NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

21
1 O Novo Testamento visto por um filólogo Antonio Piñero www.antoniopinero.com Sumário 1 - O Novo Testamento visto por um filólogo.............................................................................. 1 2 – O Novo Testamento como a pérola da literatura judaica do século I ........................ 3 3 - O Novo Testamento é um produto intelectual e religioso de seu tempo................... 5 4 - Diversidade de cristianismos no inicio do movimento ...................................................... 7 5 - A formação do Novo Testamento foi uma obra de cuidadosa seleção e um ato de política eclesiástica..................................................................................................................................... 9 6 - O texto do Novo Testamento foi transmitido de maneira apenas satisfatória ...... 11 7 - O Novo Testamento é uma obra de ideologia plural e escrita por desconhecidos, em sua maior parte. A pseudoepigrafia. ......................................................................................... 14 8 - A valorização da literatura pseudônima no Novo Testamento. O Novo Testamento convida ao pluralismo .................................................................................................... 17 9 - O Novo Testamento é um livro de propaganda ................................................................. 19 10 - Sobre as bíblias............................................................................................................................ 20 1 - O Novo Testamento visto por um filólogo Antonio Piñero Pequeno extrato do livro: Guia para entender o Novo Testamento (Editorial Trotta, Madrid 3ª ed. 2008; a primeira é de 1995, e se intitula “O Novo Testamento. Introdução ao estudo dos primeiros escritos cristãos"; escrita com o Dr. Jesús Peláez, Edit. El Almendro) e outros. Do ponto de vista da historia, da sociologia e até certo ponto da filosofia o Novo Testamento deve ser tratado como apenas mais um livro da Antiguidade. O Novo Testamento pertence por direito a historia da literatura judaico-helenística em língua grega e sem dúvida também a Historia da literatura grega, porque todo ele – E ISTO IGNORA A IMENSA MAIORIA DAS PESSOAS - foi composto diretamente em grego, não em uma língua semítica, hebraico ou aramaico e depois traduzido. Nem mesmo os evangelhos que conservamos e tampouco o Evangelho atual de Mateus, e apesar da tradição centenaria que afirma o contrario (que o evangelho atual deriva de um original hebraico ou aramaico perdido), não foi composto em aramaico, a língua materna de Jesus, mas em grego.

Transcript of NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

Page 1: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

1

O Novo Testamento visto por um filólogo Antonio Piñero

www.antoniopinero.com

Sumário 1 - O Novo Testamento visto por um filólogo .............................................................................. 1

2 – O Novo Testamento como a pérola da literatura judaica do século I ........................ 3

3 - O Novo Testamento é um produto intelectual e religioso de seu tempo ................... 5

4 - Diversidade de cristianismos no inicio do movimento ...................................................... 7

5 - A formação do Novo Testamento foi uma obra de cuidadosa seleção e um ato de

política eclesiástica ..................................................................................................................................... 9

6 - O texto do Novo Testamento foi transmitido de maneira apenas satisfatória ...... 11

7 - O Novo Testamento é uma obra de ideologia plural e escrita por desconhecidos,

em sua maior parte. A pseudoepigrafia. ......................................................................................... 14

8 - A valorização da literatura pseudônima no Novo Testamento. O Novo

Testamento convida ao pluralismo .................................................................................................... 17

9 - O Novo Testamento é um livro de propaganda ................................................................. 19

10 - Sobre as bíblias ............................................................................................................................ 20

1 - O Novo Testamento visto por um filólogo Antonio Piñero Pequeno extrato do livro: Guia para entender o Novo Testamento (Editorial Trotta, Madrid 3ª ed. 2008; a primeira é de 1995, e se intitula “O Novo Testamento. Introdução ao estudo dos primeiros escritos cristãos"; escrita com o Dr. Jesús Peláez, Edit. El Almendro) e outros. Do ponto de vista da historia, da sociologia e até certo ponto da filosofia o Novo Testamento deve ser tratado como apenas mais um livro da Antiguidade. O Novo Testamento pertence por direito a historia da literatura judaico-helenística em língua grega e sem dúvida também a Historia da literatura grega, porque todo ele – E ISTO IGNORA A IMENSA MAIORIA DAS PESSOAS - foi composto diretamente em grego, não em uma língua semítica, hebraico ou aramaico e depois traduzido. Nem mesmo os evangelhos que conservamos e tampouco o Evangelho atual de Mateus, e apesar da tradição centenaria que afirma o contrario (que o evangelho atual deriva de um original hebraico ou aramaico perdido), não foi composto em aramaico, a língua materna de Jesus, mas em grego.

Page 2: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

2

I. O primeiro ponto de vista filológico sobre o Novo Testamento há de ser insistir na seguinte ideia: o Novo Testamento é uma das fontes, históricas em parte, transmitidas pela Antiguidade, entre outras varias, para conhecer o século I no Mediterrâneo oriental e seu efervescente panorama religioso. Ao considerar-se o Novo Testamento um livro sagrado, “inspirado” para tantas pessoas, há muitos crentes que sustentam que a este corpo de escritos não se lhe podem aplicar as técnicas utilizadas para a interpretação de outros textos antigos, não sagrados. Afirmam que seus textos só devem ser lidos desde a fé. Somente esta é capaz de desentranhar o conteúdo substancial do Novo Testamento, seu mistério quase insondável. Ou também: somente teólogos profissionais e crentes podem extrair deles a profunda verdade que contém. Porém desde um ponto de vista externo e de filosofia elementar, utilizar para o Novo Testamento as categorias de “mistério quase insondável” ou “verdade profunda alcançável só pela fé” seria renunciar ao uso da única faculdade que temos para conhecer, nossa razão. Também seria isolar o livro de sua condição de fonte histórica para conhecer um período importante da história do Mediterrâneo. Estas afirmações não nos parecem corretas porque se tentássemos fundamentá-las estaríamos raciocinando em círculo. A base de semelhante pretensão só poderia ser o argumento acima mencionado a saber: “Estes livros não podem ser examinados criticamente por serem sagrados.”

