Novas Agendas, Mesmas Contradições na Política Científica ... · analisar a política...

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1 Novas Agendas, Mesmas Contradições na Política Científica e Tecnológica no Governo Lula Autoria: Priscilla Borgonhoni Chagas, Cristina Amélia Carvalho Resumo O objetivo deste estudo é analisar a política científica e tecnológica no Governo Lula, que apregoou o engajamento dessa política com a realidade social brasileira. As discussões teóricas se pautam na teoria da dependência de Marini (2005), que desvenda a lógica da integração subordinada da formação socioeconômica latinoamericana à economia capitalista mundial. A análise revela que a despeito da inserção do eixo de inclusão social nos debates da política de ciência e tecnologia, a lógica desse processo ainda se mantém em sintonia com o ajustamento do desenvolvimento econômico do Brasil ao sistema econômico mundial, numa clara relação de dependência.

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Novas Agendas, Mesmas Contradições na Política Científica e Tecnológica no Governo Lula

Autoria: Priscilla Borgonhoni Chagas, Cristina Amélia Carvalho

Resumo O objetivo deste estudo é analisar a política científica e tecnológica no Governo Lula, que apregoou o engajamento dessa política com a realidade social brasileira. As discussões teóricas se pautam na teoria da dependência de Marini (2005), que desvenda a lógica da integração subordinada da formação socioeconômica latinoamericana à economia capitalista mundial. A análise revela que a despeito da inserção do eixo de inclusão social nos debates da política de ciência e tecnologia, a lógica desse processo ainda se mantém em sintonia com o ajustamento do desenvolvimento econômico do Brasil ao sistema econômico mundial, numa clara relação de dependência.

 

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1 Introdução A discussão dominante sobre a possibilidade de desenvolvimento econômico dos

países latinoamericanos está fundamentada na defesa de uma direção política que oriente as decisões macroeconômicas nacionais ao ajustamento de suas economias ao sistema econômico mundial. Essa lógica subordinada deu suporte aos sucessivos planos e programas econômicos implementados nas últimas décadas no Brasil, nos quais as politicas para a ciência e a tecnologia assumiram papel estratégico no desenvolvimento econômico e social, e assim se institucionalizaram no que veio a ser denominado de Política Científica e Tecnológica (PCT).

Instadas a fatores propulsores do progresso, a ciência e a tecnologia tornam-se, na politica de estado, fundamentais para o aprimoramento das forças produtivas e a expansão capitalista (MOREL, 1979). Construída sob este pressuposto, a PCT volta-se para a formação de mão de obra de alto nível para os setores produtivos em expansão e para evitar pontos de estrangulamento no desenvolvimento produtivo que prejudiquem a meta geral de expansão econômica e a efetivação da inserção brasileira nas relações de mercado internacionais. A lógica dominante que orientou a política de desenvolvimento nacional aferrou-se assim ao papel estratégico da ciência e da tecnologia como mecanismo de inserção do país no sistema econômico mundial.

Em oposição a esta concepção, intelectuais latinoamericanos problematizaram a questão do desenvolvimento abordando-a em estreita relação com as engrenagens do sistema do capital. Dentre eles destacou-se Ruy Mauro Marini que, na década de 60, pensando o processo de formação socioeconômica na América Latina a partir da teoria da dependência, desvenda a lógica de sua integração subordinada à economia capitalista mundial. Para o autor, ao construir-se como uma “relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência” (MARINI, 2005, p. 140), o desenvolvimento das nações latinoamericanas estabelece sua indissociabilidade da relação de dependência.

Com base na teoria da dependência de Marini (2005), partimos da afirmação de que a política científica e tecnológica reflete os projetos nacionais e os modelos de desenvolvimento de cada contexto histórico e deste modo reproduzem a situação estrutural de dependência que caracteriza a inserção do Brasil no sistema capitalista internacional. Dessa forma, o projeto nacional aponta os rumos tomados (ou propositalmente não tomados) pela PCT. A construção da Política Nacional de Ciência e Tecnologia envolve interações (e disputas) entre agendas particulares que expressam valores, crenças, posturas político-ideológicas e interesses de atores sociais que se enfrentam para formatar políticas efetivas aos seus projetos políticos (ou de forma mais ampla, ao projeto nacional almejado). Atores sociais coletivos (grupo social, organização, etc, em geral não-monolítico), com interesses e forças em disputa, que se organizam por meio de quatro agendas particulares: da comunidade de pesquisa (agenda da ciência); dos governantes (agenda do governo); dos empresários (agenda da empresa); e da sociedade em geral (agenda dos movimentos sociais) (DAGNINO, 2007).

Estes interesses distintos dão o matiz do enfrentamento político e exprimem as contradições no projeto nacional que dará forma à Política de Ciência e Tecnologia e à sua relação com os problemas da sociedade. Segundo Dagnino (2007), no início dos anos de 1970, analistas da PCT latinoamericana destacavam que, ao contrário do que ocorria nos países centrais, esta era pautada por uma agenda desconectada das demais políticas. Ainda segundo Dagnino (2007), a comunidade de pesquisa exerceu um papel predominante na construção da PCT dos países latinoamericanos em detrimento até mesmo dos assuntos de

 

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interesse do governo (a agenda do governo). Menor presença tinha a agenda da empresa e dos movimentos sociais.

