Novas Fronteiras Para AutoRia

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53 Organon, Porto Alegre, n o 53, julho-dezembro, 2012, p. 53-64 NOVAS FRONTEIRAS PARA A AUTORIA NEW FRONTIERS FOR AUTHORSHIP Solange Leda Gallo 1 Resumo: A assunção da autoria, na discursividade da internet, pode acontecer, e deve ser um trabalho desenvolvido na Escola, que passa pela explicitação de sentidos não ditos, na rede, em razão da posição- sujeito assumida, e da formação discursiva na qual o sujeito (autor) se inscreve. Esse trabalho de interpretação pode devolver a materialidade e a opacidade ao sentido, que na rede internet, notadamente nos sites de relacionamento, parecem transparentes. Essa prática de interpretação pode e deve ser, ao mesmo tempo, uma prática de publicação na própria internet, o que confere o efeito-autor ao sujeito aluno, mesmo que relacionados ao que estou chamando de escritoralidade. Palavras-chave: discurso, autoria, escritoralidade, internet. Abstract: e assumption of the authorship by students, in the discourse of the web can happen, and must be developed in the School, where it may pass through the appropriation of unsaid meanings on the web, functions of the incorporated subject-position, and of the discursive formation in which the subject (author) inscribes himself. is work of interpretation may return the materiality and opacity to the meaning, wich on the web - and specially on the social networks – seems transparent. is practice of interpretation can and must be, at the same time, a practice of publication on the web itself, which confers the author-effect to the student subject, even when related to what I now call “oralwriting”. Keywords: discourse, authorship, oralwriting, internet. Introdução Minha pesquisa sobre autoria vem se desenvolvendo desde meu trabalho de dissertação, no qual eu refletia sobre a questão da autoria no âmbito do ensino da língua portuguesa. 1 Professora da Universidade do Sul de Santa Catarina.

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    Organon, Porto Alegre, no 53, julho-dezembro, 2012, p. 53-64

    NOVAS FRONTEIRAS PARA A AUTORIANEW FRONTIERS FOR AUTHORSHIP

    Solange Leda Gallo1

    Resumo: A assuno da autoria, na discursividade da internet, pode acontecer, e deve ser um trabalho desenvolvido na Escola, que passa pela explicitao de sentidos no ditos, na rede, em razo da posio-sujeito assumida, e da formao discursiva na qual o sujeito (autor) se inscreve. Esse trabalho de interpretao pode devolver a materialidade e a opacidade ao sentido, que na rede internet, notadamente nos sites de relacionamento, parecem transparentes. Essa prtica de interpretao pode e deve ser, ao mesmo tempo, uma prtica de publicao na prpria internet, o que confere o efeito-autor ao sujeito aluno, mesmo que relacionados ao que estou chamando de escritoralidade.Palavras-chave: discurso, autoria, escritoralidade, internet.

    Abstract: ! e assumption of the authorship by students, in the discourse of the web can happen, and must be developed in the School, where it may pass through the appropriation of unsaid meanings on the web, functions of the incorporated subject-position, and of the discursive formation in which the subject (author) inscribes himself. ! is work of interpretation may return the materiality and opacity to the meaning, wich on the web - and specially on the social networks seems transparent. ! is practice of interpretation can and must be, at the same time, a practice of publication on the web itself, which confers the author-e" ect to the student subject, even when related to what I now call oralwriting.Keywords: discourse, authorship, oralwriting, internet.

    Introduo

    Minha pesquisa sobre autoria vem se desenvolvendo desde meu trabalho de dissertao, no qual eu re# etia sobre a questo da autoria no mbito do ensino da lngua portuguesa.

    1 Professora da Universidade do Sul de Santa Catarina.

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    Trago aqui alguns pontos a serem discutidos, que compem a pesquisa que continuo a desenvolver, nem sempre no mbito do ensino, mas sempre relativa autoria.

