Novos media, Velhas questões

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Novos media, Velhas questões Maria João Silveirinha * I A passagem da comunicação face-a-face para a comunicação mediada como forma de articulação das sociedades modernas impli- cou uma ampla e generalizada mediação das relações sociais. O que está agora em causa, numa análise da modernidade tardia, sobre- tudo após a afirmação da televisão, é a forma e a medida da extensão, pelos media, dessas mesmas relações sociais. Marshall McLuhan é, naturalmente, um dos pioneiros a explorar na teoria dos media uma crítica ao dualismo cartesiano da subjectivi- dade. Os media - em especial os electró- nicos - são extensões do nosso corpo - dos nossos membros, olhos, ouvidos, mãos e sis- tema nervoso - funcionando como suas ex- pansões (McLuhan, 1964). Como resultado das forças integradoras da televisão, tornou- se possível relembrar a unidade orgânica dos nossos sentidos. A humanidade pode ser de novo reunida numa nova comunidade, a ’al- deia global’. Contemporâneo de McLuhan, também Ha- rold Innis se ocupou das transformações ope- radas pelos diferentes media. Innis “reco- nheceu que a velocidade e distância da co- municação electrónica alargava a escala pos- sível da organização social e aumentava for- * Instituto de Estudos Jornalísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra temente as possibilidades de centralização e de imperialismo em questões de cultura e po- lítica” (Carey, 1989: 137). A história mo- derna ocidental começou com a organização temporal e terminou com a organização es- pacial; nas palavras de Carey, “é a história da evaporação de uma tradição oral e manus- crita e das preocupações com a comunidade, a moral e a metafísica, e da sua substitui- ção pelos media da imprensa e electrónicos, apoiando um forma de comunicação em di- recção ao espaço” (Carey, 1989: 160). Com efeito, as modernas tecnologias da comuni- cação - co- meçando com a imprensa e acelerando com os media electrónicos- cultivam uma ordem social estruturada com base no espaço. Con- trastando com as culturas orais como a Gré- cia clássica, que equilibravam tempo e es- paço, a nossa era é caracterizada por mobi- lidade e conquista. O resultado é uma negli- gência da continuidade cultural e o recolher da âncora do tempo. Innies dividiu os media em dois momentos, a que ele chama ’bias’: os ligados ao tempo (time-binding media) e os ligados ao espaço (space-binding media). Os primeiros, supor- tados pela cultura oral e pelo manuscrito, fa- voreceram a memória, o sentido da histó- ria, pequenas comunidades e formas tradi- cionais de poder. Os segundos, ligados ao espaço, como a imprensa e os media elec-

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Maria João Silveirinha

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Novos media, Velhas questões

Maria João Silveirinha∗

I

A passagem da comunicação face-a-facepara a comunicação mediada como forma dearticulação das sociedades modernas impli-cou uma ampla e generalizada mediação dasrelações sociais. O que está agora em causa,numa análise da modernidade tardia, sobre-tudo após a afirmação da televisão, é a formae a medida da extensão, pelos media, dessasmesmas relações sociais.Marshall McLuhan é, naturalmente, um dospioneiros a explorar na teoria dos media umacrítica ao dualismo cartesiano da subjectivi-dade. Os media - em especial os electró-nicos - são extensões do nosso corpo - dosnossos membros, olhos, ouvidos, mãos e sis-tema nervoso - funcionando como suas ex-pansões (McLuhan, 1964). Como resultadodas forças integradoras da televisão, tornou-se possível relembrar a unidade orgânica dosnossos sentidos. A humanidade pode ser denovo reunida numa nova comunidade, a ’al-deia global’.Contemporâneo de McLuhan, também Ha-rold Innis se ocupou das transformações ope-radas pelos diferentes media. Innis “reco-nheceu que a velocidade e distância da co-municação electrónica alargava a escala pos-sível da organização social e aumentava for-

∗Instituto de Estudos Jornalísticos da Faculdadede Letras da Universidade de Coimbra

temente as possibilidades de centralização ede imperialismo em questões de cultura e po-lítica” (Carey, 1989: 137). A história mo-derna ocidental começou com a organizaçãotemporal e terminou com a organização es-pacial; nas palavras de Carey, “é a históriada evaporação de uma tradição oral e manus-crita e das preocupações com a comunidade,a moral e a metafísica, e da sua substitui-ção pelos media da imprensa e electrónicos,apoiando um forma de comunicação em di-recção ao espaço” (Carey, 1989: 160). Comefeito, as modernas tecnologias da comuni-cação - co-meçando com a imprensa e acelerando comos media electrónicos- cultivam uma ordemsocial estruturada com base no espaço. Con-trastando com as culturas orais como a Gré-cia clássica, que equilibravam tempo e es-paço, a nossa era é caracterizada por mobi-lidade e conquista. O resultado é uma negli-gência da continuidade cultural e o recolherda âncora do tempo.Innies dividiu os media em dois momentos,a que ele chama ’bias’: os ligados ao tempo(time-binding media) e os ligados ao espaço(space-binding media). Os primeiros, supor-tados pela cultura oral e pelo manuscrito, fa-voreceram a memória, o sentido da histó-ria, pequenas comunidades e formas tradi-cionais de poder. Os segundos, ligados aoespaço, como a imprensa e os media elec-

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trónicos, têm que ver com expansão e con-trolo de um território (Innis, 1951). Nas pa-lavras de Carey, os media ligados ao espaço“favoreceram o estabelecimento do comerci-alismo, o império e eventualmente da tecno-cracia” (Carey, 1989: 134). Innis mostrava-se assim pessimista relativamente às mudan-ças nas tecnologias da informação. A culturaera varrida por um novo regime de tempo,estandardizado e linear, perdendo o seu mo-vimento cíclico e regenerador. O ’bias’ datecnologia que implicava o fim da culturano mundo moderno só podia ser contrariadopela tradição oral, pelo diálogo e pela discus-são democrática, bem como por uma partici-pação que escapasse ao controlo da modernatecnologia. O que isso significava era que“o apoio dessa tradição oral e o seu enrai-zamento nos enclaves culturais, exige que sepreservem e alarguem elementos de estabili-dade, que as comunidades de associação e osestilos de vida possam ser libertos da obso-lescência da mudança técnica” (Carey, 1989:135).Mas é em Joshua Meyrowitz que encontra-mos uma das expressões mais actualizadasdas ideias de McLuhan e Innis (Meyrowitz,1985). Revendo as suas teorias, ele conjugauma teoria dos media, da identidade e da co-munidade, a partir da ideia de que esta últimafoi afectada pela erosão gerada pelos mediaelectrónicos, mudando as relações sociais e aidentidade. Tal como os seus predecessores,Meyrowitz defende que a introdução de umnovo medium reestrutura o mundo social,as interacções e consequentemente a identi-dade. As fronteiras das identidades sociaisconstituídas pela comunicação escrita e porredes de informação especializada tornam-seagora mais fluídas, menos delimitadas, so-bretudo por causa do seu impacto sobre a