Neste contexto, entre as décadas de 1980 e 1990 as demandas da agenda da “sociedade em geral” começaram a ser debatidas. No entanto, essas demandas não se traduziram em mudanças estruturais na PCT e foram retomadas a partir do ano 2000 com a possibilidade de eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores. A vitória de Lula prometia um cenário favorável ao aprofundamento de mudanças políticas e institucionais no Brasil que envolveria a inserção e participação no debate nacional de novos atores sociais, inclusive no processo de construção da PCT. Nesse contexto, o objetivo deste estudo é analisar a política científica e tecnológica no Governo Lula, que se apresentou como um governo popular e apregoou o engajamento da PCT com a realidade social brasileira e a construção de uma agenda nacional de participação social. A análise foca as contradições e disputas do processo de construção da referida política e questiona a efetiva participação dos movimentos sociais nas esferas de direcionamento da PCT.

O presente artigo encontra-se estruturado em quatro seções, nas quais se explora a teoria da dependência no pensamento de Ruy Mauro Marini e, por meio dele, interpretar a formulação da política nacional de ciência e tecnologia sob a égide do capital; a política nacional de ciência e tecnologia e sua relação de dependência com o capitalismo hegemônico e, por fim; a política científica e tecnológica no Governo Lula a partir das reflexões alinhavadas. 2 A teoria da dependência

A teoria da dependência foi elaborada por intelectuais latinoamericanos na década de 1960 como uma tentativa de explicar o desenvolvimento socioeconômico na região, em especial a partir de sua fase de industrialização, iniciada entre as décadas de 1930 e 1940. Esse arcabouço teórico buscava “compreender as limitações de um desenvolvimento iniciado em um período em que a economia mundial já estava constituída sob a hegemonia de enormes grupos econômicos e forças imperialistas” (SANTOS, 2000, p. 26). Na teoria da dependência podemos referir duas correntes importantes nos debates brasileiros sobre desenvolvimento, nas quais se enfrentam, de um lado, a leitura weberiana feita por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto e, de outro lado, a leitura marxista de Ruy Mauro Marini.

Dentre os inúmeros escritos de Marini destaca-se a obra Dialética da Dependência, publicada em 1973 no México, mas que só se tornou conhecida no Brasil anos depois. Nela o autor articula a forma de inserção das economias periféricas no mercado internacional com os mecanismos de acumulação de capital e de exploração do trabalho. Assim, a originalidade da obra, segundo o próprio Marini, deve-se à rejeição da formulação teórica tradicional de análise do subdesenvolvimento e, à abertura do estudo da realidade latino-americana a partir de uma leitura marxista da realidade latinoamericana.

Nas primeiras páginas de Dialética da Dependência, Marini (2005) alerta que a economia latinoamericana apresenta peculiaridades que obrigam à recorrência à noção de “pré-capitalismo”. Argumenta o autor que, ainda quando se trate realmente de um desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas, essa noção se refere a aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e funcionamento, não poderá desenvolver-se nos mesmos parâmetros das economias capitalistas dos países centrais. Assim, Marini (2005, p. 138) destaca que “mais do que um pré-capitalismo, o que se tem é um capitalismo sui generis, que só adquire sentido se o contemplarmos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e principalmente, em nível internacional”.

 

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Os países latinoamericanos contribuíram com a criação da grande indústria moderna, afirma Marini (2005) e a região desenvolveu-se em estreita consonância com a dinâmica do capitalismo internacional, pois como produtora de metais preciosos e gêneros exóticos, contribuiu, em um primeiro momento, com o aumento do fluxo de mercadorias e a expansão dos meios de pagamento, que permitiu o desenvolvimento do capital comercial e bancário na Europa, bem como a sustentação do sistema manufatureiro europeu.

A revolução industrial, afirma ainda o autor, correspondeu na América Latina à independência política nas primeiras décadas do século XIX, e fez surgir nas relações comerciais construídas sobre o pacto colonial, uma perversa «articulação» que passava pela produção e exportação de bens primários em troca de produtos manufaturados de maior valor agregado que, progressivamente, cristalizou os desequilíbrios das balanças comerciais e as dívidas soberanas dos Estados.

É a partir desse momento que as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o sentido do desenvolvimento posterior da região. Em outros termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. (MARINI, 2005, p. 140, grifo nosso). Assim, o surgimento da grande indústria estabeleceu as bases sólidas para a divisão do

trabalho, pois “a criação da grande indústria moderna seria fortemente obstaculizada se não houvesse contado com os países dependentes” (MARINI, 2005, p. 142). A condição primordial para que a América Latina se inserisse na economia internacional esteve relacionada com sua grande disponibilidade de produtos agrícolas, ou seja, sua capacidade para criar uma oferta mundial de alimentos, permitindo que os países industriais se especializassem como produtores mundiais de manufaturas aprofundando, com isso, a divisão do trabalho. Posteriormente, a região contribuiu para a formação de um mercado de matérias-primas industriais, cuja importância crescia em função do próprio desenvolvimento industrial. Esse fator, aliado ao crescimento da classe trabalhadora e à elevação da produtividade nos países centrais, foram fundamentais para o surgimento da grande indústria.

Para além de ser mola propulsora do crescimento industrial europeu, a América Latina, afirma Marini (2005), contribuiu para que o mecanismo de acumulação na economia industrial dos países centrais se deslocasse da produção de mais-valia absoluta para a mais-valia relativa, ao alterar a ênfase da base da acumulação da sobre exploração do trabalhador para o aumento da produtividade física do trabalho. Entretanto, o desenvolvimento produtivo do continente, coerente com o desenvolvimento dependente e coadjuvante de sua economia, percorreu sentido contrário ao apoiar-se na superexploração da mão-de-obra.