    Comearei, ento, por me situar na proposta temtica que discute fronteiras, a partir da perspectiva da anlise do discurso. Dessa perspectiva, no se trata de pensar as fronteiras no seu aspecto fsico, como uma divisa, um obstculo, mas interessa-nos as fronteiras simblicas. Transpor uma barreira fsica pode no ser to difcil quanto transpor uma fronteira simblica, mudar de lugar simblico: essa que prtica difcil, porque as fronteiras sociais esto materializadas na linguagem. Por essa razo, essas so mais difceis de transpor, uma vez que os sentidos se naturalizam na lngua.

    Por outro lado, acreditamos que o trabalho na educao tem relao, ou deveria ter, com a prtica de transpor fronteiras simblicas. O que precisamos proporcionar aos nossos alunos, que eles atravessem fronteiras simblicas, que eles cheguem a lugares discursivos que no conseguiriam sem esse trabalho sobre a interpretao.

    Ento, as fronteiras fsicas tm a ver com indivduos que se movimentam com seus corpos no espao, tem a ver com o que emprico. Ns aqui estamos falando de lugares discursivos. Portanto, ns no estamos falando do indivduo enquanto corpo fsico, mas estamos falando do sujeito, que um corpo simblico e imaginrio, construdo pela linguagem, atravs do qual existimos para ns mesmos e para os outros.

    Esse sujeito sempre mutvel, porque ele existe no movimento de identi/ cao e rejeio de sentidos. E a ns estamos falando das fronteiras discursivas: a possibilidade/impossibilidade de identi/ cao do sujeito com determinados sentidos, resultante das suas reais condies de existncia e da representao imaginria que ele faz dessas condies (ALTHUSSER, 1985, p. 85).

    A anlise do discurso, portanto, tem como um de seus objetivos compreender, na linguagem, de onde vem a voz que estamos ouvindo. No no que se refere ao lugar fsico, mas ao lugar discursivo. Ento, quando sabemos de que lugar discursivo vem a voz que estamos ouvindo/lendo, comeamos a poder analisar o discurso. Esse lugar de onde se diz, a forma com a qual se diz, e como esse dizer possvel, so perguntas pertinentes anlise do discurso.

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    (No) Autoria na Escola

    Voltando, ento, ao texto: nele desenvolvi uma diferenciao entre Discurso de Escrita e Discurso de Oralidade, considerando que, na Escola, no valorizamos a discursividade oral. Fixamo-nos em uma discursividade escrita, e tudo o que no se parece com a escrita, legitimada, que conhecemos dos livros e das publicaes, no vale como produo legtima. Produzimos muitos textos no nosso percurso pela escolarizao, mas nada do que produzimos tem sido publicvel. Essa escrita produzida na Escola, eu considero uma gra/ a, que no chega a ser escrita. Ou seja, simplesmente a transcrio de uma oralidade (imaginria), que no chega a ser legitimada, que no chega a ser publicada, no chega a ter o efeito de autoria.

    O que o efeito de autoria? o efeito de um texto que se alinha a um lugar discursivo legitimado, reconhecvel, sem que haja, para sua interpretao, necessidade do contexto imediato, porque o que est dito se alinha a uma discursividade recorrente, que faz com que ao lermos, re-conheamos os sentidos. Esse tipo de escrita, ns no aprendemos na Escola enquanto alunos. Na Escola, o que grafamos s pode ser reconhecido no contexto enunciativo em que foi produzido. No funciona fora da Escola porque no seria re-conhecido. O que se produz na Escola, com o nome de escrita, discurso de oralidade, grafado. Assim como tambm existe o discurso de escrita, oralizado. A diferenciao, aqui, entre escrita e oralidade, no obedece a um critrio emprico que seria a produo pelas cordas vocais ou pela mo, mas a um critrio discursivo.

    Um exemplo do DE oralizado, ns assistimos todas as noites no jornal televisivo (assistimos, e no lemos): um discurso de escrita, oralizado. Ao contrrio, as redaes escolares so grafadas, mas inscrevem-se no Discurso de Oralidade. S serve Escola. S tem sentido no contexto enunciativo da Escola.

