''Novo Davi'': a ascensão de Heráclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas...

download ''Novo Davi'': a ascensão de Heráclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário

of 17

Transcript of ''Novo Davi'': a ascensão de Heráclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas...

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    1/17

    Novo Davi:

    a ascenso de Herclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do

    Imperador contra os

    persas sassnidas no Livro IVda

    Crnica de Fredegrio(c. 660)

    Guilherme Queiroz de SOUZA1

    Compilada na Glia merovngia, a Crnica de Fredegrio(ou Pseudo-Fredegrio) relata a histria universal at

    meados do sculo VII. Da mesma forma que os Decem Li-bri Historiarum(Dez Livros de Histria [c. 575-591]), do histori-ador galo-romano e bispo Gregrio de Tours (c. 540-594), a fonte considerada uma narrativa fundamental sobre a histria dosmerovngios. A obra (escrita em latim)2foi redigida por um au-

    1 Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Es-

    tadual Paulista (UNESP/Assis). Bolsista CAPES. Orientador: Prof. Dr. Ruy de

    Oliveira Andrade Filho. E-mail: [email protected]. Editor da

    Revista Roda da Fortuna (www.revistarodadafortuna.com).2 Na opinio de Ferdinand Lot, Fredegrio faz esforos desesperados para

    III

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    2/17

    374 Novo Davi: a ascenso de Herclio (c. 575-641) ao poder e otriunfo do Imperador contra os persas sassnidas no Livro IV da

    Crnica de Fredegrio (c. 660)

    tor annimo, mas convencionalmente o chamamos de Fredegarius(Fredegrio), terminologia estabelecida no Renascimento.3Na

    opinio de alguns pesquisadores, dois ou trs autores escreverama obra,4embora essa hiptese seja cada vez menos aceita atual-mente, inclusive pela edio na qual nos baseamos.

    De qualquer forma, as informaes biogrcas de Fredegrioso mnimas; o pouco que sabemos sugere que ele morreu porvolta de 660 e que era possivelmente originrio da Borgonha(Burgundia). Diferentemente de Gregrio de Tours, Fredegriono se interessa tanto pela histria eclesistica, mas isso no fazdele um membro do partido laico, em oposio ao bispo galo-

    escrever em latim. A sua lngua, a dos diplomas e das cartas, dos formulrios edas vidas de santos [...] de uma barbaridade quase cmica LOT, Ferdinand.O fm do Mundo Antigo e o princpio da Idade Mdia.Lisboa: Edies 70, 1985, p. 332.Para os pesquisadores contemporneos, a expresso latim brbaro pode seraplicada caso for uma referncia ao latim usado pelos germanos e caso no tivernenhuma conotao pejorativa; trata-se, efetivamente, de um latim corrompido

    DEVILLERS, Olivier; MEYERS, Jean. Introduction. In: FREDEGRIO.

    Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations).Texte latin, traduction,introduction et notes par Olivier Devillers et Jean Meyers. Turnhout: Brepols,2001, p. 43.

    3 DEVILLERS, Olivier; MEYERS, Jean. Introduction. In: FREDEGRIO.Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., p. 05-06.

    4 Como nos informa Walter A. Goffart, so trs as proposies para a questodo(s) autor(es) da Crnica: a teoria do alemo Bruno Krusch, lanada pela primeiravez em 1882, na qual defende que a Crnica o resultado da composio detrs autores que trabalharam em perodos diferentes; a teoria de outro alemo,

    Siegmund Hellmann (1934), apoiada mais tarde pelo ingls John Michael Wallace-Hadrill (1960), argumentando que, embora a maior parte da obra seja o trabalhode um homem, um segundo autor escreveu uma poro do Livro IV; nalmente,a ideia de uma nica autoria, trazida tona pelo francs Ferdinand Lot (1914) GOFFART, Walter A. The Fredegar Problem Reconsidered. In: GOFFART, Walter A.Romes Fall and After. London: Hambledon Press, 1989, p. 320. Desde a dcada de1960, as edies e os estudos preferem indicar apenas um autor para a Crnica:Walter A. Goffart (1963), Alvar Erikson (1965), Andreas Kusternig (1982) eAlexander Callander Murray (1999), por exemplo. Para a perspectiva de Wallace-Hadrill, ver WALLACE-HADRILL, John Michael. Fredegar and the History of

    France. In: WALLACE-HADRILL, John Michael. The long-haired kings and otherstudies in frankish history.London: Butler & Tanner Ltd, 1962, p. 73-74.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    3/17

    Guilherme Queiroz de Souza 375

    romano, membro do partido episcopal.5Para a presente pesquisa, empregamos o Livro IV, tambm

    conhecido como Sexta Crnica. Nesse texto esto descritosacontecimentos entre 584 e 642, embora tambm constem algunsfatos do nal da dcada de 650. As fontes (principalmente listascronolgicas) que Fredegrio usou para escrever os trs livrosanteriores so citadas no Prlogo: [...] analisei com a mximaateno as crnicas de So Jernimo, de Idcio, de um sbioannimo, aquela de Isidoro, como tambm a de Gregrio, desdea origem do mundo at o declnio do reino de Gontro6

