenda de projetos inseridos na IIRSA e a anulação das

formas de viver destas comunidades, que ficam impossibilitadas de acessar os

recursos ambientais por elas utilizados.

1.3.2 A Usina Hidrelétrica Jirau

A Usina Hidrelétrica (UHE) Jirau é, juntamente com a UHE Santo Antônio, um

dos principais projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do

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Governo Federal, com financiamento do BNDES (O Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social).

Este mecanismo de incentivo ao investimento, praticado pelo Estado

Brasileiro, é discursivamente apresentado como estratégia para a implantação de

“projetos essenciais para o desenvolvimento, enquanto aumentam os incentivos

para que a iniciativa privada faça o mesmo”, segundo a secretaria de comunicação

da Presidência da República.

Os críticos rebatem que estas obras em diversos estados do Brasil,

financiadas pelo BNDES priorizam interesses de capital privado internacional, não

necessariamente agregando melhor condição de vida para os locais de sua

ocorrência pois

O BNDES está viabilizando [...] projetos que implicam em um planejamento territorial voltado para a otimização de fluxos de capital, em dinâmica centrífuga e dilapidadora. Não há vinculação ou sinergia com políticas nacionais, sub-regionais ou regionais de integração. Não se exigem metas de desempenho que já estejam contempladas em políticas industriais e tecnológicas que propiciem a difusão da renda e do saber. Em se tratando, em sua grande maioria, de projetos de aproveitamento de recursos naturais contínuos e transfronteiriços, caberia acelerar a construção de espaços supranacionais em que fossem confirmados, em âmbito regional, os princípios do equilíbrio, da justiça social e ambiental, do controle público e da participação, que fossem definidos na escala nacional. A ausência ou insuficiência desses mecanismos indica que prerrogativas e aspirações coletivas estão sendo terceirizadas para grandes grupos econômicos, em geral ramificações de corporações transnacionais (GARZON, 2009, p. 196).

As denúncias feitas a respeito dos projetos não repercutiram com tanto êxito

como a campanha pró-usinas. Após esta grande campanha de marketing feita pelo

Estado por meio das mídias e do setor privado, houve em Porto Velho, capital de

Rondônia um envolvimento de pessoas pró-usinas, onde viu-se outdoors de

propagandas com rostos conhecidos pela sociedade em geral como garotos

propaganda da usina9.

Após a instalação do canteiro de obras, aconteceu a visita do Presidente da

República o então o senhor Luiz Inácio Lula da Silva para dinamizar as obras e por

último, no ano de 2011, a visita da atual Presidente, a Senhora Dilma Rousseff.

9 Ver Anexo 1.

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Estas foram ações programadas para incentivar as obras do Programa de

Aceleração do Crescimento.

Ocorreram quatro audiências públicas para validar os empreendimentos,

tendo participação de diversos segmentos da sociedade. Contudo o número desses

cidadãos participantes das audiências, em contraposição a quantidade de

moradores de Porto Velho, foi extremamente baixo. A maior parte dos participantes

era das comunidades que iam ser impactas, outro grupo menor foi composto por

participantes de ONGs, professores universitários, algumas pessoas envolvidas em

partidos políticos, os políticos e os colaboradores das empresas que tinham que

explicar seu funcionamento.

No que tange às garantias econômicas dos projetos, as usinas constituem a

faixa do setor privado que tem utilizado o project finance para contornar riscos de

soberania (no caso de países com baixa credibilidade, isso costuma ser contornado

pela criação de Sociedade de Propósito Específico – SPE em paraísos fiscais),

vender equipamentos, atuar em projetos bi soberanos ou multissoberanos, criar

infraestrutura no Terceiro Mundo para projetos globais, garantir insumos ou mesmo

atuar em projetos sociais e de redução de desigualdades sociais.

Esta modalidade de financiamento também tem sido utilizada como meio de

contornar bloqueios econômicos com motivações políticas, militares ou étnicas, bem

como de restrições religiosas, como no caso dos instrumentos jurídicos que preveem

juros proibidos nos países fundamentalistas islâmicos.

O project finance é uma forma de engenharia/colaboração financeira

sustentada contratualmente pelo fluxo de caixa de um projeto, servindo como

garantia à referida colaboração os ativos a serem adquiridos e os valores recebíveis

ao longo do projeto. Trata-se de uma modalidade de apoio mais comum a projetos

de grande porte, normalmente para o setor de infraestrutura, tais como usinas,

estradas, projetos de saneamento básico e outros. A técnica de financiamento do

Project Finance é utilizada pelas Sociedades de Propósito Específicas (SPEs), que

captam recursos com a antecipação de rendimentos e ativos, o que pressupõe um

rigoroso enquadramento dos custos, em especial os regulatórios que dizem respeito

ao Estado.

A UHE Jirau está situada no rio Madeira, a 130 km rio a cima da cidade de

Porto Velho, a cerca de 900 km da foz do rio, no estado de Rondônia. A conclusão

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da obra está prevista para 2015, e o consórcio responsável estimou o início de

geração entre 2012 e 2013. Jirau declarou formar uma área de reservatório de 258

km², mas devido a incertezas deste projeto, não temos como afirmar a área de

alagação categoricamente.

Uma questão que devemos destacar foi que ignorando a legislação ambiental

e os processos regulatórios dos órgãos responsáveis, a Energia Sustentável

modificou o eixo da barragem sem que houvesse estudo de impactos prévios. Logo

após o leilão da UHE Jirau, o Consórcio vencedor, Energia Sustentável do Brasil,

anunciou a modificação do eixo da barragem para 9 km a jusante, alegando custos

menores de investimento, redução de danos ambientais e a possibilidade de

antecipação do início da operação da usina.

Apesar de tratar-se de um projeto diferente, com a área de inundação

diferenciada em função das alterações em relação ao projeto inicial, o IBAMA

manteve a licença prévia para a construção da barragem (BERMANN et al, 2010).

Da maneira como compreendemos, o projeto de barramento do rio Madeira

modificará permanentemente o território resultando em consequências materiais e

simbólicas. São estas últimas as que priorizamos neste estudo, pois Entender os

discursos inscritos na experiência dos que viveram um deslocamento por conta da

construção de duas grandes barragens no rio Madeira e investigar a possibilidade de

recriar-se artificialmente um lugar de vivências para a comunidade deslocada de

Mutum-Paraná é o objetivo de nossa pesquisa.

Para melhor compreendermos as experiências de vida passadas neste lugar,

assim como os discursos inscritos a ele, consideramos a importância de

contextualizar o lugar participando de um processo de reorganização territorial.

Em retrospecto, observando o desenrolar do processo de instalação de

barragens no Brasil e no mundo, as comunidades Tradicionais deslocadas por estes

projetos de desenvolvimento, ficaram em situação desvantajosa, perdendo o lugar

que conheciam e que servia para manterem suas relações socioculturais e

econômicas, pois era neste que elas plantavam, criavam animais para venda ou

tinham onde pescar, além de centralizarem os sentidos e simbolismos que

constituem o mundo-vivido expresso no lugar. Entender o lugar para nossa pesquisa

é fundamental na medida em que buscamos compreender se é possível recriar um

lugar que não existe mais em decorrência da construção de uma barragem.

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Atualmente a comunidade de Mutum-Paraná vive em outro lugar,

discursivamente apresentado como benéfico para a vida destas pessoas. Buscamos

compreender se houve a recriação do lugar de vivências para estas pessoas e como

as narrativas destes moradores deslocados exprimem seus sentimentos em relação

ao lugar. De maneira simultânea, queremos entender de que forma os discursos da

empresa que constrói a UHE Jirau contribuíram para entendimentos e percepções a

respeito do lugar.

Diante desta perspectiva, nossa pesquisa visou colaborar para o

entendimento a respeito das consequências subjetivas derivadas de mais esta ação

de intervenção no Alto Madeira, tendo como escopo o lugar para onde as pessoas

de Mutum-Paraná foram deslocadas por seu distrito estar localizado na área de

reservatório da UHE Jirau. Como já expomos, este Distrito se estabeleceu como

consequência da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, por um

agregado de pessoas em torno da parada de abastecimento da ferrovia e que

manteve-se com população formada por pequenos produtores rurais, criação de

animais e pesca.

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CAPÍTULO 2: COMPREENDENDO O LUGAR MEDIANTE O DISCURSO

STOLERMAN, Paula. Bricolagem com capacetes de operários. Local: Residência em Nova Mutum, 2012.

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2.1 O discurso geográfico: algumas abordagens sobre ‘lugar’

Para que a formalização da Geografia enquanto disciplina ocorresse foi

necessário uma convergência de situações histórias, mais especificamente a

expansão do colonialismo europeu, a partir do século XIX. Inicialmente os estudos

estavam concentrados nos relatos de viajantes, especialmente os que buscavam

conhecer os territórios a serem conquistados ou recém conquistados pelos

europeus. Inicialmente a Geografia ocupou-se do estudo dos lugares enquanto a

descrição destes pedaços da terra a serem conquistados, com suas peculiaridades,

aspectos físicos, assim como uma acurada descrição das populações locais que ali

residiam, suas formas culturais e modos de vida.

As condições para o surgimento da Geografia organizada como disciplina já

estavam postas no início do século XIX. Antes mesmo disso, as grandes

navegações promoveram o conhecimento de terras localizadas em pontos

longínquos do globo e articularam o desenvolvimento comercial conectando estas

partes distantes da Terra. A representação das terras por meio de mapas foi

amplamente desenvolvida no lastro de fundamentos filosóficos racionalistas

(MORAES, 2002), pautados no pensamento positivista para a explicação científica.

A Geografia como disciplina se configurou neste momento como ciência

auxiliar no processo de dominação colonial que era específico da época de sua

fundação. Isso se dava por meio da colonização já explorada e disposta em quase

todo globo, no entanto a geografia ainda não detinha as diversas especificidades

que lhes são tais como: geografia cultural, humanista, geografia da religião, estudos

de Gênero e este grande leque de possibilidade que se abriu a partir da última

década do século XX (RELPH, 2012).

Inicialmente, a sistematização da Geografia enquanto disciplina concentrou-

se na Alemanha e atribuiu-se a isto a atuação de dois exploradores autores desta

nacionalidade10: Humboldt e Ritter. Estes foram os primeiros a delimitar teorias

geográficas e elaborar metodologias de interpretação.

Seguindo os passos de seus mestres, o primeiro pensador a dedicar-se aos

estudos geográficos que se ocuparam em entender aspectos da vida humana,

10

Roberto de Moraes é um dos autores que dispõe essa titularidade aos respectivos autores.

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relacionando-os aos aspectos das outras formas de vida na terra, ao ambiente

circundante, foi Friedrich Hatzel (1844-1904). O marco neste sentido foi seu trabalho

intitulado Antropogeografia. Este autor trouxe a leitura diferencial a respeito do

homem para a Geografia, na medida em que considerou que os aspectos

ambientais influenciavam os comportamentos, porém a força mais expressiva a

influenciar a humanidade era o desenrolar histórico.

Adiante disso, a geografia pôde apropriar-se do conjunto de teorias e métodos

já formulados por outras ciências naturais para elaborar suas próprias teorias e

metodologias. Esse diálogo, presente desde os primórdios da construção do

pensamento geográfico, nos proporcionou, no cotidiano, a sustentação desta

pesquisa.

No entanto, a fundamentação da Geografia enquanto disciplina científica não

garantiu a consolidação de apenas uma perspectiva para a abordagem do espaço.

Os geógrafos por vezes priorizavam “as relações entre os homens e o meio, outros

analisam as situações; alguns são fascinados pelas estruturas paisagísticas e

regionais; um último grupo mede o impacto da distância nas relações sociais”

(CLAVAL, 2011, p. 219).

A congruência destas abordagens se referia ao caráter externo do objeto

geográfico. Nestas quatro perspectivas assinaladas para a análise do geógrafo, não

era permitido refletir a respeito da interação entre o pesquisador e o conteúdo

pesquisado, elucidando as possibilidades de uma influência mútua, que repercutia

em diferentes experiências e impressões. Não foi possível refletir por uma

perspectiva subjetiva enquanto a influência de pressupostos positivistas

predominava epistemologicamente na Geografia.

O que ocorreu é que apesar da prevalência da análise que considerava

apenas o exterior, os geógrafos, assim como cientistas de outras áreas das ciências

humanas, não logravam permanecer indiferentes ao que viam em suas pesquisas,

às impressões que surgiam em decorrência do contato com diferentes grupos

sociais, paisagens e lugares. Era necessário partir-se para outra acepção para lugar,

uma interpretação que ampliasse a dimensão da disciplina geográfica.

Foi a partir da década de 70 do século passado que se intensificou a

preocupação dos geógrafos com os lugares segundo um viés fenomenológico,

apesar de “alguns sinais premonitórios” (CLAVAL, 2011, p. 220) estarem a

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disposição a partir da década de 195011. Os estudos nesta perspectiva buscam

compreender as experiências vividas que relacionam e ligam o homem ao lugar e

moldam os espaços com significado.

Antes disso porém,

Os positivistas argumentaram que [...] o espaço é uma rede tridimensional com coordenadas estendendo-se infinitamente ao longo de cada um dos seus eixos, cada ponto coordenado iguala em sua posição e comprimentos iguais representando iguais distancias.

No entanto, para a perspectiva fenomenológica,

[...] o espaço é um conjunto continuo dinâmico, no qual o experimentador vive, desloca-se e busca um significado. É um horizonte vivido ao longo do qual as coisas e as pessoas são percebidas e valorizadas (CLAVAL, 2011, p. 221).

Seguindo a Geografia Humanística buscamos autores que promoveram o

aprofundamento e refinamento da compreensão de questões que foram explanadas

no percurso do desenvolvimento desta perspectiva da ciência geográfica. Como

exposto por Oswaldo Bueno Amorim Filho (2008, p. 2) em seu texto, a atuação na

pesquisa em geografia humanista o levou a observar que “para os estudiosos da

história do pensamento geográfico, apesar de preservarem suas especificidades,

essas abordagens humanistas acabaram por se aproximar, naturalmente, da nova

geografia cultural”.

Nossa pesquisa busca a abordagem das subjetividades humanas, visando

compreender o mundo simbólico como fundamental para compreensão da

percepção humana a respeito do lugar e da produção do espaço. A cultura então,

para os estudos geográficos atuais, voltou-se aos estudos que pretendem

compreender o que é experienciado de forma individual ou coletiva, assim como as

formas de representação pelas quais os grupos humanos atribuem significados ao

espaço e aos lugares onde vivem.

Neste sentido, buscamos estas referências pela necessidade de

compreendermos como ocorreu a experiência de recriação do lugar para as pessoas

deslocadas pela UHE Jirau para Nova Mutum, onde a comunidade de Mutum-

Paraná, retirada de seu lugar de vivencias, constrói uma nova experiência.

11

Eric Dardel publicou “O homem e a Terra” em 1952 no entanto esta obra foi esquecida e a ‘redescoberta’ deste livro ocorreu apenas na década de 1980.

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Buscando pensar em termos de construção de significado, de

representações, atentamos para a maneira de conceber as formas espaciais que se

diferencia da forma cartesiana, de espaço absoluto, espaço onde se dispõe

objetivamente os seres, de forma palpável e mensurável.

Pensar em um espaço vivido é uma construção conceitual carregada de

influências do pensamento fenomenológico. A fenomenologia enquanto movimento

filosófico tem seu nascimento, em fins do século XIX e início do XX, atrelado à uma

resposta às premissas positivistas em voga naqueles tempos (CAPEL, p. 420,

1981). A Geografia

[...] as relações do homem com o espaço não constituem um feixe de dados imanentes ou inatos; combinam-se numa experiência vivida que, de acordo com as idades da vida, se forma, se estrutura e se desfaz (FRÉMONT, 1980, p. 23).

Em Geografia, diversos são os autores que se ocupam em análises a respeito

do lugar. As interpretações variam de autor para autor, dependendo da linha teórica

utilizada por cada um. Como sabemos, o marco para a definição da disciplina

Geográfica, é considerado o século XIX, com Humboldt e Ritter e para a constituição

da Geografia foi necessário valer-se de uma pluralidade interpretativa. Neste sentido

os lugares apareciam nas narrativas descritivas, que evidenciavam as características

peculiares destes, visitados pelos viajantes e andarilhos, assim como as

características que garantiam identidade a seus povos e culturas.

No decorrer do século passado, mais expressivamente a partir na década de

50, um grupo de geógrafos buscou universalizar as proposições para as

interpretações em geografia, buscando metodologias mais afeitas ao que foi

chamado caráter cientificista e/ou tecnológico (AMORIM FILHO, 2006). E assim

também foram buscadas tentativas de se interpretar os lugres na esteira destas

prerrogativas epistemológicas.

No entanto, mesmo tendo a predominância de determinada corrente

interpretativa em diferentes períodos de tempo, a disciplina geográfica permaneceu

renovando sua abrangência interpretativa e garantindo a pluralidade das

possibilidades para compreendermos a categoria de lugar.

Diante do exposto, em nossa pesquisa que envolve uma comunidade

diretamente exposta às consequências negativas geradas pela construção de uma

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Usina Hidrelétrica, procuramos autores que buscavam compreender a constituição

de lugar. Nesta empreitada, encontramos algumas divergências e algumas

convergências interpretativas.

No caso de Carlos, em sua obra “O lugar no/do mundo” (1996), a autora

evidencia o caráter de lugar como a instituição que garante a reprodução das trocas

sociais e econômicas. O lugar concentra a possibilidade de compreender o

fenômeno da globalização em suas consequências para os Estados e as culturas

dos grupos sociais que vivenciam este processo, dando ênfase ao processo

histórico de urbanização como consequência da mundialização do capital.

Nas palavras da autora

A produção espacial realiza-se no plano do cotidiano e aparece nas formas de apropriação, utilização e ocupação de um determinado lugar, num momento específico e, revela-se pelo uso como produto da divisão social e técnica do trabalho que produz uma morfologia espacial fragmentada e hierarquizada. Uma vez que cada sujeito se situa num espaço, o lugar permite pensar o viver, o habitar, o trabalho, o lazer enquanto situações vividas, revelando, no nível do cotidiano, os conflitos do mundo moderno. Deste modo a análise do lugar se revela — em sua simultaneidade e multiplicidade de espaços sociais que se justapõem e interpõem — no cotidiano com suas situações de conflito e que se reproduz, hoje, anunciando a constituição da sociedade urbana a partir do estabelecimento do mundial. O lugar é o mundo do vivido, é onde, se formulam os problemas da produção no sentido amplo, isto é, o modo onde em que é produzida a existência social dos seres humanos. (CARLOS, 1999, p. 20)

A UHE Jirau pode ser observada como a materialização de um projeto

globalizante dos lugares, expresso por uma edificação da engenharia civil que atua

como representante do capital mundializado, na medida em que o consórcio

construtor é formado majoritariamente por uma empresa transnacional de capital

inglês/belga, a GDF Suez. Neste sentido as análises da professora Carlos seriam de

grande valia no entanto, estes aspectos relacionados à mundialização dos capitais e

transnacionalização das empresas não concerne ao nosso trabalho. Nosso interesse

vai ao encontro dos mundos particulares dos indivíduos, sendo o lugar a

manifestação desta intimidade construída.

Milton Santos (1988, 2002, 2007, 2009), um dos maiores geógrafos

brasileiros, reconhecido internacionalmente pela relevância teórica de suas obras,

que contribuíram para a compreensão do espaço como articulação entre natureza e

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mundo social, modificado em decorrência da produção e reprodução social, (usando

o termo reprodução em seu sentido econômico), dentro de uma proposta marxista

de análise, priorizou a leitura dos lugares, especialmente em suas derradeiras obras,

como a menor das escalas possíveis para a análise do espaço, este constituído pelo

mundo social, suas técnicas e simbolizações.

O espaço humano, aliás, revela claramente, e ao mesmo tempo, o passado, o presente e o futuro. Passado e presente nele se dão as mãos, através de um funcionamento sincrônico que elimina a pseudocontradição entre história e estrutura. O futuro, para que se possa realizar, aproveita as condições preexistentes. Quanto à noção de escala, ela se impõe porque a Natureza não se apresenta, jamais, de forma homogênea e deixa perceber suas frações: território nacional, região, lugar. Sem a noção de escala e sua base epistemológica que tanto deve à ideia de tempo, não saberíamos o que fazer diante do todo social espacializado e que nos chega todavia em forma fraccionada, como sub-espaços. (SANTOS, 1988, p. 13)

O autor também considera que para a compreensão dos lugares, devemos

atrelar o conjunto de técnicas que a humanidade desenvolveu socialmente em um

determinado momento histórico, em certa área. Não entenderemos o lugar, sem a

consideração do desenvolvimento das forças produtivas que levaram aquela

sociedade à determinado estado de especialização da divisão do trabalho. Nestes

termos, vemos a ênfase que Milton Santos deu à leitura materialista histórica dos

processos sociais relacionando-os à condição de entendimento do que seja o

Espaço para a disciplina Geográfica.

Em sua luta pela maior humanização do processo de globalização, exposta

na obra “Por uma outra globalização” (1999), Milton Santos reflete sobre as relações

sociais deterioradas pela intensificação da exploração do trabalho nas sociedades

capitalistas. No entanto, o mesmo autor promove a esperança em dias melhores,

pois na medida em que a exclusão é globalizada, também se globalizam as lutas

sociais, a resistência dos grupos subalternos, materializadas nos lugares.

A resistência das identidades específicas de grupos sociais menos

favorecidos no contexto das trocas econômicas, e menos representados na esfera

dos planos decisórios das nações, que muitas vezes priorizam os ganhos

econômicos em detrimento de seus modos de vida, aparecem deste modo, como

potenciais organizadores de um novo modelo de globalização.

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Para Milton Santos, o espaço deve ser compreendido dentro de um contínuo

processo que acompanha a modificação no decorrer do tempo histórico, e que ao

mesmo tempo garante a existência de tempos diferentes num mesmo espaço, na

medida em que é possível verificarmos técnicas humanas contemporâneas

convivendo com as que foram elaboradas em tempos longínquos da história

humana.

A multiplicidade de lugares, para Milton Santos, agora é ameaçada pela

imposição dos fluxos de informação e capital que circula na arena global, porém,

também pode significar a garantia da criação de redes que fomentem a resistência

dos grupos mais fracos na correlação de forças entre a os donos da riqueza

econômica e as garantias sociais.

Não negamos a importância da obra deste grande autor no entanto a

centralidade que este atribui às relações econômicas de troca entre as pessoas, os

grupos sociais, os Estados, territórios e lugares, não colabora em nossa análise, na

medida em que vamos buscar a criação dos lugares mediante o que caracteriza a

subjetividade da comunidade de Mutum Paraná, deslocada compulsoriamente para

Nova Mutum, espécie de Company town12, cidade construída pelo consórcio Energia

Sustentável do Brasil.

As características locacionais dos lugares, latitude e longitude, são relevantes

para determinadas linhas de pesquisa em Geografia, porém em nossa pesquisa, não

nos apegamos exatamente aos pontos e referências cartográficas, relacionados a

visão cartesiana. Estes pontos garantem reconhecer o lugar devido posicionamento

em determinado espaço, contabilizado em extensão de área. Em termos de

localização, Mutum-Paraná e Nova Mutum diferem em distanciamento físico, porém

buscamos compreender a constituição dos lugares sempre tendo como referência o

mundo humano, dos sentimentos, ações e representações. Neste sentido, cabe a

reflexão de Dardel (2011) a respeito da interioridade dos saberes geográficos:

Na fronteira entre o mundo material, onde se insere a atividade humana, e o mundo imaginário, abrindo seu conteúdo simbólico à liberdade do espírito, nós reencontramos aqui uma geografia interior, primitiva, em que a espacialidade original e a mobilidade profunda do

12

[...] as estruturações das company towns, como modelos aplicados, significam a reconstrução do

fenômeno urbano por meio da negação das estruturas existentes (cidades “espontâneas”) e fundação de novas estruturas, voltando seus objetivos e “conteúdos” para a viabilização econômica dos empreendimentos a que estão vinculadas, utilizando a “forma” urbana, por meio do projeto, enquanto um dos instrumentos deste fim (RODRIGUES, 2002, p. 117).

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homem designam as direções, traçam os caminhos para um outro mundo; a leveza se liberta dos pensadores para se elevar aos cumes. A geografia não implica somente no reconhecimento da realidade em sua materialidade, ela se conquista como técnica de irrealização, sobre a própria realidade (DARDEL, 2011, p. 5).

Convergindo interesses na geografia como pressuposto da própria essência

humana, aquela que faz a ponte entre a interioridade e exterioridade da criação,

buscamos os autores que auxiliassem nas interpretações, na medida em que

propuseram leituras humanistas para a compreensão da categoria de análise

geográfica lugar. Quisemos entender a possibilidade de recriação de um lugar que

desapareceu em decorrência da formação do reservatório da UHE Jirau.

Um aspecto que deve ser levado em consideração é que o lugar que

buscamos compreender é definido pelas experiências humanas vividas. É um lugar

que relaciona-se ao conjunto de sensações, sentidos e significados compartilhados

por um determinado indivíduo ou grupo social. Em nosso trabalho, o lugar pode ser

conhecido pela perspectiva fenomenológica da Geografia.

Até aproximadamente a década de cinquenta, devido o predomínio na ciência

geográfica dos pressupostos positivistas, não havia sentido em fazer

questionamentos a respeito das especificidades de um lugar como o conjunto

indissociável entre as experiências de povos e comunidade e as relações

emocionais ocorridas no decorrer da história. Neste sentido

A fenomenologia transformou as perspectivas dos geógrafos que a descobrem, porque lhes revela que os lugares não são pontos anônimos num espaço neutro; a Terra não é uma superfície geométrica. É feita de meios físicos onde a vida está por toda parte presente e os homens moldaram à sua imagem. (CLAVAL, 2011, p. 222)

Paul Claval (2011) expõe que as possibilidades interpretativas gestadas com

a emergência de geógrafos que buscavam compreender o ambiente, os espaços e

lugares mediante uma perspectiva fenomenológica, são consequências de um novo

olhar geográfico. Este olhar passava a também se direcionar para o interior do

pesquisador.

Desta forma, os geógrafos afeitos à investigação fenomenológica, passaram a

ocupar-se dos sentimentos pelos lugares, os lugares que transmitem tranquilidade,

medo, ansiedade, conforto. Estes lugares são estudados por meio de uma

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observação que ocorre como dupla seta, sendo uma apontando para fora, o

ambiente externo e outra apontada para dentro, para as sensações e emoções

decorrentes daquela vivência no lugar.

O geógrafo promove a busca fenomenológica pelo lugar quando consegue

descrever as percepções que impregnam este conjunto de objetos materializados e

simbólicos, nos termos dos fluxos de impressões que chegam até ele. Neste sentido,

os lugares construídos pelas experiências vividas correspondem ao que

repercutiram no humano como sensação, emoção. Por isso a necessidade de o

geógrafo estar aberto às suas experiências de conexão com lugares.

Os nossos sentidos falam-nos dos lugares, do encantamento que há nos jogos da luz e na fragrância dos seus perfumes. Esses elementos de decoração encontram-se intimamente associados, nas nossas lembranças, àquilo que nós tivemos experimentado, descoberto, vivido. (CLAVAL, 2011, p. 228)

Edward C. Relph, em seu trabalho não muito extenso, mas de grande

densidade teórica, “As bases fenomenológicas da Geografia”, inicia o texto com a

afirmação de que a “fenomenologia tem a ver com princípios, com as origens do

significado e da experiência.” (1979, p. 1) Desta maneira, o autor propõe analisar as

categorias geográficas espaço, paisagem, lugar, como produtos de nossas

experiências sensoriais, emocionais.

O lugar que nos propomos a abordar nesta pesquisa foi demonstrado nas

narrativas de pessoas deslocadas devido à construção da barragem no rio Madeira.

O lugar da morada anterior refere-se às experiências partilhadas por estas pessoas.

Como afirma uma colaboradora: “Tudo é diferente de lá. Lá era um lugar que era

sem asfalto, sem nada, mas era um lugar pra mim era melhor” (Dona Teta, 2012).

Desta forma, podemos perceber que o que define o lugar neste caso são laços

subjetivos, que traçam o interior com o exterior.

O lugar que buscamos compreender, desta maneira, relaciona-se ao mundo-

vivido. Os estudos sobre o mundo-vivido, de uma perspectiva fenomenológica, foram

iniciados, segundo Relph (1979), com o filósofo Edmund Husserl, que criticou

firmemente os pressupostos positivistas que dominavam a investigação científica de

sua época. Este autor pretendeu fazer um retorno à origem das coisas mesmas.

Conforme a crítica de Husserl, a ciência tinha se distanciado de tal forma do

processo de apreensão dos aspectos do mundo experienciado pelo ser humano,

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que já não era mais evidente a característica inicial de seus pressupostos,

embasados no mundo-vivido. O pensamento científico, apesar ter iniciado em uma

busca para desvendar os processos observados e percebidos no mundo-vivido, no

momento da crítica de Husserl, estava criando seu próprio parâmetro de

entendimento, distanciando-se de sua proposição original e buscando submeter a

ideia de mundo-vivido a este novo pressuposto criado posteriormente.

Podemos ilustrar a crítica de Husserl como a asseveração de que a ciência

passou a agir como uma espécie de Frankenstein, que após ser despertado por seu

criador, buscava destruí-lo. Esta descontinuidade entre ciência e suas origens no

mundo-vivido foi contestada pelo entendimento de que algumas realidades devem

ser antes experienciadas interiormente para serem conhecidas exteriormente.

O lugar das experiências dos atingidos pela UHE Jirau é entendido mediante

sua descrição fundada nos aspectos observados e percebidos do mundo-vivido

destas pessoas, levando também em consideração nossas percepções de pesquisa.

O mundo-vivido refere-se “àquele mundo de ambiguidades, comprometimentos e

significados no qual estamos inextricavelmente envolvidos em nossas vidas diárias,

mas o qual tomamos por muito certo (RELPH, 1979, p. 2-3).”

O que buscamos entender por lugar foi construído pelas experiências vividas

dos moradores de Nova Mutum e tentar perceber se a recomposição de moradia

proposta pelo consórcio ESBR atendeu às necessidades materiais de seus antigos

moradores mas também ao lugar construído pelos significados e relações

emocionais que ali foram erguidos pelos anos de moradia.

Neste sentido é que buscamos analisar a recriação do lugar: mediante os

discursos estudados, tanto os que têm sua representação pelo consórcio como o

discurso dos deslocados, presente em suas narrativas de vida, que chagaram por

meio das entrevistas. Temos que levar em conta o que se apresenta como

memórias, pois estas contém vivências que criaram o lugar em Mutum-Paraná, e os

depoimentos da atualidade que trazem as pistas para percebermos se as relações

de convívio, sentimentos de intimidade, de pertencimento, foram recriados neste

novo local.