    Ecoa nos textos que se inscrevem no Discurso de Escrita (DE), o efeito de sentido de FECHO, de unidade, de legitimidade, de prestgio. Ao contrrio, no Discurso de Oralidade (DO) os sentidos so inacabados, provisrios, sempre passveis de serem corrigidos, alterados, ou seja, sem efeito-autor.

    Com esse critrio de caracterizao discursiva: DE e DO, ns podemos observar, de modo transversal, o funcionamento da escrita e

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    da oralidade, tanto o discurso pedaggico, quanto o discurso de mdia, ambos muito presentes na vida dos nossos alunos, e que a se costuma tomar por base para pensar a autoria.

    Em relao ao Discurso Pedaggico (DP), pergunta-se: se ns, professores, queremos promover as produes dos alunos a serem reconhecidas e legitimadas, assim como queremos o mesmo para nossas prprias produes, ento, por que continuamos a nos alinhar no DO? Por que no nos inscrevemos no DE? Por que insistimos em exerccios de produo de DO grafado?

    Para avanarmos nessa re# exo, ser preciso nos voltarmos para o aspecto poltico a presente, e pensar na questo do poder envolvido nas instituies, como o caso da Escola. Althusser, em seu Aparelhos Ideolgicos de Estado, situa a Escola como uma instituio mantenedora do poder vigente. Diferente das instituies produtoras de sentidos, ou das instituies repressoras, a Escola tem como funo transmitir de gerao em gerao, os sentidos legitimados, mantendo, assim, o status quo.

    De fato, a Igreja foi substituda pela Escola em seu papel de Aparelho Ideolgico de Estado dominante. Ela forma, com a famlia, um par, assim como outrora a Igreja o era. Podemos ento a/ rmar que a crise, de profundidade sem precedentes, que abala por todo o mundo o sistema escolar de tantos Estados, geralmente acompanhada por uma crise (...) que sacode o sistema familiar, ganha um sentido poltico se considerarmos a Escola ( e o par Escola-Famlia) como o Aparelho de Estado dominante, Aparelho que desempenha um papel determinante na reproduo das relaes de produo de um modo de produo ameaado em sua existncia pela luta mundial de classes. (ALTHUSSER, 1985, p. 81)

    Ou seja, em ltima anlise, a funo da Escola no promover seus alunos e professores para uma emancipao poltica, ou mesmo econmica, mas sim para manter a sociedade como est, enfatizando os sentidos que do sustentao essa sociedade.

    Orlandi (1983) classi/ ca as formas discursivas constitutivas do discurso pedaggico como: autoritrias, polmicas e ldicas, dentre as quais, segundo a autora, as formas autoritrias so as que predominam. Podemos nos perguntar, ento, o que signi/ ca um discurso ter formas autoritrias como predominantes? No se trata, nesse caso, de atitudes

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    autoritrias, mas de formas discursivas autoritrias, ou seja, formas que tendem para um sentido nico, uma nica interpretao. Por exemplo, ao levar para seus pequenos alunos, ainda no jardim da infncia, folhas de papel com um desenho que se repete (todos os alunos recebero o mesmo desenho) sobre o qual constam marcas coloridas em cada parte do desenho, apontando qual a cor que deve ser usada para colorir o desenho, a professora, mesmo que cheia de boas intenes, est mobilizando formas discursivas autoritrias, impedindo a polissemia. Nesse caso, o que se espera, por parte do sujeito-aluno, um gesto mecnico de interpretao sem re# exo. A seo do livro didtico dedicada interpretao de texto costuma ser construda por exerccios que se organizam por formas autoritrias, para os quais apenas uma interpretao do texto lido (e sempre a mesma) a correta. Esses exerccios fazem desaparecer o possvel encantamento dos alunos pela descoberta.

