Nove Noites e Os Papéis do Inglês: a construção literária ... · histórico. Neste trabalho...
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Nove Noites e Os Papéis do Inglês: a construção literária contemporânea diante dos
desafios da pós-modernidade
Josilene Greti de Lima Mierjam (UNICENTRO)
Resumo: Este trabalho compõe tem por objetivo, buscar sob a ótica das teorias investigar como
a estrutura dos romances se inserem no âmbito contemporâneo diante do contexto social e
histórico. Neste trabalho temos como proposta de pesquisa, analisar os romances Nove noites,
de Bernardo Carvalho e Os papéis do inglês, de Ruy Duarte de Carvalho, levando em
consideração as narrativas contemporâneas e a estrutura que se propõem a um jogo com o leitor
por meio dos níveis de leitura. A literatura contemporânea traz ressignificações em sua escrita,
e com isso provoca no leitor uma inserção mais engajada na narrativa. A partir destas
definições, pretendemos relacionar o papel dos narradores que investigam seus personagens e
ainda refletem sobre suas construções identitárias, que ora partem de um universo real e ora
deixam claro o ficcional, que se afastam e se aproximam do seu objeto proporcionando
múltiplas visões. O modo como o não dizer acaba dizendo, os vazios e as reflexão no que se
refere a períodos de conflitos mundiais que os romances trazem, e que vêm como pano de
fundo dentro das estruturas, trazendo um mundo ficcional conflituoso que usa do documental
real para se mostrar.
Palavras-Chave: Escrita contemporânea; Influências narrativas; Jogos Literários; Estrutura
narrativa Pós-Moderna.
Abstract: This work compose aims to search from the perspective of theories to investigate
how the structure of novels are inserted in the contemporary context before the social and
historical context. In this work we have as a research proposal, analyze the novels Nove noites
by Bernardo Carvalho and Ruy Duarte de Carvalho Os papéis do inglês, taking into account
the contemporary narratives and the structure that propose to play with the reader through the
levels of reading. The contemporary literature brings re-significances in its writing, and with
this causes in the reader a more engaged insertion in the narrative. From these definitions, we
intend to relate the role of the narrators who investigate their characters and also reflect on their
identity constructions, which now depart from a real universe and now make clear the fictional,
that move away and approach their object providing multiple visions. The way in which not to
say ends up emptying and reflecting on the periods of world conflict that novels bring, and
which come as a backdrop within structures, bringing a conflictual fictional world that uses the
real documentary to Show off.
Keywords: Contemporary writing; Narrative influences; Literary Games; Postmodern
narrative structure.
“Mas também deixo algumas frinchas em branco para o pudesse ter
sido, para o que possa ainda ser.” Helder Macedo, Vícios e virtudes
1. Dissimulações literárias contemporâneas
Os romances Contemporâneos são aqueles que, distinguem na face aparentemente
imaculada do tecido, a frincha ou fissura, que arranca de seu tempo não o que ele manifesta a
uma leitura imediata, mas o que ele oculta. Esse entendimento revela-se inexaurível para o
estudo da literatura, principalmente para o estudo dessa literatura diante da crítica que sobre
ela se debruça. Quando se traz à baila as dissimulações literárias contemporâneas, o que se
propõe é por meio de elucubrações, verificar nas obras Nove noites (2006) e, Os papéis do
inglês (2000), qual o limite entre realidade e ficção na escrita contemporânea? E essa
dissimulação é percebida na obra, ou é o leitor que delineia de acordo com suas experiências?
Para tanto, conta-se com um aporte teórico que trazem reflexões sobre a escrita
contemporânea, as influencias das obras em voga, os jogos literários que elas propõem, e ainda,
a estrutura pós-moderna de Os papéis do inglês (2000), de Ruy Duarte de Carvalho e Nove
noites (2006) de Bernardo Carvalho. Temos romances que convidam o leitor a viajar em
lugares que a verdade e o ficcional se confundem, e é nesse prisma de incertezas, que a leitura
se torna uma espécie de degustação, como por exemplo, de um vinho de safra nova, ou ainda,
diferente por assim dizer, pois, a experiência do enófilo/leitor se contempla a cada página e a
cada requinte diferenciado nas notas das uvas/personagens, vão se desvendando novas
sensações.