Para a pesquisa, a recriação do lugar sempre está em referência à criação

deste. Tomando o sentido da palavra criar, entende-se criar um lugar mediante as

relações humanas e sentimento presentes naquele convívio e que estão ligadas ao

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processo de moldar aquele espaço mais amplo em um lugar mais íntimo (TUAN,

1977). Criar um lugar significa dar a existência para este pelas experiências vividas

e recriá-lo seria a possibilidade de experimentar esse processo novamente.

Tuan (1977), em seu ensaio sobre Espaço e Lugar, prioriza pensar estas

temáticas geográficas no plano experiencial. Para este autor, numa perspectiva das

experiências humanas, lugar define-se em relação a densidade de relações íntimas

que são construídas, compartilhadas e simbolizadas. Em suas palavras, nossa

proximidade com o lugar, o lugar da experiência, permite sua diferenciação do

espaço, mais amplo e abstrato. Como afirma:

Na experiência, o significado de espaço frequentemente se funde com o de lugar. “espaço” é mais abstrato que “lugar”. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. (1977, p. 6)

O lugar dos moradores de Nova Mutum, ao qual nos remetemos nesta

pesquisa é referendado pela proposta interpretativa de Yi Fu Tuan, como

exemplificamos utilizando o seguinte trecho narrativo:

[...] tinha gente lá que viveu vinte e cinco anos, trinta anos, criou os filhos tudinho ali. Era uma terra pequena, que não valia muito, mas pra pessoa tinha um valor sentimental muito grande. Criou filho, criou neto lá (Nádia, 2012).

Esta narradora trouxe em sua fala o discurso sobre o lugar do sentimento, o

lugar que foi constituído pelo tempo vivenciado pelos moradores do Mutum Paraná.

Tuan, logo no início de seu texto “Espaço e Lugar” (1977), reproduz uma

conversa entre dois físicos de grande prestígio, que ao visitarem o castelo que

serviu de morada para Hamlet, comentam entre si o enorme diferencial que esta

informação traz para as sensações experienciadas no local. Os dois cientistas fazem

a reflexão de que não trata-se de uma impressão a respeito de um conjunto

ordenado de ferragens e blocos de pedra, mas todo o simbolismo atrelado ao local,

que representa para a cultura ocidental.

O lugar que estudamos é um lugar da experiência e do mundo vivido. Tuan

define o termo experiência como o processo necessário para o entendimento e a

ação no mundo e sociedade. No entanto, as experiências são marcantes o suficiente

quando as emoções transbordam em sensação, completando o contexto

experiencial.

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Experiência é um termo que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira indireta de simbolização. As emoções dão colorido a toda experiência humana, incluindo os níveis mais altos de pensamento. (1977, p. 9)

Para compreendermos o lugar da comunidade de Nova Mutum, é necessário

buscarmos os sentimentos que o permeiam. Os sentimentos de afinidade e repulsa,

os de intimidade e exclusão. O conforto do tipo de edificações, com suas

características particulares, em conjunto com as adversidades surpreendentes que

podem gerar os mais variados sentimentos. Estes sentimentos foram edificados pela

convivência do grupo em um ambiente que congregava as formas naturais com as

atividades cotidianas. Segundo Berger (1985), a vida cotidiana apresenta-se como

uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para

eles na medida em que forma um mundo coerente.

A vida cotidiana, o mundo-vivido, contribuem de forma conjugada para o

entendimento do lugar, apresentando à nossa observação os sentimentos,

sensações e experiências que moldaram as intimidades constitutivas do lugar. Para

Tuan (1977) “quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar”, por isso a

necessidade de estar em contato com esta comunidade deslocada, interpretando as

narrativas dos moradores de Nova Mutum, e assim perceber as sensações desta

mudança imposta pela decisão do Estado brasileiro.

Oliveira (2012), em suas reflexões sobre “o sentido de lugar”, também bebeu

na fonte desta clássica obra de Yi Fu Tuan. Ao comentar o livro, trazendo para sua

discussão, que busca ampliar as possibilidades dos estudos do lugar em uma

dimensão fenomenológica, contribui para pensarmos o lugar dos antigos moradores

de Mutum-Paraná e as possibilidades de recriação do lugar. A autora nos atenta

para a necessidade de atentarmos para a necessidade de relacionar o

espaço/lugar com o tempo, pois em três momentos este se torna aqueles: tempo como movimento, sendo lugar como pausa; afeição ao lugar como função do tempo; e lugar como tempo tornado visível ou lugar como lembrança. (OLIVEIRA, 2012, p. 12)

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Estas possibilidades para pensarmos o lugar nos permitem concordar com as

afirmações de Oliveira (2012), que resumidamente define o lugar como um

aglomerado de significados organizados em torno de um tempo imóvel e de um

tempo de movimento incessante. Esta sucessão de tempos com significado dá

sentido ao lugar enquanto tal. Em nossa pesquisa, nos deparamos com as

narrativas dos atingidos por barragens e nelas podemos verificar a congruência de

dois tempos, o passado e presente. Por isso necessitamos incluir a categoria tempo

como constituinte da categoria lugar.

Um aspecto de lugares que Tuan (1985) também evidencia, mas desta vez

em um artigo intitulado “Geografia Humanista” é a diversidade de possibilidades de

mensuração de um lugar. Deste modo, o autor nos dá mais recursos que contribuem

para o entendimento sobre o lugar. O que faz o lugar ter sua importância para os

moradores de Nova Mutum é conter conexão entre as vidas construídas e as formas

circundantes que materializavam os significados atribuídos pelas pessoas.

Os lugares humanos variam grandemente em tamanho. Uma poltrona perto da lareira é um lugar, mas também o é um estado-nação. Como um mero espaço se torna um lugar intensamente humano é uma tarefa para o geógrafo humanista; para tanto, ele apela a interesses distintamente humanísticos, como a natureza da experiência, a qualidade da ligação emocional aos objetos físicos, as funções dos conceitos e símbolos na criação da identidade do lugar. (TUAN, 1985, p. 149)

Cabe ao geógrafo em sua pesquisa como uma perspectiva humanista atentar

para o dimensionamento dos lugares e as peculiaridades das pessoas que ali vivem

ou viveram. Pois num contexto fenomenológico o significado atribuído por cada um

ao lugar é que dará sentido a ele. Em vista deste entendimento, as emoções e

sensações descritas por nossos entrevistados teve crucial importância para a

compreensão do que é este lugar e a recriação do lugar.

2.2 O percurso metodológico trilhado para desvendar o sentido de ‘lugar’ na

pesquisa

Por tratarmos do lugar que condensa a experiência, a sensação, o mundo-

vivido, a centralidade dos sentidos, a transmissão e troca comunicacional e de

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significados, desenvolvemos a pesquisa numa abordagem fenomenológica. A

escolha do método refere-se ao modo de pensar que orienta a investigação

científica, definindo a forma como o pesquisador irá abordar o que será estudado e

como poderá escolher as metodologias que melhor atendam a maneira de

compreender escolhido. Devido à isso

[...] o método não pode ser abordado do ponto de vista disciplinar, mas como instrumento intelectual e racional que possibilite a apreensão da realidade objetiva pelo investigador, quando este pretende fazer uma leitura dessa realidade e estabelecer verdades cientificas para sua interpretação (SPOSITO, 2004, p. 23)

A linha de pensamento que guiou a construção da pesquisa referiu-se ao

método fenomenológico. Esta escolha deveu-se por ser “a fenomenologia uma

filosofia do subjetivo, pois é ‘fundamental compreender o peso que a fenomenologia

deu ao ‘eu-pensante’, não no sentido cartesiano, mas como intencionalidade,

desvelar-se do humano, tendência e apelo do ser’” (SPOSITO, 2004, p.36).

Desta forma, por buscarmos a compreensão do que está no nível subjetivo

dos indivíduos que sofreram o processo de deslocamento compulsório, e atualmente

residem em Nova Mutum, compreendemos que o rumo a seguir em termos do

processo intelectual, era o do caminho da fenomenologia.

A fenomenologia é o norte intelectual, a direção que deve ser seguida na

pesquisa para galgarmos alguma compreensão sobre o que é o lugar para essas

pessoas e como foi recriado, ou se isso não ocorreu. Mas, para empreendermos a

pesquisa, procedemos à sequencia metodológica que a seguir vamos descrever.

Partimos inicialmente para as visitas à comunidade. Este processo na

verdade encaramos como uma retomada de contato com os sujeitos abordados pois

algumas pessoas já nos eram familiares por terem feito parte de outra pesquisa,

enquanto foi realizado trabalho de campo no âmbito da graduação.

A interação entre o pesquisador/pesquisado buscou o maior respeito possível

ao colaborador que, de forma confidente, dedicou parte de seu precioso tempo para

compartilhar suas experiências e memórias conosco, nesta pesquisa. Consideramos

importante salientar este aspecto do caminho metodológico pois compreendemos

que em se tratando de uma investigação de base fenomenológica, não cabe em

absoluto o tipo de distanciamento característico de outros modelos de investigação,

com a total separação sujeito/objeto. No nosso caso tratamos de compreender

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narrativas que nos chegaram pela relação entre sujeito pesquisador e sujeito

pesquisado.

Com esta perspectiva, o trabalho de campo realizado nos trouxe experiências

intensas emocionais por ambos os lados, tanto o do pesquisador, quando o dos

narradores. Desse modo, cremos ter atingido um nível de interpretação gerado pela

interação pesquisador/entrevistado, pois vivenciamos situações como o que Pierre

Bourdieu chamou de “auto-análise provocada e acompanhada” (BOURDIEU, 2011,

p. 704-705), onde

[...] a pessoa interrogada aproveitava a ocasião que lhe tinha sido dada de ser interrogada sobre ela mesma e da licitação ou da solicitação que lhe asseguravam nossas perguntas ou nossas sugestões (sempre abertas e múltiplas e frequentemente reduzidas a uma atenção silenciosa) para realizar um trabalho de explicitação, gratificante e doloroso ao mesmo tempo, e para enunciar, às vezes com uma extraordinária intensidade expressiva, experiências e reflexões há muito reservadas ou reprimidas.

O trabalho de campo ocorreu como visitação periódica a Nova Mutum iniciado

em Novembro de 2011, ocorrendo mais frequentemente no ano de 2012, quando

foram feitas as entrevistas e de forma mais esporádica no ano de 2013,

especificamente no primeiro semestre deste ano, onde fotografamos. Não

consideramos necessário passar períodos prolongados na cidade de Nova Mutum,

pois nossa intenção não foi construir interpretações baseadas em uma experiência

etnográfica, mas sim construir interpretações à respeito do lugar, a partir do narrado

pelos colaboradores desta pesquisa.

[...] pressuposto de que a pesquisa de campo é instrumento necessário e indispensável para a realização de investigações de qualquer natureza e, ao se tratar da pesquisa de campo geográfica, a sua importância é ampliada, pois é, neste momento, que o pesquisador entra em contato direto com a realidade a ser estudada, interagindo com seus sujeitos/objetos (sic), obtendo as condições para entender como os entrevistados se percebem, estabelecendo uma análise coerente, ao diferenciar a sua percepção sobre os entrevistados, respeitando, principalmente, como estes se concebem, inseridos em suas próprias dinâmicas de vida e trabalho. (Pessôa & Santos, 2009, p.123-124)

O trabalho de campo consistiu em dez visitas, aonde chegávamos ao local da

pesquisa, Nova Mutum, aproximadamente às nove horas da manhã depois de

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viagem em um ônibus que faz o trajeto Porto Velho-Guajará Mirim. O ônibus saindo

de Porto Velho às seis e meia da manhã. Após aproximadamente duas horas e

meia, chegamos à Nova Mutum. O retorno ficava para o fim da tarde, em torno das

cinco horas. Não estabelecemos uma periodicidade fixa pois o que nos interessava

era estabelecer as relações com os sujeitos presentes nesta pesquisa e suas

percepções e sentimentos expressos no discurso. O lugar compreendido como um

discurso sobre o lugar.

Escolhemos as narrativas mais significativas para expressar o processo de

atual esfacelamento do lugar onde viveram as pessoas presentes em nosso

trabalho. A maior significância referiu-se à disposição dos sujeitos em colaborar com

a pesquisa pois a fluidez da fala foi estabelecida pela vontade subjetiva de cada um

dos colaboradores narradores, que gentilmente cederam parte mais expressiva do

tempo de seus afazeres cotidianos para a colaboração com esta pesquisa. Nestes

termos, elencamos três entrevistas em sua íntegra para compor o trabalho. Temos

um total de dez narrativas, mas consideramos pertinente compor um banco de

dados com as outras e utilizar as falas na medida que fosse necessário para o

trabalho.

Optamos por não identificar em nosso trabalho os nomes dos colaboradores

narradores pois apesar de contarmos com sua autorização escrita para a publicação

de suas falas, percebemos durante as conversas com alguns destes sujeitos que

devido às incertezas provocadas pela mudança, com suas rupturas, o anonimato

parecia uma forma de expressão mais confortável. No entanto todas as entrevistas

que gravamos aconteceram mediante a autorização dos entrevistados. Desse modo,

os nomes dos colaboradores que aparecem neste trabalho são fictícios.

Neste período da pesquisa fizemos as observações a respeito do local, a

disposição de casas, a sensação térmica e outras características necessárias para

compreender a atual situação de moradores que anteriormente viviam de acordo

com o que chamamos modo de vida ribeirinho. O modo de vida ribeirinho diz

respeito a um tipo específico de relações de produção, de relações com a terra, de

como a explora, a uma relação com o rio que não é meramente voltada ao mercado.

Isto implica em uma espacialidade específica, moldada por relações subjetivas e

também construídas por sua relação com o lugar onde se concretiza um modo de

vida diferenciado.

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O povo ribeirinho

[...] essencialmente mantém uma organização social diferenciada da urbana, com sua sobrevivência econômica baseada principalmente na pesca, pequena produção agrícola (caracteristicamente mandioca pra a produção de farinha, frutos como a melancia, plantada nas várzeas dos rios e plantações perenes como o cupuaçu, a pupunha e o açaí) e que pratica a coleta de produtos da mata como a castanha-do-brasil, o açaí, a abacaba e o patoá nativos (SILVA e SOUZA FILHO, 2002, p. 27).

Devemos assinalar que a história de lutas das populações ribeirinhas e povos

indígenas trouxe como resposta governamental a publicação do Decreto nº 6.040,

de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento

Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Este decreto estabelece que para efeitos legais, a categoria de povos

tradicionais, onde encontra-se inserida a definição de ribeirinho, refere-se a

[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição; (Decreto nº 6.040, de 7/02/2007)

Desta forma, fica entendido que para as populações dos rios, suas

características especificas de ligação emocional com seus lugares de realização e

materialização de suas manifestações socioculturais, assim como o lugar onde

realizam suas atividades de labor para a manutenção da vida estão em situação de

subalternidade em relação às decisões políticas do estado, que em contexto atual,

na maioria dos casos atende à demandas de fatores econômicos externos.

No caso da população deslocada que faz parte de nosso estudo, trata-se de

um grupo heterogêneo, composto por indivíduos que tanto se alinham ao que

podemos definir como ribeirinho ou caboclo, como por pessoas que chegaram em

épocas mais recentes, em busca de emprego e oportunidades nas décadas de 1990

e 2000.

A situação que pudemos observar no distrito de Mutum-Paraná, antes do

deslocamento populacional, era um grupo populacional constituído por famílias

vindas de diversas localidades do Brasil, do estado de Rondônia e em diferentes

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momentos, à medida que sequencialmente ocorreram os surtos desenvolvimentistas

dos quais Rondônia testemunhou e foi experimento.

As características do modo de vida ribeirinho atendem a descrição

comportamental do grupo que foi remanejado de Mutum-Paraná para Nova Mutum.

Por se tratarem de pessoas que chegaram ao “Mutum Antigo” em diferentes épocas,

atraídos por diferentes situações e motivados por diversas razões, estes costumes,

o hábitus para usarmos um termo sociológico, passou a fazer parte de seu cotidiano,

absorvido e reproduzido nas práticas de trocas entre os vizinhos, as relações de

amizade e relações produtivas diretamente ligadas aos ciclos naturais.

Antes do deslocamento, o Distrito de Mutum-Paraná recebia novos moradores

com alguma regularidade temporal, devido ser a migração uma característica

notável do município de Porto Velho no que tange aos estudos da geografia da

população, como atestaram Cavalcante et al. em seu trabalho que versa sobre

políticas territoriais e mobilidade populacional na Amazônia, com foco nas áreas

diretamente afetadas pelas barragens Jirau e Santo Antônio.

Esta “mobilidade populacional sempre esteve ligada à exploração dos

recursos naturais combinada com a busca de trabalho”. E conforme Becker (2001),

citada pelos autores, esta mobilidade estava atrelada às necessidades transitórias

do mercado internacional e que seguiam-se de longos períodos de estagnação.

(CAVALVANTE et al., 2011).

É importante este esclarecimento, pois entendemos que estes fatores de

atração para o distrito foram alavancados pelos ciclos econômicos de extração de

látex, mineração e madeira e contribuíram para uma heterogeneidade populacional

que, num processo de interação social e de vivência no lugar, passou a compartilhar

de modos de vida característicos das populações ribeirinhas como a prática da

pesca, o lazer voltado para o rio e produção de frutas e legumes para consumo

próprio.

O que ocorreu é que nossa observação, antes mesmo das efetivas conversas

com os moradores já revelava as mudanças pelas quais este grupo de pessoas está

passando. Isso porque não há indícios de igarapé ou rios de qualquer natureza em

Nova Mutum, o que os impede de pescar ou ir ao banho, como um lazer. Da mesma

forma vimos em nosso trabalho de campo, que as árvores são muito poucas, e ainda

estão em estágio inicial de desenvolvimento, num tamanho que ainda não é

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suficiente para gerar sombra. Devido ao calor intenso, na ausência de sombra, não

vemos pessoas transitando na rua, apenas alguns carros trafegavam

esporadicamente.

A localização das casas dos moradores que viviam anteriormente em Mutum-

Paraná também é diferenciada num sentido que consideramos de desvantagem em

relação aos moradores que são trabalhadores da barragem. As casas dos primeiros

ficaram distantes da BR 364, que é a rota necessária para sair da cidade e também

ficou distante do pequeno núcleo comercial construído. Esta observação, em campo,

nos trouxe alguns questionamentos sobre a relevância que a vida dos ribeirinhos

remanejados teve nas escolhas para sua nova moradia, que deveria funcionar como

um lar. O trabalho de campo como vivência foi trazendo observações relevantes

para as nossas interpretações de pesquisa.

Conforme advertiu Pierre Bourdieu (2007, p. 42) quando nos diz que "(...) é

preciso muitas vezes, para se fazer ciência, evitar as aparências da cientificidade,

contradizer mesmo as normas em vigor e desafiar os critérios correntes do rigor

científico (...)", buscamos deixar os entrevistados o mais confortável possível no

momento em que cederam a entrevista. E também de alguma forma participar de

alguns eventos de importância para estas pessoas. Nestes termos estivemos

presentes em uma missa na igreja local, uma festividade da Igreja e um grande

churrasco, que atraiu moradores remanejados e também funcionários do consórcio,

os que vivem e Nova Mutum e os que estavam alojados dentro do canteiro de obras.

Buscamos uma espécie de tratamento das narrativas seguindo os preceitos

indicados pelos estudos em Oralidade, porém entendemos que a preocupação em

reconstruir as narrativas para que seguissem uma sequencia cronológica, ou torna-

las espécie de texto literário não seria necessário, devido nossa intenção de

encontrar o lugar dentro das narrativas enquanto fluido de significado, enquanto

materialidade subjetiva, constituído pelas experiências e vivências e não

necessariamente contar a história daquele indivíduo, apesar de não ignorarmos a

história de vida de cada um como elemento para a compreensão dos mundos-

vividos das pessoas em nossa pesquisa.

Neste sentido, nos ligamos ao que foi anunciado por Michael Pollak (1989),

que refletiu sobre um estudo que demonstrou que para os alemães, as datas oficiais,

instituídas nacionalmente eram substituídas por outras, pois as datas que os

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indivíduos realmente lembravam estiveram relacionadas à alguma vivência e

experiência muito importante em suas vidas: “acredito que a única coisa que se

pode dizer é que existem cronologias plurais, em função do seu modo de

construção, no sentido do enquadramento da memória, e também em função de

uma vivência diferenciada das realidades” (POLLAK, 1989, p. 10).

Transformamos as falas em texto por meio da transcrição e também nos

pusemos anular a presença do entrevistador intermediando o fluxo da narrativa, o

que nos estudos de oralidade é chamado textualização. Permaneceram então, as

narrativas, da forma como surgiram no momento da entrevista. Foi-nos muito

importante a leitura destes textos, em conjunto com a experiência de observação

que também ocorreu, no trabalho de campo, pois

É o texto enquanto referente, o processo de criação/diálogo, que vai fazer as mediações entre, primeiro, o oralista e os interlocutores e seu presente; segundo, a ligação entre o imediato do presente e o presente; terceiro, a ligação entre o vivido e as grandes estruturas de reflexão e sociedade. O texto é a maneira de penetrar nas múltiplas ficcionalidades e poder intervir mais diretamente nas virtualidades vivas do real, quer dizer, no próprio real, mas não naquele real jurídico que tem o documento como prova (CALDAS, 1998, p.44).

A pesquisa de campo, além da colaboração dos narradores, nos trouxe as

experiências da observação do espaço construído pelo consórcio ESBR, para ser a

cidade de Nova Mutum. Neste sentido, auxiliou-nos termos conhecido Mutum-

Paraná enquanto ainda existiu empiricamente, com casas e edificações. Além das

narrativas dos próprios remanejados, tínhamos como acessar as impressões que o

lugar trouxe para nossa própria memória do tipo de vida que era compartilhado no

distrito de Mutum-Paraná, agora extinto.

O conjunto de narrativas nos trouxe a compreensão de representarem

discursivamente um posicionamento perante o mundo, uma forma de agir

socialmente e de posicionar-se socialmente (FAIRCLOUGH, 2008). Desta forma,

nos foi possível pensar na forma com a qual os sujeitos se substanciaram no mundo

simbólico ao qual partilhavam a significação do lugar onde viveram ou vivem no

tempo da memória, suas experiências.

Neste sentido, cabe uma explicação a respeito de nos referirmos às falas dos

entrevistados como narrativas e às mensagens institucionais e publicitárias do

consórcio ESBR como discurso. O que ocorreu é que obtivemos o discurso sobre o

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lugar experienciado para os residentes de Nova Mutum mediante as entrevistas

textualizadas, que geraram uma narração do que ocorreu em suas vidas devido o

deslocamento do lugar.

Para entendermos o contexto do experienciado pelos sujeitos dispostos em

nossa pesquisa, e os discursos os quais nos remetem aos significados de lugar,

buscamos as teorias do sociólogo Pierre Bourdieu (2003). Este autor refutou o

conceito de sociedade, defendendo a existência de "campos sociais" e não

"sociedade". Segundo este autor, o conceito de sociedade seria genérico demais,

totalizante demais, e por conta disso Bourdieu a define por meio dos campos

sociais:

Um campo (...) se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses próprios de outros campos (não se poderia motivar um filósofo com questões próprias dos geógrafos) e que não são percebidos por quem não foi formado para entrar neste campo (BOURDIEU, 2003, p. 120).

Os campos são constituídos à medida que vai ocorrendo a intensificação dos

processos de divisão do trabalho, com a "evolução" do capitalismo. Quanto mais

especializado o trabalho, maior o número de campos no espaço social.

O campo funciona como uma disputa entre elementos chamados ortodoxos e

heterodoxos. Os primeiros são os que detém o poder num determinado campo e os

heterodoxos são os dominados. Os dominados querem tomar o poder no jogo e os

dominantes querem manter sua posição.

Os campos sociais pressupõe a incorporação de regras. Estas regras são o

habitus dentro de um campo. Os habitus são absorvidos pelos indivíduos nos

processos de educação/reprodução e tornam-se parte dos corpos, funcionando

como

[...] matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõe-se a cada agente como transcendentes. (BOURDIEU, 2010, p.45)

O habitus é transmitido dentro do campo social de maneira inconsciente. Os

indivíduos pertencentes a determinado campo não estão a todo tempo refletindo

sobre o motivo que os leva a ter determinada crença ou a agir de uma forma

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específica. Estas atitudes e orientações já foram “incorporadas” no momento da

educação dentro daquele campo. O que constitui o habitus de um campo são as

práticas, os modos de agir inconscientes incorporadas pelos indivíduos deste

mesmo campo e que fazem sentido dentro do campo.

Outro conceito atrelado ao de "campo social" é o de "capital". O capital é o

que garante aos atores em disputa no campo, entrarem na luta pelo domínio do

campo. Os campos têm capitais específicos, porém todos possuem "capital

simbólico". O capital simbólico pode ser qualquer tipo de capital, mas que é

considerado como tal por sua capacidade de ser reconhecido como legítimo dentro

de um campo, e por este motivo, encerrar uma relação de força, disputa.

Acselrad (2004) propõe que seja considerada a formação do "campo dos

conflitos ambientais". O capital simbólico, nesta disputa, seria a capacidade de

legitimar determinado tipo de apropriação do meio ambiente. A disputa dentro do

campo dos conflitos ambientais se trata não apenas de uma disputa no plano

econômico, mas também cultural, simbólico.

[...] se considerarmos o meio ambiente como um terreno contestado material e simbolicamente, sua nomeação- ou seja, a designação daquilo que é ou não é ambientalmente benigno- redistribui o poder sobre os recursos territorializados, pela legitimação/deslegitimação das práticas de apropriação da base material das sociedades e/ou de suas localizações. As lutas por recursos ambientais são, assim, simultaneamente lutas por sentidos culturais (ACSELRAD, 2004, p.19).

A disputa entre grupos sociais, que se apropriam tanto material como

simbolicamente do território de forma diferenciada, implicando na supressão da

continuidade da reprodução das formas de apropriação de um destes grupos em

decorrência da atuação do outro, constituem um conflito ambiental (ACSELRAD,

2004). As práticas sociais destes grupos sociais em disputa manifestam-se nos

discursos observados na implementação da UHE Jirau.

[...] na relação entre o plano discursivo e o plano das práticas, a cada inflexão nas representações dominantes sobre o meio, mudará, conseqüentemente, o poder relativo dos atores no campo de forças onde configuram-se os conflitos ambientais (ACSELRAD, 2004, p. 22).

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Desta maneira, buscamos atrelar a constituição dos discursos dos envolvidos

a respeito do lugar como também um posicionamento específico no campo de

disputas simbólicas que remetem à própria capacidade de legitimar o sentido de

lugar. O discurso do morador remanejado, nesta perspectiva, é desvalorizado em

termos de que o significado de lugar para o grande empreendimento garante a

imposição do sentido hegemônico de ser um lugar a ser sacrificado em nome do

projeto de crescimento econômico nacional.

Os discursos, neste trabalho, são considerados não apenas como peças

coadjuvantes ou conjunto de signos posicionados gramaticalmente e lexicalmente,

mas como prática social e forma de agir no mundo (FAIRCLOUGH, 2008).

Diferentes discursos sinalizam diferentes posicionamentos na disputa dentro do

campo dos conflitos ambientais.

Os discursos são formas de agir no mundo e posicionam os atores sociais de

diferentes formas. O consórcio ESBR, construtor da barragem, é discursivamente

apresentado como mecanismo de desenvolvimento sustentável para a população

brasileira e no caso de interesse para este estudo, a de Mutum-Paraná. No discurso

da ESBR, a construção da barragem trará benefícios que os aparelhos sociais do

estado não proporcionaram.

As imagens que chegaram a nós, também como transmissoras de significado,

contribuíram para as análises e interpretações neste trabalho, pois estas

informações imagéticas que nos chegam, também compõem o universo simbólico no

qual o homem está imerso e que permitem ao homem conceber a si mesmo assim

como o outro e o que há em seu redor.

Cassirer afirma que o ser humano “envolveu-se de tal modo em formas

linguísticas, imagens artísticas, símbolos míticos ou ritos religiosos que não

consegue ver ou conhecer coisa alguma a não ser pela imposição desse meio

artificial (CASSIRER, 1994, p. 48)”.

Nestes termos, podemos remeter as fotografias presentes neste trabalho aos

lugares de significado que são a temática de nossa pesquisa. Da mesma maneira

compreendemos também que as imagens transmitidas pela empresa constituem

parte da formulação de significados e representam de que forma esta empresa se

quer representar e fazer-se compreender pela sociedade circundante.

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Em nossa pesquisa o discurso dos ribeirinhos remanejados devido à grande

obra de engenharia em relação ao lugar em que vivem atualmente entrou em

discordância com o discurso do consórcio executor da barragem, indicando os

diferentes posicionamentos destes atores sociais e a pouca importância, ou

nenhuma importância dada às subjetividades que construíram o lugar onde estas

pessoas viveram antes do deslocamento e por isso entendemos que estes discursos

também devem estar presentes para nossas análises a respeito da possibilidade da

recriação do lugar em Nova Mutum.

Para que as interpretações formuladas a respeito da possível recriação do

lugar desses indivíduos deslocados devido à construção da UHE Jirau tivesse certa

delimitação metodológica, observamos, conforme Pollak (1989, p. 2), que “na

maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes,

imutáveis.” Este autor explica que muitas vezes ao trabalharmos com longas

entrevistas, onde os narradores não obedecem à cronologias, invariavelmente

voltam aos mesmos acontecimentos.

Para nossa pesquisa, buscamos nas entrevistas os momentos de topofilia e

de desagrado em relação ao lugar, pois delimitam experiências referentes ao lugar

em que vivem e desta maneira, pudemos traçar uma linha interpretativa que

contemplasse estes dois tipos de experiências dos lugares para os que foram

deslocados de suas casas compulsoriamente.

Estes momentos evidenciados por sentimentos topofílicos ou de

inconformação e nostalgia, vieram por meio dos recortes das falas dos

entrevistados, que em sua íntegra compõem o banco de dados da pesquisa, com as

narrativas transcritas em sua completude. Para este trabalho, entendemos que a

presença integral das falas transcritas não fazia-se necessária para a investigação e

análise, pois selecionamos os momentos nos quais estes sentimentos ficaram mais

evidentes nas falas.

A fundamentação de nossa pesquisa necessitou agregar conhecimentos

relativos à memória do grupo social que estudamos. A comunidade de Mutum

Paraná, mesmo deslocada para Nova Mutum abrigou em suas narrativas o lugar

onde ocorreram as vivências cotidianas em suas memórias. Isso foi evidenciado nas

falas dos atingidos pela UHE Jirau. Devido termos feito as entrevistas com os

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narradores colaboradores já deslocados de Mutum-Paraná, este lugar se apresenta

como as memórias a respeito deste lugar.