• Agora, por que são sagrados? • Porque é a palavra de Deus. • Quem o afirma? • A Igreja com todo seu poder sobrenatural. • De onde obtém a Igreja este poder? • Naturalmente, de haver sido fundada por Jesús tal como afirmam estes

livros. “Por tanto estes livros apoiam sua sacralidade na voz e autoridade da Igreja, e esta fundamenta seu poder em que assim o afirma os livros sagrados o ocorrido com Jesús tal como neles se conta”. Este raciocínio é perfeitamente circular: o caráter sacro do livro se fundamenta na Igreja, e esta obtém sua autoridade do livro. Fica claro que não podemos admitir esse tipo de raciocínio. Não é só a teologia ou a fé as que possuem uma voz competente para apresentar ao leitor do século XXI a plenitude do sentido do Novo Testamento, mas também a investigação literária, a filologia e o conhecimento da historia da época. As afirmações teológicas entram também no campo da investigação da historia antiga, o concreto da historia das ideias, e por isso não podem fugir das leis científicas que regem uma investigação estritamente histórica.

Page 3: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

3

Esta é a razão porque as obras contidas no Novo Testamento podem e devem ser estudadas sem necessidade de pensá-las obrigatoriamente como “inspiradas” e portadoras de uma revelação. Desenvolveremos alguns pontos a partir dessa consideração do Novo Testamento como fonte para a historia antiga.

2 – O Novo Testamento como a pérola da literatura judaica do século I II. O Novo Testamento é a pérola da literatura judaica do século I, porém com alguns detalhes. E o primeiro e importante é que está escrito em grego. Por tanto é a "pérola" da literatura judaico-helenística em língua grega. Isto incomodou durante séculos a muitos judeus que não podiam considerar literatura nobre aquela que não estivesse composta em hebraico ou aramaico. Os judeus demoraram muito tempo a reconhecer que apesar da língua e dada à escassez de literatura puramente religiosa do século I (com exceção dos manuscritos de Qumrán e Filon), o Novo Testamento é um no conjunto um documento judaico valiosíssimo. Durante quase mil e novecentos anos foi quase impossível para um judeu aproximar-se do Novo Testamento ou escrever sobre ele. Haveria incorrido em anátema perpétuo entre os judeus em geral. A princípios do século XX, sem dúvida, sobretudo com a obra de Josef Klausner sobre Jesus de Nazaré, os autores judeus começaram a reconhecer: 1. Que o Novo Testamento é totalmente obra de autores judeus (se tem dúvidas de Lucas; porém ao menos era um converso ou prosélito até converter-se ao cristianismo). 2. Que grande parte de suas ideias são uma interpretação mais como qualquer outra de sua época, do judaísmo do momento. Por exemplo, há mais diferenças entre saduceus e essênios que entre um judaísmo farisaico, salvo a divindade de Jesus, e o Novo Testamento. Por tanto, o Novo Testamento é sumamente valioso para conhecer a frondosidade ideológica do judaísmo do século I. 3. Que hoje se reconhece que a pérola entre as pérolas da literatura judaica do século I são as parábolas de Jesus. Ainda que os rabinos da época utilizassem abundantemente o gênero parabólico, não há nada comparável em beleza, plasticidade, efeitos dramáticos e ensinamentos como as parábolas do rabino de Nazaré. Porém ao mesmo tempo há que reconhecer também que estes escritos são a causa fundamental da separação cristã do judaísmo, em especial por sua

Page 4: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

4

manifestação indireta ou clara da divindade de Jesus. É este o dos evangelhos, um "judaísmo" tão herético e helenizado que foi impossível de assimilar pelo "judaísmo normativo" de finais do século I. A evolução das doutrinas do Novo Testamento até finais deste século, momento em que se compõe o Evangelho de João, se regeu por um tríplice impulso: • a) tendência para uma maior e mais clara divinização de Jesus; • b) tendência para a eliminação de uma escatologia imediata, ou seja, se impôs o pensamento de que o fim do mundo (não como o pensavam Jesus e Paulo de Tarso) viria “ad calendas graecas”, ou seja, dentro de um tempo indefinido, não imediato; • c) tendência para a eliminação dos traços excessivamente judaicos da mensagem de salvação que se estava pregando. Este impulso se centra na passagem de um messias judeu para uma igreja proselitista que prega um salvador universal com vocação de abertura para os gentios. A "mercadoria religiosa" de um Jesus como "messias" muito judeu não era "vendável" no Império Romano. Estas tendências correspondem muito bem com o espírito missioneiro de Paulo. Desde o ponto de vista da historia da teologia do Novo Testamento Paulo e os Evangelhos significam um grande esforço por desligar a figura de Jesus de suas condicionantes históricas, enraizados no solo palestino do século I. Jesus será apresentado de um modo desjudaizado, como um salvador universal. A estrita concepção de um "messias" universal é absolutamente impensável para um judeu do século I. Ao final deste século (I) haverá já uma grande distancia teológica entre um membro da comunidade primitiva de Jerusalém - tão respeitada pelos judeus que muitos fariseus se uniram a ela (Hch 2,47; 4,4; 15,5) - e um ex-pagão das comunidades paulinas ou um adepto do grupo representado pelo Evangelho de João. Os judeus já não podiam aceitar em seu seio a um “judeu-cristianismo” que havia evoluído tanto. Estes poderiam admitir no máximo um messias glorificado de algum modo no âmbito do divino, inclusive sentado à direita do Pai. Porem não podiam aceitar um ser pré-existente que se encarna, tal como solenemente proclama o Prólogo do Evangelho de João. Não é estranho que os judeus – dispostos a renovar sua vida e salvar sua religião depois do fracasso da Grande Guerra contra os romanos em torno da Lei e outros valores tradicionais — bem informados desta evolução complexa e múltipla, decidiram-se a declarar formalmente “herejes” aos cristãos a finais do século I.