A vontade de transformar ou ainda de criar algo novo em algumas literaturas
contemporâneas, tem se tornado intrigante, pois, temos não mais narrativas estruturadas e
disposta em uma trama somente. De modo que, a forma, não é o fator inquietante, e sim um
conteúdo, um enredo provocador, convidativo e perturbador, que se desenrola com várias
tramas que se entrecruzam. E nessa proposta de leitura e escrita transformadora, temos um
reconhecimento de culturas diversas e de rupturas nas fronteiras dessa escrita.
Beatriz Resende (2014), escritora, crítica, pesquisadora e doutora em Literatura
Comparada, nos traz um olhar sobre a literatura contemporânea, que ela chama de fluxos de
um novo sistema literário. Resende (2014), delineia sobre os papeis da escrita e das
possibilidades de rupturas, deslocamentos e os fatos culturais, que os estudos culturais abarcam
e que autorizam como um fio de Ariadne, para compreender como as duas narrativas do
presente estudo se convergem e se distanciam, pois, trazem ênfases de lugares e indivíduos,
fragmentados em desconstrução e reconstrução de valores e sujeitos.
As três propostas de leitura que apresento são o reconhecimento das seguintes
evidências:
1. A escrita de uma nova literatura democrática que aposta na instituição de um
sistema literário partilhado, que reconhece novas subjetividades e novos
atores no mundo da cultura, e na reconfiguração do próprio termo literatura.
2. O deslocamento das narrativas do espaço local, nacional. O rompimento com
a tradição literária de afirmação da língua, da nação, dos valores culturais
nacionais. Em vez da literatura que fala do Brasil, que usa a cor local como
valor (rentável) de troca, a literatura que busca se inserir, sem culpa, no
movimento dos fluxos globais.
3. A ruptura com a tradição realista da literatura, não pelo uso de recursos ou
formatos próprios da ficção não realista como o absurdo ou o real-imaginário
latino-americano, mas pela apropriação do real pelo ficcional de formas
diversas, com a escrita literária rasurando a realidade que, no entanto, a
incorpora. O documental e o ficcional podem conviver na mesma obra, como
acontece em outras criações artísticas contemporâneas. (RESENDE, 2014,
p.14).
Destarte, as obras Nove noites e Os papéis do inglês, contemplam as três propostas de
leitura que Resende (2014), pois, em Nove noites, a literatura democrática presente na estrutura,
na forma do discurso e nas subjetividades singulares desde Buell Quain, que passa por um
processo de autodestruição, ao narrador híbrido do romance. Assim como, em Os papéis do
inglês, que o narrador confunde suas lembranças sua subjetividade com a do personagem
narrado.
Os deslocamentos de ambas as obras, no que se refere a lugares, é retratado em Nove
noites, nos fatos narrados como lugares, pois, temos EUA, sendo trazido como contexto atual
do narrador, a denúncia do nacionalismo delirante no período de Estado Novo 1 do Brasil,
durante a estadia do antropólogo Buell Quian. E que durante sua estadia no Brasil tenta requerer
do governo a aprovação para sua pesquisa e não consegue. Em Os papéis do inglês, temos o
rompimento com a tradição literária, e a inserção nos fluxos globais, a segunda proposta de
leitura de Resende (2014). “Maneira, está a ver-se, mais adequada à produção de interrogações
do que à de certezas, isto estava eu a dizer-te então, e mais propícia a exercícios de textos de
insinuação e sedução do que a golpes de carreira nas arenas da erudição.” (CARVALHO, 2000,
p.157).
Já na terceira proposta sobre a ruptura na leitura das obras contemporâneas, de que as
mesmas contemplam o documental e o ficcional, Nove noites e Os papéis do inglês delineiam
em sua estrutura essa proposta, pois ambos os romances partem de um fato verídico para o
1 Regime político brasileiro no período de 1937-1945, nacionalismo e autoritarismo eram bandeiras fortes,
momento de desconfiança gerada em torno de estrangeiros que vinham ao Brasil.
ficcional e cria uma realidade delirante que rasura a realidade, mesclando-a com a ficção, um
jogo com o leitor, uma partida de xadrez.
É considerado um bom enxadrista aquele que consegue antecipar até três jogadas do
seu oponente, durante uma partida de xadrez, ou seja, o jogador mais bem preparado quando
entra em um jogo, antecipa como seu adversário irá se movimentar dentro do tabuleiro. E esta
percepção aplicada a Literatura Contemporânea, é o que irá instigar e desafiar o leitor.