presença física: “Embora as culturas orais ede imprensa difiram muito, o laço entre o lu-gar físico e o lugar social era comum a am-bas. A imprensa, como todos os novos me-dia, mudou os esquemas da informação de epara os lugares. Em consequência, mudoutambém o status relativo e o poder dos queestavam em diferentes lugares. As mudan-ças nos media no passado sempre afectarama informação que as pessoas trazem para oslugares e que têm nos lugares. Mas a rela-ção entre o lugar e a situação social era aindabastante forte. Os media electrónicos vãomais longe: levam à quase total dissociaçãoentre lugar físico e ’lugar’ social. Quandocomunicamos pelo telefone, radio, televisãoou computador, onde estamos fisicamentepresentes já não determina onde e quem so-mos socialmente” (Meyrowitz, 1985: 115).Em geral a imprensa, além de exigir algumanecessidade da presença física (as notícias deum jornal chegavam sem haver necessidadede estar no lugar, mas chegavam atrasadas,de forma não actualizada), tende também asegregar o que pessoas de diferentes idades,sexos e status sabem relativamente umas àsoutras, enquanto que nos media electrónicos,em especial na televisão, o local físico já nãoé importante. Já não é preciso estar num de-terminado lugar para ter acesso à informa-ção. Podemos agora “presenciar os acon-tecimentos”, experienciá-los, sem uma pre-sença física e podemos comunicar directa-mente sem nos tocarmos, já que o espaço fí-sico não é necessário para ter acesso à infor-mação. Neste sentido, a televisão e os outrosmedia electrónicos são transformadores es-pecialmente potentes dos papéis sociais, umavez que alteram a relação entre o lugar físicoe o lugar social, entre onde estamos e aquiloque experienciamos.

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McLuhan, Innis, Meyrowitz são autores quese centram sobretudo na televisão, um ’ve-lho medium’, se assim quisermos, por con-traposição aos ’novos media’ deste início deséculo. Haverá neles algo de novo, ou pelomenos de radicalização dos velhos media?Para responder a esta pergunta podemos par-tir das características das sociedades con-temporâneas que indicam uma mudança naforma como as pessoas comunicam e se rela-cionam. Há já quase um século, Cooley ten-tou explicar a mudança social na moderni-dade causada por uma maciça expansão des-tas relações sociais indirectas operadas pe-los avanços da tecnologia (Cooley, 1956). Aprevalência de relações indirectas, mediadas,sobre as directas, face-a-face, típicas das pri-meiras sociedades, é precisamente uma ca-racterística constitutiva das sociedades mo-dernas. Com efeito, as relações directas dassociedades pré-modernas di-ferenciavam-se em ’primárias’ - as pessoasrelacionavam-se sobretudo como actores depapéis sociais específicos - e ’secundárias’- as que envolviam as próprias pessoas nasinstituições públicas e na participação polí-tica. Na mesma linha, Calhoun estende es-tes conceitos das relações indirectas ao quechama relações ’terciárias’ e ’quaternárias’(Calhoun, 1992: 218). As relações terciá-rias não precisam de envolver co-presençafísica, podendo ser mediadas por máquinas,por correspondência ou por outras pessoas,mas as partes têm de ter consciência da re-lação que se estabelece. São seus exem-plos as operações bancárias à distância ouas transacções do comércio electrónico en-tre clientes e pessoal e os contactos dos ci-dadãos com os seus representantes políticosmediados por uma série de diferentes meios.No entanto, “as relações mantêm um ele-

vado grau de reconhecimento e intenciona-lidade; cada uma das partes pode (pelo me-nos em princípio) identificar o outro e a pró-pria relação é manifesta” (Calhoun, 1992:219). É precisamente isto que as distinguedas ’relações quaternárias’ que “acontecemfora da atenção e, geralmente, da consciên-cia de pelo menos uma das partes” (Calhoun,1992: 219). São seus exemplos os produtosde vigilância, do controlo das acções de pes-soas por escutas telefónicas ou por intercep-ção num banco de dados de computador.O que Calhoun deduz desta análise parece-nos particularmente importante quando pen-samos nos media em geral e nos chamados’novos media’ ou ’novas tecnologias de in-formação’ em particular: embora elas mul-tipliquem as relações sociais indirectas, nãoé óbvio que contribuam para a realização daintegração social. As tecnologias da comu-nicação podem “organizar mais a vida so-cial por relações indirectas, estender o poderde vários actores corporativos, coordenar aacção social a uma escala maior, ou inten-sificar o controlo dentro de relações especí-ficas” (Calhoun, 1992: 221). Falamos, as-sim, de um conjunto de ’efeitos’ contraditó-rios que parecem radicalizar a sempre pre-sente ambivalência dos media. As questõescolocadas quer à sociabilidade, quer à pró-pria identidade nestes novos media não sãotanto de uma ordem diferente dos ’velhosmedia’ (embora admitidamente o sejam emalguns aspectos) como parecem exponenciaras zonas-limite da comunicação face-a-facee da comunicação mediada, gerando zonasde sobreposição que contêm traços de cadauma delas produzindo, assim, uma nova so-ciabilidade que se não limita à soma das duasanteriores.Para uma breve análise da questão temos, an-