Page 5: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

5

3 - O Novo Testamento é um produto intelectual e religioso de seu tempo III. O Novo Testamento só se compreende inserindo-o nas coordenadas de espaço e tempo do mundo judaico do século I. Se para compreender o Novo Testamento temos prescindido metodologicamente do conceito de “inspiração”, ou seja, de uma tutela divina especial que faça dele um livro atemporal, se compreende bem que Novo Testamento é um filho de seu tempo, e que está absolutamente condicionado pela mentalidade da época: a de um Israel inserido no Império Romano e a mentalidade deste, especialmente em sua parte oriental. Portanto, as primeiras obras cristãs não poderão ser bem compreendidas sem levar em conta certos conhecimentos prévios do século que as viu nascer. Quais são estes conhecimentos que serão a base imprescindível para o leitor do século XXI que as deseja compreender? São as seguintes: o futuro leitor deve estar bem familiarizado sobre que concepções históricas, religiosas, filosóficas, sociais, ideológicas em geral, etc., imperavam na atmosfera onde se conceberam as diversas obras do Novo Testamento. Um leitor moderno não pode pretender compreender bem, nem o aparentemente mais elementar de nossa sociedade como uma crônica especializada e crítica de uma partida de futebol, por exemplo, se não tem nem a menor ideia de que se trata tal esporte, de quais são as regras do jogo, etc., em uma palavra, se não possui um conhecimento básico do que se trata. Tal leitor, ignorante em absoluto da essência do futebol e de suas condicionantes, ainda que soubesse o idioma, estaria lendo uma crítica especializada deste esporte como se estivesse escrita em chinês. Com a Antiguidade acontece o mesmo. Por este motivo para entender o mundo do Novo Testamento foram escritos muitos livros introdutórios que explicam ao leitor o mundo no qual nasceu Jesús. Destaco dois: O de John Riches, “El mundo de Jesús. El judaísmo del siglo I en crisis”, de 2003. O livro versa sobre o contexto político, econômico, social e cultural do judaísmo do século I; explica a unidade e diversidade do judaísmo neste mesmo século e as mudanças ocorridas desde a época helenística (século IV AEC) que levaram a caracterizar o judaísmo nesse período; o conceito de comunidade do povo de Deus; os diversos grupos e personalidades religiosas do século I em Israel, incluído João Batista, as esperanças escatológicas dos judeus no século I e como se insere o conceito de reino de Deus de Jesús nesse contexto de teologia judaico apocalíptica. O meu se intitula “Año I. Israel y su mundo cuando nació Jesús”, Madrid 2008,

Page 6: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

6

nele trato dos seguintes temas: Como estava o mundo naquele: O império romano em geral e o Oriente romano em particular • Egito. Síria e Ásia Menor. Explica logo qual era o ambiente religioso do Império Romano: existência de um monoteísmo prático; a filosofia como modo de vida, quase uma religião; a ética; a concepção popular sobre os “homens divinos”; as crenças de vida após a morte; a religiosidade orientada para o desejo de salvação: os de “mistérios”; a divinização de seres humanos: culto a homens: a heróis, ao Imperador; finalmente se esclarecem as linhas fundamentais de pensamento de uma atmosfera religiosa que contribui para moldar o cristianismo: a gnose e os movimentos gnósticos. Naturalmente tampouco pode faltar uma exposição sintética e popular sobre “Israel nos momentos do nascimento de Jesus”: o rei Herodes, o Grande e a situação depois de sua morte que afeta diretamente a João Batista e a Jesus, mas a situação da Galileia em tempos do Nazareno e a de Jerusalém. A introdução finaliza com a exposição abreviada de dois grandes temas para compreender o cenário de fundo do Novo Testamento: A. O mundo religioso judaico e suas seitas (fariseus e o proselitismo: a concepção da “restauração de Israel” ao final da historia, os essênios; o mundo particular de Qumrán: o fim do mundo presente; os saduceus e os zelotes; o farisaísmo e seus ramos. B. Finalmente se aborda o tema das crenças do povo judeu nos tempos de Jesus, porque são à base da religiosidade de Jesus e em grande parte da de seus seguidores: as ideias principais recebidas do Antigo Testamento; as noções principais da Apocalíptica e a teologia dos Apócrifos do Antigo Testamento, que formam uma boa parte do pensamento de Jesus. Até aqui a descrição do conteúdo desta minha obra introdutória ao mundo do Novo Testamento. A conclusão destas reflexões é que desde o ponto de vista de um filólogo e de um historiador das ideias, ao estudar estes aspectos nos encontramos com um mundo preparado para o nascimento do cristianismo: este se acha “a cavalo” entre dois mundos: o grego e o judeu. O cristianismo é judaico, porém nasce helenizado. Igualmente o filólogo se acha interessado em entender e explicar ao futuro leitor do Novo Testamento como reagiram frente a tais ideias (pagãs ou judaicas) os diferentes autores neotestamentarios, que sociedade e situação histórica concreta fizeram que as obras do Novo Testamento fossem desta ou de outra maneira. Para um filólogo o Novo Testamento pertence a um mundo tão alheio ao atual que é necessário submetê-lo a una forte explicação ou exegese de modo que possa entender-se hoje. O homem comum não entende hoje nem mesmo o ideário do Novo testamento. Faça-se uma prova:

Page 7: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

7

pergunte-se a uma pessoa culta qual é a mensagem real da Epístola aos colossensses. Provavelmente não saberá dizer ainda que haja lido. Agora bem, para um filólogo não há exegese explicativa que seja normativa, inspirada, dirigida por una igreja, mas parte é do principio que toda exegese é pura historia. A exegese não é fantasia interpretativa, mas fundamentalmente a sincronização de um texto em suas coordenadas espaço-temporal em toda sua complexidade: histórica, religiosa, filosófica, econômica, cultural, etc. Não se trata de aplicar-me as doutrinas do Novo Testamento a mim, para minha própria vida espiritual hoje, mas em primeiro lugar e antes de tudo, entendê-lo. Logo que cada um tire suas conclusões e adote diante dele a postura existencial que deseje. Alguns serão atraídos para o âmbito da mera história ou da historia teológica ou cultural. Outros se sentirão interpelados pela mensagem do Novo Testamento. Porém isso não é tarefa do filólogo. Este transmite o texto e o explica… tal como podiam entender os leitores do século I de nossa era.

4 - Diversidade de cristianismos no inicio do movimento IV. Um filólogo considera que o Novo Testamento é um conjunto de livros, hoje 27, dos quais 21 são cartas - voluntariamente predeterminado e excludente, ou seja, não é um espelho de todos os cristianismos que existiram no nascimento da fé cristã, nem dos credos existentes no momento de tal seleção de obras. De acordo com o que escrevi em minha obra “Cristianismos derrotados”, Madrid 2008, Introdução: a uma vista rápida e sem ser exaustivo podemos enumerar ao menos uns oito ou nove “cristianismos” que não estão incluídos plenamente no Novo Testamento. Assim: 1. Cristianismos que negam que Jesus seja Deus: ebionitas, nazarenos. 2. Cristianismos que negam a Paulo: falso profeta: Pseudo Clementinas 3. Cristianismos proféticos: o domínio do Espírito: difíceis de identificar: montanistas e gnósticos de grande variedade 4. Cristianismos que negam a validade da Bíblia tal como a conhecemos hoje: Marcião, Pseudo Clementinas, Certos gnósticos conhecidos por Nag Hammadi como as comunidades que se acham por trás da Origem do mundo, Apócrifo de João ou a Hipóstase dos arcontes, que tratam expressamente as questões de antropogonia/antropologia acomodando o texto da Bíblia às concepções e cânones gnósticos. 5. Cristianismos que negam a encarnação verdadeira: docetas: apócrifos