Ao disseminar este modelo da divisão internacional do trabalho com o universo das ex-colonias, a consequência foi inevitavelmente a abundância da oferta mundial de alimentos e bens primários de modo geral e a consequente queda dos preços internacionais e irremediável desigualdade nas balanças comerciais. Com isso, escreve Marini (2005, p. 147), “mediante a incorporação ao mercado mundial de bens-salário, a América Latina desempenha um papel significativo no aumento da mais-valia nos países industriais”. Ao manterem-se relativamente estáveis os preços dos produtos industriais, a depreciação dos bens primários foi refletida na deterioração dos termos de troca. Essa deterioração se tornou a expressão da realização de um intercâmbio desigual de mercadorias entre nações industriais e não industriais. Para tanto, diferentes mecanismos permitiram realizar transferências de valor e se expressaram na forma como se fixavam os preços de mercado e os preços de produção da mercadoria.

 

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A partir da transferência de valor da periferia para o centro, a teoria da dependência argumenta que as nações desfavorecidas pela troca desigual não buscaram tanto corrigir os desequilíbrios entre os preços e o valor de suas mercadorias exportadas, mas sim procuraram compensar as perdas no comércio internacional por meio da superexploração do trabalhador. Assim, enquanto nos países centrais a acumulação de capital ocorre com base na capacidade produtiva do trabalho, na América Latina a acumulação é baseada na superexploração do trabalhador e “é nessa contradição que se radica a essência da dependência latinoamericana” (MARINI, 2005, p. 162).

Na obra Em torno a Dialéctica de la dependencia (2011), Marini reforça que a menor taxa de lucro nos países dependentes, como contrapartida da elevação de sua composição orgânica do capital é compensada pelos processos de superexploração do trabalho, para além das circunstâncias peculiares que favorecem, nas economias agrícolas e de mineração, a alta rentabilidade do capital variável. Em consequência, a economia dependente expande suas exportações a preços sempre menores do que os países industrializados (com os efeitos conhecidos sobre a acumulação interna destes) e, simultaneamente, mantém a sua atratividade para o capital estrangeiro, o que permite perpetuar o processo.

Assim, Marini (2005) afirma que compreender a especificidade do capital na economia dependente latinoamericana significa iluminar o fundamento de sua dependência em relação à economia capitalista mundial. O ponto-chave para entendimento da economia latinoamericana é a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital – a produção e a circulação de mercadorias. Enquanto nos países industriais o consumo individual dos trabalhadores representa um elemento decisivo na criação de demanda para mercadorias produzidas, na América Latina a circulação se separa da produção e se efetua basicamente no âmbito do mercado externo por meio do sacrifício do consumo individual dos trabalhadores. A separação entre o consumo individual fundado no salário e o consumo individual engendrado pela mais-valia não acumulada deu origem a uma estratificação do mercado interno: de um lado a esfera “baixa” (trabalhadores) e de outro a esfera “alta” de circulação (não-trabalhadores). Esta última se relaciona com a produção externa, por meio do comércio de importação.

Ao analisar o processo de industrialização ocorrido no Brasil no século XX, Marini (2005) revela que a contradição que caracterizou o ciclo do capital na América Latina e seus efeitos sobre a exploração do trabalho explica grande parte dos problemas e tendências desse processo. O crescimento industrial brasileiro somente ocorria quando fatores externos fechavam parcialmente o acesso da esfera alta de consumo para o comércio de importação. Isto porque a industrialização latinoamericana não criou sua própria demanda, mas nasceu para atender uma demanda pré-existente e se estruturou em função das exigências de mercado dos países centrais.

A Grande Depressão e as duas Guerras Mundiais provocaram uma grande redução na demanda de matérias-primas tradicionais por parte dos países centrais e no fluxo de produtos manufaturados para o Brasil. O desequilíbrio da balança de pagamentos e a escassez de produtos manufaturados importados desencadeou o processo de industrialização por substituição de importações orientado para produtos de baixa intensidade tecnológica, que podia ser atendida por meio da importação de tecnologia, mas sem transferência de know how. Nesse sentido, a inserção do Brasil na etapa da industrialização ocorreu a partir das bases criadas pela economia de exportação (MARINI, 2005).

É nesse contexto que se institucionaliza a política científica e tecnológica no Brasil, valorizadas como fatores de progresso, com capacidade de fornecer conhecimentos propícios a aplicações práticas. De acordo com Morel (1979, p. 44), “em linhas gerais, foi sempre essa

 

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‘promessa’ (a ciência como força produtiva) que orientou a política científica implementada na década de 50”. Assim, a lógica que subjaz a esta corrente dominante na definição das grandes prioridades do setor diz respeito ao papel estratégico da ciência e da tecnologia no desenvolvimento econômico, ou seja, como mecanismos de inserção do País no sistema econômico mundial. Nesse sentido, o item a seguir dedica-se a discutir a política nacional de ciência e tecnologia e sua relação de dependência com o capitalismo hegemônico.

3 Política científica e tecnológica brasileira e dependência

Na década de 1950 foi institucionalizada a política científica e tecnológica no Brasil. Foram marcos dessa institucionalização a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), órgãos de apoio à realização de atividades científicas e à formação de pesquisadores respectivamente (MOREL, 1979; OLIVEIRA & DAGNINO, 2004). O formato desses órgãos está no âmbito, por um lado, da opção pelo desenvolvimento do mercado interno via substituição de importações, caro à burguesia industrial nacional e, por outro, da participação da comunidade cientifica que articulou e advogou a criação de instrumentos e de instituições que dessem suporte ao avanço científico e tecnológico nacional necessário a esse processo.