Dentre os vários percursos que a obra contemporânea percorre, cabe frisar que,
diferentemente do que ocorre em um tabuleiro, onde as peças de xadrez só têm seu valor dentro
do jogo, na literatura contemporânea o jogo com o leitor o leva para além do tempo presente.
E ao leva-lo para além, o leitor contempla o próprio tempo. Giorgio Agamben (2009) em suas
considerações no Ensaio O que é contemporâneo? infere sobre o conceito de contemporâneo
em uma obra, segundo ele, contemporâneo é aquele que está para além de seu tempo, e, no
entanto, é capaz de capturar o presente e suas singularidades.
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo,
aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas
pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso,
exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz,
mais do que os outros, de perceber e apreender o tempo. (AGAMBEN, 2009,
p.58).
Ou seja, o contemporâneo assim como na proposta de leitura de Resende (2014),
concebe os deslocamentos, tanto na forma, quanto no conteúdo. A forma está na escrita, no
modo como os autores, Bernardo Carvalho e Ruy Duarte de Carvalho, esboçam os romances.
O conteúdo, traz às representações dos sujeitos contemporâneos, nas personagens que não se
adequaram, pois, estão fragmentadas, possuem suas fragilidades psíquicas. As obras são
contemporâneas, nos deslocamentos, nas subjetividades presentes e de narrativas que ao
resgatar contextos históricos, coincidem com o presente. No entanto, apresentam uma certa
despretensão o próprio tempo. A obra contemporânea pode imaginar e demostrar ou não as
dissimulações, as frinchas, o prisma afastado que revela, denuncia e/ou ainda renúncia, uma
determinada sociedade, ou política, economia, paradigmas, etc.
Portanto, sendo ambos textos contemporâneos, vemos que as duas obras nos dizem
muito sobre o passado e o presente sendo assim, contemporâneas e singulares.
2. Influências mútuas nos romances, Brasil – Angola
O segundo eixo temático, traz ressignificações, ao narrar situações e ao trazer os fatos
históricos reais com a ficção, e ainda, em forma de prosa conversa com o leitor e, convida-o a
participar dessas dissimulações durante a obra, pois, elas provocam uma torção da realidade.
Em Nove noites e em Os papéis do inglês, temos narradores que ao investigar in loco, as
aldeias que ocorreram os assassinatos e suicídios de Sir Perkings em Os papéis do inglês, e o
suicídio de Buell Quain em Nove noites, trazem uma espécie de realidade alucinante,
contaminada pela ficção, e mostram a ideia do não compreender o outro e suas identidades.
Os romances Nove noites e Os papéis do inglês, possuem certas relações, no que se
refere a estrutura, temos um suicídio e a partir daí um narrador motivado a investigar. Nas
páginas que seguem, temos o misto de vidas do narrador e de seu personagem, e ainda, como
pano de fundo de ambas as narrativas, momentos históricos cruciais para a sociedade. Situações
essas que, nos permitem comparar as obras e refletir sobre as influências, pois, “a literatura
comparada (no sentido estrito do termo) é o estudo das influências,” (CARVALHAL, 2006,
p.27). Portanto, a busca de referenciais de uma obra ou outra, e a investigação partem do
surgimento da primeira obra, e essa averiguação é quase instintiva no leitor mais sagaz, pois,
ao ler uma obra e perceber certas semelhanças, a inquietação surge.
A obra Os papéis do inglês, teve sua primeira impressão no ano de 2000, já Nove noites
foi em 2002, portanto, pode-se interpretar que a primeira influenciou a segunda. E a
investigação vai além pois, ao fazermos busca na internet encontra-se por exemplo em uma
matéria da Folha Uol, uma resenha do escritor de Nove noites, Bernardo Carvalho, sobre a obra
Os papéis do inglês “Resenha da Semana: A ficção hesitante 2”. A coluna de opinião do escritor,
primeiro nos apresenta Ruy Duarte de Carvalho, em seguida comenta sobre a narrativa e como
o romance descreve as comunidades nômades da região da Angola, ainda menciona as
influências do livro Papéis de Aspern do autor Henry James.