Page 8: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

8

6. Cristianismos que negam a ressurreição futura: aparecem em Paulo (1 Cor) e nas Pastorais 7. Cristianismos que promoviam a independencia das mulheres: Escritos sobre M. Madalena; Apócrifos. 8. Cristianismos que negam o corpo e o mundo. Ascetismo extremo, contra a vida sexual e o matrimonio: Evangelho dos Egípcios Epístola do Pseudo Tito Apócrifos 9. Cristianismos que promoviam a vida livre e libertina: gnósticos libertinos de Epifanio e Irineo; carpocratianos de Clemente de Alexandria. Estes tipos de cristianismo que qualquer observador atento poderia contemplar na Ásia Menor, e atual Turquia, a meados do século II, apesar de ser tantos se reduzem a três linhas principais: 1. A linha judaico-cristã, ou seja, os seguidores puramente judeus de Jesus da primeirissima hora, congregados sobre tudo em Jerusalém. Entre eles havia fariseus, essênios e sacerdotes do baixo clero que criam firmemente – sem afastar-se o mínimo de seu credo judaico, que Jesus era o verdadeiro messias já havia vindo. Sua teologia era na verdade muito judaica com alguns retoques gerados a partir da crença de que Deus havia ressuscitado a Jesus e o havia confirmado em sua missão de messias. Como Jesus não havia podido cumprir sua missão por sua morte extemporânea nas mãos dos romanos, teria que voltar de imediato a terra para cumpri-la de uma vez e instaurar na mesma terra, de Israel supostamente, o reino de Deus. 2. A linha paulina. Caracteriza-se porque do Jesús da historia não lhe interessa em principio mais que sua morte e ressurreição. O paulinismo entende o sacrifício na morte de Jesús como um ato voluntariamente querido por seu Pai e como um sacrifício expiatório, uma morte em vez dos demais humanos. Com este sacrifício a situação de pecado da humanidade ficaria eliminada, restabelecida a amizade com Deus e fica aberta a possibilidade de salvação eterna. Porém só se salva o que crê que Jesus é o messias, que com ele se há estabelecido a era messiânica e que o pecado fica convertido em justiça (“justificado”) uma vez que a admitida por um ato de fé, ajudado necessariamente pela graça divina, que a morte na cruz de Cristo há sido o sacrifício expiatório que há apagado o pecado do mundo. 3. Os cristãos gnósticos. Estes se creem especiais porque são os únicos entre os mortais que receberam de Deus uma revelação especial para entender com profundidade como é Deus, como é a plenitude da divindade, como foi criado o universo e por quem, como Deus tem enviado reveladores de sua essência ao largo da historia, como Jesus é o último deles; como este tem

Page 9: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

9

escolhido a uns poucos mortais para indicar-lhes qual é o verdadeiro caminho da salvação; como o espírito humano desses eleitos é consubstancial com a divindade e com esse espírito – desgraçadamente encadeado por um triste processo à matéria do universo, deve voltar a sua verdadeira pátria que é o céu. O Redentor-Revelador-Jesus lhes há escolhido somente a eles como o caminho. Em seguida veremos que acontecerá com estes grupos, sobretudo no que respeita a formação da lista ou cânon de livros sagrados do cristianismo.

5 - A formação do Novo Testamento foi uma obra de cuidadosa seleção e um ato de política eclesiástica

Duas das grandes divisões do cristianismo que descrevemos rapidamente acima desapareceram rapidamente pela força destrutiva da história: A. A linha judaico-cristã tinha pouco a oferecer ao Império romano (um messias demasiado judeu), como dissemos, e pereceu arrastado pelos desastres do judaísmo como resultado das duas Grandes Revoltas contra Roma nos séculos I e II (anos 70 e 135): os judeus foram quase todos expulsos de Israel, e acabaram dispersos e quase aniquilados. Com eles pereceu também judaísmo cristão: até o século VI D.C. não restava mais nada deles. B. Os gnósticos desaparecem por si só entre os séculos IV e V, por falta de "público": era uma religião muito filosófica, com um complexo sistema místico-filosófico-platônico que explicava Deus e os Primeiros Princípios de um modo muito confuso. E também se auto-excluiram da grande religião ao considerar-se receptores de uma revelação especial destinada a que se salvassem só uns poucos. A partir do século VI sobravam escassos grupos, ainda que tenham sobrevivido até hoje em grupos minúsculos (por exemplo, gnósticos “New Age”) e ao largo da historia em outras religiões com mescla de gnosticismo como o maniqueísmo, os bogomilos e o catarismo, por exemplo. Pois bem, voltando os olhos para o período entre o ano 15 e o 200 D.C. o filólogo está persuadido que a formação da lista atual de livros sagrados do Novo Testamento foi um ato deliberado de política eclesiástica, fundamentalmente das igrejas paulinas – ainda que não nos tenha sobrado nenhum documento que deixe isso claro - já que a observação do conteúdo da lista deixa entrever vários atos de força: se escolheu um tipo de cristianismo majoritário ainda que plural, que eliminava os cristianismos mais “estridentes”, os cristão-judaicos e os gnósticos como já vimos, que não encaixavam bem com as aspirações gerais dos desejosos da salvação no âmbito do Império romano. A Grande Igreja forçou um cânon complicado de quatro Evangelhos em vez de um só; foram eliminados muitos outros evangelhos que poderiam ter

Page 10: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

10

a priori fundamentos para serem aceitos como o Evangelho de Pedro, o de Tomás ou os Nazarenos (não em seu estado atual, manipulado depois da formação do cânon, mas o que se supõe primitivo); se dividiu duas partes uma obra única: Evangelho de Lucas e Atos dos apóstolos; foram varridos todos os escritos claramente gnósticos. De fato foram eliminados todos os evangelhos que não pertenciam a uma concepção paulina básica (o significado da morte e ressurreição de Jesus): tanto os gnósticos, como os judeu-cristãos, como os de confecção demasiado tardia e os fantasiosos. A formação da lista deixa entrever também um processo de negociação para admitir nela obras de tendências muito diversas dentro da Grande Igreja de cunho essencialmente paulino: • cartas de Paulo e seus discípulos; • escritos judeu-cristãos de tendências muito opostas ao Apóstolo como o Evangelho de Mateus, a Epístola de Santiago ou o Apocalipse; porém que eram em parte assimiláveis pelo paulinismo porque aceitavam a divindade de Jesus e o significado do sacrifício da cruz como sacrifício expiatório em substituição do gênero humano e como eliminador do pecado. • um Evangelho, o de João, que pretende positivamente superar e emendar o plano aos outros três. Foi, portanto, a formação do Cânon uma obra de consenso. Também era a intenção do cânon manter certo equilíbrio entre as tendências do bloco majoritário: Frente ao grande bloco de cartas paulinas (7 + 7, incluído hebreus) se admitiu outro bloco de 7 cartas que compensasse sua influencia = três cartas “católicas” atribuídas às três colunas da Igreja de Jerusalém: Santiago-Judas (2), Pedro (2) e João (3); mais um Apocalipse, que é muito judeu porem que tem uma teologia da cruz essencialmente paulina e que contem 7 cartas a sete igrejas como contrapeso às cartas paulinas); frente ao bloco dos Evangelhos Sinóticos se admitiu o Evangelho espiritual ou místico de João. Acabou ficando assim: • um bloco compacto de teologia paulina (que contém e aceita, ao menos superficialmente, uma parte do ideário gnóstico): • um bloco mínimo, porém levemente compensador que aceita teologia judeu-cristã. • um Apocalipse que é muito judeu e por sua vez paulino em sua teologia essencial.