    Os trs primeiros livros narram os fatos da poca de Ado

    ao reinado de Gontro (561-592). A partir do Livro IV, aCrnica apresenta uma redao original, sem a intertextualidadeprecedente. Escrita de forma factual, a obra tem a inteno, comoo prprio autor salienta, de expor os atos dos reis e as guerrasconduzidas pelos povos.7Semelhante a outras fontes da IdadeMdia, a Crnica recebeu continuaes, que progrediram suaredao at 768, ano em que se iniciou o reinado de Carlos Magno(c. 742-814) e Carlomano (c. 751-771).

    praticamente certo que Fredegrio no foi testemunha

    ocular dos eventos que descreveu, mas isso no torna sua obra

    5 MAZETTO JUNIOR, Milton; SILVA, Marcelo Cndido da. A realeza nasfontes do perodo merovngio (sculos VI-VIII), Histria Revista(UFG),vol. 11,n 1, 2006, p. 98.

    6 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 59. Todas as tradues so de minha autoria. As fontes mencionadas so: aChronicon, de So Jernimo (c. 347-420) que, por sua vez, baseada na Chronicon,de Eusbio de Cesareia (c. 265-339); a Crnica,de Idcio de Chaves (c. 395-468); oLiber generationes, de Hiplito de Roma (c. 170-235), autor chamado no Prlogodesbio annimo; as cronologias de Isidoro de Sevilha (c. 560-636); e um resumodos seis primeiros livros dos Decem Libri Historiarum, de Gregrio de Tours.Sobre as fontes que Fredegrio usou para compilar os trs primeiros livros, verGOFFART, Walter A. The Fredegar Problem Reconsidered. In: GOFFART, Walter A.Romes Fall and After. London: Hambledon Press, 1989, p. 322-329; e WALLACE-HADRILL, John Michael. Fredegar and the History of France. In: WALLACE-HADRILL, John Michael. The long-haired kings and other studies in frankish history, op.cit., p. 72-78.

    7 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 61.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    4/17

    376 Novo Davi: a ascenso de Herclio (c. 575-641) ao poder e otriunfo do Imperador contra os persas sassnidas no Livro IV da

    Crnica de Fredegrio (c. 660)

    menos importante. Diferentes fontes arquivos reais, clericaise de embaixadores que viajaram para o Oriente repassaram as

    informaes que nosso autor recolheu.8

    O texto segue uma ordemcronolgica na qual o cronista merovngio relata acontecimentospolticos e governos dos sculos VI-VII.

    A chegada de informaes sobre Herclio (c. 575-641) aosolhos e ouvidos de Fredegrio foi resultado do contato (direto ouindireto) dele com embaixadores que percorreram o Oriente. Paraescrever a obra, o autor ltrou as informaes que recebeu;nesse processo, Fredegrio enfatizou certos fatos e negligenciououtros. Com efeito, ler, olhar ou escutar so, efectivamente,

    uma srie de atitudes intelectuais que [...] permitem na verdade areapropriao, o desvio, a desconana ou resistncia.9

    A ascenso de Herclio ao poder e a invaso persa sassnidaFredegrio inicia seu comentrio sobre Herclio ao descrever

    o retorno (em 629 ou 630) de uma embaixada enviada pelo reimerovngio Dagoberto (c. 603-639)10 a Constantinopla. Nessaviagem, os dois legados merovngios Servatus e Paternustinham efetuado uma pacem perpetuam (paz perptua)11 com

    8 Para compor o Livro IV, Fredegrio recolheu informaes des annalesbourguignonnes, des crits relatifs aux affaires dItalie, dEspagne et de lEmpiredOrient, des privilges piscopaux de fondation dabbaye, des exemplaires depactes et de traits, des correspondances (comme celle du roi Sisebut), des Vies desaints (celle de saint Colomban, peut-tre aussi celle de saint Didier), et sans doutepour les derniers vnements, des tmoignages oraux et des souvenirs personnels DEVILLERS, Olivier; MEYERS, Jean. Introduction. In: FREDEGRIO.Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., p. 24.

    9 CHARTIER, Roger.A histria cultural: entre prticas e representaes. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 59-60.

    10 Rei franco da Austrsia (623-634), da Borgonha (629-639) e da Nustria (629-639).

    11 Segundo Herrera Cajas, esta expresin signica justamente lo contrario delo que generalmente se ha entendido por tal, es decir, se trata de una paz a lacual el gobierno imperial no le asigna un plazo jo de validez, esto es, una paz

    sin lmites ms exactamente; en efecto, el Emperador estima que, en cualquiermomento, puede revocar la situacin generada o aceptada por el tratado [...] Todo

    tratado era tan slo la aceptacin momentnea de una realidad que deba serorientada, tarde o temprano, hacia el reconocimiento de la autoridad indiscutible