Tuan (1977) também indica o aporte que a Geografia Humanista deve ter na

História, pois esta é uma construção tipicamente do mundo humano, os animais não

tem uma história. Ele deixa assinalado que “a historia não é somente a passagem

dos acontecimentos, mas sua reconstrução consciente na memória do grupo para as

finalidades correntes”. Neste termos, a história contribui de forma significativa para o

entendimento de lugar como uma espécie de centro dos significados e experiências

de um indivíduo ou grupo. Existe o lugar de todos e o lugar de cada um.

O mundo-vivido expresso no lugar é também atrelado ao tempo vivido (BOSI,

2003. p. 53), que aparece nas narrativas como a memória. A memória expressada

também pelas formas manifestadas no presente, na medida em que é possível a um

indivíduo ou grupo de pessoas, como uma comunidade por exemplo, dar sentido e

continuidade ao seu modo de vida. Lugar e tempo em conjunção possibilitam a

continuidade de sentidos, de significados, de valores.

Lugares podem provocar experiências agradáveis ou desagradáveis. Topofilia

foi o termo originalmente cunhado por Gaston Bachelard para traduzir as

experiências felizes envolvendo o espaço. Yi Fu Tuan, com sua obra “Topofilia”

(1980) expandiu o conceito para as experiências agradáveis a respeito dos lugares e

paisagens. Porém, como sinaliza Relph (1979), a geograficidade, expressão trazida

por Eric Dardel (2011), autor que na década de 1950 do século passado já buscava

compreender os aspectos fenomenológicos da Ciência Geográfica, a ligação

subjetiva do homem à terra, não pode ser totalmente compreendida sem

observarmos o outro lado da moeda, que são as experiências desagradáveis e

infelizes dos lugares.

Relph (1979) resume geograficidade como “um termo que encerra todas as

respostas e experiências que temos dos ambientes no qual vivemos, antes de

analisarmos e atribuirmos conceitos a essas experiências (p. 18)”. A geograficidade

permeia todas experiências referentes aos sentimentos que nutrimos a um lugar,

que normalmente não podem ser expressados como explicação lógica.

Quando nos dispusemos a compreender o lugar para uma comunidade

remanejada de seu lugar, nos deparamos com um embate de experiências. Há a

geograficidade dos moradores deslocados de Mutum-Paraná, que em sua trajetória

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de vida construíram uma relação topofílica com o lugar, representado por sentimento

de acolhimento, calor do lar.

Em oposição a isso, temos o discurso do progresso, representado pela

construtora da barragem Jirau, que apresentou a vila de Nova Mutum nos termos da

geograficidade presente em cidades planejadas para receberem os trabalhadores

das barragens. Neste choque de sensibilidades, o que foi sentido como topofílico

para um grupo social foi negado pela bandeira do crescimento econômico.

Por verificarmos já nas narrativas esse contraste entre o narrado, fruto das

experiências vividas e a propaganda pulverizada pelo consórcio ESBR em diversos

meios de comunicação como jornais veiculados na internet, impressos, website,

folhetos distribuídos na comunidade, tratamos também em dialogar com a ideia da

habitação, que no sentido trazido por Heidegger, foi trazido para a interpretação

fenomenológica do lugar por Anne Buttimer (1985). O habitar que completa o sentido

que um indivíduo tem de sua existência é descrito pela autora da seguinte forma:

Habitar implica mais do que morar, cultivar ou organizar o espaço. Significa viver de um modo pelo qual se está adaptado aos ritmos da natureza, ver a vida da pessoa como apoiada na historia humana e direcionada para o futuro, construir um lar que é o símbolo de um diálogo com o meio ambiente ecológico e social da pessoa. (BUTTIMER, 1985, p. 166)

Gaston Bachelard (1978), dissertando sobre as imagens diferentes que

crianças podem construir fazendo desenhos de uma casa, explica a importância da

imagem para a interpretação do estado de alma de uma pessoa. De acordo com

estudos realizados por psicólogos com crianças que viveram em período de guerra,

as imagens desenhadas indicavam muito das experiências relacionadas com o que

viveram. Segundo este autor, “toda grande imagem é reveladora de um estado de

alma. A casa, mais ainda que a paisagem, é "um estado de alma". Mesmo

reproduzida em seu aspecto exterior, fala de uma intimidade” (p. 243).

Nesta pesquisa, as imagens, além das fotografias, surgem em decorrência do

narrado, que também se compõe em discurso, na medida em que as falas são as

formas possíveis para essas pessoas de se exporem pra o mundo, representando a

sua situação particular de deslocado por uma construção de usina hidrelétrica. As

casas como imagens que formamos pelos discursos dos narradores denotam o tipo

de experiência vivenciada, relacionada ao passado e ao presente.

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Buscamos até agora, exprimir de forma clara qual o significado que damos ao

lugar nesta pesquisa. Como concentração de significados e experiências vividas, no

tempo presente e no tempo revivido da memória. Tendo em mente a centralidade do

aspecto simbólico relacionado ao moldar-se o lugar, necessitamos do auxílio do

pensamento de Cassirer (1994), pois no mundo-vivido, enquanto permeado por

símbolos, os quais garantem a compreensão mútua dos significados por aquelas

pessoas que os partilham, o lugar emerge.

Assim como não nos cabe a compreensão de que existe uma fixidez do lugar,

mas sim sua materialidade devido ao caráter de simbolismos e sentimentos

atrelados a ele, Cassirer (1994, p. 64) nos explica que “um símbolo humano genuíno

não é caracterizado por sua uniformidade, mas por sua versatilidade. Não é rígido e

inflexível, e sim móvel”.

Os lugares dos quais tratamos não se referem a padronizações das

localizações em termos de posicionamento global. Se referem às vivências no

habitar, os sentimentos relacionados a familiaridade e intimidade do lar, o

estranhamento do desconhecido, do inédito, nunca antes experimentado. As

diferentes experiências expressaram o entendimento a respeito de lugares

diferentes. Pois o lugar ao qual fazemos referência, é o da experiência do indivíduo,

e isso não responde a uma determinação mecânica, baseada em leis universais

mensuráveis.

No entanto, o que temos como universal para o homem é sua capacidade de

simbolização. Este fundamento do mundo humano capacitou os grupos e indivíduos

desenrolar formas organizativas do mundo social, de forma com que sua

sobrevivência lograsse sucesso. Foi por meio da capacidade de simbolização que o

ser humano foi capaz de transformar projetos mentais em projetos materializados

em forma de tecnologia, propiciando a sobrevivência da humanidade.

Cassirer (1994) defende a ideia de que a chave para o entendimento do

mundo humano está em sua capacidade de construir e interpretar símbolos. Mesmo

que símbolos possam gerar interpretações individualizadas e específicas para

determinado grupo ou pessoa, a capacidade de fazer essa leitura é a garantia da

presença humana. Em suas palavras

O principio do simbolismo, com sua universalidade, validade e aplicabilidade geral, é a palavra mágica, o abre-te sésamo que dá acesso ao mundo especificamente humano, ao mundo da cultura

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humana. Uma vez de posse dessa chave mágica, a continuação do progresso do homem está garantida. (1994, p. 63)

A vivência nos lugares, o sentimento de conforto do lar, assim como as

experiências desagradáveis, até mesmo de insatisfação com lugares que

mantivemos contato, são perpassadas pelo mundo simbólico. No mundo simbólico

são erguidas as premissas que vão embasar nossas experiências no mundo-vivido,

pois sem a simbolização o experienciar não faria sentido, pois nossas ações

aconteceriam meramente como respostas instintivas ao estímulo externo.

Para entendermos de que forma o lugar, da forma como compreendemos, foi

constituído e possivelmente recriado, tomamos um direcionamento metodológico

que nos levou ao encontro do lugar presente no discurso de uma comunidade

deslocada.

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CAPÍTULO 3: DISCURSOS SOBRE O ANTES E O AGORA: DE MUTUM-PARANÁ

À NOVA MUTUM

STOLERMAN, Paula. Mural improvisado na Rodoviária de Nova Mutum, convidando os moradores a adquirir imagens de Mutum-Paraná. Imagem digital, Nova Mutum, 2011.

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3.1 O Passado em Mutum-Paraná, o Presente em Nova Mutum

Para melhor entendermos os sentimentos e as experiências vividas no lugar,

tanto os que remetem ao lugar onde viviam anteriormente, Mutum-Paraná, quanto

aos gerados a partir das modificações consequentes da instalação da UHE Jirau,

necessitamos descrever de forma sucinta o ambiente em que as pessoas viveram

antes da mudança, assim como o local para o qual as pessoas foram remanejadas.

As descrições vieram tanto da experiência de campo, como de obras consultadas.

A localidade de Mutum-Paraná teve suas edificações e benfeitorias

integralmente demolidas e teve sua área alagada pelo reservatório da UHE Jirau.

Ademais do que oficialmente foi aguardado em termos de enchimento dos níveis de

reservatório da UHE Jirau, a região do antigo Distrito de Mutum-Paraná foi assolada

pela maior cheia documentada do Rio Madeira no ano de 2014, deixando a ponte

sobre o Rio Mutum, edificação que faz parte da estrada de Ferro Madeira-Mamoré,

submersa.

A ferrovia Madeira-Mamoré, construída para transpor os trechos

encachoeirados do rio Madeira, tornou-se um fator de atração populacional, gerando

novos povoados e vilas, como o caso de Mutum-Paraná, distrito do Município de

Porto Velho antes da formação do reservatório UHE Jirau. Mutum-Paraná constituiu-

se atrelado à necessidade de escoamento da produção gomífera do século XIX,

como um ponto de abastecimento dos vagões com borracha produzida nos

seringais. A parada também funcionava como um ponto de abastecimento de água.

O Decreto Legislativo número 57, de 11 de Dezembro de 1985 criou o Distrito

de Mutum Paraná, anexado ao Município de Porto Velho. Encontramos muita

dificuldade em obter informações específicas sobre este distrito na história regional

de Rondônia. Acreditamos que isso ocorreu em parte por se tratar de um distrito de

Porto Velho que formou-se na esteira da construção da Estrada de Ferro Madeira-

Mamoré e acabou sendo elencado conjuntamente com outras localidades, que

surgiram na mesma circunstância. Desta forma, algumas das informações contidas

neste trabalho, foram obtidas mediantes conversas com a população de Mutum-

Paraná, residente a mais de dez anos no distrito, com quem travamos contato no

trabalho de campo.

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Outra fonte de informações referentes ao Distrito de Mutum, como era

chamado por seus moradores, foi o "Estudo Complementar Qualitativo de Aspectos

Socioeconômicos e Culturais das Localidades da Área de Influência do AHE Jirau"

(ESBR, 2008) formulado pela empresa Abaeté Estudos Sociomabientais, contratada

pelo consórcio construtor da barragem de Jirau.

O Distrito estava situado no Km 163 da BR 364 e foi tomando forma nos

trilhos da estrada de ferro, criando paisagens interessantes como um cemitério entre

os trilhos abandonados, a presença de uma grande caixa d'água que abastecia a

máquina a vapor em meio às casas e fruteiras de seus quintais e o "bar do Belisca",

construído numa ponte sobre o rio Mutum-Paraná que fazia parte da linha férrea

conforme fotos neste capítulo.

Com a baixa no preço da borracha a ferrovia tornou-se desimportante, até sua

total desativação. O distrito, no entanto, persistiu sob influência dos diversos ciclos

de exploração que integram a história da colonização de Rondônia. Mutum-Paraná,

após a febre da borracha, viu a explosão do garimpo do ouro e cassiterita. No

momento que antecedeu a implantação da UHE Jirau, a retirada de madeira era

uma atividade econômica intensa.

A demografia do Distrito oscilou tanto quanto os ciclos extrativistas permitiram

e no momento em que se instalou o canteiro de obras da barragem, contava 1.800

habitantes, aproximadamente. Segundo antigos moradores, chegou ao número de

vinte mil habitantes. Findados os ciclos econômicos, a importância da localidade em

termos de atração foi reduzida, resultando em uma população perene, de modos de

vida especificamente relacionados aos recursos ambientais.

No ano de 2008, época em que foram feitos os estudos complementares do

EIA/RIMA, encomendados pela empresa construtora da UHE Jirau, a população de

Mutum-Paraná tinha em torno de 1.800 habitantes segundo este diagnóstico. No

Sistema de Informação de Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde, com

data de 10/06/2009, o distrito contava com 1.405 pessoas.

A situação do distrito encontrava-se em estado de precariedade, com

aparelhamento social ineficiente em vários aspectos, caracterizando o abandono por

parte do setor público, como relatado pelos moradores. O atendimento emergencial

ocorria apenas no município de Porto Velho.

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O abastecimento de energia elétrica no distrito de Mutum-Paraná foi

regularizado pouco tempo antes do remanejamento por conta da construção da

barragem, tendo-se conseguido isso através de um protesto dos moradores, que

fecharam a BR 364. Anteriormente à manifestação, a população do distrito subsistia

com a energia elétrica gerada por motores a óleo diesel (informação oral).

As residências encontradas em Mutum-Paraná eram cercadas pelo plantio de

árvores frutíferas, pequenas hortas, canteiros e plantas ornamentais, garantindo a

estas uma interação com o ambiente em volta. Neste cenário supria-se as

necessidades de subsistência, conforme narrativas presentes na dissertação.

A população de Mutum-Paraná estabeleceu uma sólida relação com o

patrimônio histórico do distrito, lamentando a perda dos vestígios da estrada

Madeira-Mamoré, apesar da ausência de manutenção de qualquer monumento por

parte dos órgãos governamentais competentes.

Seguindo o processo de construção de hidrelétricas, a antiga Mutum-Paraná

foi levada à uma política de remanejamento para Nova Mutum a partir do final do

ano de 2010. Desta maneira, alguns dos antigos moradores de Mutum-Paraná,

passaram a viver em casas de pré-fabricadas.

A cidade Nova Mutum exibe próximo de sua entrada um outdoor com os

dizeres “preparada para ser feliz”, que encerra um imaginário de progresso e de

renovação, que seriam alcançados por estarem vivendo ali. Apesar de a imagem

retratar "pessoas felizes", pois a cidade é informa discursivamente estar "preparada

para ser feliz" não pudemos observar esse quadro de felicidade em nossa pesquisa

de campo, visto que as pessoas ficaram, enquanto estivemos em Nova Mutum,

quase que em tempo integral dentro de suas casas devido a temperatura elevada.

Vimos transeuntes raramente, e não vimos pessoas do lado de fora das casas, nas

varandas conversando com os vizinhos.

Nova Mutum parece não ter recebido nenhum tipo de planejamento para a

arborização anterior à chegada dos moradores. A ausência de árvores contribuiu

para uma sensação térmica do local muito elevada, especialmente em horários onde

a incidência solar fica mais intensa. Neste caso, as pessoas que tinham atividades

cotidianas relacionadas ao exterior da residência, como o convívio com vizinhos,

plantio no pátio e quintal, ficaram restritas ao interior das residências, pois o calor é

muito intenso.

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O discurso da empresa apresentou o projeto urbanístico da cidade planejada

como possibilidade para melhorias na vida dos remanejados do distrito de Mutum.

As vantagens apresentadas incluíram “ruas asfaltadas, escolas para formação de 1º

e 2º graus, sinal para telefonia celular e internet 3G, saneamento básico, coleta

seletiva de lixo, energia elétrica, áreas de lazer e paisagismo” (disponível em

www.energiasustentaveldobrasil.com.br acesso em 17/11/2013). Em nenhum

momento as vantagens apresentadas referiram-se ao modo de viver, habitar, no

sentido de reconhecer este lugar como um refúgio à intimidade capaz de fazer com

que de alguma forma as pessoas que se mudaram sentissem um lar novamente.

Além no aspecto imaterial do lugar de vivência das pessoas não ser colocado

como relevante nesta mudança, as próprias condições materiais garantidas não

mostraram eficiência para tornar a cidade de Nova Mutum habitável para os que

foram remanejados.

Como afirma uma narradora colaboradora em nossa pesquisa, Nádia:

[...] o pessoal que era do Mutum mesmo, que morava aqui, já tá todo mundo indo embora. Que ninguém tem condição de morar aqui. Ficar aqui quem não tem emprego. Quem vivia da caça, da pesca... não tem como ficar aqui. Também quando a gente foi tirado de lá, que a gente não veio de lá de boa vontade. A gente foi tirado. Era mundos e fundos. [...] Só que foi assim, na situação que a gente vivia, no Mutum, que era no verão a gente sofria com a lama. Alagava no inverno. No verão era poeira, um solzão. Mas a gente ia levando. E aqui [...] a obra que eles (a ESBR) mostraram, a maquete nas reunião, era coisa assim de primeiro mundo. Eles diziam não, vamos fazer curso, vamos dar curso pra aquelas pessoas. E vai ter a horta comunitária. Que quem já planta vai poder plantar e vender suas verduras e vamos ter curso disso e curso daquilo, pros jovens. E vamos ter o centro comunitário. A gente acreditou e foi aí o nosso erro. Quando a gente acordou, já era tarde (Nádia, 2012).

Desta forma, percebemos nas falas desta nossa colaboradora, como o

discurso do consórcio empenhou-se em criar uma expectativa em relação ao

empreendimento, fazendo a população local apoiá-lo, em vista das vantagens que

supostamente a instalação da barragem traria para a vida deste grupo de pessoas

que pouca assistência vinha recebendo do poder público.

O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Secretaria de

Direitos Humanos (CDDPH) decidiu instituir uma Comissão Especial para

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acompanhar as denúncias de violações de direitos humanos em processos

envolvendo o planejamento, licenciamento, implantação e operação de barragens

após denúncia elaborada pelo MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), no

ano de 2006. Entre as diversas violações encontradas pela comissão em suas

investigações, os estudos permitiram concluir que um dos fatores responsáveis pela

violação dos direitos dos atingidos por barragens relaciona-se a falta de informação.

A comissão averiguou que diversas situações no processo de implementação

da barragem contribuem para a desinformação das comunidades atingidas, tais

como:

A) omissão ou recusa de fornecer aos interessados informações relevantes, como, por, exemplo, resultados de levantamentos cadastrais ou, até mesmo, a lista de famílias e/ou propriedades consideradas pela empresa como atingidas, assim consideradas pelas empresas; B) falta de assessoria jurídica; C) uso de linguagem inacessível ao público de não especialistas; D) fornecimento de informações contraditórias ou, mesmo, falsas; F) precariedade e insuficiência dos estudos ambientais, além da falta de oportunidade efetiva para participação, como a não-ocorrência de audiências públicas ou realização de audiências e outros fóruns cujo formato não favorece a participação popular efetiva; (Comissão Especial: “Atingidos por Barragens”, p. 14, 2010)

Estes fatores elencados, juntamente com a campanha movida por agentes da

política local e empresários interessados na obra, expressados na campanha

“Usinas Já”, incapacitou a resposta crítica da sociedade e das populações com

menor capacidade de se fazerem ouvir. Os atingidos por Jirau, residentes em Mutum

Paraná, aceitaram o projeto como fato consumado, e levaram à diante a crença de

que as mudanças trariam melhorias de vida à todos.

No entanto, deparadas com a vida nesta nova realidade, as pessoas já

perceberam que estão imersas em um lugar que não garante suas condições de

sobrevivência. Mais que perdas materiais, agregou-se a isto a perda dos laços

emocionais com o lugar de constituição dos sentimentos, das relações de amizade e

do modo de vida.

Algumas benfeitorias existem como um parque para crianças13. Apesar da

infraestrutura edificada pela ESBR em certa medida suprir aos anseios da

comunidade, que reivindicada mais atenção do poder público enquanto vivia em

13

Ver Foto 7, no item 3.3 deste Capítulo.

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Mutum-Paraná, de outro modo isto não se revelou suficiente para garantir e torná-la

sujeito no novo lugar. A imagem de brinquedos abandonados evidenciou que a

sociabilidade não foi restabelecida.

Outra visão que tivemos e que nos traz uma percepção de descaso com a

história pessoal desta população deslocada é a situação da caixa d´água de Mutum

antigo. A caixa d’água que abasteceu a Maria Fumaça da EFMM era um símbolo

importante para os habitantes de Mutum-Paraná. A presença deste objeto no lugar

para onde as pessoas se deslocaram era relevante para que de alguma forma o

vínculo emocional com o Distrito de Mutum-Paraná se fizesse presente, como

referência memorial.

No entanto, o espaço reservado para a instalação do que deveria ser uma

área de patrimônio histórico não foi escolhido de forma adequada. Tampouco as

instalações de um museu para as peças da EFMM receberam aprovação do IPHAN

por não estarem de acordo com o padrão exigido para esta função. Existe uma

grande construção de concreto atrás da caixa d’água, uma espécie de galpão. Este

local deveria funcionar como o museu, mas esta edificação mais se assemelha a um

supermercado14.

Em Nova Mutum podemos observar tipos bem distintos de residência apesar

de parecer uma paisagem homogênea de casas e ruas iguais vistas ao longe. Estas

diferenças não se referem apenas ao tamanho das casas, mas a estruturas e

edificações que foram adicionadas pelos moradores após a mudança.

Ao aproximarmo-nos, entrando na cidade efetivamente, pudemos verificar as

diferenças em termos de edificação. As moradias dos barrageiros, que são os

trabalhadores das empresas que fazem parte do consórcio que constrói a barragem

não apresentaram modificações em sua estrutura como aumento de cômodos,

extensão para fazer uma cobertura de varanda.

As casas dos funcionários do consórcio pareceram adequar-se ao modo de

vida urbano e não verificou-se preocupação com o plantio de árvores nos quintais.

Sugerimos que isso está relacionado ao estado de constante mudança de localidade

que estão submetidos os trabalhadores barrageiros.

No caso das residências ocupadas pelos moradores vindos de Mutum

Paraná, percebemos outro tipo de ocupação do lugar. Às casas pré-fabricadas,

14

Ver http://www.portalrondonia.com/noticias/28437.htm acesso em 21/02/2013 a respeito do não cumprimento das medidas mitigadoras pelo consórcio ESBR relativas ao patrimônio cultural.

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adicionaram-se construções de madeira que atenderam às necessidades de cada

morador. Esta foi uma forma de tornar o local um pouco semelhante ao que existia

em Mutum-Paraná, inclusive para que tenham possibilidades de trabalhar já que o

tamanho das casas distribuídas não correspondeu ao tamanho das casas que os

moradores ocupavam.

Por conta desta restrição em relação ao tamanho dos cômodos das casas,

alguns moradores, preferiram construir pequenos quartos ou casas de madeira para

trabalhar, dando continuidade ao tipo de ocupação anterior. Alguns construíram

depósitos na área externa para material de trabalho e mesmo alguns que não

receberam pontos comerciais mas trabalhavam com algum comércio em Mutum-

Paraná construíram pequenas edificações para tentar refazer seus rendimentos.

Como foi o caso da casa de madeira da senhora Janet. Esta senhora não

recebeu uma casa da ESBR, apesar de ter documentação comprovando que vivia

em uma casa alugada em Mutum-Paraná. Sua casa de madeira foi construída por

um senhor que ela considera seu compadre. Ele utilizou parte de seu terreno para

construir a casa, sensibilizado por sua amiga não ter lugar fixo para residir após o

remanejamento. Sua residência também funciona como ponto comercial, oferecendo

o serviço de cabeleireira.

Um grande problema também enfrentado pelos remanejados para este

modelo de reassentamento, é que aqueles que dependiam da produção agrícola

para sobreviverem, não foram contemplados com residências próximas a área de

produção, o que implica em um deslocamento que varia de quatro a onze

quilômetros da moradia em Nova Mutum até a área que foi destinada para as

atividades agrícolas, inviabilizando a atividade produtiva de muitas famílias que não

possuem recursos para fazer este deslocamento diário.

A produção de mandioca e outros vegetais que anteriormente eram

destinados ao comércio e abastecimento das famílias que vieram do antigo Mutum

também não pôde ser retomada pois o solo dos lotes que foram destinados à

produção agrícola é infértil, devido anteriormente servir como pastagem para o gado.

Algumas destas famílias, em ordem de garantir a sobrevivência, estão optando por

criar algumas cabeças de gado, abandonando o plantio de vegetais15.

15

Informado no Parecer Técnico do IBAMA, nº 1097/2012 (PAR. 000540/2013) sobre a condicionante

do licenciamento da Usina de Jirau que diz respeito ao programa de remanejamento das famílias

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O trabalho de campo evidenciou as dificuldades dos remanejados de Mutum

que se manifestaram desanimados e desmotivados para reconstruírem suas vidas

na "Nova Mutum". Nesse aspecto, A Nova-Mutum resultante dos programas

formulados pelo consórcio ESBS expressa um novo ordenamento espacial, cujo

lugar não evidencia nenhuma história social de referencia para os novos moradores.

3.1.2 Croqui: Mutum-Paraná e Nova Mutum

Estas imagens não podem elucidar totalmente as dificuldades relacionadas ao

deslocamento e a vivência em outro lugar porém nos demonstram o distanciamento

criado entre a comunidade de Mutum-Paraná e a BR 364, cuja proximidade anterior

entre o Distrito e a estrada representava um ponto importante para a manutenção

econômica de muitas famílias, que inclusive comercializavam sua produção dos

sítios na beira da estrada.

Usamos a representação cartográfica a seguir para demonstrar visualmente o

deslocamento da comunidade que viveu em Mutum-Paraná para Nova Mutum. Os

moradores de Mutum Paraná que viviam na área rural do distrito e mantinham

produção agrícola e criação de animais receberam lotes rurais no reassentamento

rural Vida Nova porém suas residências no processo de remanejamento ficam em

Mutum-Paraná, o que acarretou uma distância de até 11 quilômetros, em alguns

casos entre as residências e áreas de produção.

atingidas disponível em http://www.ibama.gov.br/licenciamento/index.php. Visualização em 04/02/2014.

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Croqui: As distâncias criadas pela construção da UHE Jirau

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Nova Mutum apresenta proximidade em termos de distância percorrida em

relação ao canteiro de obras da UHE Jirau, no entanto para os moradores de Mutum

Paraná que viviam da produção agrícola, chegar ao local destinado ao trabalho é de

extrema dificuldade, pois é um gasto de recurso grande fazer esse traslado, coisa

que não ocorria quando as pessoas viviam no mesmo local onde estava a lavoura.

Os lotes rurais recebidos receberam o nome de reassentamento rural, como

indicado no mapa mas ao chegarmos à estes locais verificamos que não existe

estrutura para garantir a produção e o trabalho destas pessoas, pois alegou-se que

as residências foram entregues em Mutum-Paraná, obrigando as pessoas a

percorrerem longa distância, sem áreas construídas para dar suportes às

necessidades do trabalho de cultivo e plantio.

Mais uma vez no desenrolar histórico, os lugares formados pelas experiências

dos que fundaram seu habitar nestes, das trocas emocionais, nos conflitos e acertos

da vida cotidiana, são transformados devido a programas que atuam para a

modificação do território, visando o atendimento de demandas externas às

necessidades materiais e simbólicas destas pessoas.

3.2 Narrativas de Topofilia e de dissolução dos laços com o Lugar

No processo de pesquisa, percebemos que os sentimentos de topofilia,

referentes ao lugar de vivências anterior à mudança e os sentimentos de angústia e

perda, mesclados com insegurança com o presente e futuro, entremearam-se de

forma corrente nas falas das pessoas entrevistadas.

Destarte, o que pudemos perceber junto aos entrevistos foi que em diversos

momentos das narrativas destes, sentimentos de perda e rompimento em relação ao

lugar em que estão vivendo no momento servem como a deixa para a lembrança do

lugar vivo na memória, da proximidade com o rio, da relação topofílica com o lugar

de onde saíram. Consideramos que devido este padrão encontrado nas narrativas,

para as possíveis análises das mesmas, entendemos que os trechos das falas

devem ser expostos e em sequencia fizemos o comentário interpretativo a respeito

de nossas percepções sobre as falas relacionadas aos lugares em questão e sobre

a recriação ou não de um lugar.

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Um laço topofílico que encontramos nas falas dos entrevistados referiu-se à

proximidade que mantinham com o rio em Mutum Paraná. O rio representava não

apenas a fonte de renda para os que viviam da pesca ou garimpo mas também era

ativo como o lugar do encontro, do lazer e a vivência entre as pessoas.

A proximidade das águas do rio Mutum permitia a união das pessoas no

lugar, criando aquele espaço de trocas sociais e de elementos que compunham o

mundo sensorial das pessoas que ali viviam. As experiências de dissolução com os

laços existentes com o lugar foram impressas nas narrativas quando os

colaboradores explicaram suas dificuldades de manutenção de suas vidas neste

outro local, nas rupturas de relações sociais que existiram, muitas delas

relacionadas ao lazer no rio Mutum e num comportamento diferenciado, fomentado

pelo deslocamento espacial. As rotinas cotidianas destas pessoas foram

modificadas neste novo local de moradia pois não contam mais com seus quintais,

seus pomares, hortas e sem o rio.

Como assinala Relph (p. 6, 1979):

[...] o mundo vivido social ou cultural, o qual compreende “os seres humanos com toda ação e interesse humanos, trabalhos e sofrimentos” (Husserl, 1970:146). O mundo vivido social é o da intersubjetividade, linguagem comum, contato com outras pessoas, instrumentos, edifícios, obras de arte, tudo o que não é meramente pré-determinado mas usado, transformado e manipulado.

O lugar que encontramos em nossa pesquisa fundou-se como receptáculo de

emoções e das experiências, boas e ruins vividas em dois momentos diferentes para

estas pessoas. Momentos anterior e posterior à mudança. Lugar expresso pelo

mundo vivido. Desta forma, as narrativas expressam as sensações que remetem ao

lugar de vivência, lugar do aconchego e também das garantias para a sobrevivência

material, que vem com acesso às memórias e o lugar de vivencia atual, com a carga

das dificuldades e perdas emocionais.

Nas seguintes narrativas percebemos estas situações. Da mesma forma são

testemunho sobre a disputa da legitimidade sobre o discurso do lugar. Optamos por

ocultar os nomes de nossos colaboradores, por terem declarado que sua condição

de anonimato era mais confortável para darem seus depoimentos. Desta forma, os

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nomes dos narradores que seguem são fictícios, assim como outros nomes em

trechos de falas que aparecem no corpo desta pesquisa.

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3.2.1 Dona Vilma

Aqui, se você não tiver o dinheiro... não come.

Esta senhora de mais de cinquenta anos trabalhou no garimpo e mantinha um

bar movimentado no distrito de Mutum-Paraná. Suas mãos fortes e marcadas

remetem a uma vida de trabalho pesado. As economias que fez como cozinheira

nas balsas de garimpo, serviram para o investimento em um bar, de onde obteve

sua renda até o momento da mudança para Nova Mutum. A relação com o rio,

mantinha-se firme, mesmo longe das balsas de garimpo era o rio que muitas vezes

garantia o lazer e o peixe fresco após uma tarde de diversão.