Page 11: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

11

Assim se cumpriram as regras de certa numerologia – da qual eram muito aficionados os judeus e os cristãos da época: • 4 Evangelhos = os quatro pontos cardeais = simbolicamente, toda a terra (os “Atos dos apóstolos. • 7 cartas autenticas de Paulo • 7 cartas pensadas como pertencentes a uma segunda parte da de Paulo, porém escritas em verdade por seus discípulos. • 7 cartas de outros apóstolos importantes Santiago/Judas; Pedro e João. • 7 cartas contidas em Apocalipse, o de João. Como se vê algo muito elaborado, em nada casual e que para mim é o produto de um pacto das igrejas paulinas que eram as mais importantes entre 150-200 D.C. que é quando se põem os fundamentos básicos deste cânon, que mudará muito. No principio, a numerologia não se enquadrava perfeitamente, ainda que se tentasse. Porém nos séculos posteriores fizeram os números se enquadrarem.

6 - O texto do Novo Testamento foi transmitido de maneira apenas satisfatória Muita gente pensa que o texto do Novo Testamento é uma grande manipulação da igreja, a qual – movida por seus dogmas - há forçado os documentos primitivos a seu gosto e os há alterado de modo que o texto que hoje nos apresentam como sagrado se acomodara a sua ideologia, porém na realidade se trataria de um texto muito distante do que escreveram seus autores. Ou se pensa que é uma produção muito tardia, na realidade do século IV, em torno do Concilio de Niceia (325) uma vez que o cristianismo é considerado religião lícita depois do Edito de Milão do imperador Constantino (312) Estas ideias são absolutamente falsas desde o ponto de vista filológico e histórico. Em primeiro lugar, a igreja não possui o controle físico da imensa maioria dos manuscritos do Novo Testamento que se acham disseminados por todo o mundo: universidades, museus e outras instituições, absolutamente fora de seu controle. Segundo: o texto “padrão”, grego, do Novo Testamento não foi à igreja que o reconstruiu como tal, mas diversos grupos de especialistas, filólogos e historiadores, cuja mentalidade é de todo tipo e condição, desde crentes a agnósticos e não crentes.

Page 12: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

12

O texto “oficial” de hoje em dia, que já está pela 27ª edição com dezenas e dezenas de reimpressões e contínuas melhoras no aparato crítico de variantes, é realizado por uma equipe que em conjunto somam umas 50 pessoas em um Instituto da Universidade de Münster dedicado expressamente à crítica textual do Novo Testamento (Nestle-Aland, Novum Testamentum graece editio vegesima septima Editorial Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart. Reimp. de 1993). NÃO SE HÁ CONSERVADO OS ORIGINAIS (DENOMINADOS “AUTÓGRAFOS”) DOS DIVERSOS LIVROS DO NOVO TESTAMENTO, SOMENTE CÓPIAS. Se, se houvesse conservado a primeira edição de algum deles em alguma igreja ou depósito, bastaria consultá-la para ver em que se havia modificado cada cópia de seu modelo. PORÉM ISTO NÃO É POSSIVEL. Nosso único acesso ao texto primeiro é através de cópias mais ou menos próximas ao que saiu das mãos dos autores. Tenho repetido em muitas distintas ocasiões que existe um ramo da filologia que se ocupa expressamente de tais cópias, de estudá-las a fundo e do modo como através dela podemos nos aproximar o mais possível a esses originais perdidos. Esta ciência – como bem se sabe - se chama “crítica textual”, e sua missão é múltipla ainda que orientada a um único objetivo: apresentar, ou reproduzir por meio da imprensa, um texto seguido de um livro antigo, de modo que o leitor moderno tenha a segurança de que o que se lê parece o mais possível ao que saiu da mão do autor. Para conseguir este fim a crítica textual neotestamentaria tem efetuado desde o Renascimento, pouco a pouco, e com o trabalho de milhares de estudiosos, os processos seguintes: recolher, ordenar, e organizar os manuscritos em famílias de modo que seu imenso número seja manejável, em nosso caso do Novo Testamento; examinar onde se produziram erros ou alterações do texto e estudar o porquê das mesmas; avaliar as variantes que apresentam os manuscritos e deduzir qual delas se aproxima mais ao que se IMAGINA SER O ORIGINAL. Tudo isto se faz hoje em dia e creio que com notável êxito, de maneira que o texto grego do Novo Testamento que se imprime hoje, ainda que não seja igual ao que escreveram os autores originais, se parece muito com toda probabilidade. A crítica textual há reconstruído um texto do Novo Testamento bastante próximo dos “autógrafos”, normalmente de uns cem anos ou mais depois de que foram escritos. É quase seguro, em um caso ao menos, que a distancia é de pelo menos três ou quatro dezenas de anos entre os dois: a distancia que existe entre a data de composição e o papiro mais antigo. O Papiro 52 (P52) contém Jn 18,31-33.37-38. Os papirólogos estão de acordo que por seu modo de escritura foi copiado em torno de 125-130 D.C. Portanto, não chega a três decênios depois da composição do Quarto Evangelho. Agora bem, o texto apresentado pelo P52