De modo que, os dois romances contemplam influências e uma estrutura similar. E o
fato de apreender essas influências, é entender suas riquezas e ainda mais, perceber o trabalho
minucioso nas suas construções, pois, segundo Nitrini (2000) “Apontar influências sobre um
autor é certamente enfatizar antecedentes criativos da obra de arte e considerá-la um produto
2 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0601200113.htm Matéria do colunista e escritor Bernardo
Carvalho.
humano, não um objeto vazio.” (p.130). A busca de influências e a verificação, indagam as
extensões de ambas as obras, a de Bernardo Carvalho em Nove noites, que podemos inferir que
vem de Ruy Duarte de Carvalho, e que segundo Bernardo Carvalho em sua resenha, também
recebe influências de Henry James. Dessa forma as influências proporcionam uma leitura ainda
mais densa e peculiar. “A influência recebida não minimiza em nada a originalidade que, no
fundo, é uma das formas de influência.” (NITRINI, 2000, p.134).
As investigações de Bernardo Carvalho tanto para elaborar a obra Nove noites, quanto
de estudar o autor angolano Ruy Duarte de Carvalho, o levaram a organizar romance que é
próximo da obra de seu investigado Ruy Duarte de Carvalho, em Os papéis do inglês. Nove
noites participa de uma estrutura similar a de Os papeis do inglês, na prosa, na investigação
algo do gênero de romance policial. Tanto que, o jornalista de Nove noites e o antropólogo de
Os papeis do inglês, partem de fato documental do suicídio de seus personagens, para
investigarem as “reais” causas desses suicídios. Temos ainda, a questão geográfica, pois, nos
dois romances, apresentam-se lugares colonizados por Portugal, tanto Brasil e Angola.
A etnia é explicitamente colocada em discussão, de como o branco culturalmente
contaminou e se apropriou de lugares e pessoas, pois, em Nove noites, o pesquisador Buell
Quain ao quere estudar os índios Trumai do interior do Mato Grosso, traz a extinção desses
índios, e o medo que cercava a vida da aldeia. Em Os papéis do inglês, a história inicia com a
investigação do antropólogo narrador perto da fronteira de Zâmbia com Angola, a beira do rio
Kwango no ano de 1923, com os assassinatos cometidos por Sir Perkings de tudo em sua volta,
um inglês caçador de elefantes que em seguida empreende suicídio. Brasil e Angola possuem
histórias marcadas pela invasão dos colonizadores portugueses que pela ambição destruíram
esses territórios e obrigaram os povos a uma servidão que durou séculos.
Ao perscrutar nos estudos comparados das obras Nove noites (2002) de Bernardo
Carvalho e Os papéis do inglês (2000) de Ruy Duarte de Carvalho, se tem estruturas narrativas
com enredo que se assemelham e se distanciam, pois, ambos delineiam uma investigação que,
por meio de prosa convida ao leitor a fazer parte da narrativa e ainda, a intertextualidade de
uma obra com a outra e com demais obras. Os romances conseguem se entrelaçar por meio de
histórias parecidas e se afastar por questões geográficas, contextos sociais, temporais e ainda
personagens, delineando dessa maneira, o quadro das sociedades contemporâneas e também a
escrita contemporânea, que põe em xeque as certezas de mundo e de sociedade.
O real – traumático – aparece rasurado pelo presente, [...]. Memórias afetivas,
lembranças, informações e cenas de registros documentais dos anos de
chumbo mescladas a cenas de ficção trazem o passado partilhado para a
vivência da nossa arte contemporânea. (RESENDE, 2014, p.23).
Os narradores ao se colocarem nas narrativas, com suas memórias, suas identidades e
lugares, e de contextos históricos decisivos para a humanidade, problematizam as verdades
absolutas, principalmente em meio a situações de guerras, e de imposições de verdades. Assim,
somos levados a compreender as marcas de sangue no Brasil trazido por Bernardo Carvalho
em Nove noites, que traz a reflexão de um cenário em meio as aldeias indígenas brasileiras, de
1939 e de 2001. E ainda, do panorama trágico, do 11 de setembro nos Estados Unidos da
América. E a Angola de Ruy Duarte de Carvalho, cenário da virada do século XXI, pela
narração do antropólogo que buscava, Os papéis do inglês, que nos leva no passado de
combates, conflitos humanos, luta pela liberdade e independência de Angola.