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    5/17

    Guilherme Queiroz de Souza 377

    o soberano bizantino.12 Mas a importncia de Herclio naCrnicade Fredegrio restringiu-se apenas ao fato de o basileus13

    ter participado de relaes diplomticas com Dagoberto?Rapidamente percebemos que no, pois o cronista merovngiologo assinala que impossvel permanecer em silncio diantedas aes extraordinrias que foram feitas por Herclio.14

    De fato, a repercusso da vitoriosa campanha do Imperadorcontra os persas sassnidas15 (622-628) foi to grande que,segundo o cronista bizantino Tefanes, o Confessor(c. 760-818),o principal soberano indiano, Harsha (c. 606-647), enviou paraHerclio congratulatrios presentes pela vitria sobre os persas:

    prolas e um nmero de pedras preciosas.16

    Da Glia aos rincesda ndia, ou seja, por todo o mundo conhecido na poca, a fama

    del Imperio Universal HERRERA CAJAS, Hector. Dagoberto y Heraclio. Uncaptulo de historia diplomtica. In: HERRERA CAJAS, Hector. Dimensionesde la Cultura Bizantina. Arte, Poder y Legado Histrico. Santiago: Coed. de laUniversidad de Chile y la Universidad Gabriela Mistral, 1998.

    12 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op.cit., IV, p. 153. As relaes de cooperao entre bizantinos e francos merovngios

    existiam desde o sculo VI, diplomacia notada tanto pelos bizantinistas quantopelos alto-medievalistas. Ver VASILIEV, A. A. Histria del Imperio Bizantino: deConstantino a las Cruzadas (324-1081).Tomo Primero. Barcelona: Ibria-JoaquinGil, Editores, S. A, 1946, p. 212; e WOOD,Ian. The Merovingian Kingdoms, 450-751.London: Longman, 1999, p. 167.

    13 O ttu lo de basileus(),nos anos mais recentes [ao governo de Herclio]s havia sido dado ao rei da Abissnia, quando lembrado, e ao grande rival doimperador e seu modelo como autcrata, o rei Sassnida da Prsia. E signicativoque o ttulo de Basileuscomece a ser usado pelo imperador em 629, exatamente

    aps a derrota nal dos persas RUNCIMAN, Steven.A Civilizao Bizantina.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 52-53.

    14 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 153.

    15 A dinastia persa sassnida controlou o Planalto Iraniano e a Mesopotmia entre227 e 649. Para mais sobre os sassnidas, ver CLARAMUNT. Salvador.El OrientePrximo del siglo IV al VII. El Imperio sasan. In: CLARAMUNT. Salvador etallii.Historia de la Edad Media.Barcelona: Ariel, 1995, p. 45-52.

    16 TEFANES, O CONFESSOR. The chronicle of Theophanes: an English translation

    of anni mundi 6095-6305 (A.D. 602-813). Traduo de Harry Turtledove.Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982, p. 36.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    6/17

    378 Novo Davi: a ascenso de Herclio (c. 575-641) ao poder e otriunfo do Imperador contra os persas sassnidas no Livro IV da

    Crnica de Fredegrio (c. 660)

    de Herclio era admirvel.Aps indicar brevemente a importncia do basileus, a redao

    de Fredegrio retorna cronologicamente para expor a ascenso deHerclio ao poder em Constantinopla. Ao assinalar que o soberanoera o patrcio de todas as provncias da frica,17provavelmenteFredegrio confundiu Herclio com o pai dele, Herclio, o Velho(610), nessa poca o governante do Exarcado de Cartago, ou dafrica,18como mencionou o cronista merovngio. Em seguida,Fredegrio relata o assassinato do Imperador Maurcio (582-602)e a tirania do usurpador Focas (602-610), que reinou da piormaneira e, como um louco, atirou os tesouros ao mar, dizendo que

    os enviava em oferenda a Netuno.19

    O governo de Focas foi, naopinio de Steven Runciman, o mais selvagem reinado de terrorem toda a histria bizantina,20 e o perodo no qual o tesouroimperial esgotou-se devido s extravagncias do Imperador. Naviso de Fredegrio, tais fatos justicaram a ascenso de Herclioao poder, sempre com o aval do Senado.

    Nesse meio tempo, aproveitando-se das discrdias e desuniesentre os bizantinos, uma antiga e poderosa rival de Roma e deBizncio ressurgiu no Oriente: a Prsia.21Com o argumento de

    que a aliana entre bizantinos e sassnidas havia sido rompida peloassassinato de Maurcio, antigo proponente da paz, o soberano

    17 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 153.

    18 Sobre a frica bizantina no tempo de Herclio, ver BELKHODJA, Khaled.LAfrique byzantine la n du VIe et au dbut du VIIe sicle, Revue de lOccident

    musulman et de la Mditerrane, n 8, 1970, p. 55-65.

    19 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op.cit., IV, p. 153. Aqui, Fredegrio critica Focas diretamente, pois para o cronistamerovngio era um absurdo que um cristo (catlico ou ortodoxo) realizasse umaoferenda a um deus pago, no caso Netuno, deus romano dos mares (inspiradoem Poseidon, deus grego).