Page 13: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

13

é sensivelmente igual ao que pode reconstruir-se por meio dos métodos científicos usuais. Este fato nos ratifica de que o texto que temos do Novo Testamento é confiável em linhas gerais. Disso se pode perceber como já disse em outras ocasiões, quão carentes de base são certas afirmações de hoje (por exemplo, no Código da Vinci) que sustentam que o texto dos Evangelhos foi reescrito, reelaborado e manipulado por completo no século IV depois da famosa “conversão” de Constantino, como acima dissemos. Segundo esta peregrina teoria, a igreja de acordo com as autoridades civis manipulou os textos com a ideia de fazer de Jesus (um simples homem segundo os primitivos textos evangélicos conservados até esse momento) um deus, de modo que o Império tivesse uma divindade única em que crer que servisse de aglutinante religioso para os habitantes tão diversos das províncias do Império. Uma estupidez. Se há, em minha opinião, um problema intelectual serio a respeito do texto grego do Novo Testamento. Trata-se de que a Igreja nunca definiu, nem mesmo no Concilio de Trento, qual é o texto exato, literal, do texto inspirado pelo Espírito Santo. Entre as mais de 200.000 variantes de peso do Novo Testamento (há umas 500.000 no total, mesmo que muitas delas sejam ortográficas) Quais representam o texto original? Dá-se o caso curioso, desde o ponto de vista católico, de que o Novo Testamento, hoje mais ampliado, sobre o qual se fazem 95% das traduções para línguas modernas, é confeccionado por uma maioria de investigadores protestantes. É o livro mencionado acima, do Instituto de Münster dedicado à crítica textual do Novo Testamento, Ademais, esta edição científica é um texto que muda (não muito, mas muda) de uma edição a outra. Entre as edições 26 e 27 as diferenças somam umas trinta. Que pensar deste fato? Para a imensa maioria de crentes e seus pastores espirituais esta instabilidade textual, este não saber qual é exatamente o texto sagrado, não constitui um problema. Argumenta-se que o que importa não é um texto “morto”, senão a palavra e a pessoa de Jesus que vive no interior de sua Igreja e no coração dos fieis. As linhas gerais estão claras, dizem; as minúcias não importam. Para uma minoria e para os não crentes, sem dúvida, sim, é um problema o FATO DE QUE A IGREJA SEJA INCAPAZ, pela mesma natureza das coisas e o avanço das técnicas de edição, DE DEFINIR QUAL É EXATAMENTE O TEXTO SAGRADO. AINDA QUE SE DIGA QUE A IGREJA VIVE NÃO DA LETRA IMPRESSA, MAS DA “PALAVRA VIVA”, O CERTO É QUE APELA CONTINUAMENTE A UM TEXTO ESCRITO. Não saber com exatidão qual é exatamente o teor desse texto escrito inspirado é um problema teológico ainda sem solução.

Page 14: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

14

Devemos aceitar de fato concreto, que filológica e historicamente falando: • Estão perdidos os originais do Novo Testamento • O texto reconstruído é no melhor dos casos dos anos 180-200: um século depois de sua escritura. • Nunca possuiremos o texto que muitas pessoas creem inspirado ou “soprado” literalmente pelo Espírito Santo, porque esse texto se transmitiu em copias de copias e sempre há variantes. • Na cristandade antiga não davam muita importância a uma transmissão do texto sagrado absolutamente exata, porque cada zona geográfica importante tinha seu próprio texto do Novo Testamento. E na imensa maioria as variantes não são de importância. Em uns 200 casos, sim e podem afetar o dogma.

7 - O Novo Testamento é uma obra de ideologia plural e escrita por desconhecidos, em sua maior parte. A pseudoepigrafia. O Novo Testamento é uma obra muito plural em sua ideologia: ao não ser um livro compacto, redigido por um autor único, mas uma conjunção de obras muito diferentes entre si em estilo, linguagem, gênero literário e propósito, o Novo Testamento contém em si e por si mesmo uma tensão constante entre a unidade e a diversidade. Um observador exterior e pouco respeitoso poderia estar tentado de qualificá-lo como um “baú de alfaiate” devido à diversidade de suas teologias, ainda que com algo em comum. Na realidade, como temos dito o Novo Testamento não é mais que o reflexo da diversidade do cristianismo primitivo, ainda que dentro de certa unidade, a saber, que seu núcleo é essencialmente paulino o compatível com o paulinismo. Por outro lado, esta diversidade se corresponde com a diversidade do judaísmo do qual se origina o cristianismo. A diversidade do Novo Testamento aparece refletida inclusive no gênero e estilo dos livros que compõem o Novo Testamento: • Há dentro deste corpos um livro que se pretende de historia, os Atos dos apóstolos; • Há “biografias” ao modo da época, como os evangelhos;

Page 15: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

15

• Há cartas apaixonadas e combativas, como a Epístola aos Gálatas, e outras mais teóricas como a dirigida aos Romanos; • Há outras cartas de muito pouca doutrina teológica e muito de exortação como a Epístola de Santiago, ou outras simplesmente polemicas como l de Judas. •Há partes de visões e revelações do futuro, como o Apocalipse de João, e. • Há finalmente outros escritos de variada textura que se apresentam normalmente como circulares a diversos grupos de cristão e que discutem tanto noções teológicas como problemas práticos: Epístolas Pastorais. Os autores, salvo um grupo de sete cartas que saíram da mesma mão, as autênticas de Paulo - todos do Novo Testamento são desconhecidos. A tradição, sobretudo a partir do século II, lhes atribuiu um nome. Porém nem mesmo esse nome é provável: por exemplo, Marcos como discípulo direto de Pedro, que comete erros incríveis de geografia palestina; Mateus como o publicano que segue a Jesus, porém que utiliza fontes anteriores a ele para compor seu evangelho; João, filho de Zebedeu como o discípulo que morre em 41, porem que é autor – segundo essa tradição - de obras escritas decênios mais tarde, como o Evangelho de João e o Apocalipse. Estas obras são na realidade anônimas. Outros autores do Novo Testamento, também desconhecidos, utilizam com todo propósito nomes falsos. É o fenômeno denominado pseudoepigrafía: como se sabe, pseudonímia ou pseudoepigrafía significa por o nome de outra pessoa (normalmente famosa) em uma obra literária escrita por outra (normalmente sem fama alguma). Este fenômeno literário era bastante comum na antiguidade e não é próprio só do cristianismo primitivo: conhecemos outros casos na antiguidade Greco-latina e egípcia (Wolganag Speyer, Die literarische Fälschungen in der Antike: “Las falsificaciones literarias en la antigüedad). Sem ir mais longe, a mesma Bíblia canônica atribui erroneamente grande parte do saltério ao rei Davi e toda a literatura sapiencial a Salomão, ainda que do primeiro não procedam em verdade mais que algumas composições e do último nada porque nem ao menos se sabe se é um personagem rigorosamente histórico. Igualmente, o Deuteronômio, posterior em vários séculos a Moisés, declara a este como seu autor. No grupo de escritos denominado Apócrifos do Antigo Testamento encontramos dezenas de exemplos, pois todos eles são pseudoepígrafos. Em todos estes casos a mais elementar crítica histórica, interna e externa, chega ao resultado de que tal autoria é falsa. Muitos detalhes do conteúdo destas obras nos indicam que estas obras não se encaixam com o mundo de seus pretendidos autores.