3. Desconfie de mim: o Jogo Literário dos romances
Em Ficções do escritor, crítico literário, Jorge Luis Borges, temos um acervo de contos
ficcionais que nos levam na linha do real e do fictício demonstrando esse jogo literário que
temos nas duas obras Nove noites e Os papéis do inglês, “Há um indecifrável assassinato nas
páginas iniciais, uma lenta discussão nas intermediárias, uma solução nas últimas. ” (BORGES,
1944, p.34), o recorte se refere ao conto Exame da obra de Herbert Quain, conto esse que joga
com o leitor de modo que, o personagem Quain é analisado pelo narrador e suas obras são
postuladas com maior ou menor intensidade, e ao lermos temos a impressão de um autor real
com obras concretas, no entanto, o livro Ficções já deixa claro o caminho que iremos percorrer.
A ficção não é sinônimo de mentira, é um relato autêntico que não nos propõe uma
verdade fora do texto, e sim, nos convida a um mundo possível. Borges nos convida a um
grande projeto intelectual e reflexões sobre esse jogo com leitor, constrói uma estratégia de
uma nova reafirmação e uma poética. De maneira que, as identidades, são uma mistura de
acontecimentos, de personagens e de situações que se modificam com isso trabalham com
valores, conceitos, que podem ser de etnias, pátria ou nação, os quais, refletindo no leitor que
por sua vez, se inscreve nos acontecimentos e investiga e participa da narrativa.
A comparação com as obras aqui elencadas, Nove noites e Os papéis do inglês com o
trabalho de Borges (1944), nos contos é inerente, pois, o projeto intelectual das obras
contemporâneas é um enigma que ao decifrar certas pistas eles recifram outras já decifradas
anteriormente, pois, quando deciframos a busca por algo além do suicídio dos personagens
investigados, temos um narrador que ao contar sua própria história traz enigmas de sua
identidade, do presente do passado, do contexto histórico social da civilização colonizada, e
ainda, a subjetividade do narrador, como Borges nos propõe, no conto O jardim das veredas
que se bifurcam, “acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa
de tempos divergentes, convergentes e paralelos.” (1944, p. 50). O misto do narrador no seu
presente e o passado do personagem real e fictício com o passado do narrador é quase que uma
convergência paralela de fatos e histórias.
No que se refere ao autor Bernardo Carvalho e seu livro Nove noites, “Este romance,
talvez divisor de águas na produção do autor, acabou por revelar um romancista exímio em
trabalhar com a diluição de memórias e identidades e deslocamentos de espaços” (FRANCO,
2013, p. 47). Ao procurar vestígios de influências nos autores vemos um pouco de seus
percursos bibliográficos, e como se delineiam as obras, como se observa Bernardo Carvalho
resenha a obra de Ruy Duarte de Carvalho, mas, quanto ao Bernardo Carvalho como se delineia
sua literatura? Segundo Adenize Aparecida Franco em sua tese, Bernardo Carvalho propõe
uma literatura afim de “provocar, interrogar, tencionar, criar, perturbar e inventar, de modo que
se perceba nela a Resistência” (2013, p.49). E essa Resistência que Franco nos traz é percebida
na leitura de Nove noites, uma luta por uma ficção provocativa, que em suas nuances construa
fronteiras de possibilidades para que cada leitor possa exercer o seu imaginário.
Já sobre o autor Ruy Duarte de Carvalho, em seu romance Os papéis do inglês, ele traz
embates entre o “Colonizado e Colonizador, entre Angola e Portugal, e mais amplamente entre
Angola e a Europa. Com isso também põe em pauta os conflitos entre o Tradicional e o
Moderno (ou o Pós-Moderno), entre o Tribal e o Mundializado.” (IWAI, 2009, p.2). Ou seja,
também se observa uma literatua de resistência do angolano colocando conflitos de oprimidos
e opressores, civilizado e selvagem.
3.1 Estrutura pós-moderna: implosão nas personagens de Nove noites e Os papéis do
inglês pelo suicídio.
O crítico literário e teorista político norte-americano Fredric Jameson, argumenta o
conceito de pós-modernidade, relacionando-o com as conexões globais, o capital financeiro e
as redes de comunicação. O pós-modernismo para Jameson (2001), é um estilo artístico, e pós-
modernidade e cultural é enquanto estrutura. Essa investigação do crítico, se deu a partir de
1980, pois, com a crítica ao urbanismo moderno, nasce o descontentamento das construções
habitacionais dos subúrbios europeus e americanos, consolidando uma ruptura de modelos e
padrões determinantes, tendo então, a implosão desses conjuntos habitacionais. E esse conceito
associado a literatura, nos mostra essa estrutura implosiva, fragmentada, desconcertante. Nas
personagens, vemos os sujeitos descontentes com sua história, na busca algo de diferente, e
que ao buscar nova vida, encontram o medo da realidade a qual descobre e adentra, entrando
então, em estado de pânico e cometendo assassinatos e suicídio de acordo com as obras até
aqui analisadas.