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tes de mais, de nos situar num novo espaço,o ciberespaço, por oposição ao espaço carte-siano. Esta é uma mudança profunda - se osmedia tradicionais começaram a operar umaforte desterritorialização, os ’no-vos media’ têm por base um domínio públicogerado por computador que não tem fron-teiras territoriais ou atributos físicos. Nestecontexto, surgem-nos como media atravésdos quais podemos explorar conceitos comoos de supressão das fronteiras territoriais, no-vos sentidos de comunidade e transcendên-cia das subjugações físicas da identidade. E,na medida em que tal implica redefinir anossa compreensão das fronteiras do sujeitoe da sociabilidade, esta mudança também sereflecte na própria condição da democracia.Os lugares desta nova sociabilidade são osgrupos de discussão, os chamados MUDS(Multi-User Dimensions), as suas variantesMOOs (Multi-user Object Oriented), espa-ços de conversação ou ’chat rooms’ (InternetRelay Channels), e outras redes interactivas.Estamos no domínio do que Poster chamaa ’segunda era dos media’ que, assentandono modo da informação (sobretudo na suaforma de comunicação mediada por compu-tador) e na pós-modernidade, instaura umaforma de compreensão do sujeito totalmentenova: “o modo de informação põe em mar-cha uma radical configuração da linguagem,constituindo os sujeitos fora do esquema doindivíduo autónomo e racional. Este sujeitomoderno familiar é deslocado pelo modo dainformação em favor de um sujeito múlti-plo, disseminado e descentrado, continua-mente interpelado com uma identidade ins-tável” (Poster, 1995: 57).O que está em causa é o facto de a comuni-cação mediada por computador constituir umespaço social onde os sujeitos interagem re-

criando as suas identidades, inventando no-vas personagens. Embora estes tipos de pro-cessos de gestão da identidade sejam comunsa todas as práticas discursivas dos mass me-dia, Poster defende que ela implica uma pro-funda transformação do sujeito no ambientemulti e hiper-media do ciberespaço.O domínio da ’segunda era dos media’ é o ci-berespaço, que serve de plano de articulaçãoa um conjunto de teóricos que, defendendoo seu forte potencial de gerar comunidades,podemos designar por ciber-comunitários,por oposição aos comunitários clássicos quese baseiam no espaço cartesiano. Se os jor-nais, aquando do seu aparecimento tiveramum forte impacto sobre a relação desde sem-pre estabelecida entre a política e a comuni-dade, é sobretudo no século XX que os me-dia - da rádio e televisão aos novos ’media’ -acentuam de uma forma mais poderosa esseimpacto sobre a dimensão territorial da acti-vidade política (Calhoun, 1998).Esse impacto passa também pela reconfi-guração das identidades, das relações soci-ais e dos sentidos de comunidade que pa-recem destabilizados e reconfigurados pelasnovas formas de espaço operadas pelos me-dia. Nessas reconfigurações há, no entanto,uma certa nostalgia da comunidade e dostempos em que a ordem social e pública flo-resciam por contraste com as actuais formasde relação mais pobres e caóticas, comumaos comunitários clássicos e virtuais. De for-mas diferentes, parece subjazer a uns e a ou-tros um desejo de formular formas mais ri-cas de nos experienciarmos na relação comos outros, ainda que livres dos aspectos maisrestritivos da comunidade tradicional. Naspalavras de Michele Wilson: “parece plau-sível que a fome de comunidade, que é evi-dente na pós-modernidade, é em parte accio-

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nada pela experiência e pelas ramificações deser um ’indivíduo’ dentro de uma sociedadeorganizada. Como tal, é interessante quehaja semelhanças entre as direcções toma-das pelas teorias da comunidade formuladasdentro e fora da área tecnológica” (Wilson,1997: 645). Para os comunitários virtuaissão as tecnologias da comunicação, que sur-gem - depois de durante uma boa parte do sé-culo terem representado precisamente aquiloque nos afastava impondo a sua unidirecci-onalidade - como a solução para os proble-mas de sociabilidade e para o desejo de estarem comunidade oferecendo a possibilidadede criar comunidades virtuais. Na transposi-ção da comunidade clássica para a virtual, noentanto, muito muda nos discursos. O novocontexto implica habitualmente que, mais doque reencarnar uma velha arena, temos umcontexto inteiramente novo, que abre possi-bilidades totalmente novas, quer para a cria-ção de comunidades quer, por extensão, paraa criação de novas identidades (Parrish, R.). Com poucas excepções1, a questão de se acomunidade pode sequer existir no ciberes-paço nem sequer é questionada e muitos dosdiscursos são caracterizados por uma mal-disfarçada euforia sobre os potenciais de li-bertação e de emancipação que estas comu-nidades, pelas suas características, revelamface às comunidades tradicionais.2

Experienciadas pela mediação tecnológica

1Richard Parrish constitui, sem dúvida, uma ex-cepção. Claramente um ’comunitário virtual’, pro-cura, no entanto, encontrar os terrenos comuns e dife-rentes da comunidade tradicional e virtual.

2Howard Rheingold foi pioneiro em defender quea comunicação mediada por computador nos permiteuma vez mais desenvolver verdadeira vida em co-munidade: “Suspeito que uma das explicações paraeste fenómeno é a fome de comunidade que cresce nopeito das pessoas por todo o mundo à medida que cada

na Internet ou mesmo por tecnologias de re-alidade virtual, são-nos apresentadas novasformas de sociabilidade, com todas as poten-cialidades positivas das antigas comunidade,nomeadamente o sentido relacional e de pro-ximidade com os outros, a contraposição àsolidão e incompreensão da vida quotidiana,acrescidas dos seus sentidos pós-modernos:a libertação da identidade física, do corpo,do espaço e mesmo do tempo. Assim liber-tos, estabelece-se a capacidade de nos relaci-onarmos, com uma facilidade crescente, comum número cada vez maior de pessoas, ali-mentando um determinado sentido de vidacolectiva. Das comunidades tradicionais ’denascimento’, fundadas numa história parti-lhada, território e herança cultural, podemosagora proceder mais livremente a uma mu-dança para comunidades organizadas e frag-mentadas por ’interesse’. Nelas, é o nossosentido identitário que sofre uma profundamudança: precisamente pela ausência dessasrestrições, pela ausência de estruturas sociaisexternas, podemo-nos reinventar, criar iden-tidades múltiplas a nosso bel-prazer, cultivara multiplicidade do nosso ser, cultivar a dife-rença do que somos, do que gostaríamos deser, das expectativas que acreditamos que segeram a partir de nós.No pensamento associado aos novos mediaestá de tal forma subjacente uma ideia decomunidade que David Porter escreve que“a comunidade virtual está certamente entreas frases mais usadas e talvez mais abusa-das na literatura sobre comunicação mediadapor computador” (Porter, 1996: 5). O alvoda sua atenção é Howard Rheingold, paraquem “as comunidades virtuais são agrega-

vez mais espaços públicos informais desaparecem dasnossas vidas reais” (Rheingold, 1993: 5).