Page 16: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

16

Se o costume da pseudonímia estava tão expandida no mundo judeu e antigo em geral, não é estranho que no Novo Testamento, conjunto totalmente judaico, como temos dito, encontremos o mesmo fenômeno. Porém tal costume é verdadeiramente curioso para a mentalidade moderna. Por isso se tem tentado encontrar diversas explicações. A primeira e mais obvia seria aceitar simplesmente que estes autores enganavam conscientemente a seus leitores. Esta possibilidade está sempre aberta e ultimamente autores como José Montserrat tem insistido nela. Para este autor existem no Novo Testamento falsificações explícitas, ou seja, escritos cujo mesmo texto os atribui falsamente a um autor. Os verdadeiros e desconhecidos autores são, portanto, falsários. Exemplos: Evangelho de João. Cartas de Paulo a Timóteo I y II, e a Tito. Cartas de Santiago, Pedro I e II, Judas. Em minha opinião, sem dúvida, esta última hipótese é plausível, já que se pode fazer tudo com o propósito de propagar uma doutrina que se acredita verdadeira. Porem há também outras explicações psicologicamente também plausíveis que surgem quando se leem os escritos em questão e quando se penetra um pouco no espírito da gente da época. Sobretudo existe a explicação da assunção da personalidade de um mestre famoso por parte do discípulo. Na antiguidade se pensava que ambos podiam formar uma unidade espiritual e que o discípulo podia escrever em nome do mestre já falecido. É o que se há chamado uma “personalidade corporativa”. Esta teoria poderia ser verossímil para os autores de obras pseudônimas dentro do Novo Testamento. Estes poderiam sentir-se na realidade aparentados espiritualmente com o personagem ou mestre de época anterior (em nosso caso Paulo, ou outros apóstolos como Pedro, Santiago ou Judas), já que formava com eles quase uma mesma personalidade ideológica. Assim como Moisés havia podido repartir uma parte de seu espírito aos que haviam de suceder-lhe (Nm 11,25-30), e Eliseu se contentava com receber a “metade do espírito e poder de Elías” (2 Re 2,10), ou João, e Batista, haveria de “caminhar no espírito e poder de Elías” (Lc 1,17), os autores destas cartas do Novo Testamento se sentiam realmente possuidores e continuadores do mesmo Espírito que havia animado e impulsionado a seu glorioso predecessor e mestre, Paulo, Pedro, Santiago, etc. Não é de estranhar que creram ser intérpretes autorizados do que o apóstolo falecido haveria escrito e circunstancias posteriores. Com outras palavras: sua obra seria o que o apóstolo já morto haveria composto por haver vivido esses momentos. Os investigadores independentes parecem inclinar-se pela opinião de José Montserrat, a da enganação deliberada e consideram esta última ideia como uma posição ingênua por parte dos estudiosos.

Page 17: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

17

8 - A valorização da literatura pseudônima no Novo

Testamento. O Novo Testamento convida ao pluralismo A última teoria plausível do fenômeno da pseudonímia, tal como expomos na nota anterior, poderia levar-nos a pensar que os desconhecidos autores desta literatura “paulina” ou “apostólica” não eram profissionais da mentira nem sentiam remorsos de consciência ao escrever uma obra claramente falsa desde o ponto de vista de hoje.

Ainda que custe compreendê-lo hoje em dia, é possível que não pretendessem de maneira geral enganar positivamente a seus leitores – ou ao menos não sempre — forjando uma autoria que é claramente “falsa”, segundo nosso modo de julgar. Estavam convencidos de que o escrito que atribuíam a Paulo ou Pedro, por exemplo, se haviam composto no mesmo espírito dele, e podia se atribuir a ele. Por tanto, não se poderia julgar com critérios do século XXI, ou seja, empregar a dicotomia “falso/autentico” radicalmente — a este fenômeno literário da “pseudonímia”.

Mas para a crítica literária moderna ter consciência de que um escrito concreto não procede da mão de Paulo ou Pedro autênticos, senão que é uma obra pseudônima é um instrumento valiosíssimo que deve aproveitar para emitir um juízo específico sobre seu valor. Não é a mesma coisa uma carta autentica de Pablo que uma de seus seguidores. A constatação da não autoria paulina ajuda a estabelecer o desenvolvimento e a evolução da Grande Igreja, tanto em sua ideologia como em sua organização durante o tempo da composição do Novo testamento. Ao ser o Novo Testamento muito plural em sua ideologia, convida a pluralidade de cristianismos. Ao ser o Novo Testamento um conjunto de obras de enfoques diferentes, não é de estranhar que o leitor crítico detecte entre elas tensões e divergências teológicas, inclusive contradições. Cada obra, ou às vezes blocos de obras, apresentam sua própria opção ideológica. Assim, por exemplo, há um abismo entre a concepção da fé das Epístola aos gálatas e romanos e a da Epístola de Santiago; ou se percebem muitas diferenças, quase irrecuperáveis, entre as imagens de Jesus dos três primeiros evangelhos e a do Evangelho de João. Igualmente o pensamento sobre a Igreja, o matrimonio, ou o retorno de Jesus como messias e juiz final não é o mesmo nas cartas autenticas de Paulo e nas compostas em seu nome por seus discípulos (p. ex., as Epístolas Pastorais). O exemplo da criptologia é paradigmático e o temos exposto em outras ocasiões: se há algo serio, no que deveria haver unidade no Novo Testamento é como se concebe a Jesus como Cristo, como messias: desde quando tem