Isso demonstra a fragmentação, a fragilidade psíquica e o estado coletivo de pânico das
aldeias, que os narradores visitaram em suas buscas. Os medos dos narradores encontram os
medos coletivos das aldeias em estado extinção. Os narradores em Os papéis do inglês e Nove
noites, tentam entrar no mundo dos seus personagens compreender a motivação dos atos por
eles cometidos, e nesses narradores se instala ainda, medos dos rituais dos povos dessas aldeias,
que fomentam seus próprios medos subjetivos. “O estranho sentimento novo de uma ausência
do externo e do interno, o desnorteamento e a perda da orientação espacial (...), a desordem de
um ambiente no qual as pessoas nem as coisas têm mais seu lugar” (JAMESON, 2007, p. 138).
O excerto explícito, é concomitante com as obras em análise, pois, nas elucubrações
dos narradores-personagens temos pessoas que não tem mais seu lugar, ausências,
desnorteamentos das personagens e ainda, o mundo fragmentado, o estado de medo que se
instala desde as personagens narradas até o narrador investigador. E essas situações produzem
um reconhecimento na leitura das obras sobre a historicidade trazendo deste modo o pós-
moderno pois:
O pós-moderno nos convida, então, a nos satisfazer com um arremedo
sombrio da historicidade em geral, em que o esforço para atingir a
autoconsciência, com a qual nossa própria situação concorre para completar
qualquer ato de entendimento histórico, se repete de forma enfadonha como
nos piores sonhos, e justapõe, à sua própria refutação filosófica pertinente do
conceito de autoconsciência, o carnaval grotesco dos seus vários replays.
(JAMESON, 2007, p.89).
Batalhas, guerras mundiais, atentado terrorista trazidos nas narrativas Nove noites e Os
papéis do inglês, revelam esse carnaval grotesco de replays de guerras, pois, com o trajeto
narrativo de Nove noites, o narrador começa sua pesquisa durante o atentado terrorista de 11
de setembro de 2001, fato esse que marca a história mundial, e que vem mais uma vez
fragmentar o sujeito contemporâneo, no sentido de derrubar certezas sobre uma nova
construção pós segunda guerra mundial, e ditaduras que ocorreram entre os anos 70 a 80 em
alguns países como no Brasil do narrador. Ainda, ao investigar Buel Quain e o seu suicídio,
fato esse que ocorreu nas vésperas da segunda guerra mundial em 1939, outro momento
histórico que quebra as certezas humanas sobre um mundo melhor, e que fragmentou o homem
expressa no conteúdo do romance o pós-moderno.
Os papéis do inglês, também questiona o contexto social e político, no decorrer do
romance temos série de situações narradas minuciosamente, e que transmitem a nós leitores
reflexões sobre a condição humana desses períodos, sobre a identidade dos Angolanos pós
independência. Nos passa a ideia de uma reformulação na sociedade que se tem, pois, a
mentalidade ainda recente de descolonização vindo de uma guerra civil recente de 1974, está
em conflito com seus ideais e com o sistema econômico que Angola viveu e vive. E a narrativa
demonstra em sua estrutura intrincada a descolonização, e a necessidade de uma reafirmação
identitária no país.
Outro ponto marcante na narrativa de Ruy Duarte de Carvalho, é a virada de século,
narrada e trazida nas cartas do narrador, que nos coloca no momento presente desse narrador
antropólogo, que ao investigar lugares, pesquisa o passado de Sir. Perkings trazendo
simultaneamente em sua obra o seu passado e o seu presente. O narrador de Os papéis do inglês
também coloca esse distanciamento do povoado ao qual visita e como os costumes do lugar
causam estranheza a ele. Coloca seus ideais libertários sendo modificados com o tempo e como
a luta pela libertação se tornou algo longínquo e perdido nas memórias, que seu primo nem o
reconhece como um guerrilheiro, pois, a independência política foi conquistada, e agora, é
necessária uma independência de identidade.