    Por outro lado, qual a relao que podemos estabelecer entre esses sentidos parafrsticos, trabalhados permanentemente na Escola, e o poder poltico dos sujeitos? Pensemos isso do ponto de vista do discurso. A Escola, por meio dos seus livros didticos, dos seus mtodos e do modo de funcionamento do seu discurso, apresenta textos inscritos no DE aos alunos, mas no os leva a produzir esses textos. Em vez disso leva os alunos a exerccios mecnicos de reproduo desses textos, por meio de parfrases, e no de produo polissmica. Assim / ca garantido o conhecimento de que tal produo existe, mas no se autoriza sua produo na escola, o que demandaria uma outra forma de funcionamento. Nada da Escola publicado, nada da Escola circula, porque pretensamente esses textos produzidos na Escola no atingem o nvel formal necessrio para uma legitimao. E isso refora as fronteiras simblicas que tratamos aqui. A manuteno do discurso pedaggico tal como funciona na escola, por meio de formas predominantemente autoritrias, no permite o atravessamento de fronteiras histricas, sociais, ideolgicas.

    A velha mdia

    No entanto, no um privilgio da instituio escolar, a manuteno do poder. As formas autoritrias tambm esto presentes em outros discursos, como o caso do discurso jornalstico, que veiculado

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    na mdia impressa e televisiva. Existe o discurso jornalstico dito alternativo, que trabalha com formas polmicas, e at ldicas, mas o prprio adjetivo que o identi/ ca (alternativo) j marca de sua no predominncia. O que normalmente consumimos na televiso, nos peridicos, um jornalismo que tem predominantemente formas autoritrias que, em nome de uma ao social de atualizao da populao sobre fatos cotidianos, mantm os sentidos hegemnicos, de acordo com os quais h uma minoria que se bene/ cia do excesso de capital e uma maioria que deve garantir a sobrevivncia com o mnimo que lhe cabe, mantendo dessa forma, o ritual do capitalismo.

    Eu gostaria de comentar uma matria da revista Veja, publicada em novembro de 2011, que se refere crise que se instalou na USP de So Paulo quando o reitor em exerccio, Joo Grandino Rodas, autorizou a entrada da polcia militar no Campus, depois de alguns atos criminosos de assaltos e mortes, ocorridos l. Os militares, ento, uma vez dentro do campus, passaram a exercer o seu poder policial sobre os alunos que, em razo disso, se rebelaram em um grande movimento pelo respeito autonomia da universidade e liberdade de expresso estudantil.

    A reportagem traz como manchete: A rebelio dos mimados.

    Fig.1 Escrnio e Maresia. Disponvel em http://www.agenciadolphin.com.br/2011/11/rebeliao-dos-mimados.html

    Acesso em 14 de novembro de 2012.

    Segundo a anlise da autora:

    Veja e outros veculos retrataram o evento com ironia ao enfatizar as caras marcas de roupas usadas pelos manifestantes, alm de usar as

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    expresses crianas contrariadas, rebelde e garoto mimado para designar os estudantes. (Padilha, 2012)

    Aqui tambm o reforo das fronteiras se d pela parfrase

    A parfrase um retorno ao j dito, ou seja, a legitimao do prprio dizer. Neste exemplo, a imagem tem exatamente esta funo, ou seja, rati/ ca o sentido do texto. As expresses garoto mimado e rebelde, usadas pelo jornalista da Veja, podem ser imediatamente identi/ cadas na imagem, pelo leitor. A fotogra/ a enaltece as roupas de marcas norte-americanas e italianas usadas pelo garoto da esquerda, legitimando a expresso garoto mimado. Imagem e texto promovem, mutuamente, a manuteno de um mesmo discurso poltico no qual se formula o sentido de baderna em relao uma ao contraditria ao

    funcionamento do sistema acadmico, constituindo, portanto, uma parfrase em relao aos sentidos estabilizados. (Padilha, 2012)

    J na manchete h um julgamento e uma condenao: mimados. Os sentidos produzidos pelo lead (texto que acompanha a imagem) so parafrsticos em relao imagem. Mas no s a imagem parafrstica em relao ao texto, como os dois juntos (texto e imagem) reproduzem um certo modo de vida que no se pode perturbar, que no se pode ameaar. No presente caso, a ameaa desmoralizada, na medida em que tratada como pirraa, o que coisa de criana.