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ções sociais que emergem da Rede quandoum número suficiente de pessoas têm discus-sões públicas durante tempo suficiente, comsuficiente sentimento humano, para formarteias de relações pessoais no ciberespaço”(Rheingold, H., 1993: 5).3 Para além dosproblemas de saber o que significa este ’su-ficiente’ - portanto de se tratar de uma defi-nição vaga, ainda que, como diz Porter, nãoreclame grande rigor de definição - interessa-nos sobretudo como a definição não tem umadimensão espacial nem um referente físicocomo o corpo dos inter-actuantes. É en-tão esta ausência que faz do ciberespaço,como diz Michele Willson, o “epíteto de umaforma de comunidade pós-moderna em que amultiplicidade do sujeito é realçada e a dife-rença prolifera, liberta das estruturas sociais,externas” (Wilson, 1997: 647). Torna-se,portanto, necessário avaliar as consequên-cias de uma “retirada da comunidade de umaarena política e social contextualizada no es-paço físico, para se tornar ou uma abstracçãofilosófica ou uma interacção permitida pelaacção da tecnologia [onde] uma preocupaçãoética ou política pelo Outro se torna impo-tente e irrealizável” (Wilson, 1997: 647).Como atrás se disse, a esta reconfiguraçãoda comunidade está também associada umareconfiguração da identidade. Sherry Turkleé das autoras que mais tem defendido a In-

3Rheingold foca a sua análise numa comunidadeparticular chamada, a W.E.L.L. baseada na área daBaía de Francisco. Os utilizadores do W.E.L.L.(Whole Earth ’Letronic Link) podem ser vistos comouma amostra da sociedade mais vasta porque mostramo potencial de uma comunidade baseada em compu-tador na formação um grupo social mutuamente de-pendente, firmemente aderente dentro e fora do ci-berespaço. Com efeito, os participantes do WELLencontram-se frequentemente no ambiente físico emreuniões sociais face-a-face.

ternet como um lugar de identidades múlti-plas, fronteiras de género fluidas, e renegoci-ações activas da identidade, particularmenteno contexto das comunidades virtuais. Daperspectiva da identidade pessoal e da psico-logia social, as novas tecnologias oferecemuma série de possibilidades de jogo e trans-formação.O que está em causa é a definição de umcontraponto entre uma noção tradicional de’sujeito’ que parece ser uma definição psi-cológica, e a difusão pós-moderna do su-jeito como não-localizado e não necessaria-mente encarnado: “Na história da constru-ção da identidade na cultura de simulação,as experiências na Internet ocupam um lugarde destaque, mas essas experiências só po-dem ser entendidas como parte de um con-texto cultural mais vasto. Esse contexto éa história da erosão das fronteiras entre oreal e o virtual, o animado e o inanimado,o eu unitário e o eu múltiplo, que está aocorrer tanto nos domínios da investigaçãocientífica de ponta, como nos padrões davida quotidiana. Desde cientistas que tentamcriar formas de vida artificial até crianças’metamorfeseando-se’ numa série de perso-nagens virtuais, irão deparar-se-nos numero-sas evidências de alterações fundamentais namaneira como criamos e vivemos a identi-dade humana. Todavia, é na Internet queas nossas confrontações com os aspectos datecnologia, que ferem a nossa concepção deidentidade humana, são mais acesas, cruasaté. Nas comunidades em tempo real do ci-berespaço, encontramo-nos no limiar entre oreal e o virtual, inseguros da nossa posição,inventando-nos a nós mesmos à medida queprogredimos” (Turkle, 1997: 12-13).Nestes comentários, as comunidades virtuaise a Internet surgem como uma esfera pró-

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pria, à qual os sistemas de género do ’mundoreal’ já não se aplicam, e onde, ao abando-nar o corpo quando se entra neles, nos tor-namos livres de assumir e descartar à von-tade identidades diferentes. Estas visões en-tusiásticas baseiam-se sobretudo nas práticasonline, mas também as próprias redes de in-formação são vistas como emancipadoras, erevolucionárias.Turkle mostra como as realidades virtuaissociais proporcionam um campo propício deexperimentação da própria identidade, ques-tionando a ideia da sua unidade, podendoarticular-se de uma forma heterogénea, múl-tipla e mista, nunca antes possível. Nabase desta experiência está um novo con-texto em que um número crescente de indi-víduos constrói a sua identidade. O ’sujeito’corresponde agora às múltiplas janelas quese abrem na tela de computador; o Windowstorna-se uma metáfora para pensar no sujeitocomo um sistema múltiplo, distribuído, dizTurkle. Qualquer barreira do tipo idade, sexoe emprego pode ser quebrada.O núcleo de todas estas potencialidadesestá na possibilidade de experimentação comidentidades diferentes: as troca de género, asprática de reivindicar ser do género oposto,a mudança de raça, de idade, etc.. É o queRichard Parrish chama a ’fluência da identi-dade’, uma experiência que ele vê como po-tencialmente rica (Parrish). Quando um indi-víduo entra numa comunidade virtual, os ou-tros membros não sabem nada de si exceptoo seu nome provável e qualquer informaçãoque ele deseje dar, o que lhe permite reinven-tar a sua identidade. O que pode ficar de forada’apresentação do Eu’, neste contexto, são to-dos os atributos ’não-escolhidos’ do sujeito:a sua raça, o seu género, a sua identidade,

enfim, todas as suas características físicas,remetendo para um total anonimato. Nessesentido, o resultado é uma muito maior fle-xibilidade do sujeito, na sua capacidade deincluir dimensões diferentes e mesmo con-traditórias, na sua capacidade para organizarum espaço transitivo como uma tela de com-putador.4