A criação do CNPq e da CAPES, em 1951, constituiu importante marco nas relações Estado-ciência, estabelecendo, pela institucionalização do papel do Estado enquanto financiador direto de pesquisas, novo padrão de relacionamento pelo qual este assumiu explicitamente a condição e apoio da atividade de produção científica (ROMANI, 1982). Valorizada como mecanismo para o progresso, e elemento fundamental para o aprimoramento das forças produtivas e à expansão capitalista (MOREL, 1979), a PCT voltou-se para a formação de recursos humanos de alto nível, orientados para setores deficitários, pontos de estrangulamento que podem prejudicar a meta geral de expansão econômica e a efetivação da inserção brasileira nas relações de mercado internacionais. Nesse período, destaca-se a criação de empresas estatais como a Petrobrás (em 1953) e a Eletrobrás (projeto proposto em 1954, mas sancionado em 1962) para a produção de energia devido ao suposto “potencial de riquezas naturais” brasileiras.

Sendo assim, o marco de institucionalização da PCT no Brasil se estabelece a partir do reforço da dinâmica econômica já estabelecida no País, bem como estímulos às supostas “vocações econômicas”, que, posteriormente seriam reforçadas com o que Gudynas (2011) denomina de “novo extrativismo progressista”, ou seja, a valorização pelos governos progressistas latinoamericanos dos setores extrativistas como pilares das estratégias de desenvolvimento atuais. Esta constatação se ajusta à interpretação de Marini (2005) acerca do desenvolvimento dos países periféricos pelo ajustamento de suas economias ao sistema econômico mundial com base em mecanismos de regulação de mercado internacional para economias historicamente dependentes do sistema econômico estabelecido. Sendo assim, afirma o autor, a história socioeconômica desses países fica prisioneira de sua própria história, onde o suposto desenvolvimento tecnológico da capacidade produtiva se configura como mecanismo de reafirmação da lógica da eficiência, bem como das relações de mercado.

Os primeiros movimentos da institucionalização da PCT no país desvelam uma PCT prisioneira de uma perspectiva reducionista da realidade e voltada fundamentalmente ao desenvolvimento, a partir de uma visão linearista da história. Trata-se de uma concepção desconectada da realidade nacional, que não promove o comprometimento dos pesquisadores com sua própria produção científica mas, que reafirma o desenvolvimento tecnológico a partir da regulação das forças de trabalho a partir da transformação das condições técnicas de

 

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produção, com uma suposta maior produtividade das “vocações econômicas” brasileiras para a indústria de base, sem, no entanto, romper com as relações de dependência (MARINI, 2005).

A intensificação da estratégia de industrialização via substituição de importações, ocorrida entre as décadas de 1950 e 1960 contribuiu para ampliar ainda mais o abismo entre o conhecimento localmente produzido e as necessidades do contexto social. Oliveira e Dagnino (2004) assinalam que a instalação de empresas transnacionais nos países periféricos não formou um aparato científico e tecnológico que pudesse oferecer ao setor produtivo condições favoráveis ao seu desenvolvimento. As corporações estrangeiras que participaram no processo de industrialização brasileira dominaram os setores de maior inovação tecnológica e recorreram à tecnologia e know how das matrizes (MOREL, 1979).

Novas bases de dependência dos países da América Latina com relação aos países centrais foram formadas, que Marini (2005, p. 173) denomina “o novo anel da espiral”. Segundo o autor, na passagem da década de 1940 para a de 1950, a oferta mundial coincidiu com a demanda existente, constituída pela esfera alta da circulação. Assim, surgiu a necessidade de generalizar o consumo de manufaturas, ou seja, os bens supérfluos tiveram de se converter em bens de consumo popular. Nas economias dependentes dois tipos de adaptações tiveram lugar: a ampliação do consumo das camadas médias (por meio da mais-valia não acumulada) e, o esforço para aumentar a produtividade do trabalho, condição sine qua non para baratear as mercadorias. Essa segunda medida provocou uma mudança qualitativa na base da acumulação de capital, ao alterar a composição do consumo individual do operário com a inclusão de bens manufaturados. No entanto, não foi suficiente para deslocar o eixo da acumulação, da superexploração do trabalhador para o aumento da capacidade produtiva do trabalho, realizado por meio do recurso à tecnologia externa.

Assim, a industrialização latino-americana correspondeu a uma “nova divisão internacional do trabalho” (MARINI, 2005, p. 174), pois por volta de 1950 a crise que afetara o capitalismo internacional no período do pós-guerra havia sido superada e a economia foi reorganizada sob a égide dos Estados Unidos. Nesse contexto, os países centrais contavam com importantes fluxos de capital e buscavam mercados externos para a sua aplicação. Aliado a esse fato, Marini (2005, p, 174) afirma que durante o período de recessão foram desenvolvidas bases industriais periféricas, que ofereciam – graças à superexploração do trabalho – possibilidades atrativas de lucro. Paralelamente, ocorreu um grande desenvolvimento do setor de bens de capital nas economias centrais que incentivava a aplicação, no setor secundário dos países periféricos, dos cada vez mais sofisticados equipamentos produzidos. Desenvolve-se então, nas economias centrais, a necessidade de impulsionar na periferia o processo de industrialização, com o propósito de criar mercados para a sua indústria pesada. Por outro lado, à medida em que o ritmo do progresso técnico nos países centrais reduzia drasticamente o prazo de reposição do capital fixo, impunha-se a necessidade de exportar para a periferia equipamentos e maquinários já obsoletos, antes de sua total amortização.

Na economia industrial dependente, em que a acumulação se baseia fundamentalmente na superexploração do trabalhador, o desenvolvimento tecnológico se concentrou de maneira significativa nos setores de bens supérfluos, já que ao comprimir a capacidade de consumo dos trabalhadores, foi fechada qualquer possibilidade de estímulo ao investimento tecnológico no setor de produção destinado a atender o consumo popular, divorciando o aparato produtivo das necessidades de consumo das massas e restringindo o mercado interno (MARINI, 2005). Para resolver essa contradição, a economia industrial dependente não só teve de contar com um imenso exército de reserva de mão-de-obra, como também se obrigou a restringir aos

 

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capitalistas e camadas médias altas a realização das mercadorias supérfluas. A solução encontrada seria a exportação de manufaturas (tanto de bens essenciais quanto de produtos supérfluos) em meados da década de 1960.