    Aqui a Veja se posiciona a favor de um status quo que rejeita os sentidos contraditrios, assim como a Escola tambm assume a mesma posio, na medida em que prope exerccios parafrsticos.

    A questo do DE em relao ao DO, ou seja, a predominncia do lugar discursivo reconhecido, legitimado, em relao ao lugar sempre provisrio, no estabilizado, est em muitas das nossas instituies.

    As novas mdias

    Apesar disso, h muitos anos temos pesquisado acontecimentos em que isso fura. Temos procurado formas discursivas que, apesar dos discursos institucionais funcionarem assim, tornam possvel o novo sentido, a polissemia, a ruptura, o acontecimento discursivo que fura a estrutura, onde o ritual (do capitalismo) falha.

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    Hoje eu vou falar para vocs sobre a possibilidade de furo que se encontra nas novas mdias. H muito ainda que se pesquisar nesse mbito da produo discursiva em rede, mas algumas re# exes que j foram feitas, apontam esse potencial de ruptura das velhas fronteiras institucionais.

    Para tanto, volto ao Discurso de Escrita e Discurso de Oralidade, conforme aqui apresentado, funcionando no Discurso Pedaggico e no Discurso de Mdia, e proponho a seguinte formulao: nas novas mdias, nos espaos discursivos prprios da internet (como exemplo podemos citar facebook, wikipedia, twitter, etc.), no identi/ camos DE e DO, separadamente, mas sim uma discursividade que estou chamando provisoriamente de escritoralidade. Por que escritoralidade? Porque o sentido fechado, mas ao mesmo tempo provisrio; ele publicado, mas ao mesmo tempo ele desaparece, de um momento para o outro; legtimo, mas no legtimo para todos, mas para um certo leitor (quem aqui no publica suas coisas no facebook, e no tem um leitor?). Textos que podem ser acessados no mundo inteiro, embora o mundo no esteja interessado nessas publicaes, mas tem um pequeno nmero de leitores que est. Ento ns nos posicionamos como autores, com uma certa provisoriedade, porque tambm essas publicaes no duram muito (cada post do facebook, por exemplo, / ca visvel durante poucas horas). Esse discurso tem o efeito-autor porque possvel compreender o que est ali, mesmo sem o contexto de enunciao espec/ co de cada enunciado. Ns temos a um discurso de escrita, ao mesmo tempo com a s caractersticas da oralidade, sem as exigncias do discurso de escrita, mas ao mesmo tempo com os benefcios do discurso de escrita.

    So materiais que tem seus sentidos abertos e fechados; legitimados para todo e qualquer leitor, e ao mesmo tempo, somente para alguns; so publicados de forma de/ nitiva, mas ao mesmo tempo, fugaz.

    Podemos pensar em textos publicados, ou em / lmes publicados ou em fotogra/ as ou msicas publicadas, en/ m, na relao que a gente sempre teve com tudo isso. Mantnhamos um certo distanciamento, como se nada disso fosse possvel para ns, nada disso nos fosse acessvel, porque isso sempre foi territrio de especialistas. No entanto, essas publicaes, que hoje so de todos ns, constituem o que estou chamando de escritoralidade. Aquilo que tem efeito-autor e ao mesmo tempo funo de autoria, em um novo tipo de relao, o que provoca, / nalmente, uma indistino de fronteiras entre discurso de

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    escrita e discurso de oralidade. Estamos, ento, comeando a ver um deslocamento de fronteiras, as fronteiras discursivas.

    Cabe perguntar, ento, o poder (dizer) muda de mos a partir do acontecimento discursivo provocado pela/na internet? Ser que a internet possibilita que o poder mude de mos?