    20 RUNCIMAN, Steven. A Teocracia Bizantina. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1978, p. 49-50.

    21 Para a secular guerra entre Roma/Bizncio contra a Prsia, ver DRIJVERS,Jan Wil lem. Rome and the Sasanid Empire: Confrontation and Coexistence. In:

    ROUSSEAU, Philip (ed.).A Companion to Late Antiquity.Malden/Oxford: Wiley-Blackwell, 2009, p. 441-454.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    7/17

    Guilherme Queiroz de Souza 379

    persa Csroes II (591-628) iniciou a ofensiva contra Bizncio. Adinastia sassnida pretendia imitar mais de um milnio depois

    a glria dos antigos aquemnidas (scs. VI-IV a.C.).22

    De acordocom Fredegrio,

    O ataque dos persas contra o Imprio, no tempo dos ImperadoresMaurcio e Focas, tinha devastado muitas provncias. [Osataques] Tornaram-se frequentes e, novamente, o Imperadordos persas insurgiu-se com um exrcito contra Herclio. Ospersas, enquanto assolavam as provncias do Estado, chegaram cidade de Calcednia, no muito longe de Constantinopla.[...] Eles se aproximaram de Constantinopla, a sede do Imprio,com a inteno de destru-la23

    De fato, a investida persa havia tomado das mos de Bizncio aSria-Palestina (Antioquia [611], Damasco [613], Jerusalm [614]),a Anatlia (Tarso [613], Calcednia[616]) e o Egito (Alexandria[619]). Apesar disso, estranhamente Fredegrio no relata a quedada cidade santa de Jerusalm!24Nesse episdio, com a ajuda dosjudeus, os persas massacraram milhares de cristos, raptaram oPatriarca Zacarias

    (609-631) e levaram a relquia da Santa Cruz25para Ctesifonte. Era a primeira vez desde que o Imprio Romanoocializou o cristianismo (sc. IV) que Jerusalm no pertencia

    22 BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clssico. De Marco Aurlio a Maom. Lisboa:Editorial Verbo, 1972, p. 180.

    23 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 155.

    24 Inversamente, a perda de Jerusalm foi relatada pelo monge ortodoxo AntocoEstrategos (scs. VI-VII), que lamentou profundamente o fato: camos sob odomnio da abominvel tribo dos persas, que zeram conosco o que quiseram

    () lamentao e terror se estenderam por Jerusalm [...] ANTOCOESTRATEGOS. The Capture of Jerusalem by the Persians in 614 AD. Traduo daverso georgiana para o ingls de F. C. Conybeare. Engl ish Historical Review 25,1910, p. 502-517 (traduo nossa). Ver tambm VALLEJO GIRVS, Margarita.Miedo bizantino: las conquistas de Jerusaln y la llegada del Islam, IV SimposioInternacional de la SECR(Sociedad Espaola de Ciencias de las Rel igiones).Milenio:Miedo y Religin. La Laguna:Universidad de La Laguna, 2000.

    25 Trata-se da Cruz em que Jesus Cristo foi crucicado. De acordo com a tradio

    crist, em sua viagem Terra Santa, Helena (c. 250-330), me do ImperadorConstantino (c. 272-337), encontrou a Cruz atravs de uma revelao.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    8/17

    380 Novo Davi: a ascenso de Herclio (c. 575-641) ao poder e otriunfo do Imperador contra os persas sassnidas no Livro IV da

    Crnica de Fredegrio (c. 660)

    a um governo cristo.Ameaando a sede do Imprio, Constantinopla, os persas

    deveriam ser detidos. Assim, Herclio, com um exrcito, saiuao encontro deles.26Enquanto o efetivo heracliano estava noOriente, os varos, juntamente com aliados persas e eslavos,sitiaram (em 626) Constantinopla e, se no fosse o poderio navalde Bizncio e a ajuda miraculosa da Virgem Maria (conformea crena dos bizantinos), provavelmente a cidade teria sidotomada.27

    O combate singulardo formidvel guerreiro Herclio, um novo

    DaviA campanha empreendida por Herclio, que comandoupessoalmente as tropas, iniciou-se em 622, quando o Imperadormarchou para recuperar os territrios perdidos e subjugar a Prsia.Aps se deparar com o exrcito sassnida na regio do Cucaso,

    por intermdio de embaixadores, Herclio props ao Imperadordos persas, chamado Csroes, que eles dois, os Imperadores,enfrentassem-se em um combate singular [...]. Aquele a quema vitria seria concedida pelo Altssimo receberia o Impriodaquele que fosse vencido e, assim, seu povo sairia sem perdas28

    O combate singular (singulare certamine), ou seja, o embateentre Herclio e Csroes, era o resultado de um acordo propostopelo Imperador. Fredegrio explorou ao mximo esse episdio,pois o cronista era proveniente da cultura guerreira germnicae, portanto, apreciava a coragem do lder na batalha. Este tipocombate j era registrado na obra Germnia, do romano Tcito (c.55-120):

    Existe ainda outra espcie de auspcio, por meio do qual buscamsaber previamente a consequncia das guerras mais importantes.Sequestram, de qualquer modo, um prisioneiro de nao inimigae o obrigam a combater com um dos seus melhores guerreiros.