Na casa que Dona Vilma recebeu como indenização do consórcio, o espaço

pequeno é dividido entre ela, duas moças que ela abriga por relações de amizade e

grande parte de seus pertences, que eram parte de sua vida cotidiana como dona de

estabelecimento comercial. Dona Vilma tem como conforto a presença de uma

amiga querida como vizinha, que veio de Mutum-Paraná e mora na casa em frente.

Por seu ponto comercial, sua fonte de renda antes da mudança para a Nova

Mutum, não recebeu nenhum tipo de indenização e hoje encontra-se sem recursos e

perspectivas para a manutenção de sua família. Percebemos em sua narrativa que o

discurso da empresa a levou a depositar um grau de crença na mudança para Nova

Mutum, mas o discurso sobre o lugar presente na propaganda da empresa não

correspondeu aos sentimentos de insegurança quanto ao futuro vividos na cidade

planejada.

Aqui nós tamos bem, graças a Deus. A única coisa que tá matando nós é o negócio da água e da luz, que tá vindo muito caro. Eu aqui somos duas pessoas, cento e oitenta reais. Duzentos de luz, cento e vinte de água e eu tô esperando também. Porque lá eu tinha meu ponto. Eles não me deram meu ponto. E falaram que iam me dar o terreno aí, pra eu fazer o meu ponto e até hoje. Nunca vieram aqui e eu tô assim, na pindura. Que a polícia disse assim, que não pode tocar bar aqui. E como é que eu vou viver? Da onde eu vou viver? Tirar o pão de cada dia pra pagar a luz, que aqui eu só tô trabalhando mermo, é pra pagar a água e a luz. A Dona Lucimar ali tem só uma geladeira e uma televisão e é cento e oitenta e poucos de luz que tá vindo. Aqui eu tenho central, mas eu ligo só pra esfriar e é a noite todinha ventilador, que eu tenho problema de bronquite. Também eu vejo gente na cidade, paga sessenta, setenta ainda acham ruim, avalia

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aqui nós, que não tem de onde tirar? Não tem emprego aqui. Os emprego que tem, não querem dá pra pessoa que não sabe ler nem escrever. Só tem muito emprego aí, mas só pra nego que já é formado em alguma coisa, que já tem terminado os curso. E nós? Como eu, fui deixar currículo nesses mercado aí, pra zeladora e nenhum me pegou. E aí como é que a gente vive? E quando tem um negocinho assim, ainda tem que acabar? Aqui pra não dizer, ontem eu vendi duas doses de pinga. Quatro reais. E a polícia em cima. E é sofrimento aqui pra mim, esperando me entregarem esse terreno. Que disse que ia poder me dar, pra pelo menos eu construir pra mim um tiosco [quiosque] pra mim vender uma banana. Tem uma máquina de sorvete aí dentro parada. Essa máquina aí, porque se eu for botar essa máquina pra rodar aí é 220 ela. Os sorvetes que eu vou vender aqui, não vai tirar nem metade do prejuízo. Passar o dia todinho pra vender dois, três sorvete? Aí fica difícil pra mim. Aqui como é que eu vou viver? Ah sinto falta das outras coisas de lá mesmo. Falta dos peixes, que lá se você tivesse dinheiro, tanto fazia você ter quanto não ter. Você comia. Eu, aqui você planta um pé de planta no inverno, tá bonita mas quando está no verão, porque a quentura é demais, e esse barro aí é duro demais, morre tudo. O tanto de planta que eu já plantei aí, a única que tá escapando é uma ingazeira e tá quase um ano e a bicha tá desse tamanho (pequeno com gesto). Um ano? Tem quase dois ano que eu tô aqui, e a bicha ainda tá daquele tamanho. Devido o barro que é duro demais. E eu fui a primeira que cheguei aqui. Eu pra mim eu pensei que a vida aqui ia ser melhor. Pensei porque todo mundo falava que ia ter bastante emprego, ia ter muitos movimento. E vem aqui que é oito hora da noite, você não vê uma viva alma passando aí. E principalmente Natal e ano novo. Aí que lasca tudo mermo! E aqui ainda tá, ainda tem esse movimentinho por causa dos pessoal da firma, mas depois que esses pessoal for embora, nós vamo ficar aqui meio sofrido E ali no Jirau também é outro sofrimento. Mas parece que o Jirau é mais fácil que aqui, principalmente que tem o igarapé lá. Se você não tem o dinheiro pra comprar o peixe, você alegua o anzol, já você pega, já dá um jeito na farinha e come e aqui? Você vai viver de que aqui? Se corre por dentro dessas lagoa aí, vai pegar só cobra. Lá no Mutum você chegava numa casa, tem tanta abóbora aí, pega aí pra ti, um tomate, uma verdura. Mas aqui... A Lucimar lá no Mutum morava na beira da ponte, na beira do rio eu chegava sábado, domingo eu chegava lá, outra coisa não, mas peixe... ela cansou de pescar da janela do quarto. Quando o rio tava cheio, pegava peixe de dentro de casa. Que eu gosto mesmo é de peixe! Mas aqui tá sendo sofrido pra nós. Principalmente essa água e essa luz. É o que tá arrebentando nós aqui tudinho Aqui a empresa nem aparecer aqui, não aparecem. A administradora não fala nada. A gente corre pro lado dela, ela falou que não tem nada a ver, porque a firma ainda não entregou pra prefeitura e só depois que entregar pra prefeitura que vão resolver isso aí. Eu não sei... Quando nós viemos pra cá foi a primeira coisa que eles disseram: era um ano de energia, pra nós não pagar energia e água e tudo. E veio tudo antes e mais caro do que não sei o que. Até o pagamento

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da gente cortou. Era um ano de salário por mês, mas antes de vencer o ano eles já cortaram. Cortaram mesmo. Só sei que não tá sendo fácil pra gente aqui, não. Aqui o negócio tá feio. O que eu mais reclamo assim, é da água e da luz. Porque da onde a gente vai tirar dinheiro pra pagar todo mês trezentos, quatrocentos e pouco de luz? Sem a gente gastar esse tanto de luz? Porque aqui, a casa aqui só é esses três bicos de luz que eu deixo até nove, dez hora e o resto é tudo apagado. E a casa da Lucimar desse mesmo jeito. E é esse tanto. E pra quem não tem emprego? Eu ainda não fiz um poço, não. Quase só toma banho, bem dizer. Sei que não tá sendo fácil, aqui. Depois que essa firma aí sair, não sei como que nós vamos viver aqui não. Depois que essa firma sair daqui, vai todo mundo pro brejo. Agora aqui vai ser bom sabe pra quem? Pra quem trabalha no governo, na prefeitura. Porque aí tem o salário já fixo, certo. Agora pra nós, que somo analfabeto, aí que não tem onde cair vivo, que morto cai em qualquer lugar. Tá ruim, principalmente hoje em dia. Os pessoal não querem pegar gente velho pra trabalhar. Esses pessoal da firma chegaram lá no Mutum, eles não avisaram nada pra gente sobre isso aí. Só falando que a gente ia ter que sair de lá. Aí trouxeram a gente pra ver as casas e tal. Eles passavam explicação no telão, vai ser assim, vai ser assim, assado e acabou. Eu pensei que aqui ia gerar muito emprego, e dar emprego pros pessoal velho, de idade, que quer trabalhar. E aqui eles não aceitam. Eles pegaram as pessoas quase de surpresa lá. O negócio dessa água e dessa luz aqui tá cruel! Eles chegavam lá, borá lá, pra todo mundo ver as casas. Aí ia cinco, seis ônibus cheio de gente. Chegava era pão doce, bolacha com refrigerante. E trazia menino, dava refrigerante pra menino e pronto! Ainda sobrava, levava dentro do ônibus. Aí todo mundo: ah lá é bom! Primeiro temporal que deu aqui, já saiu levando parabólica, derrubando casa aqui, tudo. Agora tá tudo molhando aí dentro. E tá tudo ficando manchado desde esse vento que destelhou aí. Pode entrar lá dentro de casa. Já fui lá na Intertec, eles disseram que não tem mais nada a ver com isso. Aí eles falaram que a firma não mexe mais nada com isso. Agora no primeiro temporal que derrubou tudo, eles tavam até de noite ajeitando as casas. Mas agora tá chovendo tudinho aí dentro, aparecendo tudo manchado. Eles diziam que aprontavam três casas por dia Lá no Mutum era bom porque tinha muita árvore, não tinha negócio de sol quente que nem tem aqui. E outra, dia de domingo ia todo mundo lá pra beira do rio, tomava banho. As casas, tudo lá, todo mundo tinha poço. Não pagava água. Só pagava mal a luz. Tinha gente que nem pagava energia. Eu nunca paguei energia lá. Mas é porque nunca veio o talão de luz pra mim. Eu falei até pra administradora, ela falou já que não veio, fica quieta, nem mexe. E a luz lá não vinha tão caro que nem vem daqui. Aqui tem que dormir tudo no escuro e quanto mais economiza, aí é pior, aí que vem caro mermo. Quando falta água aqui, é dois, três dias seco, que nem língua de papagaio! E aí a gente corre prum lado, não tem água. Corre pro outro, não tem água. E aí aqui o negócio é ralado. Lá no Mutum não. Quando faltava luz, você ganhava o rio. Que o rio era perto e é água à vontade. Passava o dia todinho lá pra dentro do rio. Comia peixe

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assado por lá e a água lá em casa eu puxava com balde. Eu cansei de puxar água com um balde e aqui? Aqui se você não tiver o dinheiro, não come. Aqui, verdura desses mercado aí pode estragar um monte de verdura, mas duvido se eles bota na promoção pra vender, pra vender pros pobre. Aqui tudo tem que comprar. O que não tá cheirando bem é o negócio da luz. O negócio tá feio. Se o cara botar um ar condicionado ou um ventilador bom, aí é que o bicho pisca ligeirinho [o medidor]. Os amigos de lá que era daqui, hoje em dia, tem muitos aí que só porque ganhou uma casa dessa, eles não chegam, nem falam com a gente aqui. E esses que trabalham no governo, aí é pior. Esses que não falam com a gente mesmo. Já tem o emprego deles aí, sabe que o dinheiro deles todo mês tá caindo na mão. Aí que fica metido mermo. Eu senti essa diferença. Não só eu, como todo mundo aí. Aqui tem nego que passa aí, não dá nem as horas pra você. E que era acostumado a comer junto, brincar, conversar. Eu acho que é por causa da casa. Os pessoal do Mutum pra cá tá, tudo nessa área pra cá, do Leão pra cá, eles botaram separado. Que aquelas casinha que tem pra acolá, já de brasilite. Já é de firma. Pra acolá também, aquelas casinhas pequenininha, tudinho pra acolá é de firma. Teve muita gente que foi embora. Tem gente que mal pegou a casa aqui, já foi embora. Outros lá mesmo no Mutum, pegaram só a indenização de lá e foram comprar casa noutro canto. E ainda tinha mais isso, se você queria comprar outra casa lá pro bando do extrema, que fosse, eles iam lá olhar a casa, quanto valia. Eles pagava a casa e depois que dava o resto do dinheiro do cara. Eles não davam o dinheiro aqui pro cara comprar, não. Aí que ainda ficava mais ruim. Porque se desse o dinheiro pra gente procurar comprar onde a gente quisesse. Mas ainda tinha que escolher, tal. A Energia Sustentável enganou todo mundo. Aí agora, o escritório é ali. Quando os carrinhos tão tudo ali, eles tão aí. Serviço pra pessoa de idade não tem. Você pode deixar seu currículo nessas firma aí. Quarenta pra cima, que não tem estudo, coitado desse, que aqui vai comer capim! Que foi o que deixaram pra nós aqui comer. É cortar grama, temperar com sal e óleo e comer. Porque o negócio aqui tá feio. Como é que a gente vai viver aqui. Eu queria assim, que os pessoal da Energia fosse lá, com os pessoal da CERON, baixasse mais um pouco a energia. Porque não adianta só por causa da casa, que é bonita. E por causa da casa bonita a gente vai ter que pagar um horror de luz? Conversasse com o pessoal lá, pra dar um jeito nessa luz, nessa água. Um mês é tanto, no outro é mais caro, depois ainda mais caro e nunca a gente tem aquela base. Começamos a pagar sessenta reais, depois cento e vinte, no outro cento e oitenta, aí é duzentos e cinquenta, duzentos e sessenta. Aqui ninguém conversa com ninguém, não. Se você vai lá na Energia Sustentável, lá com aquelas mulher da Claro (Clara Comunicação) lá, ah, não sei de nada, isso é assim, assim. Mal nem olha pra sua cara. E aí fica difícil. Eu fiz um exame de cabelo lá e nunca me entregaram esse exame. Eu chego lá e aí, o negócio do exame? Eu falei vem cá, vocês levaram o meu cabelo pra fazer o exame ou pra fazer peruca? Eu fiz lá no Mutum Velho, é um exame do mercúrio e até hoje...

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Naquele jornalzinho só colocam mentira. Aqui só sabe filmar o shopping, as filhas de quem presta, mercado. Agora o que os pobre tá sofrendo aqui, cadê que eles coloca? Fazem a reunião, não, vamo convidar o pessoal, ver como os pessoal. Tá, aí sim! Mas aqui, se tem uma reunião, é por debaixo dos pano. Ninguém nem sabe. Quando pensa que não, cadê a reunião? Ah a reunião já se foi e aí a gente ó, é só entre eles mesmo lá. Ali no Palmeiral, que ninguém tinha nada, todo mundo ganhou e nós aqui, nada! E é a merma beira de rio que eles. Eu sei que esse pessoal sacanearam com muita gente. Muitos se deram bem, mas muito tomaram nos olhos. O Belisca saiu bem. Ele foi bem indenizado. Ele já tinha uma estância e com o dinheiro, ele parece que melhorou. Ele construiu mais uma casa não sei mais em qual bairro.

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3.2.2 Senhor Normando

Lá a gente tinha nossa água... tomava banho...

Não regrava água, tomava banho a hora que queria... Tinha o nosso rio bem lá... encostadinho...

O senhor Normando, juntamente com sua esposa, a Dona Sula, formam um

casal de idosos que viveram por mais de vinte anos em Mutum-Paraná e

constituíram a família naquele distrito. Enquanto viveram em Mutum-Paraná, este

senhor trabalhou como caseiro em um sítio, mas os donos do terreno abandonaram

a área e o Senhor Normando passou a cultivar as terras por conta própria, para

alimentar sua família e comercializar verduras e frutas quando fosse possível.

Tivemos a oportunidade de conhecer este narrador ainda quando residia em

Mutum Paraná. Nesta época este senhor exibia um corpo robusto, enquanto fazia o

trabalho na lavoura. Suas expectativas eram de que a vida em Nova Mutum traria

melhorias. Não pudemos ver em Nova Mutum a mesma expressão de alegria que

vimos em Mutum-Pará, mesmo devido a situação de saúde atual de sua

companheira.

Dona Sula sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) após a mudança para

Nova Mutum e o senhor Normando atribui a culpa por este acontecimento à tristeza

provocada pela mudança do lugar onde viveram por tantos anos. Segundo o

narrador, o sentimento de saudades pela experiência compartilhada no lugar onde

viviam foi tão intenso a ponto de causar uma doença física.

A minha esposa teve um derrame depois da mudança. Ela não fala, não anda. Ela tá, só anda, ela tá começando a andar. Já dá umas passadinhas, a gente segurando ela. Pois é, pra mim até agora não foi bom não. Pra mim, bom, vou fazer que nem a história. Eu tô numa casa. Me deram por um direito que eu tinha. Me deram. Não, era um direito que eles queria tirar a gente de lá, tinha que ter aonde botar. No meu caso eu trabalhei dezessete ano lá, cuidando dum negócio lá, de um pessoal. E aí, quando apareceu o negócio dessa firma, foram cadastrar eu, eles disseram que não tinha com o que me pagar. Aí nós fizemos um acordo, pra eles o que desse lá o valor, a gente, eles dividir comigo. Quando chegou o valor, que eles viu que era alto, o valor que eles pensava que talvez uns vinte mil, trinta mil. Eu trabalhei dezessete anos, quanto num vai dar? Salário de dezessete anos, com meus direitos, tudo. Quanto é que num vai dar, no meu salário atual. Aí entraram num acordo que sim,

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mas quando que viram o valor aí, o velho não. Que o velho não tem mais nada lá, é o filho que puxou pra trás. Aí o que que aconteceu? Como ele puxou pra trás, aí a firma me deu essa casa aqui. Eu ia pegar aquela casa ali. Eu morava lá, dentro da vila mesmo. Era uma chacarazinha que eu cuidava lá. Botaram eu lá pra ganhar um salário e o rancho. Deram aí uns dois ou três meses e depois desapareceu todo mundo. Não me pagaram, não iam lá, não fizeram mais nada lá. E eu que fiz tudo. Aí eu ia pegar essa casa ali, mas o rapaz da firma disse não seu Natanael, já que o senhor ele na justiça, pra ele lhe pagar o seu trabalho, o senhor pega essa casa aqui, porque essa casa aqui é a firma que tá lhe dando, por um direito que o senhor tem, de morar lá no Mutum, há quarenta, mais de quarenta anos que eu morava lá no Mutum. Aí eu fiquei com essa casa. E aí o que ele pensou que ia botar a mão no dinheiro, o cara lá. Agora o que aconteceu, nem ele recebeu, nem eu recebi nada. E eles já falaram que ele tem que entrar num acordo comigo. Porque se não entrar, o que tá acontecendo. Tão com medo que aconteça isso, a advogada já falou. Ela tá trabalhando em cima desse negócio, mas ela disse, eles começam com isso, acaba nem ele recebe, e nem o senhor. Porque tem que desenrolar pra poder eles pagar. Porque eles não pagam. Se não acertar, devendo qualquer coisa, tem que acertar para poder pagar. Eu não quero nada dele. Eu falei doutora, eu não quero nada dele. Eu só quero que eles tem consciência de pagar os meus dezessete anos de trabalho. Que eu trabalhei. Todo mundo lá é testemunha que eu trabalhei. Aquilo tudo lá, fui eu que fiz. Se não fosse eu, não tinha nada ali. Não tinha nada e agora pronto, enganchou. Nem ele pegou o dinheiro, porque se ele tivesse feito o acordo direitinho, já tinha pegado o meu, ele já tinha pegado o dele. Já tinha feito o que ele quisesse. E eu o meu. Pronto é só isso mas tá lá, já quis desistir. Ela que não quis, [a advogada] agora não tem mais jeito não. Agora o negócio vai pra frente! Vai demorar, mas vai sair, vai. Quem já viu esse direito, a pessoa trabalhar pra outra e não receber? Agora, um dia desse, o pai dela [da advogada] passou aí, eu falei que ele sempre passa aqui, hoje mesmo deve tá passando, o pai da advogada. Liga pra menina lá e arruma um jeito de eles me pagar, o meu direito. Que o resto é deles, eu disse. Mas ela disse que não, que vai ser rachado. Olhe lá se eu não vou ficar sem nada. Com essa firma [a ESBR] é assim, é aquele negócio, eles prometeram muita coisa e no fim não cumpriram com tudo direitinho, como eles falavam, não. Não cumpriram porque toda reunião eles falavam e ainda tem mais. Uns que querem que isso aqui seja do Jacy e não do Mutum. Passava, eles passava no telão. Aqui é área que nós compremo pra vocês, pessoal do Mutum. Viemos foi bem umas três ou quatro reunião ali, mostrando tudo e agora vem com essa presepada. E disse que isso aqui é do Jacy. O Jacy não quer abrir mão é deles é deles, não é? Nos querem passar pra lá Eu já falei pra diversas pessoas. Não, nós do Mutum, nós que viemos do Mutum, ninguém vai brigar com o povo do Jacy. Claro, quem que vai brigar com ninguém. É o seguinte, quer dizer que aqui é do Jacy? É. Faz outras casa pra nós lá na área do Mutum, na área do Mutum que não vai alagar tudo, nem a metade da área que é do Mutum. Faz outras casa do mesmo jeito dessa daqui, tudo direitinho,

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bem feitinho, bem arrumadinho aí quando acabar, vem, pega nós, leva, bota lá pronto! Tá resolvido e entrega aqui pro Jacy. Não falaram que tinham comprado isso aqui desse fazendeiro? Tô... até esqueci do nome dele, eu conheci ele. Eu conheço um fazendeiro, sei quem é. Compraram isso aqui pra botar nós, agora vem com uma presepada dessa. Então tava enganando nós. Lá no Mutum era muito melhor. Eu queria tá lá, na minha casinha, mesmo do jeito que era. E não quero ficar aqui numa casa dessa, do jeito que tá aqui numa quentura dessa. Eu tô cansado de falar pra muita gente. E teve gente aqui que já teimou comigo. Eu digo, eu acho não, eu tenho certeza, isso eu tenho certeza: se nós tivesse lá, se não tivesse mexido com nós lá, ela [a esposa] não tava desse jeito. Isso eu tenho certeza! Porque lá a gente vivia do jeito que a gente queria. Aqui ainda tem mais isso. Se o cara vai cavar um poço, não querem que cave. Eles querem mandar! Lá a gente tinha nossa água, tomava banho. Não regrava água, tomava banho a hora que queria. Tinha o nosso rio bem lá, encostadinho, para tomar banho. Ela gostava muito de pescar. Ia pescar a hora que ela queria. Tinha a canoa dela, nós pescava. E aqui? Cadê, que eles disseram numa reunião ali, que lá no Mutum também falaram, que ia ter um piscinão. O cara até mostrou pra ali, do lado do colégio, na área desse igarapé aí. Aquilo ali é um igarapé, vai ter um piscinão pra vocês tomar banho. Porque cobraram. Eu disse e o nosso rio lá, quando nós queria tomar banho. Vai ficar tomando banho só nesse chuveirozinho aí? Nesse banheiro que é o calor mais horrível do mundo? Não, vai ter... cadê? Acabou que não fizeram nada! Não fizeram nada ainda do que prometeram. Não fizeram nem a metade. Isso é o que a gente tem que falar. É a verdade, é essa. Agora como eu digo, eu acho, nós do Mutum, o pessoal que veio do Mutum, que tá tudo aqui que não veio nem a metade pra cá. Que tá tudo aqui, se reunir e dizer. Não tem briga. Tem ali o 27 [localização à beira da BR 364], a estradona ali, que vai até a rio Madeira. Já tá tudo desmatado das fazenda. E tem a estrada que vai bater lá dentro, estrada boa. Não é asfaltada. Asfalta, faz as casa, leva nós, bota lá. Pronto. Lá nós tamo pertinho do rio, eu queria mais lá do que aqui. Muito. Era uma saída pra nós. Eu calculava, pra mim eu não sei. Eu sou analfabeto, eu não sei de nada. Vou logo dizer, eu nunca entrei numa sala de aula. Eu pensava que era assim. No começo, que eles vieram perguntaram muitas coisas. Eu pensei, eu acho que o direito era esse. Dizer bem, seu Natanael, todo morador aqui vai ter o direito de escolher o que que ele quer. Se ele quer ir pra lá, se ele quer uma casa do mesmo jeito, num terreno, ele vai atrás do terreno, nós vamo lá e pagamo tudo. Bota lá. Mas foi o contrário, primeiro teve que vim primeiro foi pra Santa Clara, depois pro 27, depois pra lá pra rio Madeira. E foram levando, levando... até que puxaram pra cá. Porque aqui fica pertinho da obra e tudo já tá feio, desmatado. Nós trabalhamos em roça, com seringal. Tudo nós já fizemos. Mineração lá pro outro lado do rio. Nós fizemos tanta da coisa, se viramos. Como eu digo pra muita gente: antigamente, hoje eu vejo o pessoal falando assim, muitos e muitos, porque o negócio tá assim, tá ruim e de primeira? Eu criei essa minha família todinha. Não tinha

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esse negócio de remédio, de posto nem nada, não. Eu tinha que me desdobrar e comprar o remédio. Tinha farmácia lá, mas eu tinha que me desdobrar e comprar. Que não tinha nada de posto. Se adoecia um, não tinha negócio de chama a ambulância, chama isso. Não! Tudo era eu que comprava. O governo naquele tempo não dava nada pra ninguém, não. Hoje em dia, adoece uma pessoa aqui, aí a ambulância já chega. Já leva lá para o hospital. Antigamente não tinha isso. Só era o trem. A gente trabalhava na mata, adoecia, chegava hoje numa hora dessa [a entrevista ocorreu por volta das 14 horas], chegava no Mutum oito horas da manhã. O trem já tinha passado pra baixo. Aí você ia esperar outro até oito horas da manhã de novo. Vinte e quatro horas esperando lá. O que tivesse morrendo, se fosse pra morrer, já morria lá mesmo. Pronto, acabou-se. Não tinha jeito. Como é que ia levar lá pra Porto Velho? Não tinha jeito. Não tinha como a gente botar num carro como hoje em dia. Bota num carro, leva. Aquele que era tempo duro. Era aquele. Mas agora ainda vem gente reclamar. Olha ônibus aí carregando gente pra escola toda hora. E muitos deles ainda fala que o governo não presta, que isso, que aquilo. Esculhamba. Ah se tivesse pegado o meu tempo. E o do meu pai? Aí é que foi. Meu pai morreu foi com oitenta, foi com oitenta e três, oitenta e quatro ano. Morreu, coitadinho não se aposentou. Não tinha isso não. Tinha pra quem era funcionário do governo. E tinha os funcionários que tinha esse direito. Lá no Nordeste. É, não tinha isso. Só quem contribuía. Quem não contribuía, não tinha esse direito. Era muito diferente. As coisas hoje tá assim bom, porque bom mermo é difícil! Mas tá mais ou menos. Não estuda quem não quer. Colégio tem aí pra todo lado, pelo governo, não paga. O meu pai, nós era quatro irmão. Só quem aprendeu foi só as duas irmã. Porque a escola era particular. Uma escolinha que tinha lá. O pai é quem tinha que pagar pro professor, por aluno. E ele cobrava tanto por mês de cada aluno. E que que aconteceu? Nós era pobre. Aí nós homem, pra roça, pra manter a casa. E as meninas que conseguiram estudar. Elas ainda moram lá, são vivas. Elas sabe mas nós não. Eu e o meu irmão, ele até já faleceu, nós não tivemos esse direito. O direito que nós tinha era se levantar cinco horas da manhã pra carregar água com um quilômetro de distância de casa, encher as vasilha tudinho. Quando terminava, ia pra roça e sabe com quantos anos nós começamos essa luta? Oito ano cada um. Oito, nove ano. Agora nós vê tamanho, uns homão, não faz nada não é não? Só porque estuda não pode fazer nada. O pai e a mãe que tem que se desdobrar pra tudo. É assim que eu fui criado. Ainda tem mais uma. Eu tô cansado de dizer, pode prestar atenção. Os homens que foi criado trabalhando e os homens, até hoje mesmo, que se cria trabalhando, não tem nenhum vagabundo. Agora quem se cria sem trabalhar, fica homem barbado, acostumado o pai dá de tudo e aí quando o pai não quer dá mais nada, ele vai pra rua, vai roubar, vai fazer bagunça pra poder se manter. É só isso. Mas tem a lei que não deixa trabalhar. Porque é de menor. Mas pode votar e pode fazer o que quiser. Matar um pai de família como acontece muito e não vai nem preso, porque é de menor. Acho isso horrível.

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O que a firma nos explicaram é que nós vinha pra cá. Explicaram assim, nós vinha pra cá, tinha um ano de salário. Uns diz que era um ano, outros diz que era dois e ninguém sabe, só eles sabe. Sei que só foi só um ano mesmo. Um ano não ia pagar nem luz e nem água. Isso aí eles cumpriram. Só que agora, quando chegou a luz e a água pra gente pagar, não tem condições. Ainda hoje chegou aqui um pobrezinho coitado, que nem empregado, nem funcionário não era. Perguntei quanto foi que chegou sua luz? Trezentos e não sei quanto de luz. Numa casa. Ele mora numa casa dessa aí, de proprietário. Como é que ele vai pagar isso aí? Vai ter que se rebolar muito. Ainda vem a conta d’água, que ninguém sabe. A minha aqui em Mutum eu pagava vinte real de luz, vinte e cinco, às vezes até trinta. Porque nunca é igual. Sempre um mês vem um tanto, outro mês vem outro, eu não sei por que é isso. E quando foi ontem chegou R$ 108,63. Pra quem ganha um salário mínimo... daí a pouco tô esperando, vai vim segunda-feira, vai chegar a da água. Vamo ver quanto é que vai vim e é por aí. Acha que quem ganha um salário mínimo tem condições de morar numa casa dessa aqui? Não tem. Porque vai se embora tudo pra pagar. Ainda vem depois a água, vem a conta de telefone e isso é a gente economizando. Que eu aqui é tudo apagado de dia e de noite acende a luz enquanto tá conversando um pouquinho aqui. Entrou pra dentro, apagou tudo, pronto. Quer dizer que esse ano de salário que eles deram não adiantou nada, que em três meses, quatro, eles vão comer esse dinheiro todinho que eles deram. Emprego tem esses mercado, tão empregando. A firma também. Quem quer trabalhar, nesse ponto aí o pessoal trabalha. Tem tido muito trabalho aí, não trabalha quem não quer. Ou às vezes também não tem porque hoje em dia, pra arrumar um emprego, tem que ser de maior, tem que ter carteira, mas trabalho aqui nessa Camargo Correa, por aqui mesmo, nessas construção tem muito. Tem umas pessoa que trabalhava na roça aqui. Do pessoal do Mutum não veio nem a metade pra cá, debandou todo mundo. Uns pegou indenização, que era tanta da coisa, que a gente ficava até confuso. Tinha uma indenização, tinha direito a uma casa aqui se quisesse, uma tal de carta de crédito. Teve muita gente que não foi ruim não. Porque já pensou você possuir uma casinha, você olhava pra cima via os buraco, molhava tudo, só um cômodozinho, do tamanho disso aqui e ganhou uma casa dessa aí, de três quarto uma casa dessa, que nunca na vida dele ele ia possuir uma casa dessa. Pra esse aí foi bom. Mas já teve outros que perdeu. Aí eu não sei como foi isso, como eles fizeram. Até agora eu tô perdendo... bem, com firma não vou dizer que tô perdendo com a firma que com a firma, eu não tô. Porque eles me deram essa casa aqui, por um direito que eu não era inquilino, eu não era nada. Porque ganhou casa, essas casinha de dois quarto gente que era inquilino. Tinha o talão que pagava luz, pagava o aluguel e já pra mim não. Pra mim foi diferente. Eles quando viram esse negócio, o rapaz me chamou no escritório e participou pra mim que eles tinham ido lá no escritório a mulher, a dona lá tinha morrido, tinha só os três filho. E explicou tudinho. Foi e falou assim, não seu Natanael, é o seguinte, nós vamos dar um jeito aí, vamos dar uma casa para o senhor. Mas eu fui, botei ele na justiça. Mas eu quero o meu trabalho, que eu trabalhei. Por isso até nesse ponto não.

