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Brasil, 2010 Numa sociedade individualista, A ESPIRITUALIDADE É O CAMINHO Associação Nacional dos Leigos Amigos de Murialdo - ANALAM

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Brasil, 2010

Numa sociedade individualista,A ESPIRITUALIDADE

É O CAMINHO

Associação Nacional dos Leigos Amigosde Murialdo - ANALAM

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Sumário

Apresentação ............................................................................................... 05

Uma palavra inicial ....................................................................................... 06

1. DA CRISE PARA A BUSCA DO SENTIDO .................................................. 07

1.1. Tempos e Vidas Líquidas ................................................................ 07

1.2. Mudança de valores ....................................................................... 10

1.3. Materialidade rica X espiritualidade pobre ....................................... 13

1.4 Ideologia do ter ................................................................................16

1.5. Dialogando em monólogos tecnológicos ........................................19

1.6. Princípios e Valores: uma história em construção ............................. 24

2. EXISTE UMA LUZ NO HORIZONTE .......................................................... 33

2.1. A redescoberta da Espiritualidade – Plenitude da realização humana ....33

2.2. Espiritualidade, alavanca da resiliência ............................................ 37

2.3. Promessa: aliança de compromisso ................................................ 40

2.4. Fontes seguras da espiritualidade ................................................... 43

2.5. A paixão de Deus por nós ............................................................. 44

2.6. A espiritualidade provoca a missão ................................................. 47

2.7. Murialdo: “ne perdantur” ................................................................ 49

3. O CAMINHO SE FAZ CAMINHANDO ...................................................... 51

3.1. Pessoas que contagiam ................................................................. 52

3.2. Pessoas de comunidades .............................................................. 54

3.3. Evangelizar é preciso .................................................................... 56

3.4. Espiritualidade: Fios que tecem rede .............................................. 57

3.5. ANALAM: na espiritualidade solidária .............................................. 59

Considerações finais ......................................................................................... 61

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Apresentação

É com muita satisfação que estamos apresentando mais umsubsídio da Associação Nacional dos Leigos Amigos de Murialdo -ANALAM. Ele vem responder aos anseios do grupo de leigos que sereuniram em Araranguá no X Congresso-Assembleia. Depois de muitareflexão e troca de ideias foi constatada a necessidade de falarmos dotema da espiritualidade. O trabalho de criação do Conselho Formativo é

incansável e eficiente.

Temos a grata satisfação de apresentar a cada um dos leitores e principalmenteaos Leigos Amigos de Murialdo um material profundo e com embasamento em estudose na história construída até o presente momento.

Neste subsídio temos a certeza de que nossas práticas serão fortificadas, porqueele fala não apenas das ações, mas de como se conserva viva a fé que nos move e decomo é importante termos uma fonte que alimente nosso interior.

Em uma floresta vemos árvores que crescem muito acima das outras. Isto écausado pela ânsia de buscar a luz do sol que é fonte de energia e calor para elas. Assimsão as pessoas que possuem espiritualidade. Fazem todo o esforço para buscarem aluz e o calor que está em uma fonte transcendente que as torna transparentes e iluminadasno ambiente onde estão inseridas.

Perceberemos que todo aquele que cultiva a espiritualidade sente-secomprometido com a solidariedade e preocupa-se com seu semelhante, principalmentecom os mais frágeis da sociedade. Uma pessoa espiritualizada tem a clareza de quevivemos uma interdependência na sociedade e que, se quisermos voar, temos de nosabraçar.

Com isso, vemos que nossa instituição, a ANALAM, está fixada em bases sólidase que cultiva a espiritualidade como fim tornando-se assim uma luz de solidariedade quese espalha em nossa sociedade.

Assim, caros leitores, aproveitem todo este material e usem-no como uma dasfontes para alimentar sua espiritualidade, e nunca esqueçam que está em Deus, aqueleque nos criou e nunca nos abandona, o rio que jamais seca e irriga todo nosso interiorcom seu amor.

Boa leitura e reflexão a todos!

Leonel Wasem dos Reis

Presidente

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho

O X Congresso-Assembleia da ANALAM, realizado em 2009, no Balneário Arroio

do Silva (SC) nos deixou um grande compromisso: o de desenvolver o tema “Numa

sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho” para formação e

aprofundamento a seus associados.