Neste rumo, a construção da política científica e tecnológica ignora os elementos sócio-históricos do Brasil e pressupõe que o desempenho do sistema científico depende de sua organização interna, da qualidade do pessoal e da adequação entre meios e fins (MOREL, 1979). No entanto, as deficiências do sistema científico e tecnológico em países dependentes não resultam de “disfunções” ou “atrasos” de determinados setores ou da incorreta implementação da política científica e tecnológica, mas são determinadas por uma estrutura de atraso em grande parte condicionada pelo modo de inserção do País no sistema internacional (HERRERA, 1995). Essas características refletem relações de dependência estabelecidas entre formações sociais de capitalismo central e do capitalismo periférico (MARINI, 2005).

No início dos anos de 1970, analistas da PCT latinoamericana destacavam que, ao contrário do que ocorria nos países centrais, ela era pautada por uma agenda distante das demais políticas (DAGNINO, 2007). A comunidade de pesquisa exerceu um papel predominante na construção da PCT em detrimento até mesmo dos assuntos de interesse do governo (a agenda do governo). Menor presença tinha a agenda da empresa, uma vez que “nosso capitalismo periférico e mimético (primeiro, primário-exportador e, depois, de industrialização via substituição de importações) não gerava, ao contrário do que ocorria nos países avançados, uma demanda local por C&T” (DAGNINO, 2007, p. 41). Por sua vez, a agenda dos movimentos sociais, numa sociedade desigual e autoritária manteve-se latente.

Concomitante a essa dinâmica, entre o final da década de 1970 e início da década de 1980 (período da redemocratização do Brasil) ocorreram eventos (tais como o retorno de pesquisadores e cientistas do exílio e greves gerais como do ABC paulista) que provocaram um processo de questionamento político do País, inclusive de parâmetros científicos e tecnológicos. Esse mesmo período marcou a emergência de atores sociais cujos interesses exigiam processos alternativos para a construção de outros projetos nacionais. Dentre esses se destaca o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), com outras propostas de desenvolvimento do setor agrícola; e partidos políticos (como o Partido dos Trabalhadores), que defendiam outros projetos nacionais, como a inclusão social e desenvolvimento econômico por alternativas distintas daquelas preconizadas pela PCT da época.

Neste contexto, entre as décadas de 1980 e 1990 as demandas da agenda da “sociedade em geral” (movimentos sociais) (DAGNINO, 2007) começaram a ser debatidas. No entanto, essas demandas não se refletiram em mudanças estruturais na PCT e foram retomadas a partir do ano 2000 com a possibilidade de eleição de um “governo do povo”, representado na figura de Luiz Inácio Lula da Silva, que havia liderado as greves do ABC paulista na década de 1980.

A vitória de Lula pressupunha um cenário favorável ao aprofundamento de mudanças políticas e institucionais no Brasil que envolvia a inserção e participação no debate nacional de novos atores sociais, nomeadamente no processo de construção da Política de Ciência e Tecnologia. A seguir analisamos a política científica e tecnológica do Governo Lula, que se apresentou como um governo popular, defendeu o engajamento da PCT com a realidade social brasileira e a construção de uma agenda nacional de participação social. A análise foca as contradições e disputas do processo de construção da referida política e questiona a efetiva participação dos movimentos sociais nas esferas de direcionamento da PCT.

4 A política científica e tecnológica no Governo Lula

 

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Candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Lula foi eleito Presidente da Republica em 2002 para o seu primeiro mandato, por uma ampla maioria de 61% dos votos ou cerca de 53 milhões de eleitores. Seu concorrente, José Serra, preferido das oligarquias, foi candidato pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), numa eleição disputada e de massivo comparecimento às urnas (DINIZ, 2004). Lula se reelegeu em 2006 para o mandato 2007-2010.

As propostas do novo governo buscavam canalizar as aspirações da sociedade por mudanças nos rumos da política brasileira ao enfatizar a inclusão de novos atores sociais na construção das políticas públicas. A expectativa, que os embates eleitorais ajudaram a cristalizar, envolvia o engajamento da PCT com a realidade social brasileira e a construção de uma agenda nacional de participação social. Porém, o foco das políticas de inclusão social, assentadas em simples mecanismos de transferência de renda (o Programa Fome Zero no primeiro mandato, modificado para o Bolsa Família no segundo, e muitas outras mais pontuais), contaminou a agenda decisória de outras políticas públicas, entre elas a PCT.

Serafim e Dagnino (2011, p. 417) advogam que “a política de ciência e tecnologia do Governo Lula se conformou, em 2004, a partir de um processo de tomada de decisão do qual participaram diversos atores” e foi influenciada por contribuições importantes provenientes dos debates realizados durante a 2ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (realizada em 2001) e consubstanciada nas análises e recomendações denominadas de Livro Branco. Os “diversos atores” presentes na conferência foram, além do governo e da comunidade de pesquisa, o empresariado nacional e os movimentos sociais, que segundo Dagnino (2007) tiveram, não obstante, pouca interferência na construção da PCT.

A participação dos Movimentos Sociais na construção da PCT ainda é, entretanto, incipiente. As Conferências Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação, espaços por excelência para o debate e o confronto de ideias e pressupostos acerca das diretrizes da ciência e tecnologia para o Brasil por todos os segmentos da sociedade são, no entanto, ocupados por participantes cuidadosamente indicados como ocorreu em sua segunda edição quando participaram apenas ONGs “convocadas” pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), “para incluir as organizações da sociedade civil nesta discussão” (INSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIAL, 2012).