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Aqui o que faltou que eles prometeram pra mim, que ainda não chegou, foi os muro. Mas disse que tão fazendo de novo, que eles disseram que iam dar tudo murado. Agora essa parte dos muro, que eles disseram que ia dar tudo murado eu sempre falo isso. O culpado fomos nós. Foi o povo do Mutum que foi culpado de chegar e ficar aqui, sem muro. Porque quando eles ia, você vai ter que ir tal dia pra lá, fazer a mudança. O muro já tá feito? Não senhor. Pois então eu não vou! Só vou quando tiver tudo pronto, como foi prometido. Mas o povo se avexou. Fizeram pra uns, outros não. Agora disseram que tão fazendo pra acolá de novo. Mas isso é só pro povo do Mutum, esse povo da firma não. A falta do rio a gente sente demais porque lá eu tinha o coco, eu tinha manga, eu tinha laranja, eu tinha pocã, eu tinha acerola pra tomar o suco. Tudo nós tinha lá. O nosso beribá. Fruta lá não era o problema. Nós tinha banana e aqui só se comprar. Se não comprar, a gente não tem. Então a gente sente falta. Lá nós não pegava gripe. Nós lá tomava muito suco de laranja, tirada do pé e da acerola. Tomava suco de acerola quase todo dia. Aquilo é vitamina. E agora, depois que cheguemo aqui é que foi pegar gripe. Lá nós não pegava gripe, não. Ali quase todo dia era o suco. Quando não era de acerola, era da laranja. Quando não era da laranja, era da graviola e era assim. Do cajá, do caju. Os caju lá fez lama, agora. Cada um daqueles bonitão. Tudo que nós plantemo. Eu e ela [a esposa]. Aqui já tá cheio de planta e nós comemo mandioca daqui. Nós plantemos, eu arranquei aqui e nós comemos. Ela [a esposa, Dona Sula] gosta mais de plantar do que eu. Isso tudo foi ela que trouxe de lá essas plantas e plantou. Não tá mais bonito porque ela adoeceu. Nós fomos pra lá e o verão bateu em cima. Quando a gente tá aqui, a gente molha com aguinha, ajeita. Tem cebola dela ali, tem um bocado de plantinha. Se tivesse tudo murado, tudo direito tava cheinho, cheinho de coqueiro. Tudo quanto é coisa nós gosta de plantar. Ali no Mutum, o pessoal falava ah seu Natanael, o senhor vai planta isso? Isso não dá, isso aí cê vai morrer e não vai comer!. Rapaz, só não dá se não plantar. Aí não dá, não mas a gente plantando, dá. Tudo. Tudo graças a Deus que nós plantemos lá, nós comemos. Nós bebia água de coco. Nós queria beber água de coco, tirava os coco lá do pé, enchia uma panela deste tamanho, botava na geladeira. E aqui só bebe se comprar.

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3.2.3 Janet

Até agora ainda não vi uma pessoa chegar assim e falar... nossa, aqui é ótimo, aqui é maravilhoso...

Eu ainda não vi.

Esta narradora enquanto residiu com tranquilidade em Mutum-Paraná, vivia

de seu sustento como cabeleireira. Não é casada mas tem dois filhos cursando o

ensino fundamental. Não tinha família no antigo Mutum mas criou laços fortes de

relacionamento, pois contou com o auxílio de seus compadres e comadres quando

foi necessária a ajuda para a nova moradia.

Gostava da vida que tinha anteriormente pois Mutum-Paraná era não apenas

o local onde conseguia o sustento da família mas também onde ocorria o

aconchego, o encontro com as outras mulheres do distrito na beira do rio adensava

as relações de amizade, esfaceladas agora com a mudança.

Janet é uma senhora de aproximadamente quarenta anos foi entrevistada no

salão de beleza que funciona em sua casa. Ela não recebeu qualquer tipo de

indenização por erros no momento em que sua família foi cadastrada. A casa onde

mora foi construída por um amigo que se compadeceu de sua situação.

Eu vim pra cá porque eles queriam a casa, que a dona da casa só ia receber depois que eu saísse da casa, a segunda parte da indenização. Porque ela foi indenizada. Ela recebeu indenização. Depois que eu saísse da casa, que desocupasse a casa, aí que eles iam me pagar. No caso eu tinha de sair. Aí eu vim aqui na empresa, falar pra eles que eu não tinha pra onde ir porque meus filhos tavam no colégio. A Cleci [ESBR] falou pra mim que ela não tinha nada a ver com isso. Que o que eu tinha era de sair da casa, porque como eu não fui incluída no projeto deles, eles não tinham responsabilidade nenhuma comigo. Eu falei pra ela e meus filho, que tavam no colégio? Ela falou assim, que ela já tinha falado uma vez. Falava uma, falava duas, falava três. Que ela não tinha nada a ver com isso. Que eu me virasse. Isso era mês de setembro. Eu falei pra ela que eu não podia tirar meus filhos do colégio porque inclusive, eu fui em Porto Velho tentar uma vaga e não consegui. Eu falei pra ela assim, mas quer dizer que agora meus filhos vai ficar sem estudar? Ela falou, isso é problema seu! Foi quando um amigo meu me viu desesperada, foi quando alugou uma casa ali e me deu um quarto e uma sala pra eu me mudar prali. Aí meu compadre foi e falou pra mim que eu não me preocupasse, que ele ia fazer essa casa aqui e me dava, pra mim morar.

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A minha vinda de lá pra cá foi essa. E sobre a casa, de eu não ser incluída, eles me alegaram que os documento que eu tenho não foi suficiente pra provar como eu morava lá na época. Os inquilinos receberam casa, só que na época, quando eu cheguei, eu morava com uma outra pessoa. Eu morava mais a Marli. Quando passaram fazendo cadastro, ela não me botou no cadastro dela. Porque primeiro que ela não sabia que duas família morando na mesma casa tinha direito. E logo em seguida que eles passaram fazendo esse cadastro, eu me mudei pra casa da Rosa, era outra casa. Só que lá pra onde eu mudei, já tinha passado o cadastro. Eu fui lá no escritório, falei com a secretária deles que é a Rosa. A Rosa foi, falou que ela não podia fazer mais nada, porque lá já tinha passado o cadastro, já tinha sido primeiro o inquilino que tinha tido direito na casa e que ela ia me botar pra estudo de caso, que era justamente pra gente não fazer nada. Tá, ficou por aí. Ficou desse jeito. Foi quando chegou a época de sair e eu fui apresentei os documentos, que eu morava lá, a declaração dos meus filhos, que estavam no colégio e elas falaram que aqueles documentos não era suficiente. Que era pra mim dar meu jeito. Os recibos da casa, os contratos. E ela falou que isso não era o suficiente. Aqueles recibos todos são recibos da casa. Os contratos, declaração do colégio dos meninos. Ela falou que isso não era suficiente, querendo dizer que aquilo não era, que ela disse assim ah, mas esse documento aqui não vale não. Tem como você provar? Mas eu falei assim, mas esse daqui não é o verdadeiro, tá a assinatura da dona da casa. Ela foi, falou que não, que aquele documento lá não valia e que eu não tinha direito de nada. Porque era pra mim assinar um papel, como eles não tinham me dado o direito, eu tenho esse papel aí, que eu não fui incluída no programa de remanejamento deles. Sinto falta de tudo lá no velho Mutum. Pra começar, aqui tudo é caro. Aqui tudo a gente compra. Tudo é caro aqui, aqui tudo a gente compra. Água de beber a gente compra, água da rua é pago, e tudo caro. Movimento aqui, é só na época dos pagamento. Lá não. Lá tinha o garimpo, lá tinha a mineração, lá era de segunda a segunda. Entrava mês, saía mês e eu sempre trabalhei com salão [de cabeleireiro] e lá, a gente não pagava luz e assim mesmo era só uma taxa que nós contribuía. Não tinha esse negócio de vir dois talão. Que tem mês que tá vindo dois talão de energia pra nós aqui. Agora vem um no começo do mês, e lá pelo dia vinte e cinco vem outro! O meu compadre mesmo aí. Veio dois mês passado. Não sei se eles adivinharam que ele ia viajar... e o resto tudo é caro, tudo! E o custo de vida daqui, a gente tá vivendo pra despesa. Só daqui ganha aqui, gasta aqui mesmo. Eu não tô aguentando não. Se não fosse eu tá cuidando da casa do meu compadre, eu já tinha ido embora porque tá difícil. E olha que eu não tô pagando aluguel. Porque aqui o meu compadre tá dando pra eu morar. Eu só tô pagando a minha água, a minha luz mas tá difícil. Quente demais, quente, quente. Tem hora que a casa é de madeira, e assim mesmo ainda fica quente. A cidade é um fedor, um fedor insuportável. Tem horas que vem um vento assim, a gente fica ó, muito difícil. Não dá nem pra comer com o fedorzão grande. E lá era uma cidade que era toda sem o asfalto, sem nada, mas não tinha isso que tem aqui. Lá, no dia de domingo, tinha um banho pra gente

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ir. Se a gente quisesse comer um peixe, que era só ir ali e pegar. Aqui meu Deus, dez reais o quilo do peixe. Pelo amor de Deus! E lá não, a gente pegava fresquinho, na hora. Se ajuntava um monte de mulher e ia pescar. Chegava de tarde, tinha aquele monte de peixe. E comia a semana toda. Aqui Deus me livre. Tudo é caro. Aqui não tem as comida que a gente comia lá. Aqui é tudo mais bonito, mas em compensação, por lá ser feinho, tudo era melhor de sobreviver. Era melhor de viver, era mais gostoso, sei lá. Era muito bom. Ali era um lugar muito bom. Não sei se era porque não tem mais, porque diz que brasileiro só reclama, só vão dar valor quando perde. Assim agora, nós se reúne aqui mesmo. Como eu, trabalhando, sempre teve uma, vai falar da coisa boa que era lá, aí fica falando... mas não tem mais. A gente tem que se conformar com o que tem aqui. Mas é muito difícil. Ah, foram quase todos os amigos embora. Acho que não tem 10% aqui. Foi muita gente embora. Aqui, pelo que eu vivo aqui, tô no negócio do salão, acho que 80% de pessoas é mais é barrageiro aqui. Tem muita gente é no Jirau. Ali no Jirau ficou tipo o Mutum Velho. Porque ali é, vão morar mais as pessoas. Aqui mora muita gente, muita gente que era do Mutum velho, tava ali. Quer ver os amigos é só ir lá, que nem tem uma rodoviária. A gente vai, passa, para no ônibus ali na rodoviária. É muita gente que morava lá. Já aqui, que diz que é o Pólo do Mutum, a Nova Mutum, não tem quase ninguém. É bem pouquinho de Velha Mutum. E a vida tá sendo assim, desse jeito aqui. E eu acho que resolver esses problemas tá meio difícil, porque aquelas pessoas que foram embora, não vão voltar mais pra cá. Primeiro porque todo mundo só fala mal. Esses dias eu aqui, falando pra um homem aqui. Eu falando que eu tinha vindo de Ariquemes, que lá era bom. Aí ele falou, você tá gostando daqui? Eu falei, daqui não. Eu gostava lá do velho Mutum. Ele falou, meu Deus! Eu nunca vi uma pessoa falar bem, que tenha vindo de lá. Eu também. Até agora ainda não vi uma pessoa chegar assim e falar: nossa, aqui é ótimo, aqui é maravilhoso. Eu ainda não vi. Porque primeiro, as casas que eles deram não presta. Não presta porque a da minha vizinha, aqui atrás, já tá rachada do vento do ano passado. As telhas já tá caindo. Falta água direto. Os esgoto tá tudo entupido. E vai uma hora dessa dentro de uma casa dessa aí, sem ar, que você não consegue ficar dentro. E se for ventilador, tem que botar dois ventilador. Se for com ar, tem que botar o ar direto. Quando chega no final do mês, você não aguenta pagar. Que nem a cumadi ali, tá pagando quatrocentos reais. Você entra dentro da casa dela, você não vê nada. Fui lá reclamar, ah, não posso fazer nada, não. Já fui três vezes lá, no Jacy. A mulher disse que não podia fazer nada, porque contaram e recontaram, e é o que ela gasta. Mas porque o que ela gasta, porque tem que ficar vinte e quatro hora com o ventilador ligado, se quiser dormir bem. Ou dorme no chão. Bota o ventilador e dorme no chão ou então tem que comprar uma central. E quando chega no mês, não pode pagar. E tem muita gente querendo ir embora daqui. Tem muita gente que eu atendo que chega aqui e fala: ai, eu tô vendendo minha casa, eu não tô conseguindo... primeiro que vender, o povo não tão mais querendo comprar. E tem muita gente que se arrependeu de ter vindo pra cá. Parece que as pessoas que foram embora pra outro

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estado, ou outro lugar, tão mais feliz do que nós aqui. Eu acho que resolver alguma coisa aqui tá difícil, porque também que não tem quem procurar. Se a gente quiser fazer uma reclamação, não tem quem ouvir a gente. Teve uma reunião esses dias aqui. Dia vinte e três teve uma reunião aqui pra falar sobre isso. Eles falaram, aquele Anderson falou, que disse que tudo foi cumprido. Tudo que eles falaram. Ele era, o pessoal queria linchar ele. Aí chamaram logo a policia, porque começa a falar e ele começa a negar o que foi feito. Porque pra eles tá tudo sob controle, tá tudo bem. Que eles fizeram que tipo assim, que nós morava num lugar, num lixo. E eles nos deram uma coisa boa, pra nós pra população, pras pessoas que vieram pra cá. Foram questionar sobre isso, que eles não fizeram nada. E ele ficou brabo, lá. Aí o pessoal queria invadir lá, que disse que não, que eles fizeram tudo que eles prometeram. Só que eles não fizeram nada do que eles prometeram. Pra começar, um ano de energia não teve. De energia grátis, aqui não teve de graça. Que com seis, sete meses nós começamos a pagar. O salário as pessoas. Daí receberam tudo pela metade. Tem uma conhecida minha aqui, que recebeu seis mês. E tem outros que recebeu oito mês. Se eles falaram um ano é um ano. A água foi o primeiro que veio o pagamento. Disse que era um ano também mas acho que não, foi seis meses, que nós ficamos sem pagar, usando a água grátis. Então nada do que eles prometeram aconteceu. Assistência, que disse que ia dar assistência de médico, que ia fazer muita área de lazer e mais não sei o que. E nada disso tem. Porque a gente não pode ir numa choperia daquela ali. Que vai ali, e só de entrar já paga uma fortuna. Então não compensa terem feito coisas aqui. Que nem a sorveteria, ali. Deus me livre, ali só é pra barrageiro. Que nós mesmo que morava lá no Mutum, não pode ir num lugar daquele. Lá naquela choperia, a gente não pode comer uma pizza lá porque tudo é caro. Então lá, não tinha essas coisa, mas pelo menos não tinha. A gente não via, não tinha vontade. Aqui tenho vontade, mas não pode comer! Porque tudo é caro e é desse jeito. E aqui quem não é barrageiro, quem morava no Mutum, se você for conversar, a conversa é a mesma, não tem outra. Tudo fala a mesma coisa, tudo fala desse jeito. Que é difícil, depois que essa usina veio pra cá, que todo mundo achou que era pra uma melhora, mas hoje tão vendo que acabou com a vida de muita gente. Muita gente mesmo. Quem mora aqui sabe como é que é a vida aqui. E o pior é que como a gente tá abandonado, não tem pra quem reclamar. Vai vivendo assim, aos trancos e barrancos. Nossa vida se transformou nesse caos que tá aí. A Deus dará. Que que nós pode fazer? Nós pode fazer nada. E todo mundo fala que é daqui pra pior, que não vai melhorar mais nada não. Porque a gente tinha uma esperança de melhorar, mas melhorar o que? Sendo que quando nós viemos pra cá, já era pra tá tudo no jeito. Mas a gente acreditou neles porque era muita promessa que eles faziam. Parecia assim, que as pessoas que tavam lá iam vim pra um paraíso. Na reunião que eu fui, em várias reunião deles, parece assim que era a melhor coisa que a pessoa fazia era sair de lá, daquele lugar. Porque era muita promessa, muita coisa que eles prometiam, que eles falavam. E aí quem não acreditou, não aceitou.

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Que ficou com a carta de crédito. Tinha certeza que ia acontecer isso... mas, quem acreditou, que foi na conversa deles, que pegou, hoje tá arrependido querendo vender e não tem nem pra quem vender. Nas reunião lá, eles falavam muita coisa boa. Aí hoje nós tamo vendo. Tamo com um ano aqui, já sabe o que que é morar aqui no Pólo. Quando essa barragem tiver pronta, com certeza aqui vai à falência. Eu penso comigo que é assim, porque no dia que teve aquelas, aquela manifestação lá, da Camargo, isso aqui ficou às moscas. Pra mim mesmo, que trabalho com salão, não fazia nada então já sabe que o movimento daqui é a firma. Quando a firma for embora, que eles falaram que ia ter indústria aqui, que ia ter emprego, que eles ia fazer muito cursos. Que três anos que eles ia passar aqui, era três anos só aperfeiçoando as pessoas, fazendo curso. Era pras indústria quando vim já pegar as pessoas preparado. Que assistência total eles iam dar pras famílias. Era muitas conversa boa, era muita coisa boa que eles falavam. Aí, agora já sabe. Vai viver de quê esse povo? Quando eles for embora, vai ter que ir embora daqui também. Porque não vai ter como viver. Lá pelo menos tinha os garimpeiros, que pode ser o que for, mas dá bastante lucro. Tinha os sitiante, tinha as serraria. Tudo tinha lá pra viver. E lá, dava melhor do que aqui, pra serviço eu tô falando. Da minha área, eu ganhava mais lá do que aqui. Que aqui eu só tiro meu lucro só do dia primeiro ao dia dez. Lá pelo dia vinte e cinco é que dá outra melhoradinha. A de lá tudo eu sinto falta, lá é... Até o clima era melhor que o daqui tudo lá pra mim era melhor porque eu morava na beira da BR, então lá tudo era bom lá era mais fresco aqui é muito quente. E sobre esse negocio de lazer eu não posso falar nada porque tanto faz lá como aqui não mexo com isso né? E outra que lá não seu o porque que lá sobre o negocio de medico era melhor lá tinha todo final de semana e aqui é uma calamidade esses médicos daqui, lá nós não dependia de água aqui tem esse problema de água com a gente fica três quatro dias sem água e a energia daqui é muito cara, muito cara mesmo a água daqui também tem mês que a gente só paga a taxa, tem mês que... Parece que o mês que a gente paga a taxa no outro mês vem em dobro, então não sei que taxa é essa e aqui o bom daqui é que aqui é sossegado sobre esse negocio de roubo agorinha estava falando com um cliente meu sobre isso, sobre negocio de roubo não tem ainda graças a Deus esse negocio de roubo o custo de vida aqui é pesado se a gente não se rebolar mesmo passa até por necessidade.

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3.3 Imagens e Narrativas

Foi interessante incluir imagens para compor com as impressões de campo

uma possível visualização do que percebemos em Nova Mutum e o que os

Narradores entrevistados evidenciaram em suas falas, enquanto sujeitos desse

processo.

Selecionamos algumas imagens que ilustram momentos da vida das pessoas

que viviam em Mutum-Paraná e foram deslocadas para Nova Mutum. Estas imagens

foram captadas em trabalho de campo. As imagens, juntamente com as narrativas

permitem uma visibilidade mais clara dos processos de mudança enfrentados pelas

pessoas vivendo agora em um lugar diferente e em muitos casos de estranhamento.

Entendemos a importância das imagens aqui expostas para a pesquisa, pois

agregam às memórias e as experiências atuais que vivem as pessoas deslocadas

do lugar de seu conforto, tanto material quanto emocional. O encontro destes

sujeitos com o mundo, com suas vivências e estados passados, perpassam seus

sentidos, por intermédio do corpo. Segundo Karjalainen (2012),

O corpo e os sentidos são uma parte necessária de nosso encontro pessoal com o mundo. No encontro, a memória humana, um fator existencial chave, desempenha um papel vital. A memória se relaciona com o sentido humano de tempo. Temos nossas percepções do presente, lembranças do passado e antecipações do futuro. Esta tríade – percepções, memórias e antecipações – tem muito a ver com nossa identidade (KARJALAINEN, 2012, p.7-8).

As imagens foram organizadas de forma que se vê primeiro as que são

referentes à vida antes do deslocamento e em seguida elencamos imagens do que

se vê atualmente em Nova Mutum, remetendo-nos às narrações que nos trouxeram

nossos colaboradores e tem alguma referência a informação trazida pela imagem.

Devemos levar em conta também que as fotografias contribuem para a o

desvendamento de múltiplas interpretações geradas advindas do contato das

imagens com o receptor. Como comenta Soilo (2012)

O pesquisador, ao retratar seu objeto de estudo através da fotografia, constrói visões de mundo dialogando com os atores sociais na produção destas representações imagéticas. Com isso o pesquisador deve ter consciência de que o conteúdo de suas imagens não denota uma verdade pré-existente e sim constrói representações de mundo.

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Logo, a inserção dos recursos imagéticos à pesquisa científica tem a intenção de ampliar e/ou potencializar a capacidade de compreensão do objeto estudado (2012, p. 78).

Desta maneira justificamos a necessidade de agregar às narrativas do vivido,

as imagens feitas nos lugares onde ocorreu o trabalho de campo e onde se

desenrolou a atuação de nosso estudo.

3.3.1 Mutum-Paraná

Foto 1. O antigo cemitério, sobre os trilhos da EFMM, Mutum-Paraná. As covas dos antepassados mortos foram transferidas para o cemitério em Nova Mutum. STOLERMAN, Paula. Imagem digital, 2010.

Um dia desse foram cavar uma sepultura pra uma velhinha que morreu, passaram o dia quase todo cavando, muito dura. Meu filho espocou foi as mão, fez calo pra cavar a sepultura! E aqui já podia ter um coveiro. Já tava no tempo de botarem um coveiro. Os coveiro aqui é os gari. E tem pouco, só três. Pronto. Os morto lá do Mutum Velho veio pra cá, enterraram tudo aí. Se tinha um coveiro, o coveiro tava aí. Dava uma casa pra ele. É difícil morrer até gente, mas já podia ter uma coisa, ou então fazer uns buraco como faz em Porto Velho, e deixar aberto. Quando morresse um, os pobre dos gari vai faze é adoecer (Dona Teta, 2012).

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Foto 2:. Parte da locomotiva e trilhos da EFMM, patrimônio histórico, em estado de abandono, Mutum-Paraná. STOLERMAN, Paula. Imagem digital, 2010.

Que eles falam ah, esse sentimentalismo besta. Eles falam isso, sentimentalismo besta, Mutum... ah, tudo acaba! Tantos outros lugares foram construído usinas e a cidade acabou e ninguém morreu por causa disso, o pessoal da empresa fala. Ah, vocês são muito besta se apegando a coisa pequenas. Ali não tinha nada de bom, só mosquito e malária (Nadia, 2012).

Foto 3. Draga usada no garimpo sob a Ponte no rio Mutum, Mutum-Paraná. O garimpo funcionava como vetor da economia de Mutum. STOLERMAN, Paula. Imagem digital 2010.

Eles não foram justos com o meu pai. Não levaram em consideração o tempo de moradia deles, não levaram em consideração nada. Não tiveram um pingo de respeito pra com esse lado e foram injustos na forma do acerto deles. Porque que nem ele falou, o construído que ele fala, que era pro resto da vida dele. É porque nós dependíamos da área do garimpo, nós ficávamos localizados na entrada do

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garimpo. Nossa clientela era os garimpeiros então eles fizeram uma coisa que pra eles era pro resto da vida deles, ali (Cleide, 2012).

Foto 4. Residência de família com o detalhe de mangueira e caixa d´água. O uso de poços artesianos ou não abastecia as famílias em Mutum-Paraná. Imagem digital, Mutum-Paraná, STOLERMAN, Paula. 2010.

E aqui não tem nada. Até a água que nós tava falando falta. E eles tava proibindo de fazer cacimba .Uma coisa errada, porque todos nós que viemos de lá, todo mundo usava cacimba. Então o que que eles podem empatar o que era nosso? Tá certo, botou a água. Mas a água não tá beneficiando a nós porque nós não podemos fazer o nosso poço. Nós estamos acostumados a mexer com poço. E outra coisa, cada um faz um poço e cuida da sua vida. E aqui não, vem um preço total. Essa água hoje vem um preço, quando é amanhã já vem mais (Senhor Robert, 2011).

Foto 5. STOLERMAN, Paula. Residência em madeira, comum no Distrito de Mutum-Paraná. As casas

de madeira permitiam uma temperatura mais agradável para as famílias que viviam em Mutum.

Imagem digital, Mutum-Paraná. 2010.

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Um homem que é acostumado a viver na beira do rio. Qualidade de vida pra esse povo, pra quem é daqui, que nasceu, se criou e vive nesse mundo do norte, aqui, é pisar no chão, na terra, sentir a terra. É ir na beira do rio pescar e no fundo do seu quintal plantar um pé de macaxeira, ir numa fruteira tirar uma fruta fresquinha ali, comer, fazer um suco, tomar... isso é qualidade de vida. Pra ele não precisar duma central de ar, ou dum ar condicionado, porque a casa é de madeira. É simples mas é arejada. Ela é ventilada, entendeu? Ela não esquenta, entendeu? A casa de madeira não é porque não tem condições de construir uma casa de alvenaria. Não, é porque a casa de madeira, pra região é mais apropriada do que uma casa de concreto (Eleandro, 2012).

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3.3.2 Nova Mutum

Foto 6.STOLERMAN, Paula. Outdoor que se avista ao entrar na cidade de Nova Mutum, associando o símbolo do consórcio ESBR à uma vida feliz em Nova Mutum. Imagem digital, Nova Mutum, 2011.

Os cara vieram com outra visão, e com a qualidade de vida deles. E

aí nós tamos vendo as nossas famílias, os idosos morrendo, os filhos

com tóxico, com tráfico, com prostituição, as crianças. Porque

desestruturou. Muitos casais se separaram por conta disso. E aí tá

acabando com as famílias. Isso aí não tá sendo levado em

consideração, entendeu (Eleandro, 2012)?

Foto 7. STOLERMAN, Paula. Parque para crianças em desuso. O calor intenso e a ausência de arborização afastam a comunidade do convívio social fora de casa. Imagem digital, Nova Mutum, 2013.

Chega aqui esse cozidão danado. Não tem uma sombra, não tem

nada. Eu tô vermelha que nem um pimentão, eu tava no meio da rua.

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Não precisa nem tá no meio da rua pra sofrer a quentura. Vai

conversar com eles. Não, eles manda é plantar! Eles mandam

plantar. Eles inventaram esse projeto desse viveiro, essas coisa, eles

dão, eles passaram nas porta distribuindo as muda, agora você me

diz, o meu pai tem 55 anos naquele lugar, as árvores dele tudo com

fruto, tudo com sombra, ele vai plantar hoje aqui. Que dia que ele vai

usar a sombra? Que dia? Nunca, ele não vai tá mais vivo pra usar

essa sombra e você vai falar isso? Nossa, eles pouco lhe dão

confiança. Agora você nem encontra eles aqui, nem dentro da usina

inclusive (Cleide, 2012).

Foto 8. STOLERMAN, Paula. Moradia de “barrageiro”, do consórcio. As casas mais próximas da BR 364 são ocupadas por funcionários de alguma empresa que atua no canteiro de obras. Os moradores de Mutum-Paraná remanejados consideraram que a localidade de Nova Mutum foi escolhida para atender exclusivamente aos interesses do consórcio. Imagem digital, Nova Mutum, 2011.

Eles querem saber que pra cá tudo era mais fácil pra eles. Aqui é perto da entrada da usina. A construção daqui é benfeitoria só pra eles, eles pensaram só por esse lado. Era mais próximo do Jacy, pra se resolver as coisas, que era bem maior que o Mutum na época. Na verdade então acho que era o apoiozinho que eles tinham. Foi tudo mais fácil pra eles. Eles pouco se importam com a gente. A gente já vem com toda essa dificuldade aqui, o custo de vida desse jeito, não tem uma arborização (Cleide, 2012).

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Foto 9. STOLERMAN, Paula. Residência de moradora remanejada de Mutum-Paraná, nomeada aqui Janet, que transpusemos a narrativa integralmente para este trabalho. Esta senhora, por não ter feito cadastro com a empresa em uma data específica, ficou sem moradia e construiu a casa no quintal de seu amigo. Outros moradores de Mutum-Paraná passam pela mesma dificuldade. Imagem digital, Nova Mutum, 2011.

Assim, eu não sei bem o que é que vai ser dessas casas. O que vai fazer dessas casas quando o pessoal for embora. Não sei se eles vão vender... mas se todo caso for passar pra prefeitura, e a prefeitura vender, já sabe que eu não vou ter como comprar. Vai ser de sessenta mil pra frente. E a gente tá brigando. Do meu lado, eu não fiquei tão chocada por eu não ter casa. Porque eu ainda tenho onde morar. Eu fiquei preocupada com o pessoal que ficou pra trás, que eles tavam morando nuns barraquinho e sem perspectiva de ganhar nada. E parece que começaram já a se tocar e já foram ganhando as casinhas deles. Pra mim só de eles terem ganhado, já foi meio caminho andado. É o que eu falei: mas tu também tem que ganhar. Eu posso construir lá atrás da minha mãe, e vocês vão construir aonde? Eu acho que deveriam dar mais atenção... que o pessoal tão saindo daqui. Daqui a uns dias não vai ter mais niguém do Mutum aqui. Ninguém vai querer ficar nesse lugar, vai viver de que? Aqui a gente não tem lazer de nada (Nádia, 2012).

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Foto 11. STOLERMAN, Paula. A avenida que se percorre ao chegar em Nova Mutum. Imagem digital, Nova Mutum, 2013.

O jeito é conformar, não tem outro jeito. Se for chorar leite derramado imagina... já derramou! A gente ia ter que sair mesmo, ia ter que sair, ia inundar lá, mas nós gostava de lá. Aqui ainda não me acostumei não. Porque se não for no ar dentro de casa pra gente ficar, é ruim, quente. O sol parece que é mais quente que em outros canto. As árvores faz com que refresque mais um pouco (Dona Teta, 2012).