    Ambos os adversrios se batem, cada qual com as armas de sua

    26 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 155.

    27 RICE, David Talbot. Os Bizantinos. Lisboa: Editorial Verbo, 1970, p. 50.

    28 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 155.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    9/17

    Guilherme Queiroz de Souza 381

    nao. O triunfo deste ou daquele o prognstico do futuro29

    Tradio antiga e quase universal, nas palavras de JohnKeegan,30o combate singularera praticado em alguns reinos romano-germnicos da Alta Idade Mdia. Tratava-se de um ordlio bilateralencontrado no s entre os burgndios e francos, mas entre osalamanos, bvaros, lombardos, dentre outros povos.31Contudo,gradativamente o combate singular foi condenado pelos clrigose, no IV Conclio de Latro (1215), formalmente proibido pelaIgreja.

    No caso indicado por Fredegrio, o duelo seria decidido pelo

    Altssimo. Segundo a concepo da poca, somente o lado quetivesse a justia verdadeira sairia vitorioso do campo de batalha.Deus sempre demonstrava escolher um lado, o lado da verdade;assim, Ele decidiria com Sua justia a questo. Antes de Fredegrio,Gregrio de Tours havia apontado o campo de batalha como oprincipal local das decises divinas quando, por exemplo, relatouo discurso do rei Gundobaldo (561-566): Deus julgar ento,quando nos encontrarmos na plancie de um campo de batalha,se eu sou ou no o flho de Clotrio.32

    O mundo bizantino tambm realizou ocasionalmente a prticado duelo. Em 971, projetou-se um combate entre o basileusJoo ITzimisces (c. 925-976) e Sviatoslav (c. 942-972), prncipe de Kiev,com o objetivo de solucionar um problema poltico e poupar avida dos soldados.33No Ocidente medieval, a ideia de se realizarum duelo entre soberanos para a resoluo de uma querela ainda

    29 TCITO. Germania. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press;

    London: W. Heinemann, 2006, Cap. X.30 KEEGAN, John. Uma Histria da Guerra. So Paulo: Companhia das Letras,2006, p. 70.

    31 MAJZOUB, Milene Chavez Goffar.Juzos de Deus e justia real no direito carolngio:estudo sobre a aplicao dos ordlios poca de Carlos Magno (768-814).Campinas: Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Dissertao deMestrado, 2005, p. 48-56.

    32 GREGRIO DE TOURS. Histoire des Francs. Traduit du latin par RobertLatouche. Paris: Les Belles Lettres, 1996, p. 109.

    33 CONTAMINE, Phil ippe. La guerra en la Edad Media.Barcelona: Editorial LaborS. A, 1984, p. 330.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    10/17

    382 Novo Davi: a ascenso de Herclio (c. 575-641) ao poder e otriunfo do Imperador contra os persas sassnidas no Livro IV da

    Crnica de Fredegrio (c. 660)

    foi registrada no nal da Idade Mdia, como indicou brevementeMarc Bloch na clssica obra Os Reis Taumaturgos.34

    Fredegrio tambm

    apresentou outros combates singularesdecididos por Deus, como o que Bertoaldo (604), mordomodo palcio (majordomus) da Borgonha, props (em 604) a Landry(613), mordomo do palcio da Nustria. De acordo com ocronista,

    Landry, com o seu exrcito, cerca Orlans; ele grita a Bertoaldopara lutar. Bertoaldo, do alto das muralhas, responde: ns dois,enfrentar-nos-emos, se voc est determinado a esperar pormim, num nico combate; deixaremos o restante de nossas

    tropas distncia e encontrar-nos-emos para a luta; que oSenhor nos julgue35

    A seguir, em uma passagem carregada de signicado, Fredegriodeclara que, como um novo Davi, ele [Herclio] partiu paraguerrear em um combate singular.36 De fato, o pensamentoanalgico medieval, perspectiva baseada em correspondnciase similitudes entre os seres e as coisas, retirava arqutiposfrequentemente da Bblia, o livro por excelncia da Idade Mdia.

    Neste caso, a noo do simbolismo tipolgico foi empregada paraestruturar a narrativa do combate singularque envolveu Herclio eo guerreiro persa. Segundo Jacques Le Goff, tal perspectiva eracomum na Idade Mdia, perodo no qual os autores procuravamformular um programa ideolgico que, A cada personagem, acada acontecimento do Velho Testamento, corresponde umapersonagem e um acontecimento do Novo Testamento [ou domundo contemporneo]37.

    A partir de Santo Agostinho (354-430), bispo considerado o

    pai de toda a simblica medieval,38o combate singularentre Davi

    34 BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos. So Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 41.

    35 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 89.