Nove noites, apresenta uma estrutura pós-moderna, que postula ao leitor uma atenção
redobrada, pois, estabelece o inconformismo, diante de fatos, ora fictícios, ora reais, que
perpassam situações paradoxais no âmbito social e até temporal da obra, quer seja pelo viés
psicológico da personagem de Buell Quain, ou ainda do narrador que ao narrar à história de
seu personagem narra a sua também, acendendo no leitor momentos de incertezas, e ao passo
que a leitura deflui com ela flui também determinadas taxionomias. Claudete Daflon (2013),
em seu artigo Espirais: a escrita contemporânea de Bernardo Carvalho, observa sobre os
registros e sobre o processo de leitura do romance Nove noites, “pode-se refletir como a
ficcionalização participa dessa construção e aponta para a complexidade da leitura de um texto
construído sobre o outro, uma vez que essas camadas de histórias estão dadas em experiências
de escrita que tencionam as fronteiras entre ficção e realidade.” (p.43).
Considerações
Um paradoxo tem por princípio deflagrar antinomias, e ao nos debruçarmos na leitura
investigativa em Nove noites e Os papéis do inglês, temos essas contradições, trazendo para a
leitura uma superação de análise social do mundo e do momento que foi escrito. Essa leitura
estabelece comparações sobre as relações sociais particulares que estão postas durante as
narrações de ambas as obras. E isso se delineia na maneira como os narradores narram e
participam da história, os romances contemplam situações inusitadas e suscitam no leitor uma
busca por veracidades não ditas e sobre o que é real e o que é fictício dentro da obra.
Diante dos fatos, a leitura sugere um debruçar mais aguçado e certa suspeita do narrador
que participa da história, ou seja, aquele que está com o discurso, promovendo reações no leitor
mais sagaz de desconforto e de investigação. Se a verdade não existe todo conhecimento é uma
invenção, que gera a crise de valores. E esses valores que desabam, já deveriam ter desabado a
muito tempo. Por isso, as obras são contemporâneas e pós-modernas, as crises de valores nunca
foram tão discutidas como nos dias atuais, o contexto social, político, nos mostra que os
discursos dos sujeitos não representam o ser.
Ao se desvelar as tramas, abre-se outra percepção, ou seja, outra estrutura, e é nessa
perspectiva que, pode-se considerar uma leitura e escrita contemporânea, pois, as fronteiras
entre a realidade e a ficção dispostas arquitetam paradoxos, sobre o social, o histórico e o
político na estrutura da narrativa. E ainda pós-moderna, com sujeitos com mundos sombrios e
fragmentados por períodos pré-guerras e pós-guerras e ainda virada de século, na esperança do
futuro reorganizado. Os romances desconcertam e enganam o leitor, pois, o entrecruzamento
da história com a ficção promove a todo o momento uma prudência e instiga saber quais seus
objetivos na obra, se vai além de uma pesquisa como ele mesmo postula, ou vai para situações
sociais conflituosas.
Os papéis do inglês retrata acontecimentos na Angola, guerras e morte, tragédia e o
narrador-personagem que convida o leitor a uma ficção com documental e fatos que parecem
verdadeiros e colocam visões mais amplas, com aspectos de ruptura. A narrativa propõe uma
inquietação que possibilita não só ao narrador ser o investigador, mais também ao leitor.
Promove desvendar as camadas que a leitura oferece, postulando assim, os jogos literários.
Os dois romances revelam essa desmistificação, a desautorização de uma narrativa
mestra, que procede conforme uma normativa, o conceito de verdades em meio a ficção, ou
ainda supostas verdades, conceito filosófico de que temos várias interpretações algo que vem
beber do pensamento nietzschiano, pois, para o filósofo alemão só temos interpretações e elas
são transitáveis, ou seja, as verdades do passado, fluem e já não podemos interpretá-las da
mesma forma como as interpretamos no passado.
Esse jogo literário intelectual que ambas as obras contemplam, nos marcam pelas
incertezas e nos colocam questões, que muitas vezes não percebemos, uma literatura que parte
de um acontecimento já ocorrido e torna verdade em ficção e a ficção em uma verdade, a busca
de solidez em um espaço de fluidez, quando vemos já não é mais. Incompatibilidade da verdade
de um lado e a fugacidade de outro, as duas obras mostram que o real não se deixa traduzir por
palavras e sim por interpretações de modo que, o leitor delineia com suas experiências de leitura
a face oculta, as dissimulações das obras.
Referências:
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2006.
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FRANCO, Adenize Aparecida. Labirintos Perdidos: Ficção Contemporânea em trânsito nos
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