Foto 12. STOLERMAN, Paula. A caixa d’água da EFMM. Patrimônio Histórico de Mutum-Paraná abandonado em local que deveria funcionar como museu e memorial do Distrito de Mutum-Paraná mas que se assemelha visualmente a um supermercado. Imagem digital, Nova Mutum, 2013.

Aquela caixa d’água que eles trouxeram, era pra ela ficar bem naquela bola do meio, escrito bem vindo à Nova Mutum. Eles colocaram lá no canto, apagado. E deixaram lá. Ah, mas é aí que vai ser o museu a céu aberto. Eu pensava que ela ia ficar lá naquela bola, eles ia fazer um banco, ia fazer uns banquinhos da praça com escorregador, bonitinho. Mas essa entrada da Vila é a coisa mais horrível que tem. Já podia ter arborizado isso aqui. Eles tem estrutura

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pra colocar. Não, os moradores vão plantar o que quiserem. Vão plantar o que aqui nessas terras (Nadia, 2012)?

Foto 12. STOLERMAN, Paula. Moradora remanejada oferece serviço como lavadeira. Imagem digital, Nova Mutum, 2013.

Beneficiar nós, isso não vai beneficiar em nada. Que a geração de emprego que foi criada aqui, não beneficiou. Se você ver os moradores do Mutum, se contar nos dedos quantas pessoas trabalham prestando serviço para essas empresas que trabalham aí, não tem. Não houve a qualificação profissional da mão de obra, não houve qualificação profissional. O povo do Mutum continua do mesmo jeito e tirou o que nós sabemos fazer, que é pescar (Eleandro, 2012).

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CAPÍTULO 4: ANÁLISE GEOGRÁFICA DO DISCURSO SOBRE O LUGAR

Organização: STOLERMAN, Paula. Imagem digitalizada. Folheto Publicitário ESBR, 2010.

Organização: STOLERMAN, Paula. Local abandonado em Nova Mutum, destinado à instalação de polo industrial. Acervo do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB. 2013.

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4.1 O discurso empresarial na construção da UHE Jirau

O discurso não é apenas uma peça coadjuvante do mundo social ou conjunto

de signos posicionados gramaticalmente e lexicalmente, mas sim prática social e

forma de agir no mundo (FAIRCLOUGH, 2008). Desse modo, as práticas discursivas

atuam em disputas simbólicas pelos sentidos atribuídos ao meio ambiente, no que

denominamos campo de conflitos ambientais. Nesta pesquisa percebemos que há

também uma diferente acepção de lugar presente nas práticas discursivas pois as

formas de agir no mundo, de sentir, de experienciar estão imersas nos lugares e no

mundo vivido e são expressas nas narrativas, entendidas em nossa trabalho como o

discurso dos atingidos sobre o lugar.

Como discursos são formas de agir no mundo e posicionam os atores sociais

de diferentes formas, entendemos que os lugares podem ser expressos em

discursos diferenciados, demonstrando distintos posicionamentos no campo,

indicando diferente simbolização e significado para o lugar.

Para a teoria de Faircloug (2008), a análise de discurso não deve priorizar

desvelar apenas as relações de poder contidas em um determinado texto16, mas de

que forma, através das disputas entre diferentes atores sociais, este poder vem

sendo reproduzido historicamente através do discurso e como essa dialética molda

novos discursos repercutindo em efeitos sociais diferenciados. O autor, então,

estabelece que

[...] o discurso tem uma relação ativa com a realidade, que a linguagem significa a realidade no sentido da construção de significados para ela, em vez de o discurso ter uma relação passiva com a realidade, com a linguagem meramente se referindo aos objetos, os quais são tidos como dados na realidade (FAIRCLOUGH, 2001, p. 66).

Adicionando-se a isso, segundo a proposta de Michel Foucault (1996), os

discursos, em nossa sociedade implicam em relações de poder. A luta por poder

ocorre tanto no discurso quanto subjacente a ele. Sua manifestação deve ser

regulada, na medida em que o poder sobre determinado discurso implica na

legitimação das práticas sociais daquele que o detém. O discurso constitui o social,

como também os objetos e os sujeitos sociais.

16

Para Faircloug os textos são tanto falas, quanto material escrito.

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[...] se o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e o poder? (FOUCAULT, 1996, p. 20)

Foucault propõe uma análise dos discursos que leve em consideração o

desvendamento dos processos aos quais o discurso é submetido, que tem por

objetivo controla-lo e medi-lo, adequando-se desta forma ao interesse de grupos em

disputa pelo poder de dizer. Segundo o autor:

[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, arquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1996, p. 8)

A análise discurso, como foi proposta por Michel Foucault, implica em

investigar tanto a formação histórica de um determinado discurso, sua construção no

decorrer dos processos sociais, quanto os processos de exclusão pelos quais

passam os discursos e que engendram sua legitimidade ou a não legitimidade. Na

medida em que este situa a os discursos como mecanismo de poder, sua

apropriação é disputada no interior da sociedade.

Neste ponto, faremos uma interseção com as propostas teóricas de Luc

Boltanski e Éve Chiapello (2009). Estes autores buscaram responder como a crítica

ao capitalismo foi neutralizada, de forma que o caminho permanecesse aberto para

sua perpetuação e intensificação. Em suas palavras:

Procuramos, por um lado, descrever uma conjuntura única, na qual o capitalismo pôde livrar-se de certo número de entraves ligados a seu modo de acumulação anterior e às reivindicações de justiça que provocara e, por outro lado, [...] estabelecer um modelo da mudança de valores da qual dependem ao mesmo tempo o sucesso e o caráter tolerável do capitalismo, pretendendo uma validade mais geral (BOLTANSKI e CHIAPELLO,2009, p. 29-30).

Para os referidos autores, o capitalismo vem passando por ajustamentos.

Estes ajustamentos são responsáveis pela manutenção do sistema capitalista e

ancoram-se em respostas às críticas que são socialmente construídas. São as

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críticas que recebe, as responsáveis pela resposta e adaptação do sistema

capitalista para continuar sendo validado e reproduzido.

Para o ingresso no capitalismo, segundo os autores, são necessárias

"justificações" que tornem o empreendimento desejável, visto que o capitalismo,

[...] sob muitos aspectos, é um sistema absurdo: os assalariados perderam a propriedade do resultado de seu trabalho e a possibilidade de levar uma vida ativa fora da subordinação. Quanto aos capitalistas, estão presos a um processo infindável e insaciável, totalmente abstrato e dissociado da satisfação de necessidades de consumo, mesmo que supérfluas (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009, p. 38).

O engajamento no capitalismo deve atender a uma série de justificações

morais. Nesta perspectiva, a questão do dano ambiental provocado pela

intensificação industrial, entraria em uma lista de "fatores negativos" para o

engajamento, pois as práticas capitalistas contribuem para a degradação do planeta.

A ação discursiva do consórcio ESBR, está moldada em um contexto social

onde a esfera ambiental já tomou considerável relevância, e a preservação

ambiental apresenta-se discursivamente como justificativa para a atuação

empresarial em áreas que serão degradadas por suas atividades. Esta mudança no

discurso empresarial acompanha um processo de mudança social denominado de

ambientalização. Esta nomenclatura referiu-se à

[...] interiorização das diferentes facetas da questão pública do “meio ambiente”. Essa incorporação e essa naturalização de uma nova questão pública poderiam ser notadas pela transformação na forma e na linguagem de conflitos sociais e na sua institucionalização parcial (LOPES, 2006, p. 34).

Desta maneira, o discurso empresarial vem elaborando continuamente

resposta às críticas historicamente propostas pelos movimentos ambientalistas e

populações prejudicadas por ações de cunho negativo em relação ao meio

ambiente, assim como simultaneamente às assimila, transmutando os discursos da

crítica em discursos de justificação, sugerindo mediante as crenças compartilhadas

socialmente, usuais no mercado propagandístico, que ações anteriormente malignas

agora atuam benignamente.

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As justificativas para as ações empresariais aparecem em mecanismos

institucionais que as empresas poluidoras apresentam, assumindo

responsabilidades sociais e ambientais, incorporando as temáticas ambientais a fim

de legitimar as práticas.

Podemos evidenciar a ambientalização de práticas discursivas do meio

empresarial observando a preocupação do consórcio ESBR em obter o serviço de

certificação de sustentabilidade denominado Protocolo de Avaliação de

Sustentabilidade de Hidrelétricas (disponível em

http://www.energiasustentaveldobrasil.com.br). Este mecanismo de certificação é

recomendado pelo lobby do meio empresarial de barragens, que elenca pontos a

serem investigados para o reconhecimento da sustentabilidade do projeto.

Este mecanismo de auditoria foi formulado pela Associação Internacional de

Hidroeletricidade e visa quantificar a sustentabilidade de um empreendimento

hidrelétrico, no entanto recebeu críticas por obter resultados tendenciosos no uso de

seus protocolos, não disponibilizando as provas empíricas dos dados que resultaram

em uma avaliação positiva da empresa hidroelétrica, ignorando dados quantitativos,

importantes para uma conclusão mais refinada, por não obter respostas quanto à

repercussão na bacia hidrográfica e outros furos.

Em suma, este mecanismo assevera a possibilidade do consórcio ESBR

apresentar-se mediante o discurso da sustentabilidade, promovendo ações benignas

às gerações futuras como podemos verificar no sítio eletrônico da empresa:

A Energia Sustentável do Brasil S.A. (ESBR) contratou o IHA para realizar esta avaliação na fase de implantação da UHE Jirau. Os resultados demonstram o comprometimento da ESBR com a sustentabilidade na implantação da UHE Jirau, além do atendimento às melhores práticas em usinas hidrelétricas e a promoção da melhoria contínua nos seus processos de gestão socioambiental (Disponível em www.energiasustentaveldobrasil.com.br acesso em

30/06/2014).

O consórcio ESBR foi apresentado discursivamente por meio de anúncios,

mecanismos propagandísticos e folhetos, como mecanismo de desenvolvimento

sustentável para a população brasileira e a de Mutum-Paraná. No discurso da

ESBR, a construção da barragem trará benefícios que os aparelhos sociais do

estado não proporcionaram.

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Os recursos usados na criação de propagandas funcionam como mecanismo

para consolidar determinadas significações simbólicas a respeito do uso dos

recursos naturais, e também os atos de simbolização que perpassam a construção

dos lugares de vivência dos grupos de pessoas que serão diretamente afetados pela

construção da barragem. O discurso publicitário que representa o consórcio ESBR

dialoga com a comunidade removida de seu lugar utilizando símbolos da vida

compartilhada por este grupo, reconstituindo em imagens cenas da vida cotidiana

dos indivíduos, com seus referenciais simbólicos a respeito do lugar em que vivem.

A partir do fim dos anos 1990, a ideia de sustentabilidade e desenvolvimento

sustentável se consolidou como tema central para a publicidade do setor elétrico

(ASSIS, 2010), quando foram incorporadas as estratégias de propaganda focadas

nas compensações sociais e mitigação de impactos sociais e ambientais. O discurso

como prática social de empresas com atividade ambientalmente danosa promoveu

simbolicamente a eleição de um conjunto de crenças que atenuam a visibilidade a

respeito de suas práticas danosas. Desta maneira diferentes discursos sinalizam

diferentes posicionamentos na disputa dentro do campo dos conflitos ambientais no

que tange aos significados para o meio ambiente e os lugares.

Após a vitória do consórcio ESBR no leilão, a empresa iniciou um trabalho

propagandístico nas áreas afetadas pelo empreendimento, objetivando consolidar

sua imagem ecologicamente viável e socialmente desejável. Neste folheto

distribuído na cidade de Porto Velho, confeccionado com papel reciclado e contendo

imagens que remetem à floresta e às populações tradicionais, lemos o seguinte:

Preservação ambiental e desenvolvimento local O desafio é conduzir essa obra com base nos princípios do desenvolvimento sustentável. Mais do que gerar energia, a preocupação é contribuir para o desenvolvimento da região, para a melhoria da qualidade de vida do cidadão e a preservação das riquezas naturais e do meio ambiente. Para a energia Sustentável do Brasil esse é mais que um desafio. É um compromisso! [...] Ganha o cidadão, a cidade e a região A Energia Sustentável do Brasil está criando o programa “Energia Social” de realocação das famílias localizadas nas áreas rurais e urbanas sob influência do projeto. O objetivo é garantir as condições necessárias para que as famílias possam dar continuidade as suas atividades econômicas, sociais e culturais. A Energia Sustentável do Brasil manterá um constante diálogo com a comunidade, criando uma relação de transparência para a definição de critérios justos e claros, preservando o bem-estar, as relações sociais e os interesses

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das famílias da região. Uma das novidades desse projeto é a construção de uma nova sede para o distrito de Mutum-Paraná. Mais moderna e planejada, a nova sede trará mais qualidade de vida para a população, com uma infraestrutura urbana atualizada e em pleno funcionamento.

Organização: STOLERMAN, Paula. Folhetos de Propaganda ESBR. Imagens digitalizadas, 2010.

Organização: STOLERMAN, Paula. Folhetos de Propaganda ESBR. Imagens digitalizadas, 2010.

Nos debruçamos nestas amostras de textos publicitários com o intuito de

[...] investigar as vozes e os olhares que orientam a produção dos anúncios. Assim, pode-se compreender a publicidade como

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receptáculo dos discursos que circulam no interior do campo ambiental e como reflexo do estilo impresso pelas empresas anunciantes. Como evidencia Orlandi (1988), o uso do discurso constitui um ato social com todas as suas implicações, conflitos, reconhecimentos, relações de poder e constituição de identidades, de modo que a seleção que o sujeito faz entre o que diz e o que não diz é extremamente significativa. Avalia-se que a estratégia utilizada pelos anunciantes que recorrem à publicidade busca, de um lado, harmonizar os impactos ambientais e, de outro, consolidar uma imagem corporativa de respeito à natureza e às comunidades (ASSIS & ZHOURI, 2011, p. 123).

O consórcio ESBR, em sua imagem promocional exibida anteriormente, não

trouxe nenhuma foto do projeto hidroelétrico, da barragem ou de outra obra deste

tipo, mas usa imagens que ilustram e promovem a associação entre a construção da

barragem e os recursos ambientais, assim como aos lugares de viver das

comunidades ribeirinhas.

A publicidade do consórcio prezou por enfatizar o caráter sustentável do

empreendimento, visto que as formações discursivas são moldadas em um processo

de simbolização contínuo onde a formalização do discurso garantiu a efetivação da

crença daqueles que disputam o poder na luta material e simbólica em um campo

social, o que representou que a empresa pretendeu dominar o discurso a respeito

dos sentidos para os recursos ambientais, assim como demonstrar que proporciona

benefícios sociais não contemplados anteriormente pelos moradores deslocados.

Quanto a questão do discurso da sustentabilidade, este conceito enfrenta até

os dias atuais uma grande problemática, devido sua definição um tanto nebulosa. O

discurso do desenvolvimento sustentável esteve presente em ações de

[...] empresas suspeitas de práticas predatórias ambientalizam seu discurso, recusando, ao mesmo tempo, controles externos e proclamando sua capacidade de autocontrole ambiental; autoridades governamentais flexibilizam a legislação ambiental, alegando ganhos de rapidez e rigor nos licenciamentos; promotores de grandes projetos hidrelétricos que desestruturam a vida de comunidades indígenas afirmam que desenvolverão programas de “sustentabilidade” destinados “a assegurar a continuidade dos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais” dos grupos indígenas [...] (ACSELRAD, 2010, p. 105).

Porém, no caso de atingidos pela UHE Jirau, nem mesmo estes significados

ligados a esfera ambiental foram plenamente discutidos. Como verificamos em uma

edição do folheto “Jirau Notícias”, veiculado em 2010 na área compreendida pela

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AID, um senhor morador de Jaci-Paraná pergunta ao consórcio quando o Distrito

poderá ter energia sustentável, pois o abastecimento de energia é irregular. Nestes

termos, conforme o entendimento do morador de Jaci, a sustentabilidade não

mantém o significado presente na declaração “Nosso Futuro Comum”. Isto evidencia

a ambiguidade para o termo ‘sustentável’, presente nas falas de pessoas

possivelmente prejudicadas pelo empreendimento, porém com significado diferente.

O consórcio ESBR atua em nome do Estado brasileiro, na medida que tem a

concessão para explorar o Rio Madeira por um período de 35 anos. Para a

efetivação deste contrato existe uma série de normas estabelecidas pela legislação

ambiental. Entendemos desta maneira que ao acatar o atendimento destas

condicionantes, o Estado e a empresa passaram a compartilhar um mesmo discurso.

A ESBR, enquanto agente detentor de maior capital econômico, valeu-se dos

mecanismos de comunicação para manter a hegemonia também no plano dos

discursos, para certificar seu capital simbólico e garantir a crença hegemônica de

que a implantação da barragem promoveu melhoria nas condições de vida da

população de Mutum-Paraná.

Para o processo de licenciamento, a empresa teve que apresentar ao IBAMA,

órgão regulador do processo de operação da UHE, um grupo de programas que

objetivavam atender às necessidades das populações diretamente afetadas, o PBA

(Programa de Remanejamento das Populações Atingidas).

O item 4.25.2 do PBA indica as obrigações do empreendedor em relação ao

restabelecimento das condições de vida existentes anteriores ao projeto. Neste

sentido, o documento indica que as condições devem ser melhores às encontradas

antes da intervenção da obra:

Face às mudanças que serão causadas, cabe ao empreendedor fornecer recursos financeiros, humanos, institucionais e materiais que viabilizem a manutenção e a melhoria das condições de vida e da capacidade de produção e de subsistência das populações atingidas, o exercício pleno da cidadania e que assegurem a participação democrática e o respeito às diversidades sociais, econômicas, étnicas, culturais e ambientais (PBA JIRAU, item 4.24, 2009, p. 2).

Desta maneira, a percepção é de que a empresa recebeu a responsabilidade

sobre a manutenção da vida dos cidadãos que tiveram seus modos de manutenção

da vida impedidos devido à construção da barragem. O discurso do consórcio

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empreendedor o posiciona como o sujeito que promoverá a melhoria na qualidade

de vida dos atingidos e assim intensifica de forma discursiva seu caráter benéfico

para a população local.

As imagens do folheto referente ao projeto urbanístico de Nova Mutum,

inicialmente denominado Polo Jirau de Desenvolvimento Sustentável, apresentaram

uma cidade “construída com a preocupação de criar condições seguras para que a

população possa dar continuidade à sua vida e suas atividades sociais, produtivas e

culturais.” (FOLHETO ESBR, 2012).

Organização: STOLERMAN, Paula. Folhetos de Propaganda ESBR. Imagens digitalizadas,

2010.

No folheto há referência às atividades e construções previstas para Nova

Mutum, que seriam desenvolvidas com o apoio da ESBR.

Para fomentar uma economia sólida e gerar desenvolvimento, a Energia Sustentável do Brasil vai dar apoio aos projetos de geração de serviços e do comércio local. A empresa vai também executar, por meio de parceria, programas de qualificação para micro e pequenos comerciantes e dar apoio de crédito para investimento no novo Polo.

Área industrial com toda infraestrutura

Programas de qualificação e formação de investidores locais

Ações de atração de investimentos para o projeto do Polo Jirau

Parcerias com entidades de fomento de micro e pequenas empresas

Apoio de crédito e qualificação para micro e pequenas empresas. (FOLHETO ESBR, 2012).

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Ao discurso presente na propaganda da empresa, devemos contrapor a

experiência de campo, pois em uma entrevista, uma colaboradora afirma que

A choperia do vice-prefeito veio primeiro do que o posto de saúde. Ficou pronto primeiro. Ele falou que era um projeto fora à parte e não sei o que. Mas ficou pronto primeiro. É do vice-prefeito Emerson Castro. O hotel tinha quase cinquenta homens trabalhando lá, reformando o hotel, botando grama no posto tinha dois, três. Então quer dizer que a saúde e educação tão ficando em segundo plano? Primeiro é os interesses pessoais. É sacanagem (Nádia, 2012).

Desta maneira podemos refletir sobre a manutenção das esferas de poder

mediante a legitimação de determinado discurso. Contando com a chancela do

Estado, para quem colabora no sentido de garantir energia elétrica para a indústria

brasileira e assegurada pela legitimidade do discurso verde, a ESBR instalou um

conjunto residencial que não correspondeu aos projetos exibidos para a população.

Podemos ver que na página do folheto à esquerda há um grande lago, o qual

não foi construído, que repercutiu em mais uma insatisfação para a população pois

Nova Mutum não possui nenhum tipo de balneário próximo para o banho, coisa que

era corrente quando viviam na beira do rio.

Como outra de nossas colaboradoras informou

[...] às vezes, final de semana, fico aqui... nossa, ah, se tivesse um

rio, ah se tivesse um lugar pra gente ir. E a gente estava alegre com esse clube ali. Teve a inauguração e ninguém soube. Aí saiu o comentário, não, é só pro pessoal da firma. E eu falei, toma banho de mangueira mesmo [...] (Dona Leila, 2013)

As benfeitorias atendem aos funcionários do consórcio ou aos funcionários

públicos com maior poder aquisitivo, que podem pagar pelos benefícios de um clube

fechado com piscina. Aos moradores deslocados de Mutum-Paraná fica a memória

do rio.

A única indústria instalada na localidade foi a BS Construtora, que após

construir as casas de Nova Mutum fechou as portas, entrando em falência. O local

ficou abandonado e atualmente funciona como serraria, que tem como matéria prima

as toras vindas do trabalho de supressão vegetal no reservatório da UHE Jirau.

Na primeira imagem abaixo vemos alguns pedaços dos blocos de concreto

moldado que foram produzidos pela BS Construtora e abandonados no local, assim

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como mato alto, indicando abandono da área de funcionamento deste local que

deveria, segundo o discurso empresarial, estar despontando como centro de

desenvolvimento sustentável, inclusive para as famílias residentes.

Foto 14: Blocos de casas pré-fabricadas abandonados ao relento no Polo Industrial de Nova Mutum. Não há preocupação em aproveitamento de materiais para os atingidos por barragens. Acervo MAB. Organização: Paula Stolerman, 2014.

Foto 15: Abandono no Polo Industrial de Nova Mutum. Acervo MAB. Organização: Paula Stolerman, 2014.

Como vimos, o discurso ambientalizado do consórcio Energia Sustentável do

Brasil não garantiu melhorias para o modo de vida da população deslocada devido a

instalação do empreendimento. No entanto, o discurso associado à preservação

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ambiental, à produção de energia limpa e desenvolvimento econômico funcionou

como legitimação de suas práticas e como justificativa para ações de desrespeito à

comunidade.

4.2 Diferentes percepções do Lugar

Nossas observações, derivadas do trabalho de campo e conversas com

moradores, entrevistas, leitura de material publicitário produzido pelo consórcio de

empresas ESBR, nos levaram a refletir sobre a incompatibilidade entre dois modos

de sentir e viver o lugar.

Para os moradores deslocados de seu mundo conhecido, o lugar de vivência,

o que chamam de ‘o Mutum velho’ ou ‘o Mutum’ é o habitar, é o ponto de conexão

entre o ser e o mundo circundante. É um elemento ontológico, colaborando para a

compreensão do indivíduo sobre ele mesmo. Em outro polo de compreensão está o

poder do Estado e do capital que pressupõe uma natureza mercantilizável que não

comporta considerações a respeito dos lugares subjetivos onde desenrolaram as

vidas individuais. Diferentes percepções sobre lugares apareceram na medida em

diferentes discursos posicionaram-se para dizer sobre o lugar.

No campo de conflitos ambientais, onde opera a disputa entre diferentes

simbolizações, percepções e discursos sobre a natureza, a luta pela legitimação de

determinado conjunto de simbolizações ocorreu entre a UHE Jirau, que representa o

Estado brasileiro e suas políticas de desenvolvimento para a Amazônia, e a

comunidade remanejada de Mutum-Paraná.

As percepções a respeito do lugar diferiram entre os dois grupos em disputa

neste campo onde a disputa sobre as diferentes visões do meio ambiente. Mutum-

Paraná, viva nos laços construídos pela memória, apareceu como o lar porém a

empresa não considerou que manter o nome do Distrito seria relevante para esta

sensação de lar. Pudemos verificar em material de publicidade colhido, ainda no ano

de 2008, a cidade ainda não recebera o nome de Nova-Mutum, sendo designada

‘Polo Jirau de Desenvolvimento Sustentável’.

No folheto explicativo a respeito do Polo, lê-se a seguinte explicação:

As obras de Jirau irão alcançar os Núcleos urbanos de Mutum Paraná, Embaúba, Palmeiral e regiões próximas. Por isso, a Energia

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Sustentável do Brasil está construindo o Polo Jirau Desenvolvimento Sustentável, uma cidade inteira planejada para atender as necessidades da população (FOLHETO DE PUBLICIDADE ESBR, 2008).

Os construtores apresentaram o projeto de cidade planejada como uma

contrapartida benéfica, uma obra que atenderia aos anseios da comunidade que viu-

se muitas vezes desassistida pelo poder público e que compreendeu, também pelos

esforços da propaganda, que a aceitação das mudanças impostas pelo

desenvolvimento trariam melhores condições de viver. Podemos observar a fala de

uma de nossas colaboradoras:

Só que foi assim, na situação que a gente vivia, no Mutum, que era no verão a gente sofria com a lama. Alagava no inverno. No verão era poeira, um solzão. Mas a gente ia levando. E aqui ele falou que a gente foi vendido só que a obra que eles mostraram, a maquete nas reunião, era coisa assim de primeiro mundo. Eles diziam não, vamos fazer curso, vamos dar curso pra aquelas pessoas. E vai ter a horta comunitária. Que quem já planta vai poder plantar e vender suas verduras e vamos ter curso disso e curso daquilo, pros jovens. E vamos ter o centro comunitário. A gente acreditou e foi aí o nosso erro. Quando a gente acordou, já era tarde (Nádia, 2012).

Conforme descreveu a narradora, a crença na melhoria das condições de vida

foi um fator importante para o estabelecimento da confiança entre consórcio e

comunidade. Para este grupo remanejado, pareceu que o advir com a instalação da

usina hidrelétrica seria suficiente para abdicar pacificamente do lugar onde viveram.

O que ocorreu é que como percebemos nas conversas com os moradores, o lugar

enquanto “espaço de desenvolvimento da intersubjetividade, que possui dimensões

concretas, ambientais, territoriais” (BERDOULAY & ENTRIKIN, p. 112 in HOLZER et

al., 2012), não foi preparado para a vida da população que ali foi instalada.

Eles querem saber que pra cá tudo era mais fácil pra eles. Aqui é perto da entrada da usina. A construção daqui é benfeitoria só pra eles, eles pensaram só por esse lado. Era mais próximo do Jacy, pra se resolver as coisas, que era bem maior que o Mutum na época. Na verdade então acho que era o apoiozinho que eles tinham. Foi tudo mais fácil pra eles. Eles pouco se importam com a gente. A gente já vem com toda essa dificuldade aqui, o custo de vida desse jeito, não tem uma arborização (Cleide, 2012).

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Apesar do convencimento inicial, posteriormente a comunidade remanejada já

vivendo em Nova Mutum passou a lamentar as mudanças, visto que a manutenção

da vida foi muito dificultada, e as relações com o lugar onde ocorria a socialização

entre as pessoas foi interrompida sem que houvesse o investimento necessário para

a reestruturação deste lugar tanto externamente como o lugar que responde pelo

conforto pessoal, individual de cada morador.

O ‘lugar’ como categoria de análise geográfica nesta pesquisa permitiu a

percepção de diversos aspectos que compõem a criação subjetiva e materializada

deste elemento do viver e ser das pessoas que agora vivem em Nova Mutum, após

o deslocamento das pessoas.

As narrativas dos indivíduos deslocados para esta cidade planejada

demonstraram que havia anteriormente uma conexão com Mutum-Paraná que

carregava este lugar de significados, transpostos para as falas em muitos momentos

fazendo referência ao rio, que fazia parte da vida diária destas pessoas. Nova

Mutum não possui nenhum igarapé e a água só chega às casas pelo sistema de

distribuição.

Além de não haver o espaço da interação e socialização que existia quando

era possível banhar-se no rio, este sistema de distribuição de água da cidade

apresentou muitos problemas, como falta de água para o abastecimento das famílias

e até mesmo ocorreu uma explosão no sistema de tratamento de dejetos,

provocando terrível mau cheiro em toda a localidade17.

Verificamos que o tipo de relação existente entre a comunidade de Nova-

Mutum e o rio é expresso nas narrativas de forma intensa. Os significados contidos

nesta relação não apenas podem ser interpretados, como também entendidos como

um dos mecanismos para interpretações a respeito dos sentimentos topofílicos que

17

“O Ministério Público do Estado de Rondônia ingressou com Ação Civil Pública, com pedido de

liminar, contra o Município de Porto Velho, a Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia – CAERD e a Energia Sustentável do Brasil S.A - ESBR, em razão de irregularidades constatadas no sistema de coleta e tratamento de esgoto e no sistema de tratamento e distribuição de água de Nova Mutum, um complexo residencial construído como forma de compensação da construção da Usina Hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira. [...]Além da grave explosão de um dos tanques do sistema de tratamento de esgoto, diversas outras situações evidenciam a precariedade das instalações, tais como transbordamento de esgoto por todo o reassentamento e até no interior das residências; poços de visita destampados (tampas improvisadas por moradores); estações elevatórias transbordando e causando poluição em manancial e igarapé; escoamento de esgoto do tanque avariado (explosão) em igarapé próximo. Constataram-se também diversas irregularidades no sistema de coleta, tratamento e distribuição de água, sendo a principal delas a necessidade de funcionamento ininterrupto da ETA (Estação de Tratamento de Água)” (www.rondoniadinamica.com.br, acesso em 10/03/2014).

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existiram antes da mudança em decorrência da construção da UHE Jirau e o tipo de

relação de angústias relacionado ao lugar em que vivem atualmente.

À medida que existiu uma situação de deslocamento e consequente

distanciamento desta comunidade em relação ao rio, um referencial no imaginário

coletivo desta comunidade, um suporte necessário e eficaz na produção e

sustentação da vida social desses grupos foi perdido. Processo este que a

comunidade não teve como repor.

4.3 O Rio enquanto Lugar

A usina de Jirau, assim como as usinas hidrelétricas já instaladas e em

funcionamento, modificam sentidos de lugares que antes estavam destinados à

reprodução econômica e cultural dos povos ribeirinhos e outras categorias sociais

como meeiros, arrendatários, posseiros e outras modalidades de trabalhadores

assalariados, inviabilizando sua existência socioeconômica.