    36 Ibidem, IV, p. 155.

    37 LE GOFF, Jacques (dir.). O homem medieval. Lisboa: Editorial Presena, 1989, p.27.

    38 PASTOUREAU, Michel. Smbolo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (coords.). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval II. Bauru, So Paulo:

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    11/17

    Guilherme Queiroz de Souza 383

    e Golias foi cristianizado numa associao paradigmtica: EmDavi encontra-se Cristo.39Ao mesmo tempo, a obra agostiniana

    demonizou a imagem do gigante flisteu que, antes do combatecontra Davi, estava soberbo, e se gabava e presumia de si.40Na Glia merovngia, os cronistas ligavam cada evento

    contemporneo deles ao antecedente bblico pertinente. Este erao caso de Gregrio de Tours que, para escrever os Decem LibriHistoriarum, encontrou no Antigo Testamento uma fonte frtil desimiles.41Na obra do bispo de Tours, a construo da imagem do reimerovngio Clvis tinha como referncia o modelo Constantino-Davi. Apesar de no existir uma associao davdica explcita

    com o rei franco,42

    em outro ponto o bispo de Tours comparoudiretamente Clotrio I (511-561), flho de Clvis, ao rei bblico.43Alm disso, o rei Gontro foi representado no relato gregorianosemelhante Ezequias, flho de Davi.44

    A partir do sculo VII, a inuncia do Antigo Testamento ainda mais ntida. Para o autor annimo do Liber Historiae Francorum(sc. VIII), Dagoberto (rei pacfco) era um novo Salomo; oscarolngios, por sua vez, consideravam-se prottipos dos reis deIsrael,45principalmente desde que Pepino, o Breve(751-768), tinha

    recebido (em 752) a uno real maneira de Saul e Davi. CarlosMagno (c. 742-814), por exemplo, comumente era chamado de

    EDUSC, 2006, p. 495.

    39 SANTO AGOSTINHO.Comentrio aos Salmos. So Paulo: Paulus, 1998, p. 985.

    40 Ibidem, p. 986.

    41 HEN, Yitzhak. The uses of Bible and the perception of kingship in MerovingianGaul,Early Merovingian Europe, v. 7, 1998, p. 277.

    42 FREITAS, Edmar Checon de. O Rei Clvis visto por Gregrio de Tours,Dimenses Revista de Histria da Ufes. Vol. 11, jul/dez, 2000, p. 207-209.

    43 FREITAS, Edmar Checon de. Gontro: rei, sacerdote, santo,Mirabilia. RevistaEletrnica de Histria Antiga e Medieval, v. 7, 2007b, p. 75.

    44 FREITAS, Edmar Checon de. Dos reis cabeludos ao rei santo: monarquia ereligio na Glia merovngia, Brathair, v. 1, 2007a, p. 158.

    45 RICH, Pierre. La Bible et la vie politique dans le haut Moyen Age. In: RICH, Pierre;

    LOBRICHON, Guy (dirs.). Le Moyen Age et la Bible. Bible de tous les temps. Paris:Editions Beauchesne, 1984, p. 387-400.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    12/17

    384 Novo Davi: a ascenso de Herclio (c. 575-641) ao poder e otriunfo do Imperador contra os persas sassnidas no Livro IV da

    Crnica de Fredegrio (c. 660)

    novo Davi.46

    Imagem 1: O combate singular entre Davi e Golias.Manuscritocarolngio iluminado (c. 820-830). The Stuttgart Psalter. Saint-

    Germain-des-Prs. Cod. bibl. 23, folio 158v. Stuttgart,Wrttembergische Landesbibliothek.

    De acordo com Andr Vauchez, embora muitos historiadoresdestaquem os aspectos mais espetaculares da relao entre aCristandade da Alta Idade Mdia e o Israel bblico, a infunciado Antigo Testamento na religiosidade ocidental foi muitomais profunda do que se imagina. O prestgio dos grandes reise sacerdotes vtero-testamentrios exercia um fascnio especialsobre os monarcas e eruditos romano-germnicos do ainda

    46 FAVIER, Jean. Carlos Magno. So Paulo: Estao Liberdade, 2004, p. 424.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    13/17

    Guilherme Queiroz de Souza 385

    superfcialmente cristianizado Ocidente.47O Antigo Testamentooferecia um passado que era familiar aos membros de uma

    sociedade guerreira formada por comunidades tribais.Mas voltemos narrativa de Fredegrio sobre Herclio. Oexemplo bblico evocado pelo cronista merovngio relacionava oduelo entre o Imperador e o soberano persa ao famoso combatetravado entre Davi e o flisteu Golias.48O Primeiro Livro de Samuel(17, 4) registra tal episdio:

    Saiu das fleiras dos flisteus um grande guerreiro. Chamava-seGolias, de Gat. A sua estatura era de seis cvados e um palmo.[...] [Ele props aos israelitas] Escolhei entre vs um homem, e

    venha ele competir comigo. Se me dominar e me ferir seremosvossos escravos; se, porm, eu o vencer e ferir, vs sereis nossosescravos e nos servireis [...]