A possibilidade de alimentar uma identidadecontinuamente enriquecida e multi-facetada,que não pode ser reduzida a parâmetros sim-ples, significa que, em princípio, deveria sermais difícil e menos aceitável, discriminarcom base em critérios-padrão ou em per-fis automatizados. Tal implica o reconheci-mento de que todos os sujeitos são únicos,rejeitando por conseguinte a estigmatizaçãosocial que tenha por base o fracasso em seconformar às características de uma maio-ria hipotética. Da mesma forma, a opçãode se manter anónimo (com uma assinaturaou pseudónimo digital), ou mesmo de criara sua própria personalidade (sujeito virtual),parece sugerir um potencial de maior comu-nicação não-constrangida. No entanto, vá-rias questões se colocam a este mundo depossibilidades e promessas. Por um lado,parece claro que, para que haja cibersociali-dade, é precisa alguma noção de participaçãoentre aqueles que reconhecem as identidadesuns dos outros e não simplesmente os seusinteresses ou propriedades partilhadas. Ao

4Não deixamos de nos interrogar, no entanto, setambém isto não é marcado pelo tempo e decorrentede um determinado estado da tecnologia. À medidaque for cada vez mais simples a transmissão de dadosde som e imagem, parece plausível prever que a co-municação por computador se proceda ’face-a-face’,sem a mediação de um teclado. Nessa altura, muitasdestas possibilidades deixarão de ser tão comuns paravoltar a ser substituídas pela interacção goffmaniana.

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contrário de uma visão pós-moderna que co-loca nas estruturas discursivas toda a criaçãodo sujeito, afirmar a sociabilidade do cibe-respaço é afirmar o reconhecimento. Nessesentido, para que haja sociabilidade, a iden-tidade no ciberespaço tem de ter algo de ’es-pesso’ e não ser simplesmente flutuante eisolada - não pode existir num vácuo sociale depende de os outros a compreenderem,construindo-se pela interacção.

II

Mesmo do ponto de vista da criação de co-munidades, na maioria dos exemplos de inte-racção pessoal em grupos de discussão elec-trónicos não encontramos, normalmente, al-gumas das exigências associadas à ideia decomunidade. Além disso, os exemplos dasredes de comunidade como a WELL, na BayArea ou em Santa Mónica, sugerem que asredes virtuais operam melhor quando sãoapoiadas por redes sociais reais de comuni-dades especificamente localizadas.O próprio medium não facilita o conheci-mento de outros na multiplicidade das suasdiferentes identidades tanto quanto permitea segmentação em torno de grupos de inte-resse e normalmente sustenta melhor inte-racções diádicas ou quando muito triádicas(Calhoun, 1992: 380). Naturalmente que sepode pertencer a mais que uma ’comunidadede interesse’, transversalmente, mas a ten-dência é para a fragmentação. A identidadetorna-se então o limite da distância de al-guém comprometendo a própria acção colec-tiva. Como diz Wilson, “ainda que as comu-nidades virtuais possam ser interactivas, elasnão exigem compromisso físico (para alémdo teclado) ou uma extensão moral, políticaou social para além da rede. Dos que usam

a Internet e as comunidades virtuais só umapercentagem participa activamente. O restofunciona a partir de uma posição ’voyeurista’semelhante ao ver televisão” (Wilson, 1997:650). O que lhes falta, então, é a dimensãoética de compromisso para com o Outro - aúnica forma de agir em comum.Não são estas, naturalmente, as leituras tipi-camente pós-modernas da identidade subs-critas, por exemplo, por Mark Poster. Nocontexto da ’segunda era dos media’ talcomo ele o define, no entanto, não é muitoclaro como pode ocorrer o processo de trans-formação e mudança social (que implica, na-turalmente, um conceito de autonomia raci-onal). Se a identidade desaparece por detrásdo medium, se não se torna possível contes-tar as relações de dominação (de raça, se-xuais, patriarcais ou outras) que são trans-portadas para a comunicação on-line, a nãoser por uma retirada individual dos espaçosvirtuais de opressão, então ficamos apenascom um mundo de possibilidade de articu-lação que não são mais do que variáveis numcomplexo cruzamento de tecnologia, infor-mação e poder. Parecem pois bem pertinen-tes as palavras de Wilson: “interrogo-me senos estamos a tornar viciados sensoriais per-petuamente à procura de novas experiências;isto é, se esta busca de estímulo constantee aparentemente superficial está a conduzirà promoção de uma gratificação instantâneaà custa de uma compreensão e investigaçãomais envolvida, mais complexa e mais signi-ficativa” (Wilson, 1997: 649).As roturas com as “velhas” formas de soci-abilidade não parecem assim tão possíveis.Na verdade, há problemas que agora reapa-recem de uma forma mais intensa. Questõescomo a mentira, o engano, o anonimato, atónica na diversidade mais do que na uni-

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dade, colocam sérios obstáculos à possibi-lidade de encontramos uma área de concor-dância e de acção comum ou um espaço deliberdade para a constituição de nós própriose das nossas relações. A lembrar as difi-culdades da transformação das relações hu-manas nas novas tecnologias e a sua dificul-dade de adaptação ao estatuto normativo do’discurso racional’ tão essencial em qualquerexplicação tomada de decisão política estãotambém trabalhos como os de Susan Herringque argumenta que os homens dominam nociber-espaço: falam mais, orientam as esco-lhas de tópicos, e o seu estilo de comunica-ção foi codificado em regras de etiqueta naInternet (Netiquette) (Herring, 1996).Por estas razões, embora reconhecendo quea comunicação mediada por computador fa-cilita certamente tanto a experimentação denovas sociabilidades como a participaçãopolítica e social pela manutenção de redesface-a-face dispersas, pelo desenvolvimentodos “enclaves socio-espaciais” e culturais, epelo apoio não só comunicacional mas tam-bém logístico à actividade dos grupos de in-teresse, a sua contribuição para a criação denovos tipos de comunidades e para a expan-são de novas práticas democráticas baseadasem princípios de discursividade está longe deser clara.5 Libertadora ou ameaçadora, a am-biguidade da identidade na comunicação me-diada por computador e os desempenhos quenela ocorrem colocam de novo velhas preo-cupações para uma versão em-linha do de-bate público baseado na autenticidade pes-soal e na busca um consenso estável.Aqui temos portanto a grande ambivalênciadestas novas formas de comunicação. As