Sob este contexto verifica-se uma apropriação de um bem público, o rio

Madeira, que atende a infinitas significações, pelo Estado brasileiro, que o cedeu

para a exploração da iniciativa privada. Ao observarmos as narrativas dos

moradores sobre a relação construída no lugar do rio, percebemos que os

significados expostos em suas narrativas indicam um tipo de relação que vai além

do aproveitamento econômico das águas, mas que passa a integrar a dinâmica onde

os recursos naturais são parte da própria significação da vidas destas pessoas da

comunidade.

Gaston Bachelard, em seu estudo intitulado “A Água e os sonhos” (1997),

investiga a materialidade da água enquanto elemento da essência humana, dos

sentimentos e simbolismos que surgem da parte mais profunda do ser. Percebemos

que a proximidade do rio, enquanto viviam em Mutum Paraná, era lugar que

propiciou às pessoas sensação de segurança. Havia as garantias materiais pela

possibilidade de se pescar, ou pela garimpagem de ouro e outros materiais porém

mais que isso, as pessoas encontravam a tranquilidade interior.

Como ponderou Silva (1999) a respeito da significação que a população

ribeirinha atribui ao rio, as percepções destas pessoas a respeito das águas

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ultrapassam a relação de dependência econômica ou alimentar, num sentido de

fornecimento de proteína para sua dieta. Como o autor trouxe em seu texto:

O rio visto de forma compartilhada, como condição básica para a oferta de alimento, como caminho, estrada, local de lazer, são elementos que devemos refletir para compreendermos a diversidade cultural e de organização que esses grupos humanos apresentam. Tal diversidade cultural e organizacional, normalmente, é menosprezada pelas agências governamentais de planejamento (SILVA, 1999, p. 57).

Desta forma, os rios têm múltiplos significados para as populações que vivem

à beira de suas águas, porém esta multiplicidade foi substituída pelo embate entre

outros sentidos e o sentido econômico, pois a UHE Jirau foi apresentada como

mecanismo para o crescimento econômico do país.

A relação das pessoas deslocadas de Mutum Paraná com as águas não foi

levada em consideração para a mudança destas pessoas, tanto simbolicamente

quanto materialmente. Esta incongruência de atribuições de sentido expressou o

que entendemos como disputa dentro do campo de conflitos ambientais.

No campo de conflitos ambientais, os sentidos simbólicos da água, seu

sentido mais profundo ficaram em oposição aos construtores da barragem e ao

estado brasileiro, investidor na obra. Estes últimos consideram as águas do rio como

lucro e como desenvolvimento. Neste sentido, conforme a autora Vandana Shiva

(2006), as disputas deflagradas no plano simbólico (ou não) referentes a diferentes

interpretações dos usos da água, configuram-se em verdadeiras "guerras por água".

Em suas palavras, as:

Guerras paradigmáticas por causa da água estão ocorrendo em todas as sociedades, a leste e oeste, norte e sul. Nesse sentido, guerras por água são guerras globais, com culturas e ecossistemas diferentes, compartilhando a ética universal da água como uma necessidade ecológica, em oposição a uma cultura corporativa de privatização, ganância e o cerco das águas públicas. Num dos lados dessas disputas ecológicas e guerras paradigmáticas estão milhões de espécies e bilhões de pessoas que buscam água suficiente para sua manutenção. Do outro lado está um punhado de corporações globais, [...] assessoradas por instituições globais como Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e governos do G7 (SHIVA, 2006, p. 10).

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As narrativas que colhemos nos permitiram identificar a percepção dos

narradores em relação ao rio diferenciada da mercadológica, com suas significações

e usos coletivos. As percepções da comunidade ficaram evidentes para nós no

momento em que o rio é mencionado como testemunha de uma série de ações que

indicavam a própria construção dos indivíduos enquanto sujeitos de suas vidas.

No caso da UHE Jirau, entendemos que enquanto empreendimento do

capital, não se pode ter o rio como significação diferente de lucro. A postura da

ESBR integra um processo social em que as empresas passaram a apresentar-se

discursivamente como ambientalmente benéficas. Esta postura, no entanto, vem

sendo historicamente criticada por não ter comprovado as melhorias às populações

afetadas pela implantação de UHEs, e também não garantirem a redução dos riscos

ambientais destas obras (CARVALHO, 2006).

Quando os narradores refletiram sobre suas vidas, sobre momentos de

significado marcante, os lugares presentes em sua memória, o rio tornou-se um

símbolo recorrente, fazendo parte do meio social da comunidade, corporificando-se

mesmo como parte de momentos que eram referência de construção para suas

relações sociais.

Assim como propõe Shiva (2006) percebemos que diferentes percepções e

compreensões a respeito do uso de recursos naturais estão em jogo, visto que para

os moradores de Mutum-Paraná, a proximidade com o rio era garantia da

manutenção da vida e de uma existência social. Em suas lembranças o rio aparece

como inerente a existência dessa comunidade.

Discorrendo de maneira semelhante a respeito de diferentes significações que

podem conter os recursos naturais/ambientais, Acselrad (2004, p. 7) pondera que

[...] os objetos que constituem o “ambiente” não são redutíveis a meras quantidades de matéria e energia pois eles são culturais e históricos: os rios para as comunidades indígenas não apresentam o mesmo sentido que para as empresas geradoras de hidroeletricidade [...] (ACSELRAD, 2004, p. 7).

Uma de nossas colaboradoras, ao recordar de momentos compartilhados pela

comunidade em que vivia, lembrando-se das situações onde o rio foi lugar de

partilha do lazer das famílias se emocionou, tendo como percepção que as relações

que antes havia na comunidade não migraram para Nova Mutum. Segundo Nádia, a

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vida distante do rio Mutum constituiu um catalisador de mudanças no

comportamento das pessoas, que se tornaram mais retraídas e deprimidas devido o

distanciamento do rio.

Eu sinto mais falta, não só eu como acho que todo mundo sente mais falta do rio dia de domingo, dia de folga pescar, tomar banho. As pessoas que moram aqui nem parece que são as mesma de lá eles ficaram muito fechado Tem uma senhora que mora lá do lado da casa da C., ela teve derrame, coisa de AVC. Ela ficou muito triste de ter mudado pra cá. Ela morava numa casa grande, o quintal parecia um sítio. Duma hora pra outra ela se vê num ovo desse, quente. Ela teve AVC, ficou muito mal a Dona Sula (Nádia, 2012).

Os lugares da memória são construídos nas vivências que temos em um

âmbito de socialização segundo a teoria de Maurice Halbwachs (1990). Para este

autor, a memória é uma construção social e não puramente individual, dependendo

das relações entre os membros de um determinado grupo que compartilharam as

experiências em determinado momento do tempo e espaço.

Quando dizemos que um depoimento não nos lembrará nada se não permanecer em nosso espírito algum traço do acontecimento passado que se trata de evocar, não queremos dizer todavia que a lembrança ou que uma de suas partes devesse substituir tal e qual em nós, mas somente que, desde o momento em que nós e as testemunhas fazíamos parte de um mesmo grupo e pensávamos em comum sob alguns aspectos, permanecemos em contato com esse grupo, e continuamos capazes de nos identificar com ele e de confundir nosso passado com o seu. Poderíamos dizer, também: é preciso que desde esse momento não tenhamos perdido o hábito nem o poder de pensar e de nos lembrar como membro do grupo do qual essa testemunha e nós mesmos fazíamos parte, isto é, colocando-se no seu ponto de vista, e usando todas as noções que são comuns a seus membros (HALBWACHS, 1990, p. 28-29).

Neste sentido, percebemos o sentimento topofílico emergir das lembranças

das pessoas, enquanto o que trata do presente remete ao sofrimento de estarem

vivendo em um lugar de estranhamento. As lembranças referentes a Mutum-Paraná

foram construídas por sujeitos sociais que durante um dado período de tempo

compartilharam um mesmo ambiente, tendo o rio como lugar da materialização de

relações psicossociais e emocionais que o grupo construiu no tempo em que viveu

no Distrito.

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Gaston Bachelard em seu estudo “A Poética do Espaço (p. 206, 1984)” afirma

que a “(...) a casa natal está fisicamente inscrita em nós. Ela é um grupo de hábitos

orgânicos”. Propomos compreender o rio semelhante à casa natal proposta por

Bachelard. O contato com o rio inscreveu intimamente hábitos nestas pessoas que o

tinham como referência para a manutenção da vida, da construção das memórias

coletivas e do convívio social com seus vizinhos.

Mutum-Paraná foi uma localidade urbana que mantinha características rurais

na medida em que a maioria das famílias contava com a produção de subsistência

para garantir parte das necessidades alimentares, com hortas e árvores frutíferas

nos quintais, pesca regular e criação de aves.

As possibilidades da mudança para uma cidade com urbanização planejada,

apresentada por recursos publicitários como moderna, da forma como se apresentou

Nova Mutum, trazia consigo as aspirações de uma comunidade ansiosa por

melhorias urbanas como asfaltamento e do saneamento básico.

Mas, quando os moradores de Mutum-Paraná se viram neste meio

planejadamente urbanizado, da cidade Nova Mutum, as lembranças chegam na

forma de reconstrução de um lugar. O que não é mais possível na medida em que o

espaço urbanizado não correspondeu ao lugar das vivências experienciadas

anteriores ao deslocamento.

A Narradora Cleide questiona a qualidade de vida na cidade atual, ao

lembrar-se da forma como seu pai vivia e o que ele tinha acesso. Não apenas ele,

mas toda a sua família, não puderam ter essas mesmas coisas no novo lugar para

onde foram remanejados.

[...] o papai pescava da janela do quarto dele. Deitado lá pegava cada peixe, um maior do que o outro da janela do quarto dele. As árvores, nem se fala... se eu tô falando do peixe que ele pegava da janela, agora imagina as árvores, como que não era ao redor da casa dele? Tudo fresco, tudo arborizado. Chega aqui esse cozidão danado. Não tem uma sombra, não tem nada. Eu tô vermelha que nem um pimentão, eu tava no meio da rua. Não precisa nem tá no meio da rua pra sofrer a quentura. Vai conversar com eles [a ESBR]. Não, eles manda é plantar! (Cleide, 2012).

O rio era uma extensão da própria casa do pai, evidencia a Narradora. Da

mesma forma, percebeu-se que a racionalidade presente nas políticas da

construção da hidrelétrica não abarcou o sentido de lugar presente na expectativa

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dos atingidos pela barragem. O lugar construído nas experiências de habitar

compunha parte da identidade daquela família e a familiaridade com o rio contribuiu

para a própria forma de reconhecimento dessas pessoas como seres no mundo.

Ao refletir sobre a experiência do migrante, Dal Gallo (2011) expõe que esta

situação específica permite aos indivíduos nesta condição viver em “um movimento

que toca diretamente o ser dos migrantes. O deslocar-se dos migrantes de seus

lugares para lugares alheios implica um abalo direto no ser: migrar coloca um

questionamento ao ser do migrante, à sua segurança ontológica (DAL GALLO, 2011,

p. 48). Neste sentido, percebemos que as mudanças trouxeram as perdas

emocionais, que muitas vezes podem originar comportamentos depressivos.

Desta forma a Narradora Nádia comentou a respeito do elo que conectava

emocionalmente seu pai ao rio onde pescava, como isso foi associado a um

conjunto de relações que compõe a vida deste indivíduo e como a ausência do lugar

repercute nos processos interiores.

Papai fala que cada dia ele morre um pouco ele era acostumado a pescar, pescava um dia sim o outro não ele ia pra casa dos amigos dele aqui a maioria dos amigos dele foram embora pro sítio agora ele fala que é sentar e esperar a morte lá ele ia pescar, era mais fresquinho pra ele, aqui tem que ficar correndo atrás de sombra (Nádia, 2012).

As águas do rio remetiam ao conforto e segurança do que era comum, do que

era conhecido. O rio em sua constante renovação representava a possibilidade para

a renovação e continuidade da essência daquelas pessoas, que construíram o lugar

em uma base de trocas emocionais e simbólicas. Ao falar sobre o processo de

criação poética, Bachelar instigou a imaginação, que leva os autores de poesias, em

devaneios18, a encontrar no íntimo as simbolizações mais primitivas humanas. Neste

sentido trouxe achados interpretativos a respeito da água. Em suas palavras

[...] o poeta mais profundo encontra a água viva, a água que renasce de si, a água que não muda, a água que marca com seu signo indelével as suas imagens, a água que é um órgão do mundo, um alimento dos fenômenos corredios, o elemento vegetante, o elemento lustrante, o corpo das lágrimas [...] (BACHELARD, 1989, p.12).

18

A que este autor se refere não indica desequilíbrio psíquico.

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A água, para o viver destas pessoas em contato com o rio, permitiu que eles

estivessem em contato consigo mesmos, com seus valores, com seus gostos, com

suas preferências enquanto sujeitos. Ao afastarem-se das águas, surgem dúvidas,

pois o que era certo, não é mais, tanto no plano interior quanto no plano exterior do

indivíduo.

Rothman (2008 p. 26) sinaliza outra questão que nos remete ao processo de

desfiguração das relações sociais que ocorrem em processos de deslocamento de

populações atingidas por barragens ao citar Oliver-Smith, por este autor comentar

que

[...] a natureza involuntária da migração envolve a perda quase total de controle de sua vida e, de modo geral, os processos de reassentamento fornecem informação insuficiente para permitir que a população afetada reassuma controle satisfatório e compreensão da ameaça ou reais mudanças das circunstâncias de suas vidas. Como conseqüência, quando compreensão e controle são diminuídos, o processo é geralmente caracterizado por conflito, tensão e, às vezes, resistência ativa (ROTHMAN, 2008, p. 26).

Nesta pesquisa verificamos estas situações, inclusive a de resistência, pois já

em Nova Mutum, esta comunidade participou juntamente com outros grupos

afetados pela construção da UHE, de uma manifestação que impediu a entrada de

trabalhadores e máquinas no canteiro de obras de Jirau19, reivindicando soluções

para os problemas pelos quais as comunidades estão enfrentando em decorrência

dos reassentamentos e remanejamentos inadequados.

A situação de isolamento que se evidenciou em alguns dos ramais do Distrito

de Mutum-Paraná, pela distância criada entre estes e o núcleo urbano mais próximo,

provocou insatisfação da comunidade com a remoção, principalmente devido as

dificuldades criadas para o atendimento básico de saúde e educação, agora mais

distantes do que antes da demolição da sede de Mutum-Paraná.

19

“Os atingidos pela barragem de Jirau (...) realizaram uma manifestação, iniciada na madrugada do

dia 26/10/2010, com cerca de 150 atingidos, entre eles indígenas, ribeirinhos e garimpeiros, que bloqueou os três acessos ao canteiro de obras da usina, próximos a rodovia BR 364. Após 40 horas de paralisação, os manifestantes permitiram a liberação do trânsito para a empresa construtora. As famílias permaneceram no local durante 10 dias, até que os representantes da empresa abriram um processo de negociação no dia 05/11/2010, firmando um cronograma de reuniões para debater a pauta de reivindicações apresentada naquele momento”. Ver www.mabnacional.org.br (Acesso em 10/02/2012).

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Mais do que as perdas materiais, ocorreram atreladas a estas as perdas

referentes ao mundo simbólico ao qual os moradores estavam imersos,

compartilhando seu cotidiano em um lugar que expressava também sua forma de

interpretar o outro, a si mesmo e sua relação com o espaço e tempo, visto que os

[...] lugares não são (apenas) segmentos objetivos da realidade terrestre, mas os locais de envolvimento humano concreto. A noção de lugar, portanto, fornece um princípio organizador que nós chamamos de imersão de uma pessoa no mundo em torno de si. Em termos fenomenológicos, lugares são as partes da realidade espacial que foram reclamadas pelas intenções humanas (KARJALAINEN, p. 7, 2012).

Para Dal Gallo (2011) o migrante vai criando vínculos de novas vivências nos

lugares de destino na medida em que encontra nestes referenciais socioculturais e

socioespaciais do local original. No caso destas pessoas em Nova Mutum, um

importante bem simbólico, o rio, não está presente e não foi atendida a demanda por

algum tipo de banho ou piscina que atendesse à população.

Dona Leila chama a atenção para a funcionalidade do rio enquanto

atendimento de necessidades de sobrevivência das pessoas enquanto viveram em

Mutum-Paraná. As expectativas de manutenção de seu modo de vida no local para

onde foram realocados trouxe conforto ao lar ao migrante, porém isto não ocorreu na

prática.

[...] a única coisa que eu sinto falta é do rio, é do rio porque as vezes final de semana fico aqui nossa a se tivesse um rio a se tivesse um lugar pra gente ir né? E a gente estava alegre com esse clube ali né? Teve a inauguração e ninguém soube ai saiu o comentário não é só pro pessoal da firma. Aí eu falei: tomá banho de mangueira mesmo... tem tempo que tem água e tempo que não tem água. Eu às vezes comecei a lavar roupa pra fora, às vezes me dá um nervoso tão grande, porque lá era poço né? Aqui água encanada me dá um nervoso tão grande (Dona Leila, 2013).

Nos termos de nossa colaboradora, mesmo com as adversidades

relacionadas à ausência do poder público, o rio era provedor, atendendo a múltiplas

necessidades desta comunidade. Atualmente, no lugar em que vive, a falta de

liberdade de acesso à água impõe sentimentos de incerteza e desconforto com

relação à própria habitação, pois a tradição de cada residência ter um poço

promovia a sensação de saciedade em relação ao abastecimento de água. Se o

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poço eventualmente secasse, o rio estava próximo, com sua abundância de água

em um fluxo de renovação contínua.

A relação com o rio foi incorporada à vida das pessoas e por esta feita, o

cotidiano era vivido na certeza da abundância de água. A mudança para Nova

Mutum impôs restrições ao uso da água para as pessoas remanejadas. Isso ocorreu

tanto pela ausência de algum lago, riacho, igarapé ou até mesmo piscina para o

lazer, como pela distribuição de água encanada que não atende satisfatoriamente a

população.

O sistema de distribuição de água e tratamento de dejetos de Nova Mutum,

devido suas irregularidades e interrupções no fornecimento de água à população de

toda a cidade, foi alvo de uma Ação Civil Pública, após denúncias dos moradores20.

Estes problemas surgiram logo que Nova Mutum passou ser habitada, e

permanecem atualmente, após 3 anos do remanejamento das pessoas de Mutum

Paraná. Como nos narrou o Senhor Robert, um dos moradores mais antigos de

Mutum Paraná, como ele mesmo se classificou, a qualidade da água na cidade

planejada não promoveu bem-estar para sua família, trazendo mais dificuldades

para sua vida, que sofreu uma interrupção por conta do deslocamento. Ele e sua

esposa planejavam passar toda a vida em Mutum Paraná:

20

Conforme publicado no jornal eletrônico Rondoniagora em 6 de janeiro de 2014 a ação se deu pelo

seguinte: “Em síntese, a ESBR projetou e construiu sistemas de tratamento de esgoto e abastecimento de água que vêm causando, por diversas razões, poluição ambiental e danos à saúde dos moradores de Nova Mutum, sem falar no prejuízo ao patrimônio público pelo emprego de recursos humanos e materiais para corrigir os problemas detectados desde antes do recebimento provisório assinado entre Prefeitura, CAERD e ESBR. Verificou-se, igualmente, que os projetos da rede de distribuição de água tratada e do sistema de tratamento de esgoto não foram cautelosamente analisados pelo órgão municipal que, nos termos da Lei n. 6766/79, deveria fiscalizá-los e aprová-los, de acordo, evidentemente, com as normas técnicas. Como concedente, a Prefeitura tinha a obrigação de fiscalizar as condições de prestação dos serviços públicos. A CAERD, por sua vez, tem responsabilidade mais do que provada, como órgão detentor da concessão pública municipal para operação dos sistemas de tratamento de água e esgoto implantados em Nova Mutum, pois possuía o aparato técnico-jurídico para constatar todas as irregularidades ora verificadas. Diante de todos esses pontos, o Ministério Público do Estado de Rondônia requer a concessão de liminar para que a ENERGIA SUSTENTÁVEL DO BRASIL S.A. - ESBR fique obrigada a dar apoio material às obras corretivas que têm sido realizadas para conter os problemas detectados pela CAERD e, ao cabo do processo, implantar novo sistema de tratamento de esgotos e de novo sistema de tratamento e distribuição de água potável, desta vez adequados às normas técnicas e devidamente aprovados pelos órgãos administrativos e ambientais, CREA e outros. Em relação à Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia – CAERD, pede-se a imposição da obrigação de acompanhar as obras de instalação dos novos sistemas acima referidos, procedendo aos devidos apontamentos e propondo as devidas correções. Quanto ao Município de Porto Velho, o MP requer à Justiça concessão de liminar para que fique obrigado a fiscalizar devidamente a implantação dos sistemas acima, promovendo os devidos apontamentos e propondo as devidas correções, notadamente no que tange à fiel execução dos projetos. (www.rondoniagora.com.br. Acesso em 17/03/2014).

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Ah, tudo que tinha no Mutum eu sinto falta. Primeiro que o que nós tínhamos lá, era pro resto da nossa vida. Eu e minha mulher, que a gente convive, já foi feito pra isso. E a gente saiu de lá, viemo par cá. Aqui é muito ruim. Primeiro lugar, aqui tu não tem nem água pra tu tomar banho. Tem uma água velha muito ruim. É a água dessa CAERD [Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia]. Aqui a água dá um negócio na cabeça da gente que eu vou te falar. Aí todo já vem atacando mais. A gente já vive contrariado e com mais isso. E outra, eu já to idoso. Não tenho mais força pra trabalhar (Senhor Robert, 2012). .

O uso da água é uma necessidade básica para todo ser humano e mais

ainda, uma necessidade para o habitus ribeirinho. Como comenta Shiva (2006):

A água tem sido tratada tradicionalmente como um direito natural – um direito que nasce da natureza humana, das condições históricas, das necessidades básicas ou de noções de justiça. Os direitos a água como direitos naturais não se originam com o Estado; eles surgem de um dado contexto ecológico da existência humana. Assim como os direitos naturais, os direitos à água são direitos usufrutuários; a água pode ser usada, mas não possuída. As pessoas têm direito à vida e aos recursos que a sustentam, como a água. A necessidade da água para a vida é o motivo pelo qual, sob leis costumeiras, o direito à água tem sido aceito como fato natural e social [...] (SHIVA, 2006, p. 36).

O direito natural sobre a água, relacionado à vida ribeirinha, é um direito

incorporado, é parte das ações e molda pensamentos, tornado-se uma necessidade

da vida social destes grupos. Além disso, devemos lembrar que no ano de 1997

entrou em vigor a Lei nº 9.433/1997, conhecida como “Lei das Águas”, que instituiu a

Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de

Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH). Esta legislação prevê que a água

deve atender a múltiplos usos, de forma que contemple as necessidades sociais de

maneira prioritária.

No caso do estudo que fizemos a respeito das consequências da construção

da UHE Jirau, o atendimento dessa garantia legal foi suprimido pois foi entendido

que as necessidades de geração de energia são prioritárias em relação à

continuidade das formas de viver dos povos tradicionais da Amazônia.

Para esclarecermos esta relação entre o indivíduo e o rio, tendo este como

lugar de acolhimento, podemos indicar o conceito de habitus como viável pois a

vivência na proximidade com o rio, e as percepções geradas cotidianamente

moldaram as percepções e costumes das pessoas que viviam em suas margens.

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A acessibilidade em relação às águas contribuiu para que as famílias

cultivassem em seus quintais e reservassem áreas para o plantio de legumes e

frutas, que eram consumidos pelas próprias famílias que as produziam e por

vizinhos, como também destinavam parte da produção para comercialização em

alguns casos.

A Dona Teta ao recordar-se de sua vida anterior, antes da mudança,

reportou-se a uma série de práticas que hoje não podem ser reproduzidas. Além de

estarem distantes de acessos à agua, os moradores atualmente tem muita

dificuldade de fazer algum tipo de plantio na área fora de suas casas. Essa área é

pequena, mas seria suficiente para fazerem hortas como era o costume em Mutum

Paraná. O que ocorreu foi que Nova Mutum foi edificada em um terreno já

desmatado, destinado anteriormente à criação de gado e a terra não teve nenhum

tipo de preparo para produção. Desta forma, a terra parece infértil.

Plantemos umas coisas mas não crescem. Mas aí é a piçarra. É a piçarra, não é terra fofa. A terra é dura em cima ninguém planta nada. Muito dura, até um metro ainda é dura! Um dia desse foram cavar uma sepultura pra uma velhinha que morreu, passaram o dia quase todo cavando, muito dura. Meu filho espocou foi as mão, fez calo pra cavar a sepultura! E aqui já podia ter um coveiro. Já tava no tempo de botarem um coveiro. Os coveiro aqui é os gari. E tem pouco, só três. Pronto (Dona Teta, 2012).

O trecho da narrativa impõe-nos uma reflexão a respeito da

construção/reprodução do habitus do morador de Nova Mutum. Tendo suas

percepções relacionadas ao lugar de vivência incorporadas como habitus, como é

possível vislumbrar a recriação do lugar em um ambiente onde o rio está ausente e

é impossível restabelecer as práticas de produção cotidianas como as pequenas

hortas comunitárias?

Entendemos que a construção da UHE Jirau não só impôs restrições físicas

as populações deslocadas como também implicou numa interrupção ontológica, uma

ruptura com o que era próprio do ser em relação ao lugar de vivência dessa

comunidade. A ausência do rio em sua importância material e imaterial não foi

suprida pelo programa de remanejamento das populações afetadas pela construção

da hidrelétrica.

Como já citado anteriormente, o “Programa de Remanejamento das

Populações Atingidas”, deixou explícito ter como responsabilidade

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[...] fornecer recursos financeiros, humanos, institucionais e materiais que viabilizem a manutenção e a melhoria das condições de vida e da capacidade de produção e de subsistência das populações atingidas, o exercício pleno da cidadania e que assegurem a participação democrática e o respeito às diversidades sociais, econômicas, étnicas, culturais e ambientais (PBA, item 4.25.2, p. 2).

Este programa foi elaborado pela empresa Ecology Brasil, contratada pelo

consórcio ESBR e teve como função subsidiar as análises do IBAMA, que

resultaram na liberação da Licença de Instalação da usina. Como pudemos perceber

os narradores vivem em dificuldades, não tendo assistência e recurso para manter o

novo modelo de vida imposto pela mudança.

Com relação a estes programas, o consórcio apresenta discursivamente um

modelo que deveria atender as pessoas, mas como observamos em nossa

experiência de campo isto não se processou na prática. Nacke e Santos (2001)

contribuem para este tema sublinhando que nem sempre o que foi considerado em

projeto como área afetada é efetivamente o que será a totalidade dos efeitos

colaterais da obra quando finalizada. Estes autores comentam que

Em termos socioculturais, minimizar os efeitos da implantação de hidrelétricas não se restringe, portanto, a providenciar o deslocamento das populações das áreas requeridas pela obra, indenizar propriedades e realizar reassentamentos. É necessário avaliar não apenas os efeitos considerados diretos, mas considerar, detidamente, o conjunto de efeitos virtuais socioambientais e antever as implicações e desdobramentos laterais desses empreendimentos. É necessário ressaltar, também, que estas implicações e desdobramentos ultrapassam temporariamente os limites demarcados pela construção da obra e espacialmente as dimensões do território requerido para sua implantação (Nacke & Santos, p. 76, 2001).

Na prática, o processo de instalação da usina hidrelétrica Jirau desconsiderou

as realidades sociais presentes nas áreas que foram afetadas por ela, apesar de o

discurso elaborado e divulgado para a sociedade brasileira ser de melhorias e

desenvolvimento. Da maneira como observamos nas narrativas de nossos

colaboradores, o lugar foi desmantelado, pois as formas sociais que são um tipo

específico de relação conectando o homem ao rio, foram desfeitas e não se

restauraram.

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Para Michel Foucault (1996, p. 10) "o discurso não é simplesmente aquilo que

traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta,

o poder do qual nos queremos apoderar”. Desta forma, o agente capaz de acumular

o capital que legitima o consumo de recursos naturais, como foi o caso da ESBR,

também apoderou-se dos discursos, sendo estes também constituintes/constituídos

pela hegemonia dos que tem o poder de legitimar as práticas de uso do rio Madeira.

O discurso da ESBR, que transmitia a mensagem de uma cidade planejada

para a população de Mutum Paraná foi considerado legítimo na medida em que

anteriormente à mudança para Nova Mutum, existia uma expectativa criada para

melhorias na vida destas pessoas que se encontravam em uma situação de

desatenção do poder público, das políticas públicas.

Visualizando a possibilidade de melhorias no viver cotidiano e a anulação de

discursos contrários, como os relatórios técnicos que questionaram a segurança da

operação das UHEs do Madeira, ou o discursos de movimentos sociais como o

Movimento dos Atingidos por Barragens, os moradores de Mutum Paraná

inicialmente absorveram o discurso hegemônico a respeito do lugar e negaram seu

próprio, que agora aparece nas memórias do que foi narrado.

4.4 Os diferentes discursos sobre o Lugar

Observamos uma oposição entre o sentido de lugar expresso pelo discurso

do consórcio ESBR e o sentido de lugar vivenciado pelos residentes de Nova Mutum

colaboradores deste estudo. As narrativas nos mostraram que a mudança para Nova

Mutum foi apresentada inicialmente como benéfica, mas a vivência no lugar, as

experiências dos sujeitos deslocados indicaram a incongruência de sentidos para o

discurso sobre o lugar.

As expectativas benéficas geradas na comunidade deslocada nos remeteram

ao trabalho de Dal Gallo (2011) quando esta classifica as experiências migrantes.

Em uma de suas interpretações a respeito da experiência migrante esta autora

descreve a existência de migrantes que tem a capacidade de experienciar

positivamente o lugar de destino, transformando seu ser. Este processo de

internalização do lugar de destino está relacionado a uma busca do migrante pelo

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novo, por um lugar onde ele possa ser diferente, onde possa reorganizar sua vida no

sentido de um recomeço.

A autora associa esse comportamento em relação ao lugar de destino a

situações onde o migrante vive com algum tipo de restrição, perseguição ou sofreu

algum tipo de trauma e visualiza o lugar de mudança como uma possibilidade de

apaziguamento de um desconforto com seu íntimo.

Os sujeitos em nossa pesquisa, que viveram em Mutum Paraná, passaram

por dificuldades e neste sentido pensaram ser viável abraçar o novo como uma

chance de recomeçar, pois acreditavam que suas mazelas, especialmente em

relação aos aspectos em que eram negligenciados pelo poder público, seriam

supridas. No entanto, a experiência vivenciada no novo lugar não trouxe esta

renovação. A experiência de viver em Nova Mutum trouxe o descontentamento,

devido ao contato entre o que foi criado como uma projeção de bem-estar futuro, e

as perdas no presente.