    Essa uma pergunta que no se pode responder apressadamente. Vamos tomar como exemplo o google. O google um buscador de que muitos de ns (se no todos ns) se utiliza. Ns pensamos no google como um grande banco de dados oferecido a ns, usurios, por algum, ou por um grupo empresarial, que se localiza em algum lugar outro (provavelmente nos EUA). Ou seja, para ns, trata-se de uma tecnologia de conexo e de armazenamento em uma memria sem limites, uma memria metlica, uma memria da qual ns podemos nos servir. No entanto, o google no existiria sem o que ns publicamos diariamente na internet. Vocs podem fazer a seguinte experincia: peguem um material espec/ co de algum notrio, cujas produes tenham sido publicadas em diferentes ocasies e lugares, na internet, e joguem no buscador do google. Vocs tero todo o material j publicado sobre esse mesmo autor, alm de publicaes correlatas, devolvidas a vocs na lista de retorno da busca. Depois disso, faam o mesmo com um material de algum desconhecido e cujo trabalho no tenha sido publicado na internet. Obviamente que nada retornar dessa segunda busca.

    Dessa experincia, que parece bvia, se pode concluir algo no to bvio que o seguinte: precisa haver uma memria discursiva para que a memria metlica exista. Na medida em que ns publicamos coisas na internet, essas mesmas coisas sero devolvidas pelo buscador. Em sntese, quem produz o banco de dados do google somos ns. A tecnologia somente uma tecnologia, mas ela comea a ganhar pertinncia social quando ela faz o n da rede, ou seja, se encontra com uma memria discursiva. Aquilo que est hoje compondo os bancos de dados, os blogs, os sites como youtube, wikipedia, etc, so produes nossas.

    A pergunta, nesse caso, se recoloca, ser que esse fato su/ ciente para que o poder (dizer) mude de mos? Isso porque tnhamos at ento as produes legitimadas, inscritas no DE, garantindo pra si o poder (dizer), mas agora ns estamos produzindo o tempo inteiro, e compondo os bancos de dados e a memria metlica que est fazendo diferena na vida de tantas pessoas. Isso um poder? Isso, por si s, constitui poder?

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    necessrio salientar, imediatamente, a relao que esse enorme banco de dados (que no nada sem nossa adeso diria) tem com o capital que envolve as transaes comerciais que ele torna possveis. Sem dvida, esses instrumentos tecnolgicos armazenam mais informaes sobre os sujeitos do que jamais se conseguiu em toda histria da humanidade, e isso tem valor de mercado.

    Portanto, ao nos servir desses bancos de dados estamos, no mesmo gesto, os constituindo. preciso re# etir sobre isso e sobre o fato de que, por essa razo, ao assumir uma posio-sujeito, na rede, estamos fazendo um gesto poltico que pode tanto alimentar o ritual capitalista, quanto produzir uma falha nesse ritual.

    Nossa prtica enquanto educadores

    Como que desse lugar discursivo, que o pedaggico, ns podemos interferir nessas condies de produo do sentido? Como podemos construir, juntamente com o alunos, na relao com esses instrumentos tecnolgicos, uma nova forma de escrita, capaz de contradio.

    Para ns, educadores, a relao com essa rede tecnolgica passa pela compreenso de que se trata de algo complexo, mas que se sustenta por uma memria que ns mesmos colocamos disposio. Alm disso, essa memria s chega a constituir conhecimento para o sujeito internauta, na medida em que ele mobiliza saberes da memria discursiva. Ou seja, h a um efeito redobrado de espelhamento que precisa ser compreendido para ser superado.

    preciso dar sentido a esses bancos de dados, a partir da compreenso de que o sentido sempre pode ser outro, e de que, to importante quanto o que est dito, o que no est dito, mas est signi/ cando, que so as bases para uma anlise da perspectiva da anlise do discurso.

    Os sentidos da rede internet tendem para formas polmicas e ldicas, e no predominam a formas autoritrias, como o caso do discurso pedaggico. H, nesses espaos, a presena do jogo e da polmica, embora o modo de por em prtica essas formas discursivas seja, em uma instncia subterrnea, j clivada pela programao, conforme nos mostra Pcheux (1994). Essas clivagens constituem uma instncia que determina gestos de interpretao possveis (e impossveis) para os espaos informatizados. No entanto, estamos considerando que esses

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    gestos no impedem as formas ldicas e polmicas, apesar de limit-las.A assuno da autoria, nessa discursividade, deve ser um trabalho

    desenvolvido na Escola, que passa pela explicitao de sentidos no ditos, na rede, em razo da posio-sujeito assumida, e da formao discursiva na qual o sujeito (autor) se inscreve.