Um dos resultados dessa conferência foi a instituição pelo MCT do grupo de trabalhoi “Ciência e Tecnologia e o Terceiro Setor” cujo objetivo era elaborar propostas de formas e mecanismos de construção de parcerias entre o Ministério e as organizações do Terceiro Setor. Esse grupo de trabalho contava com representantes da comunidade de pesquisa, representantes de órgãos estatais (MCT, CNPq, Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP e Centro de Gestão e Estudos Estratégicos - CGEE) e organizações não-governamentaisii (ONGs) “convocadas”.

Posteriormente esses mesmos atores sociais formaram um grupo de trabalho denominado “Tecnologia para o Desenvolvimento Social” que atuou no período de transição do governo (em novembro de 2002) e sugeriu a criação de uma Secretaria de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social, vinculada ao MCT, e a criação de um fundo extraordinário de Ciência, Tecnologia e Inovação para ações emergenciais, sobretudo de natureza social.

Nesse sentido, foi instituída, em 2003, a Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social (SECIS). O que percebemos, no entanto, é que a criação dessa secretaria se deu por sugestão de um grupo de trabalho constituído pelo próprio MCT durante o período de transição do Presidente Fernando Henrique Cardoso para o Presidente Lula e não como

 

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pressão de um grupo de ONG’s, como advogam alguns autores (DIAS, 2009; FONSECA, 2009; SERAFIM & DAGNINO, 2011).

As propostas desse grupo de trabalho resultaram na implementação de um conjunto de ações e programas denominado de Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, composta por quatro eixos estratégicos, sendo um deles de caráter horizontal (ou estruturante) e três de caráter vertical, delineados no Plano Plurianual (PPA) 2004-2007 e que tiveram continuidade no plano sucessor (PPA 2008-2011). Esses eixos estratégicos pautaram os objetivos do Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação, como pode ser observado na Figura 1.

Figura 1. O Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação (2004-2007). Fonte: Ministério da Ciência e Tecnologia (2007) apud Dias, R. de B. A trajetória da política científica e tecnológica brasileira: um olhar a partir da análise de política. 2009. Tese (Doutorado em Política Científica e Tecnológica)-Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências, Campinas, 2009.

A especificidade do PPA 2004-2007, segundo Dias (2009), era o seu destaque da importância da produção de conhecimento técnico-científico, e, sobretudo da inovação tecnológica, a serviço de uma estratégia mais ampla, orientada para a promoção do desenvolvimento econômico aliado à redução dos problemas sociais brasileiros. Essa diretriz culminou com a inserção do eixo estratégico Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social e a criação da Secretaria Nacional de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social, responsável por esse eixo temático (FONSECA, 2009; DIAS, 2009; SERAFIM & DAGNINO, 2011) e, como já mencionado, foram resultados apontados pelo grupo de trabalho composto entre parte da comunidade acadêmica, representantes de órgãos estatais e ONGs convocadas pelo MCT a participarem das discussões, a partir de 2001. A Figura 2 demonstra os objetivos e os atores sociais que participam de cada um dos eixos prioritários do PPA 2004-2007 (que se mantiveram sem grandes alterações no PPA 2008-2011).

 

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Eixos Prioritários Objetivos Composição da Comissão Expansão e Consolidação do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (caráter estruturante)

Aprimorar e consolidar o sistema nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação por meio de ações e programas que promovessem a infra-estrutura, o fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos, e que consolidassem e aprimorassem os fundos setoriais (criados ainda no Governo Fernando Henrique Cardoso). Tinha como foco as bolsas de estudo e a promoção do desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro.

Coordenação: Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). Instituições Representantes: Academia Brasileira de Ciências (ABC), Conselho Nacional de Fundações Estaduais de Amparo (CONFAP), Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Agricultura, Ministério da Educação, Ministério do Planejamento e o Gabinete de Segurança Institucional.

Pesquisa e Desenvolvimento em Áreas Estratégicas (caráter vertical)

Viabilizar o cumprimento dos objetivos estratégicos nacionais; realização de estudos e projetos científicos e tecnológicos voltados para áreas estratégicas para o país e para a inserção do Brasil em pesquisas desenvolvidas mundialmente; realização de pesquisas orientadas à segurança e à soberania nacional.

Coordenação: Instituto do Coração. Instituições Representantes: Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron, PUC-Rio, Instituto Internacional de Ecologia, Tecnologias Bioenergéticas, Academia Brasileira de Ciências (ABC), Ministério da Defesa, Ministério da Agricultura/EMBRAPA, Ministério da Integração, Ministério do Planejamento e Ministério da Saúde.

Promoção da Inovação Tecnológica nas Empresas (caráter vertical)

Fomentar a vinculação da atividade de CT&I às prioridades da política industrial; estimular a inovação e à competitividade do setor produtivo, principalmente dos setores definidos como estratégicos: software, fármacos, semicondutores e microeletrônica e bens de capital.

Coordenação: um representante da Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP) e um da SBPC. Instituições Representantes: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Gradiente, Grupo Gerdau, Associação Brasileira de Empresas de Biotecnologia, Universidade de São Paulo (USP) (duas cadeiras), Faculdade Pitágoras, SIEMENS, Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN), Ministério da Saúde, Ministério do Planejamento e Ministério da Agricultura.

Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social (caráter vertical)

Contribuir para a difusão e a melhoria do ensino de ciências, universalizar o acesso aos bens gerados pela ciência e pela tecnologia e, ao mesmo tempo, ampliar a capacidade local e regional para difundir o progresso técnico, aumentando a competitividade econômica e

Coordenação: Presidente do Fórum de Secretários Municipais de C&T. Instituições Representantes: ASGA (soluções em Telecom), duas representações do Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência, Tecnologia e Inovação (CONSECTI), pela Confederação

 

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melhorando a qualidade de vida da população das áreas mais carentes do País.