    A identifcao Herclio-Davi compilada por Fredegrioatribua uma dimenso cristolgica ao Imperador, pois no NovoTestamento Jesus era flho de Davi, ou seja, proveniente dalinhagem davdica.49Por sua vez, o Antigo Testamento assinalaque Davi era o rei-guerreiro que havia lutado para defender a

    Terra Prometida dos idlatras. Foi no Oriente que se realizou aprimeira identifcao davdica em um governante cristo, quandoo Imperador Marciano (450-457) foi aclamado no Concliode Calcednia (451) sob o ttulo de novo Davi.50Quanto aoImperador Herclio, o cronista bizantino George de Pisidia (c.632) retomou uma srie de heris mticos e bblicos para associ-los ao basileus: Hrcules, sobretudo, mas tambm Moiss (poiscombateu um novo Fara), Perseu, Orfeu, Elias e o prprio

    47 VAUCHEZ, Andr. A Espir itualidade na Idade Mdia Ocidental: (sculos VIII aXIII). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p. 12-13.

    48 O combate singularentre campees ainda aparece em outras passagens do AntigoTestamento: 2Sm 2, 12-17; 21, 15-22; 23, 20-21. Tais duelos foram comparadosaos combates singulares da Ilada, poema pico grego atribudo a Homero, queatualmente entendido como um nome coletivo A BBLIA DE JERUSALM.So Paulo: Edies Paulinas, 1985, p. 446, nota b.

    49 A genealogia de Jesus Cristo exposta no Evangelho de Mateus (1, 1-17) e no

    Evangelho de Lucas(3, 23-38).50 RICH, Pierre. La Bible et la vie politique dans le haut Moyen Age, op. cit., p. 385-386.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    14/17

    386 Novo Davi: a ascenso de Herclio (c. 575-641) ao poder e otriunfo do Imperador contra os persas sassnidas no Livro IV da

    Crnica de Fredegrio (c. 660)

    Cristo.51Curiosamente, em 1902 os arquelogos encontraram moedas

    bizantinas em Chipre que os numismatas identicaram gravadaa representao do combate entre Davi e Golias. Existe umavertente interpretativa que, ao analisar as moedas, concluiu queelas foram cunhadas em Constantinopla entre 613 e 629/630,ou seja, durante o governo de Herclio, e que existia nelas umparalelo entre os reinados de Herclio e Davi.52O historiador daarte Steven H. Wander confessa a surpresa que sentiu ao encontraressa relao na Crnicade Fredegrio.53

    Antes de principiar o duelo, Fredegrio indica que Csroes

    percebeu que um de seus patrcios se distinguia pela bravuraem combate; conforme o acordo, ele o enviou para combaterHerclio em seu lugar.54Foi ento que o confronto teve incio.Por um descuido do guerreiro persa,

    que virou a cabea para ver quem vinha atrs dele, Herclioesporeou violentamente o seu cavalo, desembainhou umakandjare cortou a cabea do patrcio dos persas55

    51 BRHIER, Louis. La Civilizacion Bizantina. Mxico, D. F.: Editorial HispanoAmericana, 1955, p. 267; WHITBY, Mary. George of Pisidias presentation of theEmperor Heraclius and his campaigns: variety and development. In: REININK,Gerrit J.; STOLTE, Bernard H. (eds.). The reign of Heraclius (610-641): crisis andconfrontation.Leuven: Peeters, 2002, p. 157-158.

    52 WANDER, Steven H. The Cyprus Plates: The Story of David and Goliath,Metropolitan Museum Journal, vol. 8, 1973, p. 89; 103-104.

    53 WANDER, Steven H. The Cyprus Plates and the Chronicleof Fredegar,DumbartonOaks Papers, vol. 29, 1975, p. 346.

    54 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 155.

    55 Ibidem, IV, p. 157. De acordo com Wallace-Hadrill, o termo em latim para aarma de Herclio uxus, palavra usada anteriormente uma vez por Fredegrio(e apenas por Fredegrio) no sentido de uma espada ou punhal. Trata-se de umtermo provavelmente derivado do persa kus, que signica cinzel ou faca

    WALLACE-HADRILL, John Michael. Fredegar and the History of France. In:WALLACE-HADRILL, John Michael. The long-haired kings and other studies infrankish history, op. cit., p. 89. Segundo Olivier Devi llers e Jean Meyers, o termo persa

    escolhido kandjar preserva o sentido de exotismo que a palavra uxuscarrega FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    15/17

    Guilherme Queiroz de Souza 387

    Vitorioso contra o combatente sassnida, Herclio fez comque Csroes e o exrcito persa se retirassem do campo de batalha.

    Logo depois, Fredegrio indica que Csroes foi morto porseu prprio povo, de acordo com os seus mtodos tirnicos.56Herclio ento embarca em um navio; ele entra na Prsia como exrcito e a submete [...]. Em seguida, o Imperador tomanumerosos tesouros e, por cerca de trs anos, a Prsia devastada [...].57

    Na realidade, Fredegrio resumiu ou recebeu poucasinformaes sobre as etapas da campanha, que se estendeu poralguns anos. A primeira vitria bizantina ocorreu na batalha de

    Issus (622), na Anatlia; a ltima e decisiva aconteceu prximo srunas de Nnive (627), na Mesopotmia. A seguir, os bizantinossaquearam o palcio de Csroes e obtiveram, como Fredegriodescreveu, enormes tesouros. Enquanto isso, o soberano sassnidahavia fugido para Dastgerd, onde foi deposto e assassinado pelosprprios persas entre 25 e 29 de fevereiro de 628. Logo a Prsiacapitulou.