    Esse trabalho de interpretao devolve a materialidade e a opacidade ao sentido, que na internet, notadamente nos sites de relacionamento, parecem transparentes.

    Essa prtica de interpretao pode e deve ser, ao mesmo tempo, uma prtica de publicao na prpria internet, o que confere o efeito-autor ao sujeito aluno, mesmo que relacionados ao que estou chamando de escritoralidade, e no exatamente ao DE.

    Retomando, ento, a questo das fronteiras, preciso voltar a Pcheux, e dizer nas suas palavras:

    preciso aceitar questionar a lgica paranica dos efeitos de fronteira para discernir os elementos de resistncia e de revolta que se deslocam sob as lgicas estratgicas de inverso: aceitar heterogeneizar o campo das contradies para esquivar as simetrias que a se instalam; aceitar abalar a religio do sentido que se separa o srio (o til, o e/ caz, o operatrio) do sem sentido, reputado perigoso e irresponsvel; aceitar, en/ m, desvisualizar os espectros do discurso revolucionrio para comear a devolver o que se deve ao invisvel, isto , ao movimento real(Marx), que trabalha neste mundo para a abolio da ordem existente... (PCHEUX, 1990, p.20).

    Trata-se de questionar a (im)possibilidade de mudana de posio-sujeito na internet, e as consequncias disso; trata-se de questionar o espelhamento e o efeito de inverso nessa rede; trata-se de compreender que o poder poltico, na rede, tambm est na falha do seu ritual.

    BIB LIOGRAFIA

    ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideolgicos de Estado: notas sobre os aparelhos ideolgicos de Estaado. Traduo de Walter Jos Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Introduo de J. A. Guilhon Albuquerque. 4.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

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    GALLO, S. Autoria: funo do sujeito e efeito do discurso. In: Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso. (Org.). Estudos do Texto e do Discurso: Interfaces entre Lngua(gens), Identidade e Memria. Marlia: Ed. Claraluz, 2007._____. Da escrita escritoralidade: um percurso em direo ao autor online. In: RODRIGUES, Eduardo Alves; SANTOS, Gabriel Leopoldino dos; CASTELLO BRANCO, Luiza Katia Andrade. (Org.). Anlise de Discurso no Brasil: pensando o impensado sempre. Uma homenagem a Eni Orlandi. Campinas, SP: Editora RG, 2011. _____. Discurso da Escrita e Ensino. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992.GRIGOLETTO, E. Do lugar social ao lugar discursivo: o imbricamento de diferentes posies-sujeito. In: FERREIRA, M. C.; INDURSKY, E. (Org.) Anlise do discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. So Carlos, SP: Ed. Clara Luz, 2007.ORLANDI, E. A Linguagem e seu Funcionamento: As Formas do Discurso. So Paulo: Brasiliense, 1983._____. Discurso e Leitura. 6.ed. So Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2001._____. Discurso e Texto: Formao e Circulao dos Sentidos. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.PADILHA, S. Midiateca em Anlise do Discurso. In. Anais do VII Jornada Unisul de Iniciao Cient$ ca. Tubaro: http://www.rexlab.unisul.br/junic//, 2012. (trabalho resultante de uma bolsa PIBIc/CNPq sob a orientao de Solange Leda Gallo) PCHEUX, M. Ler o Arquivo hoje. In: ORLANDI, Eni P. (org). Gestos de Leitura: da histria no discurso. Traduo de Bethania S. C. Mariani. So Paulo: Editora da UNICAMP, 1994._____. Delimitaes, Inverses, Deslocamentos. In: Caderno de Estudos Lingusticos. Campinas, n. 19, 1-179, jul./dez. 1990.

    Recebido em: 17/11/2012. Aprovado em: 18/11/2012.

    Solange Leda Gallo

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