Nacional das Indústrias (CNI), por representante do Fórum de Secretários Municipais de C&T, pela EMBRAPA e pelo Ministério da Saúde.

Figura 2. Objetivos e composição das comissões de cada um dos eixos prioritários do PPA 2004-2007. Fonte: Adaptado de SERAFIM, M. P., DAGNINO, R. P. A política científica e tecnológica e as demandas da inclusão social no governo Lula (2003-2006). Organizações & Sociedade, Salvador, v.18, n. 58, p. 403-427, jul./set. 2011. 

A criação da SECIS e a inclusão do eixo “Ciência e Tecnologia para o

Desenvolvimento”, contudo, não foram suficientes para modificar os componentes nucleares da PCT brasileira. A incorporação de novos atores ao processo de elaboração da política científica e tecnológica, restrita a uma dimensão ainda muito incipiente, não geraram mudanças significativas em seu padrão geral. Os objetivos dos eixos temáticos do PPA 2004-2007 (posteriormente reproduzidos no PPA 2008-2011) são compatíveis com as demandas históricas incorporadas pela PCT. Ademais, a contraposição do Plano Plurianual 2000-2003 (Governo de Fernando Henrique Cardoso) com o PPA 2004-2007 (primeiro Governo Lula) revela que eles são similares em muitos aspectos (SERAFIM & DAGNINO, 2011). O Plano Plurianual 2000-2003, por exemplo, agrupava os programas orçamentários em três prioridades: 1. Programas voltados à consolidação e expansão do sistema de formação de pesquisadores e de fomento à pesquisa; 2. Programas de estímulo à inovação e 3. Programas que atuam no fortalecimento e expansão do fomento à pesquisa e ao estímulo à inovação em setores específicos e são muito semelhantes aos três primeiros eixos do PPA 2004-2007 e seu sucessor (PPA 2008-2011).

Além disso, o eixo estratégico da inclusão social estabelecido no Plano de Ação do MCT para 2004-2007 claramente ocupa uma posição marginal na PCT dos Governos Lula. Dias (2009) destaca que o baixo volume de recursos destinados às ações que compõem esse eixo (cerca de 9% dos recursos do Ministério em 2005) evidencia esse fato. Já em 2007, apenas R$ 54,6 milhões, ou 0,4% do total dos recursos públicos orientados ao apoio atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), foram destinados a pesquisas na área do desenvolvimento social (DIAS, 2009).

Por outro lado, os recursos destinados aos outros eixos são muito superiores se comparado ao valor acima. Apenas um edital aberto no CNPq atualmente destina R$ 111.228 milhões para a promoção da consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia para setores estratégicos, como tecnologia aeroespacial, petróleo, energias renováveis, biotecnologia e nanotecnologia (CNPq, 2012). Essa dinâmica também se comprova ao observarmos as políticas de acesso a bolsas de pesquisa, destinadas, sobretudo, para “atividades de formação de recursos humanos altamente qualificados, pesquisa e desenvolvimento que objetivem a geração de produtos e processos inovadores” (conforme o Código de Ciência, Tecnologia e Inovação, em tramitação na Câmara dos Deputados).

Assim, as orientações dos eixos temáticos (e o descompasso dos recursos a eles destinados) revelam que a lógica norteadora da PCT nacional não sofreu alterações, ou seja, ciência e tecnologia continuam a ser consideradas como “instrumentos promotores do desenvolvimento nacional”, mecanismos promotores da inserção do Brasil no sistema econômico mundial. Essa concepção de C&T determina os atores sociais que compõem as comissões dos eixos, a definição dos próprios eixos e o volume de recursos a eles destinados.

 

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Analisando a composição das comissões dos eixos estratégicos é possível observar a forte influência da comunidade científica, por meio dos institutos de pesquisa ou associações de representação como a SBPC, ANDIFES, ABC, assim como de Universidades, em especial, nas três primeiras comissões. Serafim e Dagnino (2011) destacam que alguns representantes dessas comissões, apesar de ocuparem cargos ministeriais ou representarem a agenda dos empresários, são também membros da comunidade de pesquisa.

A agenda do governo é representada em todas as comissões e principalmente no Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT), órgão de assessoria especial da Presidência da República, que defere acerca de grande parte das orientações dos eixos norteadores da política. É necessário ter clareza, no entanto, que mesmo órgãos governamentais podem defender interesses do capital nacional e internacional. A Embrapa, por exemplo, participante da segunda comissão, desenvolve há anos pesquisas com empresas privadas, como Monsanto e Syngenta, e recebe altos valores em contrapartida, na forma de royalties e do compartilhamento dos direitos de propriedade intelectual.

Por sua vez, os empresários são representados no eixo “Promoção da Inovação Tecnológica das Empresas” por meio de duas cadeiras ocupadas pelas Federações das Indústrias do Estado do Paraná e do Rio de Janeiro, pela Associação Brasileira das Empresas de Biotecnologia e por três grandes indústrias (Gradiente, Grupo Gerdau e SIEMENS). Nesse eixo, observa-se também a grande participação da comunidade de pesquisa, mas não há representação direta de entidades de classe dos trabalhadores, a quem as ações evidentemente dizem respeito. Dias (2009) observa que os objetivos desse eixo não contemplam as empresas locais, uma vez que as ações se apóiam na criação de mecanismos que estimulem o desenvolvimento de inovações tecnológicas dentro delas, o que esbarra no fato de os empresários locais adotarem como principal estratégia associada ao desenvolvimento tecnológico a aquisição de máquinas e equipamentos.