Page 18: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

18

essa função? Desde algum momento de sua vida terrena? Desde toda a eternidade? Pois bem, não há una cristologia unitária, e muito menos, no Novo Testamento, senão até contraditória ou incompatível uma com a outra. Resumimos: a evolução da criptologia foi rápida e impressionante: de Jesus, puro homem, se passou para a figura de um filho de Deus consubstancial e preexistente. A cristología mais elementar está representada no discurso de Pedro no primeiro Pentecostes, Hch 2,32. 36. Nesta concepção Jesus é durante sua vida um homem normal e só depois de sua morte e ressurreição por Deus é incorporado por Este ao âmbito do divino. O Evangelho de Marcos declara este momento de incorporação: no batismo a voz divina declara a Jesus “Filho de Deus”. Jesus não pertencia ao nível divino desde sua morte e ressurreição, mas antes, desde seu batismo. Os evangelhos de Mateus e Lucas recuam esta afirmação: Jesus é Filho de Deus desde sua concepção milagrosa: Mt 1-2 y Lc 1-2. O Evangelho de João recua ainda mais cronologicamente a divindade de Jesus: este é o Logos eterno que existe desde o principio. Esse Logos é Deus: Jn 1,1. O mesmo ocorre na ética. Um mero exemplo de duas concepções antagônicas distantes entre si uns poucos decênios, ou menos: a postura ante o matrimonio. Para Paulo, em 1 Cor 7, o matrimonio é um “mal menor”; melhor é casar-se que afundar-se na impureza; o Apóstolo não o condena, porém desejaria que “todos fossem celibatários como ele”, para livrar-se de incômodos problemas e para dedicar todo o tempo e energias ”as coisas do Senhor”. Porém afirma o contrário, nas epístolas deutero-paulinas, especialmente em Efésios se Le: “Os maridos devem amar a suas mulheres como a seu próprio corpo. O que ama a sua mulher, a si mesmo se ama,...” (5,28-32). E sobretudo 1 Tim 5,14: “Quero que as mulheres se casem, criem filhos…”

e também 1 Tim 2,15:

A diferença na mentalidade é máxima.

Ao Novo Testamento se pode aplicar também o que dizem os rabinos da Bíblia hebraica: “Setenta caras tem a Bíblia”. “A Bíblia é como uma cova de ladrões: nela cada um pode encontrar o que quiser”.

Page 19: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

19

Se algo indica a pluralidade do Novo Testamento é a pluralidade das confissões. Isso explica que segundo Goffrey Parrinder no ano 2000 havia no mundo umas 500 confissões ou denominações cristãs…, e isso que todas elas procediam muito provavelmente de um único tronco comum dentre os três possíveis, ou mais: a interpretação paulina da morte e ressurreição de um Jesus divinizado como expiação vicária e substituta que redime em potencia os pecados da humanidade inteira.

9 - O Novo Testamento é um livro de propaganda

Podemos dizer sem medo de errar que o primeiro corpo primitivo de escritos cristãos, o Novo Testamento, é uma obra de propaganda de uma fé. Por isso é correto afirmar que apresenta as coisas de modo que surja uma interpretação específica e não outra. Isto ocorre especialmente nos Evangelhos, mas também no resto dos escritos. Todos os seus textos estão redigidos de modo que atraiam, ou confirmem a fé cristã aos leitores potenciais. O Novo Testamento é sobre tudo uma manifestação de crenças, o testemunho e a proclamação delas. Por sua vez é uma exortação a aderir-se a esse conjunto de afirmações. Deste fato se deriva uma consequência importante: como testemunho de fé é bem possível que os fatos narrados nesses textos estejam vistos através das lentes dessa fé, o que implica certa distorção. Da aplicação dos métodos histórico-crítico modernos, do uso da metodologia da historia antiga com respeito aos textos neotestamentarios se deduz um entorno de interpretação deles - uma postura interpretativa do investigador – como a que ocorreria com qualquer outro texto que contém historias legadas pela Antiguidade. Indefectivelmente se propõe assim uma questão fundamental: podemos confiar historicamente nos textos do Novo Testamento? E especificamente a respeito de sua figura principal: podemos confiar nos Evangelhos enquanto historia? A resposta a esta pergunta é complexa, pois não só há que contrastar os dados dos Evangelhos entre si, e posteriormente com outros dados seguros da historia que os rodeia, estudar as “tendências” de composição de cada um, ou seja, sua teologia peculiar que pode leva-los a apresentar os fatos de uma maneira especial ou com uma óptica deformada. À luz de muitos séculos de investigação é mais que plausível que tenham tais tendências e que nós posamos detectá-las. A leitura pausada e crítica dos textos do Novo Testamento, e em particular dos evangelhos, deve por em guarda o leitor ante um uso espontâneo do material sobre Jesus contido nos textos transmitidos. É ilustrativo o aviso aos leitores de Günther Bornkamm, um sucessor de Rudolf Bultmann, em sua obra Jesus de Nazaré (5ª edición, 1996, Editorial Sígueme. Salamanca): Não possuímos nem uma única “frase” nem um só relato sobre Jesus – ainda

Page 20: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

20

que fosse autêntico —, que não contenha ao mesmo tempo a confissão de fé da comunidade crente, ou que ao menos não a implique. Isto deixa difícil ou inclusive leva ao fracasso a busca dos fatos brutos da historia (p. 15). É desejável, portanto uma postura prudente e uma leitura que vá mais além da mera superfície. O filólogo e historiador da antiguidade que se defronta com estes textos não deve adotar uma posição simplista de harmonização dos fatos e ideias contraditórias ou contrarias que perceba no Novo Testamento depois de uma leitura pausada, mas uma atitude de prudente crítica com o objetivo de reconstruir o pensamento original de cada autor e o porquê desse pensamento.

10 - Sobre as bíblias

Quase todas as bíblias atuais derivam destes dois textos:

a) A categoria das Bíblias baseadas no TR (Textus Receptus) e que

foram as únicas Bíblias usadas por todos os "protestantes" de todas as

igrejas de todas as denominações de todas as línguas de todos os países,

durante séculos e séculos.

Em Português, temos:

• Almeida 1681, 1753, 1819;

• Almeida Revista e Corrigida (particularmente até a edição 1948 pela

Trinitarian Bible Society), e, atualmente,

• Almeida Corrigida Fiel (da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil);

b) A categoria das Bíblias baseadas no TC (Texto Crítico) (cujo texto

grego omite/ adultera/ acrescenta mais de 10.000 palavras do Novo

Testamento (o TR), mais de 7% dele!). Estas bíblias somente começaram a

"pegar" no Brasil, aos poucos, a partir de 1968.

Temos:

• ARA - Almeida Revista e Atualizada

• AEC - Almeida Edição Contemporânea

• AMT - Almeida Melhores Textos

Page 21: NOVO TESTAMENTO VISTO POR UM FILÓLOGO

21

• BLH - Bíblia na Linguagem de Hoje, a Bíblia Viva

• NVI - Nova Versão Internacional

• Edição Novo Mundo (das Testemunhas de Jeová), etc.