5Esta é também a posição de Calhoun. (Calhoun,C., 1992: 383-385).

comunidades virtuais, frequentemente apre-sentadas como novas e excitantes formas decomunidade - que libertam o indivíduo dosconstrangimentos sociais da identidade cor-poral e das restrições de espaço geográfico,que igualam pela eliminação das estruturasda identidade e que promovem um sentidode ligação (ou fraternidade) entre participan-tes interactivos, para se constituírem comouma base sólida no sentido de uma iden-tidade minimamente coerente, precisam deuma dimensão ética que nem sempre é apa-rente. Numa interacção dominada de novopela ’conversação’, pelo contacto pessoa-a-pessoa, pela partilha de interesses privados,não é certo que se gira um ’bem comum’ -ainda que os exemplos de solidariedade acci-onados pelos novos media sejam frequentes- ou que a identidade ’jogada’ nessa interac-ção tenha continuidade no off-line.Isto, porém, não é negar a importância daRede como uma nova forma de mediação.Mesmo apesar da sua ainda relativa repre-sentação, é fundamental dar conta da suaemergência nas sociedades contemporâneas,no mundo da vida, como no mundo dos siste-mas, e começar a concebê-la como uma ma-triz referente a um conjunto imenso de po-sições e nódulos interligados por caminhosem acelerada mudança. A rede é um me-dium simultâneo de circulação de bens e ca-pitais privados (na verdade, a forma principalda Rede) e de comunicação, fundindo no seuinterior vários media. É isso que torna difí-cil formular respostas relativamente às suasconsequências para a sociedade e para o indi-víduo. Mesmo sem pretender cair num paté-tico e ingénuo romantismo acerca das possi-bilidades libertadoras dos novos media, nãoé tão-pouco possível deixar de reconhecerque é a sua natureza complexa que produz

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ambiguidades e realça as maiores ambivalên-cias da modernidade. Independentemente daperspectiva de sociabilidade adoptada rela-tivamente às novas formas de comunicaçãomediada podemos dizer, com David Lyon,que “até que ponto serão consequentes, de-penderá de como a subjectividade e o sig-nificado serão adoptadas dentro delas. E,para serem politicamente consequentes, ha-veria que pensar as questões do acesso, par-ticipação e coordenação. A mudança de umsujeito centrado ou da racionalidade predo-minante não tem que conduzir a um sujeitoem desaparecimento ou a um sujeito irracio-nal” (Lyon, 1997: 36).6 Mais uma vez, por-tanto, se torna necessário pensarmos as di-mensões ético-políticas da comunicação me-diada.Será bom recordar que os mass media sur-gem dentro de uma longa tradição de pen-samento político sobre a participação cívica.Esta, em termos democráticos, pressupunhagarantias de liberdade de discurso e de im-prensa. Por isso, a esfera pública liberal,desde o seu começo, assume-se como pri-meiro suporte do exercício público da razão.O modo de funcionamento interno deste pú-blico baseia-se na ideia de igualdade do esta-

6Contrastando teóricos da modernidade como Ca-lhoun (a quem chama ’sociólogo relutante da mo-dernidade’) com teóricos da pós-modernidade comoMark Poster, Lyon discute a natureza das relaçõessociais indirectas modificadas durante a mudança damodernidade (exemplificada pela ’corporação’) paraa pós-modernidade e as diferenças radicais causadaspelo advento das novas tecnologias como o aumentode relações sociais remotas, ainda que pessoais e in-directas, a emergência das relações sociais indirec-tas e a emergência das relações virtuais e vigilânciaelectrónica. A sua proposta é de integração das duasperspectivas, entendidas como complementares e nãoconcorrentes.

tuto, outorgada pela paridade na argumenta-ção. O espaço público democrático projecta,pois, um ideal: todos têm igualmente acessoà palavra, isto é, todos se podem transformarem membros de um público.É neste sentido que, desde a invenção daimprensa, os media estiveram associados àideia de democracia: não só porque a ideiade liberdade e independência de comunica-ção sempre alimentaram o ideal de espaçopúblico, mas porque essa mesma liberdadeera a melhor expressão dos ideais democrá-ticos. No entanto, a possibilidade de re-alização deste ideal é hoje, mais do quenunca, fortemente contestada, face à cons-tatação de que a suposta integração entre osmedia e a política remete, afinal, para umaespécie de relação de forças entre eles, daqual o sujeito está, em grande parte, arre-dado. Nesse desencanto, a recente difusãoda Internet e da comunicação mediada porcomputador revela-se aparentemente comouma nova oportunidade (na medida em queas anteriores se teriam perdido) de integrar aparticipação cívica dos cidadãos. Perante ofracasso dos ’velhos’ media concretizarem oideal democrático, ele regressa, agora atra-vés da possibilidade de os ’novos’ media(re)constituírem, em estreita aliança com ademocracia, um fórum público para comuni-cação e debate racional.Os ’novos media’ dão, assim, origem a no-vas teses sobre um acesso potencialmentemuito mais democrático, afirmando que adifusão das novas tecnologias da informa-ção, isto é, a multiplicação de canais opa-cos à visão dos poderes políticos, permiti-ria criar rapidamente novos espaços de liber-dade onde a interferência estatal não seriapossível. Articular-se-ia, assim, uma socie-dade civil mais e melhor vertebrada em torno