Ainda nesse eixo, convém destacar a participação da Faculdade Pitágoras, única instituição de ensino privado que participa diretamente da construção da PCT. Representante de um grupo que comanda mais cinco faculdades em todas as regiões do País, a Faculdade Pitágoras faz parte de uma rede que iniciou operações internacionais em 1979, com abertura de Colégios Pitágoras em diversos países do mundo, como: China, Mauritânia, Congo, Peru, Equador e Angola, em parceria com grandes empresas - Mendes Júnior, Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez. Atualmente no Brasil, o Pitágoras mantém parcerias com empresas, como: a Vale, Alumar, Mineração Taboca e a Embraer. A partir de 2007, o Pitágoras deu origem ao Grupo Kroton Educacional, que em 2011 adquiriu a Universidade Norte do Paraná (UNOPAR), e se tornou um dos maiores grupos educacionais do mundo. Assim, sua participação representa interesses do capital internacional e contribui para o direcionamento dos recursos e orientações desse eixo.

Desta forma, apesar da inclusão das temáticas sociais nas ações da PCT, representantes dos movimentos sociais, cooperativas populares e entidades de classe dos trabalhadores, por exemplo, não compõem estas comissões (mesmo no eixo “Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social). Não foram por exemplo “convocados” a participar desse eixo, movimentos sociais que apoiaram a eleição de Lula e que atuam no campo da inclusão social e do desenvolvimento econômico alternativo para o país, tais como o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES), a Via Campesina e as centrais sindicais. Outro ator social que não participou dos debates foi o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), com competencia reconhecida para contribuir com pesquisas que fundamentassem as orientações desse eixo temático.

 

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Nesse sentido, a inclusão social é discutida a partir de ações estratégicas dentro dessa ampla política científica e tecnológica, onde o eixo “Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social” (caráter vertical) articula o entendimento do social a partir de mecanismos de “progresso técnico, aumentando a competitividade econômica e melhorando a qualidade de vida da população das áreas mais carentes do País”.

Desse modo, apesar dos atores sociais da PCT vigente no país inserirem o eixo de inclusão social em seus debates, a lógica desse processo ainda se mantém em sintonia com o ajustamento do desenvolvimento econômico do Brasil ao sistema econômico mundial, numa clara relação de dependência.

O processo de inserção social desenvolvido a partir de ações estratégias e não em um processo estruturante, implica na reprodução da lógica dominante. Assim, o projeto nacional mesmo construído a partir de uma dinâmica de dependência, como discute Marini (2005), ainda serve para a manutenção de atores sociais que se sustentam nas esferas de poder da sociedade brasileira.

5 Considerações finais

Este estudo objetivou analisar a política científica e tecnológica no Governo Lula, que se apresentou como um governo popular e apregoou o engajamento da PCT com a realidade social brasileira e a construção de uma agenda nacional de participação social. A análise focou as contradições e disputas do processo de construção da referida política e questionou a efetiva participação dos movimentos sociais nas esferas de direcionamento da PCT.

Desde a institucionalização da PCT, na década de 1950, a ciência e a tecnologia foram valorizadas como fatores de progresso, com capacidade de fornecer conhecimentos passíveis a aplicações práticas e com isso foram consideradas elementos fundamentais para o aprimoramento das forças produtivas e à expansão capitalista (MOREL, 1979). Construída sob este pressuposto, a PCT pouco se relacionou com as necessidades do contexto social. Buscamos na vertente marxista da teoria da dependência algumas explicações para isso, pois ao desvendar o processo de formação socioeconômica na América Latina a partir de sua integração subordinada à economia capitalista mundial foi possível compreender a relação da política nacional de ciência e tecnologia e o capitalismo hegemônico. Historicamente essa política teve um caráter formalístico, e se reduziu a medidas financeiras e arranjos institucionais, limitando-se a promover as condições requeridas para a concretização do projeto nacional de cada contexto histórico e pouco contribuiu para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil.

A análise da política de ciência e tecnologia no Governo Lula revelou que, apesar do discurso de construção participativa com o envolvimento histórico de novos atores, representantes dos movimentos sociais, cooperativas populares e entidades de classe dos trabalhadores, estes, não compõem as comissões dos eixos temáticos do Plano Plurianual, nem mesmo no eixo “Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social”. As comissões são compostas fundamentalmente por membros da comunidade acadêmica, representantes do governo e de grandes empresas.

Assim, são estas disputas do rumo da nação que configuram a PCT no Brasil e que originam as contradições nessa política. Se por um lado, as ações pontuais de inclusão social podem abrir possibilidades para que outros atores sociais entrem nestas disputas, por outro esse processo de inserção opera de forma a controlar a participação destes mesmos atores na construção da PCT. Afinal, quem define a estratégia que por sua vez aponta a alocação dos recursos em ciência e tecnologia são os atores sociais que participam das comissões dos eixos orientadores da PCT, sobretudo do eixo estruturante, espaços dos quais os movimentos sociais

 

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e os atores sociais que representam projetos nacionais alternativos ao modelo dominante ainda não operam.

Exposto isto, essa discussão não se encerra aqui. Consideramos que o estudo avançou no sentido de abordar de forma processual a política de ciência e tecnologia no Brasil, especialmente no governo Lula e desvelarmos como em meio às contradições na construção da política nacional de ciência e tecnologia tem-se em disputa projetos nacionais que de forma ampla evidenciam como o Brasil tem se inserido no sistema econômico mundial.

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                                                            i Portaria do MCT nº 705 de 31/10/2002. 

ii Fizeram parte desse processo o Instituto de Tecnologia Social (ITS), a articulação do Semi-Árido-ASA e a Associação Brasileira de ONGs (ABONG).