O que ocorreu é que a ESBR, enquanto agente detentor de maior capital

econômico se valeu dos mecanismos de comunicação para manter a hegemonia

também no plano dos discursos e a certificação de seu capital simbólico para

garantir a crença de que a implantação da barragem iria promover melhoria nas

condições de vida da população de Mutum-Paraná.

Uma de nossas colaboradoras descreveu a forma como a comunicação entre

ESBR se dirigiu a moradores que reivindicaram uma atenção aos objetos do

patrimônio histórico do distrito de Mutum Paraná que foram transportados para Nova

Mutum a fim de constituir um museu.

Que eles falam ah, esse sentimentalismo besta. Eles falam isso, sentimentalismo besta, Mutum... ah, tudo acaba! Tantos outros lugares foram construído usinas e a cidade acabou e ninguém morreu por causa disso, o pessoal da empresa fala. Ah, vocês são muito besta se apegando a coisas pequenas. Ali não tinha nada de bom, só mosquito e malária. Que que era aquilo ali? Aquelas casinhas de pau, caindo aos pedaços. Tiveram até a cara de pau de chamar a gente de índio, que a gente é acostumado a cagar no mato. Quando ia usar um banheiro, ainda tava se achando (Nadia, 2012).

O que interpretamos destas falas é que o lugar no sentido de encontro das

subjetividades, das experiências compartilhadas pelas pessoas que ali viveram, não

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encontrou relevância no processo de mudança destas pessoas para o consórcio

responsável pela construção da UHE Jirau. Para a racionalidade empresarial, a

destruição do lugar não tem nenhuma consequência, pois o lugar de vivência das

pessoas representa um entrave ao empreendimento que deve ser eliminado.

O seguinte narrador expressou as sensações que não foram contempladas na

mudança.

Tem tanta coisa que a gente sente falta do Mutum velho que se for relatar por exemplo, aquelas árvores, aquele ambiente mais acolhedor. Aqui o ambiente é muito frio, muito seco. Aqui na realidade é cada um pra si e Deus pra todos. As pessoas não se conhecem mais. Aqui vive-se que nem se vive em cidade grande. Cada um cuida da sua vida [...] (Eleandro, 2012).

Os laços sociais que convergiam para o lugar que era Mutum Paraná foram

rompidos com o deslocamento. A forma de vida imposta neste outro lugar que foi a

cidade destinada ao remanejamento não conseguiu restabelecer o aconchego

necessário para que as relações de vínculo entre as pessoas fossem retomadas. No

entanto, o material publicitário da empresa ESBR fornece informações que não

coincidem com o que vimos, experienciamos no trabalho de campo, em contato com

os sujeitos colaboradores de nossa pesquisa.

No folheto Jirau Notícias21, edição nº 10 Dezembro 2010/Janeiro 2011 lemos

o seguinte depoimento do senhor José Cícero, publicado no interior deste informe:

Em Nova Mutum Paraná minha vida não mudou para 100% mas sim 200%. Aqui há muitas possibilidades de se viver bem, basta trabalharmos, valorizarmos o que temos e tratarmos as pessoas com educação e respeito.

O folheto informa que este senhor é proprietário de um bar em Nova Mutum

Paraná. Ao lado deste pequeno depoimento está a foto deste senhor, sorrindo.

Fazendo uma análise crítica do discurso deste senhor, presente em um folheto de

divulgação do consórcio ESBR, entendemos que se trata de uma mensagem

àqueles da comunidade que por motivo de alguma insatisfação quiserem fazer

alguma reclamação. Ao dizer “basta trabalharmos, valorizarmos o que temos e

tratarmos as pessoas com educação e respeito” o senhor José Cícero está

21

Este folheto foi produzido por empresas de comunicação contratadas pela ESBR e distribuído em

Nova Mutum.

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recomendando que as pessoas obedeçam aos ditames do consórcio ESBR, no que

concerne ao tratamento com as pessoas atingidas pela barragem.

Nossa interpretação tem como base a proposta de Orlandi (1995), mediante o

conceito de silenciamento. Este conceito pressupõe que os sentidos são produzidos

a partir do posicionamento do sujeito falante e devido a este posicionamento, ao

dizer determinado sentido, o falante imediatamente anula outros sentidos possíveis

para o dizer que não seja desejável para sua posição.

A afirmação de um residente remanejado de Mutum Paraná para Nova Mutum

afirmando o discurso da empresa responsável pelo remanejamento em um folheto

publicado por esta mesma empresa funciona como uma prática de silenciamento de

dizeres diferentes sobre o lugar, dizeres que afirmam insatisfação com o lugar

edificado pela Energia Sustentável do Brasil.

Um colaborador também fez críticas ao que foi distribuído como informação a

respeito de Nova Mutum e afirmou que as tentativas de comunicação com a

empresa foram frustrantes para os moradores.

[...] eles tão com o poder da mídia na mão. Podem comprar, pagar mídia então sai muita publicidade. Dentro do que sai aí fora, aqui é acho que 90% do que sai de propaganda da Energia Sustentável é mentira, tudo mentira. Não há um relacionamento da Energia Sustentável com a comunidade. Todas as reuniões que acontecem tá dando briga, tá dando discussões, tá dando confusão [...] (Eleandro, 2012).

Para entendermos as relações de comunicação, tanto se manifestando de

forma individualizada, como a forma como o consórcio se apresentou junto à

comunidade de forma ampla, como agente do desenvolvimento local e convalidando

a supremacia do discurso sobre o lugar em propagandas empresariais, buscamos

um referencial que elucidasse estas relações de poder implícitas nas relações

comunicacionais.

Segundo Bourdieu (2007, p. 14) "o que faz o poder das palavras e das

palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na

legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é

da competência das palavras”.

[...] não basta notar que as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre relações de poder que dependem, na forma e

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no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações e que, como o dom ou potlatch, podem permitir acumular poder simbólico. É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os “sistemas simbólicos” cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados” (BOURDIEU, 2007, p. 11).

O poder simbólico implícito no discurso sobre este Nova Mutum também

advém da construção de utopias. Os recursos comunicacionais do consórcio ESBR

atenderam a proposição de construir utopias em relação ao lugar de remanejamento

da comunidade de Mutum. Utopias estas que faziam desencontrar a nova geografia

sócio-espacial do lugar com a história social dessa comunidade.

A utopia, segundo Sousa Santos (apud WANDERLEY, 2004, p. 45) é "a

exploração, através da imaginação, de novas possibilidades humanas e novas

formas de vontade". Diante desta perspectiva, a relação entre consórcio e população

perpassa a construção das utopias individuais dos moradores remanejados,

moldadas num campo de disputa simbólica onde estes estão em desvantagem em

relação ao consórcio Energia Sustentável do Brasil, que garante a supremacia no

campo também discursivamente, na medida em que age como representante do

desenvolvimento sustentável e de garantias de uma vida melhor.

Observamos que as dinâmicas que garantem a existência da cidade estão

totalmente relacionadas ao período de obras da UHE Jirau, visto que atualmente

não existem indústrias funcionando e movimentando a economia da região, como a

empresa havia prometido. A única indústria que funcionou no Polo Industrial da

cidade, foi a BS Construtora, que fez casas pré-fabricadas em Nova Mutum e pediu

falência em 2011, logo após a conclusão da maior parte das casas da cidade. Esta

empresa foi colocada na lista suja com 53 trabalhadores em situação de escravidão

(ver http://www.reporterbrasil.org.br/pacto/listasuja/lista).

Desta forma, se evidenciou mais claramente que Nova Mutum teve como

proposta inicial funcionar como uma Company Town, que tem como objetivo abrigar

funcionários das empresas, fornecendo condições para sua permanência no local

das obras. Sendo assim, o objetivo não era criar uma cidade que crescesse e se

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expandisse, pois tinha um período de existência definido, atrelado ao período de

construção da Usina Hidrelétrica.

Os processos de mudança desencadeados pela instalação da usina

hidrelétrica estão relacionados a um tipo de mecanismo de intervenção estatal que

considera a apropriação de um patrimônio natural para a sociedade, porém este tipo

de intervenção não considera que além de patrimônio natural, trata-se de patrimônio

cultural, socialmente construído (ALMEIDA, 2009). Desta maneira, os lugares não

são mecanicamente remanejáveis. O lugar foi criado nas circunstâncias de vida e

gerou uma experimentação que garantiu a identidade dos sujeitos.

A narradora a seguir, percebeu que há uma contradição entre os valores e

significados enaltecidos pelos mecanismos do desenvolvimento e sua lógica, e os

significados que são próprios dos moradores remanejados em relação ao lugar de

sua origem.

O pessoal passa aí na estrada, mas que cidade linda! Mas vocês moram numa cidade de primeiro mundo! Dá uma raiva quando eles falam assim. Porque eles não sabem da vida da gente. Eles acham que grama e alvenaria é tudo (Nádia, 2012)!

A implantação da UHE Jirau implicou na substituição dos sentidos do lugar

para as pessoas que deixaram seu modo de vida em Mutum-Paraná em busca da

utopia do desenvolvimento sustentável. As perdas se deram tanto no plano material

como no mundo simbólico, esta última uma categoria imprescindível para a atuação

dos sujeitos no mundo social. Atualmente em voga, o modelo de desenvolvimento

priorizado pelo Estado brasileiro não considera as populações tradicionais, com seus

modos de vida específicos, que se refletiram no lugar das vivências destas pessoas.

No íntimo das pessoas, transitivos ou duradouros, os lugares da atualidade ou do passado podem variar de acordo com os valores, a quebra de preconceitos, a formação de conceitos e a aceitação de novas normas (MELLO, p. 40, 2012).

Caso as vivencias particularizadas nos lugares das pessoas fossem

realmente levadas em consideração com a mudança para Nova Mutum, talvez o

lugar que vive agora na memória de um passado pudesse ser refletida nas praticas

atuais, mas de acordo com o que observamos, não houve essa possibilidade.

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Podemos pensar que a implementação da UHE Jirau manifestou uma disputa

entre grupos sociais, que se apropriam tanto material como simbolicamente do

território de forma diferenciada, de forma que os significados de lugar para um grupo

são anulados, transformando-se em parte do reservatório da UHE Jirau.

Como observamos por meio das narrativas, estas apresentaram uma série de

contradições que vieram com a relação estabelecida entre consórcio construtor da

UHE Jirau e os narradores de Mutum-Paraná, principalmente pelas mudanças na

forma de dilemas quanto ao significado relativo à perda do lugar de compartilhar

experiências vividas, de aconchego, de segurança do ser. Por isto, compreendemos

prevalecer a relação de conflito de sentidos para o ‘lugar’, apesar de

discursivamente as mudanças atreladas aos projetos de desenvolvimento,

apresentarem-se sempre como benéficas.

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CONSIDERAÇÕES

Ao buscarmos os sentidos para a palavra recriar num dicionário, o que

obtivemos como resposta nos remeteu a outra da qual ela deriva: criar. Desta

maneira, a reflexão sobre a possibilidade de recriar algum lugar indica a

necessidade de uma reflexão anterior, sobre a criação do lugar. Em nosso caso

esse referencial foram memórias dos deslocados de Mutum-Paraná para Nova

Mutum.

Por meio da abordagem em Geografia Humanística, a questão do significado

do Lugar perpassa a busca pelo espaço de materialização dos sentimentos e

experiências humanas, desenrolados em relação a uma localidade. Ao ouvirmos as

histórias contadas pelos colaboradores nesta pesquisa pudemos fazer reflexões

neste sentido. O lugar onde desenrola a vida presente traz a lembrança do passado

e o lugar do passado é o lugar na memória.

É a memória que faz Mutum Paraná recriada pois as vivências expressas e

verificadas nas idas à campo, quando fizemos os contatos e tivemos nossas

percepções da cidade Nova Mutum não manifestam a recriação dos sentimentos

topofílicos existentes no lugar de moradia anterior.

A questão do sentimento que perpassa lugares de existência, lugares que são

criados pelas relações humanas vividas, as memórias, não aparece como relevante

durante o processo de instalação desta obra da Engenharia, monumento do poder

exercido por projetos que agem sob a bandeira da promoção do desenvolvimento

nacional. Para o discurso do desenvolvimento, os ganhos econômicos das empresas

que terão facilidade de obtenção de energia para funcionarem é que tem a

legitimidade de dizer qual é a importância e significado de um lugar.

O Lugar Mutum Paraná foi apagado, esfacelado e agora existe em

fragmentos de memória de moradores que viveram também com dificuldades porém

criaram vínculos e associações que traziam conforto para a realidade cotidiana.

Nova Mutum agora é o lugar de vivências outras, que se diferenciam ao vivido

anteriormente pelo estranhamento provocado por um espaço de exclusão e não de

acolhimento.

A importância de estudos e interpretações à respeito do discurso empresarial

envolvendo estes projetos de desenvolvimento, especialmente os implantados na

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Amazônia, deve-se pois contam com o apoio das esferas governamentais e detém

grande poder econômico. Por isso, as falas das empresas, multiplicadas por

diversos tipos de mídias, silenciam as comunidades que são atingidas por estes

projetos, que não conseguem alcançar grande visibilidade em suas queixas. Muitos

foram os comentários que ouvimos durante o período da pesquisa, inclusive em

âmbito acadêmico, a respeito das pessoas que foram deslocadas para Nova Mutum,

referindo-se à elas como mal agradecidas ou pessoas que não reconheceram os

benefícios trazidos pela construção da barragem.

Entendemos que o discurso empresarial traz consigo a representatividade

sobre o que é sustentável, na forma em que a própria obra se apresenta mediante

seu discurso como uma garantia de benefícios ambientais e sociais. Os diferentes

entendimentos a respeito do ambiente não foram conjugados para a construção da

UHE Jirau mas os significados do lugar para as pessoas que viviam nas

proximidades do rio foram ignorados pela prevalência e legitimidade do discurso do

progresso e desenvolvimento.

No que tange a este desenrolar de ações, o lugar para as pessoas que viviam

em Mutum Paraná foi anulado em detrimento de outro modelo de viver e podemos

pensar na escolha do nome Nova Mutum para esta cidade planejada, mas sem

muito planejamento como referência à esta substituição.

Se pensarmos de forma interpretativa, o termo “nova”, quando associado a

algo que está por vir, pode trazer a significação de algo que supera positivamente,

de possibilidades aumentadas, de revoluções em algo que extinguiu-se. Outra

possibilidade de significado para o termo “nova” é a ideia de que existiu um velho,

em desuso, fora de moda, e por isso foi superado, para que viesse um substituto.

As crenças a respeito do porvir relacionadas a instalação da UHE Jirau, como

pudemos abordar em capítulos anteriores, trouxeram consigo a expectativa da

recriação do lugar, só que magicamente mais pleno. O que pudemos perceber neste

trabalho foi que o que ocorreu foi uma novidade imposta, que apresentou-se

benéfica discursivamente, mas que é negada nas práticas sociais materializadas no

lugar cotidianamente.

As relações sociais e com o meio ambiente que moldavam as relações com o

lugar anteriormente, que o criaram na experiência de cada sujeito que viveu em

Mutum-Paraná não foram relevantes nos processos da mudança, onde prevaleceu a

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questão econômica pois os bens imateriais, as relações construídas pelos anos de

convivência no lugar não foram considerados como uma perda e a mudança para a

casa em Nova Mutum foi apresentada como muito vantajosa em relação ao modo de

vida anterior.

A comunidade de Mutum Paraná, que foi deslocada compulsoriamente para

Nova Mutum, entregou-se às suas perdas e atualmente pode apenas apreender o

lugar de experiência e significado enquanto lembrança dos momentos vividos.

Momentos que foram anulados pelo direcionamento político-econômico do Estado,

que atuou em discordância com suas próprias diretrizes na medida em que

desagregou comunidades tradicionais que ele próprio criou mecanismos para

proteger. Uma vez destruído o lugar, há um custo para a sua reconstrução simbólica

e emocional.

Entendemos que reconstruir este lugar de forma estritamente igual ao que

existiu anteriormente é tarefa impossível pois a vida que correu nas ruas, as brigas,

reconciliações, brincadeiras e atos de solidariedade jamais voltarão. No entanto,

partimos da ideia que a dor pela perda de seu lugar de vida, devido uma mudança

pode ser atenuada, mediante a ação de estudos competentes que busquem a

compreensão deste lugar que supera o caráter locacional e remete ao acontecido e

vivido subjetivamente.

O lugar é o espaço humanizado, onde ocorrem as relações e interações entre

os indivíduos. Para os moradores de Mutum Paraná, além das modificações dos

biomas e ecossistemas e do possível agravamento de endemias entre outras

consequências, o seu lugar, o aconchego, o espaço onde se desenrolavam as

interações sociais sofreu sérias modificações. As modificações nos modos de vida

das populações situadas nas áreas diretamente afetadas pela construção das

barragens e formação do reservatório são modificações irreversíveis no modo de

vida dessas pessoas.

As abordagens Humanística e Cultural em Geografia caminharam em

colaboração para nossa pesquisa, pois quisemos perceber os sentidos e símbolos

que moldaram e foram moldados pelas relações dos ribeirinhos com o lugar e no

lugar, por meio das narrativas. Nossa pretensão foi entrar em contato com as

significações que tornavam possível a vida da população em sua espacialidade e

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verificamos de que forma as modificações territoriais consequentes da construção

da UHE Jirau implicaram numa desagregação de suas espacialidades específicas.

As pessoas que viveram em Mutum-Paraná construíram uma espacialidade

específica, moldada pelas suas relações subjetivas e também construídas pela sua

relação com o lugar onde se concretiza seu modo de vida. A realocação forçada

dessa população, nos aparece como fundamental para processos de desagregação

das relações que anteriormente possuíam.

O que ocorreu para estas pessoas deslocadas de seu lugar é que a memória

construída enquanto foram a comunidade Mutum-Paraná agora encontra-se

ameaçada. Os vínculos desta comunidade, que garantiriam a existência do lugar de

vivência ao menos no plano da memória, estão se afrouxando dia a dia. Nesse

aspecto, o lugar Mutum-Paraná foi vivenciado de forma inseparável do rio, da casa,

da atividade de lazer e a recriação disso fica impossível quando remetidos a

realidade de estranhamento em Nova Mutum.

Neste lugar, as novas relações concorrem na e para a formação de novas

memórias, porém o que surge como crítica, é o questionamento a respeito da

natureza dessa "nova memória". A memória que surge com as relações sociais em

Nova Mutum devem ser consideradas decorrente de um processo de anulação a ser

enfrentado pelas populações tradicionais da Amazônia, como é caso da comunidade

Nova Mutum.

A natureza compulsória da mudança, a mudança como obrigatoriedade de um

processo gerado pelas escolhas políticas do Estado brasileiro, evidenciou-se nas

narrativas, pelas dificuldades que se tornaram aparentes. A comunidade de Mutum-

Paraná, agora remanejada, não consegue perceber-se enquanto sujeito da nova

geografia imposta pelo projeto de desenvolvimento, Nova Mutum.

Em nossa pesquisa percebemos contradições entre os discursos do consórcio

e os sentimentos expressos pelos moradores de Nova Mutum. Apesar da

infraestrutura edificada pela ESBR ser apresentada como muito superior às casas

de madeira, tradicionalmente construídas pelas comunidades da Amazônia que

vivem em contato com os rios, isto não se revelou suficiente para garantir e tornar o

lugar Nova Mutum um agregado de sentimentos topofílicos, como os que são

revividos na memória pessoal de cada um dos atingidos deslocados.

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Prevaleceu o poder do Estado sobre as decisões e subjetividades individuais

destes grupos atingidos, que não conseguiram ainda recompor as perdas materiais

e simbólicas decorrentes da interrupção de seu modo de vida pela construção de

uma barragem como a de Jirau, no rio Madeira.

A pesquisa de campo revelou que o remanejamento colocou a comunidade

Mutum-Paraná em uma espécie de beco sem saída, pois não podem regressar aos

mecanismos de subsistência anteriores, onde mesclavam extrativismo com

agricultura de subsistência nos quintais individuais das casas, com pequenos

comércios, e nem vislumbram a longo prazo, a possibilidade de verem criados

mecanismos sociais que garantam a integração desta comunidade ao modelo de

trabalho da economia de mercado. Os remanejados de Mutum manifestaram-se

desanimados e desmotivados para reconstruírem suas vidas na Nova Mutum.

O PAC na Amazônia impôs à região a perda de florestas e submissão de

povos que antes podiam se nutrir nela material e simbolicamente. A instalação das

hidrelétricas do Madeira incluindo a neutralização/anulação da legislação ambiental

que a acompanhou sinaliza que o país, antes de atender à uma lógica que priorize o

cidadão, prioriza os mercados internacionais.

De acordo com o que observamos, foi possível pensar que em termos de

desenvolvimento, Rondônia e a Amazônia de uma forma ampla, com suas

especificidades naturais e socioculturais, seus lugares e memórias, arcam com as

mazelas do desenvolvimento, sem que possibilidades sejam criadas para que esta

região fique” com uma fatia do bolo”.

A Amazônia é uma espécie de desafio ao capital, com os seus rios a serem

convertidos em mercadoria e populações que nutrem vínculos com os recursos

naturais de maneira incongruente com a lógica dos mercados e da mercantilização

destes recursos.

As políticas para o desenvolvimento, promovidas pelo Estado brasileiro

compartilham do discurso hegemônico, que traduz a noção de desenvolvimento

como crescimento econômico, sem considerar as territorialidades particulares dos

povos que vivem em áreas a serem utilizadas na implantação de grandes projetos

de desenvolvimento.

Como alternativa ao pensamento hegemônico, um estudo fenomenológico

trouxe outras perspectivas para o entendimentos a respeito da construção de

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grandes barragens pois por mais que a ideia de sustentabilidade seja vendida como

benéfica, há de se problematizar o sentido desta sustentabilidade. Se é uma

sustentabilidade do capitalismo, para que ele siga destruindo lugares, ou é a

sustentabilidade presente nas práticas culturais tradicionais, onde o que é extraído

atende a plenitude humana, sem o afã da acumulação sem fim do capital?

O desenvolvimento que foi adotado em nosso país reflete práticas culturais e

interesses econômicos dos países centrais. Por isso, a busca pelo desenvolvimento

da forma como é apresentado atualmente, implicou na impossibilidade da

manutenção do modo de vida das comunidades que nutrem vínculos com o rio,

como a de Mutum-Paraná.

Este projeto de desenvolvimento do governo brasileiro não trouxe apenas

milhares de homens em busca de trabalho, reordenamentos territoriais, destruição

de lugares e perdas ambientais. A instalação de UHEs promoveu mudanças também

no plano simbólico. Como buscamos compreender, a possibilidade de recriação do

lugar para comunidade de Mutum-Paraná, remanejada para Nova Mutum com a

instalação da UHE Jirau, fomos levados a uma série de outros questionamentos que

não foram abarcados por este trabalho mas que abrem possibilidades para

pesquisas ulteriores.

No ato da pesquisa, foi possível observar momentos em que os sujeitos

sociais com os quais interagimos, deslocados por conta da construção da barragem,

perceberam o grau de relevância dado a sua própria existência, no momento em que

as escolhas do governo brasileiro foram feitas para atender interesses econômicos,

modificando de forma irreversível o lugar de seu habitar, do conforto subjetivo.

Os trechos das narrativas que apresentamos e analisamos, evidenciaram

subjetividades que fluem de um processo que garantiu a reprodução e continuidade

do capitalismo mas implicou na destruição do lugar. Nesta pesquisa, isto se

evidenciou a partir das narrativas, onde Nova Mutum surgiu como um lugar de dor e

perdas emocionais e Mutum-Paraná como memória de sentimentos agradáveis em

relação ao lugar das vivências.

Portanto, consideramos em certa medida que Nova Mutum apareceu como

um lugar de desenvolvimento urbano imposto, consequência da construção das

Usinas Hidrelétricas na atualidade Amazônica, sem levar em conta, o fato dessa

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comunidade ter a autonomia cultural e simbólica de querer ou não renunciar a

condição de serem sujeitos em sua geograficidade.

Nova Mutum, devido as consequências materiais e simbólicas sobre as vidas

dos que lá residem na contemporaneidade, foi produto de transformações no espaço

e nos lugares em consequência das práticas sociais e da racionalidade do

capitalismo. Mas este processo implicou também no estabelecimento de um conflito

ambiental, de onde emergiram questionamentos nos atingidos pela barragem de

Jirau, em suas narrativas. Por terem seu lugar invisibilizado, assim como as

condições da sua sobrevivência simbólica, o discurso dos atingidos contradisse o

discurso institucional do consórcio ESBR.

A ESBR mantém a hegemonia sobre o signo da sustentabilidade,

apresentando-se discursivamente como promotora do desenvolvimento sustentável

e representante do Estado, enquanto a comunidade Mutum-Paraná, agora em Nova

Mutum, foi surpreendida com as contradições aparentes entre o imaginário

construído, o discurso do desenvolvimento e a vivência atual dos moradores longe

do rio e da natureza.

A construção desta barragem gerou conflitos, mudanças, e outras formas de

viver no lugar que se mostraram não apenas no plano da materialidade ou da

legalidade. Os conflitos, a partir das narrativas subjazem também às percepções e

os sentimentos daqueles que se consideram atualmente em desvantagem na

correlação de forças instaurada pela construção a barragem e que anteriormente

nutriam em seu imaginário a UHE como mecanismo de mudança social que os

favorecesse.

Até onde pudemos verificar, nas relações que se desdobraram a partir da

relação estabelecida entre comunidade e consócio construtor, a comunidade

caminha em direção oposta à suas necessidades simbólicas e à recriação de um

lugar para o viver. Os sentimentos de perda apareceram no momento em que as

memória se ressentiam do relacionamento com o rio.

Nova Mutum, talvez funcione como um tipo de impulso, capaz de alavancar

lutas futuras desta comunidade e de outras em situação semelhante, no sentido de

construir um modelo de desenvolvimento que não implique em anulações de direitos

materiais e simbólicos daqueles que não entraram de forma equânime nos

processos decisórios envolvendo a construção da UHE Jirau, em Porto Velho.

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O lugar como expressão do mundo vivido para a população que tem seus

costumes, tradições e o habitus moldados continuamente pelo referencial do rio ou

em relação ao rio, as características de seus lares e experienciam este lugar do

acontecer da vida, foi percebido e sentido de uma forma diferenciada do que lhes foi

proposto com a mudança. No entanto, por compartilharem uma experiência comum

que também implica na absorção de valores gerais que compactuam com toda a

sociedade, aceitaram pacificamente a transferência, acreditando na realidade dos

valores de prosperidades impressos na publicidade do consórcio.

Além disso, há questões de ordem psicológica, questões relacionadas à

perda do lugar onde viviam e que se apresentam de forma mais intensa em pessoas

idosas, estas pessoas não tiveram expectativas de sair do lugar que elegeram para

passar suas vidas e ao mudarem parecem perder seu ponto de equilíbrio interior, o

que lhes dá sustentação e conforto. Questões como esta, referentes aos lugares não

são abordadas quando se propõe um projeto da magnitude da UHE Jirau.

Consideramos que aconteceu a apropriação de um referencial simbólico

comum, o meio natural, mas com sensibilidades distintas. O consórcio ESBR ganhou

a confiança da população de Mutum-Paraná, que aceitando uma proposta de vida

exibida e propagandeada como melhor, concordou pacificamente em viver uma

experiência diferenciada do que vivia no lugar anterior. Apenas quando as perdas

relacionadas ao que era material, emocional e simbólico tornaram-se evidentes, a

perda do lugar ficou clara.

Entendemos que diante do que vivenciamos em nossa pesquisa, não

podemos declara Nova Mutum a recriação de um lugar. Para a população que

deixou suas vivências e experiências em Mutum Paraná, esta cidade planejada é um

reduto de sentimentos de insegurança.

Sabemos, via o montante de pesquisas já realizadas e em andamento que

tem como a temática a instalação de usinas hidrelétricas, que as consequências

sociais e ambientais de um empreendimento como a UHE Jirau em muitos aspectos

só serão visíveis anos após concluídas obras. Desta maneira, faz-se necessário

afirmar o interesse em investigar e buscar compreender mais facetas ainda não

expostas e que ainda se apresentarão neste desenrolar de fatos que concorrem

para a execução desta obra, que tem consequências no mundo natural e também no

mundo simbólico-cultural.

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Diante do que foi possível observar na pesquisa, e também mediante as

interpretações dos elementos que nos foram trazidos pelas entrevistas, pelas falas

dos narradores que se dispuseram a compartilhar um pedaço de suas memórias e

de suas vivências na atualidade, cabe-nos como representantes da academia trazer

proposições para atenuação das dificuldades verificadas pela vivência neste lugar

imposto pelo desenvolvimento.

Com relação às famílias que encontram-se em dificuldades financeiras,

devido à falta de emprego e também aos que estão sofrendo coma ausência de

suas hortas e da troca que havia entre os vizinhos, possibilitando o consumo de

vários tipos diferenciados de alimentos vegetais vindos dos quintais, uma

possibilidade de saída seria a solicitação, pelas famílias, de formular um canteiro

coletivo nos moldes do PAIS.

O projeto PAIS, sigla para Produção Agroecológica Integrada e Sustentável, é

formado pela convergência de cultivos agrícolas em um espaço não muito extenso,

pois consiste em uma horta circular com um galinheiro no centro e um pomar em

torno. Com este sistema é possível produzir hortaliças, frangos, ovos e frutas sem

utilização de agrotóxicos e adubos químicos. A irrigação é feita por gotejamento, que

utiliza a água de forma econômica e eficiente. Este projeto está sendo instalado em

diversas localidades onde residem atingidos por barragens que enfrentam também

graves problemas, por meio de uma parceria entre MAB – Movimento dos Atingidos

por Barragens e a Fundação Banco do Brasil.

Entendemos que a parte relacionada às perdas emocionais não podem ser

restituídas completamente mas iniciativas que tragam renda para estas pessoas,

com atividades que se assemelham às do passado em Mutum-Paraná, podem trazer

perspectivas melhores e mais animadoras.

Quanto ao poder público recomendamos que sejam implementadas medidas

para garantir a reinserção destas pessoas no mercado de trabalho, podem ser

algumas políticas públicas voltadas para esta categoria de deslocados por

construções de hidrelétricas. Estas pessoas necessitam de mecanismos que

permitam gerar alguma renda para suas famílias, visto que os benefícios que foram

propagandeados antes da instalação do canteiro de obras da UHE Jirau não se

efetivaram na prática. Muito foi falado sobre a abertura de postos de trabalho, mas

as empresas consorciadas construtoras da barragem consideram mais seguro trazer

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seus próprios funcionários de fora, do que capacitar a população local. Isto em um

curto prazo, mas em médio e longo prazo, o número de trabalhadores da obra vem

decaindo, de forma que estas pessoas remanejadas necessitariam ter uma fonte

para se manter de qualquer forma, ainda mais agora que se encontram em uma

cidade longe das águas do rio.

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