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de valores que, à primeira vista, não apare-cem impostos de uma forma autoritária. Te-mos pois que os novos media, ressurgem as-sim, como outrora, como elemento decisivona articulação da democracia, mas a transpo-sição do seu potencial democratizador não étão linear quanto estes autores parecem que-rer afirmar.É fácil perceber que são as próprias carac-terísticas da Internet e dos fóruns em-linhaque reavivam os ideias democráticos de umasociedade baseada na interacção face-a-face.Essas características parecem reaproximar adiscussão política dos lugares tradicionaisde discussão pública, por uma comunica-ção aparentemente mais personalizada, maispróxima, menos anónima, menos mass-me-diada (no sentido que os media electrónicossuscitavam) e sobretudo, com um maior po-tencial de interactividade. Aparentemente,que-bra-se, assim, finalmente, a comunicação dosmedia tradicionais, uma comunicação diri-gida num só sentido, em que os receptorespouca ou nenhum capacidade tinham de res-posta, a não ser a de se verem transforma-dos em números supostamente indicadoresdas suas preferências. Os novos media sur-gem como a superação das suas formas ante-riores, numa modalidade superior e mais efi-caz, permitindo uma nova relação entre indi-víduos e comunidades, e entre estas e a polí-tica.Muitas são, pois, as promessas de emanci-pação. Parece haver todo um discurso quedifunde que o crescente impacto das novastecnologias não só está a determinar o sur-gimento de novos paradigmas de organiza-ção da vida social, como, ao mesmo tempo,a favorecer a secundarização do papel do Es-tado. São discursos que, à luz destas trans-

formações, articulam conceitos diversos e di-fusos previsivelmente com o prefixo ’ciber’ou ’E’: “ciberdemocracia”, “ciberocracia”, e“E-política”, etc., sem que se saiba exacta-mente de que estamos a falar. O potencial li-bertador das redes globais de informação, emligação com as novas formas de organizaçãoda vida social promovidas pela incorporaçãomaciça das novas tecnologias aos processosprodutivos, anima alguns a sonhar com sis-temas sociais e políticos senão inteiramentebaseados, pelo menos estruturados, por inte-racções electrónicas entre os indivíduos: sãoas teses do que poderíamos chamar, com Lu-ciano Floridi, a ’Brave.Net.World’ (Floridi,1996).Mas, na verdade, nem tudo são promessas deemenacipação. Uma grande parte da litera-tura sobre a nova comunicação mediada porcomputador parece surgir-nos, aliás, comouma escolha bem delimitada entre futurosutópicos e distópicos, entre futuros de umamaior democracia, liberdade de discurso eindividualismo (a aldeia global electrónica) ea presença de tecnologias que hão-de, final-mente, sobrepor-se ao homem, destruindo asua humanidade, permitindo regimes de vi-gilância e controlo que só poderão conduzira um novo totalitarismo.Do lado distópico surgem, antes de mais,preocupações com o próprio constrangi-mento do recurso: o acesso à comunicaçãomediada por computador é, pelo menos porenquanto, fortemente correlacionado com aclasse e o status, um argumento que recordaque, pelo menos a esse nível, ela parece re-flectir e reforçar a desigualdade, em vez dea superar. As inúmeras barreiras à comu-nicação mediada por computador estão fre-quentemente muito depois de barreiras muitomais básica ao bem-estar comum. Por outro

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lado, há outras questões e dificuldades que seprendem com a forma como essa comunica-ção parece afectar dramaticamente toda umasérie de actividades humanas fundamentais,de trabalho, organização e dos procedimen-tos democráticos pelo novo tipo de mediaçãoque cria.É certo que para questões que ocorrem numaescala global e implicam acções coordena-das em lugares múltiplos, a Internet pareceter um papel crucial. Embora muitos possamvê-la como um medium altamente especiali-zado que só homens brancos de classe mé-dia realmente usam, na verdade, o mediumtem demonstrado uma extraordinária capaci-dade de atingir localizações remotas, de Chi-apas ao Kosovo, a Timor à India. A suacomunicação muitos-a-muitos, ao contráriodos meios tradicionais de comunicação um-a-muitos, apresenta uma aparente grande ca-pacidade de retroacção. Por ela, o indivíduopode, finalmente, transformar-se funcional-mente em comunicador/receptor. A internetsurge, assim, como um novo medium ondenovas vozes, individuais e em grupo, podemser ouvidas e vistas por uma rede que ultra-passa as fronteiras convencionais dos siste-mas mediáticos.Tem havido, no entanto, algum debate so-bre a practicidade de um debate “todos comtodos”. A principal questão levantada é a“sobrecarga da informação”, mas podemosinterrogarmo-nos, uma vez mais, sobre aforma de envolvimento das comunidades vir-tuais no mundo real. Em termos políticos, aquestão é saber se esse envolvimento podeser mais do que a enfatização de uma vidaisolada e privatizada. Parecem fazer sentidoos argumentos de que, na ciber-organização,pelo facto de as pessoas não desenvolveremacções face-a-face, laços fortes de ’grupos de

afinidade’, podem limitar-se a manter umaespécie de ’públicos virtuais’, sem poder deacção e de influência, substituindo simples-mente a batalha política pela ciberluta, maisou menos inconsequente. É o que Bodeidefine como ’a dissolução da ética da co-erência’ (Bodei, 1991: 130): nela se arti-cula a dificuldade, na sociedade contempo-rânea, de conservar valores relativamente es-táveis, de assumir obrigações de longa dura-ção, como parte da tendência para os chama-dos ’non binding commitments’, os compro-missos revogá-veis e modificáveis.Por outro lado, e em contraste com os massmedia tradicionais, que estabeleceram umaespécie de opinião pública global, os me-dia interactivos parecem apoiar o desenvol-vimento de ’públicos parciais’, em torno dediscursos caracterizados por estratégias deargumentação contextuais sobre temas espe-ciais, organizando políticas ’single-issue’. Aquestão que se mantém em aberto, no en-tanto, é saber se eles podem ajudar a en-contrar um consenso político mais global nasociedade, ultrapassando as perspectivas es-pecíficas do discurso que apenas lhes dizemrespeito.Por outro lado, ainda, esta forma de partici-pação política parece ter, entre outras carac-terísticas - como o seu possível carácter epi-sódico, o encurtar da memória e até um certopopulismo - um carácter essencialmente des-centrado. Finalmente, um outro problema selevanta: como qualquer outro medium, pordetrás das promessas de maior participaçãodemocrática há certos riscos para a liberdadee para os valores democráticos. A facilidadecom que os novos media organizam redesde sociabilidade com potencial positivo tam-bém tem, naturalmente, o reverso da meda-