    Modelo a ser seguido, Herclio era um Bellator Rex (rei-guerreiro) el a Deus, um novo Davi triunfante perante os

    persas. Na descrio da aparncia e personalidade do Imperador,Fredegrio enfatiza os atributos fsicos e a bravura de Herclio:

    O Imperador Herclio tinha uma bela aparncia, um rostogracioso, era imponente devido sua grande altura, maiscorajoso do que os outros e um formidvel guerreiro. Comefeito, ele frequentemente matava lees na arena e, em lugaresdesertos, [matava] vrios animais isolados58

    Ademais, em meio descrio bblica do duelo entre Davi eGolias, consta uma curiosa histria (1Sm 17, 34-37) que pode terinuenciado Fredegrio na redao do fragmento acima. QuandoSaul, primeiro rei de Israel, questionou a capacidade guerreira de

    IV, p. 156, nota 504.

    56 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 157.

    57 Ibidem, IV, p. 157.58 Ibidem, IV, p. 157.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    16/17

    388 Novo Davi: a ascenso de Herclio (c. 575-641) ao poder e otriunfo do Imperador contra os persas sassnidas no Livro IV da

    Crnica de Fredegrio (c. 660)

    Davi, este respondeu:

    Quando o teu servo [Davi] apascentava as ovelhas de seu pai

    e aparecia um leo ou um urso que arrebatava uma ovelha dorebanho, eu o perseguia e o atacava e arrancava a ovelha de suagoela; e, se vinha contra mim eu o agarrava pela juba, o feria ematava. O teu servo venceu o leo e o urso, e assim ser comesse incircunciso listeu, como se fosse um deles, pois desaouo exrcito do Deus vivo. Davi acrescentou mais: Iahweh queme livrou das garras do leo e do urso me livrar das mos desselisteu

    A passagem bblica supracitada pode ter sido lembrada porFredegrio quando este compilou a associao entre Davi eHerclio, pois no relato do cronista o Imperador venceu lees emarenas no norte da frica e, depois, derrotou o guerreiro persa noj mencionado combate singular. mais provvel, no entanto, queFredegrio tivesse se referido

    tradio secular da regio norte-africana em que homens lutavam contra animais selvagens emarenas, como os mosaicos no Museu do Bardo em Tnis (antigaCartago) atestam.59 verdade tambm que o enfretamento de

    lees era praticado em territrio armnio, possivelmente o localde origem da dinastia heracliana.Alm de Herclio, Fredegrio exaltou em sua Crnicaoutros

    monarcas como o rei visigodo Sisebuto (612-621), enaltecido naHispnia por Isidoro de Sevilha (c. 560-636).60A descrio do reivisigodo assemelha-se forma com que o cronista merovngioapresentou o Imperador. Segundo Fregedrio, Sisebuto eraum homem sbio, coberto de louvores por toda a Hispnia einteiramente piedoso. Com efeito, ele at combateu valorosamente

    [os bizantinos].61

    No caso de Herclio, percebemos que Fredegrio representouo Imperador como um admirvel soberano que era respeitado

    59 KAEGI, Walter Emil. Heraclius, emperor of Byzantium. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2003, p. 27.

    60 ORLANDIS, Jos. Historia del reino visigodo espaol: los acontecimientos, lasinstituciones, la sociedad, los protagonistas. Madrid: Ediciones Rialp, 2003, p. 91.

    61 FREDEGRIO. Chronique des temps mrovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,IV, p. 97.

  • 7/25/2019 ''Novo Davi'': a ascenso de Herclio ao poder e o triunfo do imperador contra os persas sassnidas no Livro IV d

    17/17

    Guilherme Queiroz de Souza 389

    devido ao porte fsico, esprito belicoso e habilidades marciais.Da mesma forma que o bblico Davi, rei-guerreiro por

    excelncia, Herclio defendeu a Terra Santa dos inimigos da fe no ascendeu ao trono pela linha sucessria, mas para destruiruma tirania; por Golias, entendam-se Focas ou ainda Csroes.62Ao derrotar os sassnidas, o Imperador era considerado umverdadeiro campeo da ortodoxia, o responsvel por aquilo queFredegrio chamou de acta veru miraculi.

    62 REGAN, Geoffrey. First Crusader.Byzantiums Holy Wars. New York: Palgrave

    Macmillan, 2003, p. 56. Para tal relao nas fontes bizantinas, ver ALEXANDER,

    Suzanne Spain. Heraclius, Byzantine Imperial Ideology, and the David Plates,Speculum. A Journal of Medieval Studies,vol. LII, n 2, abri l, 1977, p. 229.