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lha que é a igual facilidade de organizar asmais obscuras relações e ’comunidades’.A aspiração a uma nova Atenas, baseada nosinfinitos horizontes de interacção das redesglobais como Internet parece, pelo menos demomento, uma ilusão mais que uma reali-dade, por muito que o optimismo tecnoló-gico se encarregue de traçar todas as analo-gias possíveis entre a polis e a comunidadede cidadãos que giram em torno de Internet.Remetendo a discussão para o espaço pú-blico, Charles Ess, descrevendo e prescre-vendo as formas pelas quais o hipertextopode funcionar como democracia, procuraver a comunicação mediada por computa-dor como uma extensão da interacção quo-tidiana, não como uma sua alternativa (Ess,1996). Ele sugere que esta forma de comuni-cação constitui um fórum genuinamente de-mocrático para debate verbal (textual), emque todos participamos e onde o melhor ar-gumento prevalecerá. Já Mark Poster de-fende que o conceito de Habermas de espaçopúblico é ’sistematicamente negado’ no me-dium da Internet, aconselhando-nos a aban-donar o conceito de espaço público ao estu-dar este medium. Esta desistência, porém,parece prematura.Mesmo de um ponto de vista formal, nãodeixa de ser tentador encontrar algumas se-melhanças com o espaço público burguês. Abase em grande parte textual do medium, fazrecordar as sociedades de leitura do séculoXVIII, constituídas como uma parte de umalargamento da literacia efectivado pelo co-mércio do livro e o intenso tráfico de e-mailsde natureza pública e privada (privada na cri-ação da subjectividade e pública porque podefacilmente ser distribuída por vários recep-tores), tem também alguma analogia com otráfego de cartas que ajudou a criar o espaço

público burguês. Mas as principais analo-gias fazem-se de um ponto de visto norma-tivo: a Internet pode ser lida como um es-paço neutro, não-coercivo para a livre trocade ideias. Os textos são geralmente publica-dos sem restrições de conteúdo, o anonimatopode ser assegurado e os marcadores de gé-nero, raça, e classe, se bem que não estejamausentes, podem ser evitados. Nesse sen-tido, as relações de poder são minimizadas.É preciso convencer pela persuasão, não pelaforça. No entanto, não se pode ignorar a co-municação ’desespacializada’ operada na In-ternet, ou transferir para a comunicação me-diada por computador um mo-delo habermasiano de interacção humanapara descrever a tomada de decisões pela in-teracção face-a-face. Esta forma comuni-cacional pode levar a relações significativa-mente diferentes entre agentes.Para concluir, não é difícil acreditar que amaior difusão e penetração das redes digi-tais de informação, e a interacção de pes-soas e de organizações em torno destas ve-nha provocar, a médio prazo, uma revoluçãonos campos do conhecimento e da aprendi-zagem. Mas, como João Pissarra Esteveschama a atenção, as promessas intrínsecas demaior democratização que se baseiam intei-ramente em noções de uma sociedade com-pletamente tecnologizada “que assenta todasas suas estruturas e processos fundamentaisnas chamadas novas tecnologias da comuni-cação e da informação”, só pode constituir-se como ilusão: “o que funda essa ilusão éuma lógica objectivista e positivista, hoje emdia muito difundida como sabemos, (com in-teresses perfeitamente conhecidos e provei-tos bem delimitados) que confere à tecnolo-gia um estatuto de valor supremo e fim úl-timo; uma lógica, porém, absolutamente in-

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consequente em termos sociais e inaceitávelno plano do conhecimento eticamente res-ponsável”.Na verdade, uma boa parte do problema des-tas discussões reside na forma como se de-fende com alguma ingenuidade o potenciallibertador das novas tecnologias que é visí-vel nas ’ágoras virtuais’: tanto a tecnolo-gia como a política são autonomizadas dasrelações sociais onde, na realidade se for-jam: a tecnologia surge como um sistemade recursos definidos, que tanto pode ser-vir para impedir como para criar a encena-ção da ágora ateniense; a política, no for-mato democrático, aparece como a abstrac-ção do debate racional e da participação po-lítica. Se, em rigor, a tecnologia não deter-mina as relações sociais nem as políticas, pa-rece hoje reforçar-se a orientação para umaforma de relações sociais que procuram con-densar na tecnologia o seu modo de apreen-der o mundo, tornando natural o que, na ver-dade, é construção social.Perceber a importância da tecnologia sobrea sociabilidade e sobre a identidade não re-mete necessariamente para um pensamentotecnologicamente determinado. Não é a tec-nologia que, por si, produz práticas especí-ficas e inevitáveis. Mas a sua utilização nasociedade e na cultura e as práticas exponen-ciadas pelas capacidades tecnológicas têm,sem dúvida, fortes consequências para a ex-periência da subjectividade. O que o traba-lho de Meyrowitz, atrás analisado, tem deinteressante é a forma como pensa a ques-tão tecnológica estabelecendo um contextopara as ideias de reflexividade: “Os indiví-duos que se comportam em ambientes físicosou ainda mediados têm uma vasta gama deescolhas de comportamento dentro dos cons-trangimento globais (....) Ao nível de grupo,

a situação é ainda menos determinista. Poissomos nós que projectamos e usamos os nos-sos espaços, edifícios, media, rituais, e ou-tros ambientes sociais. Podemos redesenhá-los, podemos abandoná-los, ou alterar o seuuso. Em última análise, então, a perspectivamais determinista pode ser sem querer abra-çada por aqueles que recusam aplicar a nossamaior liberdade - a razão e análise humana- aos factores sociais que influenciam com-portamento. Nós não mantemos escolhas li-vres simplesmente porque recusamos ver eestudar as coisas que constrangem as nossasacções. Na verdade, frequentemente desis-timos do potencial de liberdade para contro-lar as nossas vidas escolhendo não ver comoos ambientes que nós moldamos podem, porsua vez, funcionar para nos moldar as nós”(Meyrowitz, 1996: 329).Em vez de afirmar a neutralidade da tecno-logia há que as contextualizar nos processossociais e perceber que, como tal, elas nuncasão neutras. Os novos media tornam fisica-mente possível entrar em novas acções, cons-truir novos mundos, embora as suas possi-bilidades materiais sejam caracterizadas porum “bias”, nos termos de Innis, que cria asbases, mas não determina, formas particula-res de organização social.

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