Diante do desafio, após muita reflexão, estudo, encontros e reencontros, o

Conselho Formativo coloca à disposição este material. Para entendê-lo, precisamos

relembrar da justificativa que fez com que esse anseio se tornasse necessidade:

1.Estamos vivendo um momento da história chamado por alguns estudiosos

de “tempos líquidos”. A característica desse tempo é o de transformar a existência

em efemeridade. O ser humano contemporâneo é chamado a viver na indiferença, no

desprendimento ao passado e ao outro. Tudo é efêmero e a vida, em seus produtos

e eventos, corre numa velocidade espantosa. O risco é o de se tornar ninguém.

2. Ao falarmos dos adeptos desse novo modelo de vida podemos dizer que

“nossos contemporâneos são pessoas materialmente ricas, mas espiritualmente

empobrecidos, famintos e cansados”(J. Brodsky).

3. A espiritualidade é mais do que uma prática religiosa.Ela é vista como um

conjunto de princípios e valores que norteiam uma vida para posturas de ética, de

cidadania, de convivência fraterna, de solidariedade, de respeito e comprometimento

com a própria raça, de saber cuidar de si, do outro e do ecossistema.

O presente subsídio também resgata parte da história da ANALAM. Olhar o

passado é ir na contramão dos “tempos líquidos”. A ANALAM tem uma história de

lutas, de conquistas e de convicções que foram construindo a história. Lembrando o

passado é possível manter uma direção e um comprometimento com a missão

institucional.

Assim, passamos a ter ainda mais certeza que a espiritualidade alimenta e

fundamenta a solidariedade e que o caminho se faz caminhando... Este não é um

subsídio para ser lido num dia e colocado na gaveta. Ele precisa ser degustado aos

poucos, individual e coletivamente...

Que Deus abençoe a todos e São Leonardo Murialdo continue sensibilizando e

encantando a todos.

Uma palavra inicial

Elo João Back

Coordenador do Conselho Formativo

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1.1 Tempos e Vidas Líquidas

“Pense, fale, compre, beba

Leia, vote, não se esqueça

Use, seja, ouça, diga

Tenha, more, gaste e viva”

(Trecho da música “Admirável Chip Novo” de Pitty)

Ao ler este trecho da canção “Admirável Chip Novo”, sugiro que você atenha-

se a este refrão, que está descrito acima. Ele é bastante simples, mas retrata com

clareza as características principais do assunto norteador deste capítulo: Tempos e

Vidas Líquidas.

Este tema é trazido a público atualmente por diversos autores, entre eles o

sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em algumas de suas obras como “Vida

Líquida”, “Amor Líquido” e ainda “Medo Líquido”, publicadas pela Editora

Zahar.

E foi também na música, especialmente da roqueira brasileira Pitty, que

percebemos que “tempos líquidos” também se transformaram em ritmo e melodia.

Pitty, na canção “Admirável Chip Novo”, traduz a modernidade, a pressa, a

impetuosidade, a precipitação, a fugacidade, a dúvida, as agonias, o consumismo,

o desapego, a provisoriedade, o acelerado processo da individualização e, ao mesmo

tempo, a insegurança. Todas essas características são percebidas no estilo de vida

de uma sociedade líquido-moderna.

No período da modernidade as pessoas desejavam e eram movidas pela rapidez

1. Da crise para a busca de sentido

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da informação, consumo permitido e tecnologia avançada. Agora, com a pós-

modernidade o que antes era desejado, passa a ser obrigação para sentir-se vivo

nessa grande selva de pedra que virou o dia a dia de todos nós.

Neste tipo de sociedade, pós-moderna, a vida não fica parada; tudo é temporário;

a data de validade do que é consumido tem prazo curto; as novidades de agora,

daqui a minutos já são de outrora, no tempo e no espaço; não existe o apego ao

humano, o que existe é o apego material, que também é transitório; há uma grande

insatisfação do eu consigo mesmo, as casas são maiores e com mais conforto, mas

as famílias são menores e cada vez mais solitárias; passamos mais tempo nos

aperfeiçoando a nível intelectual, mas entendemos menos ainda dos sentimentos de

nossos semelhantes. Nisso tudo está a liquidez da vida!

“A vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de

incerteza constante. As preocupações mais intensas e obstina-

das que assombram esse tipo de vida são os temores de ser

pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez

dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de venci-

mento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder

o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar

um caminho sem volta. A vida líquida é uma sucessão de

reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e

indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a

ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais

inquietantes. Entre as artes da vida líquido-moderna e as

habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas

tem prioridade sobre adquiri-las.” (Bauman,2007, P. 8)

Por tudo isso é que Zygmunt utiliza o termo “liquidez”, para caracterizar o

estado da sociedade pós-moderna. Assim como os líquidos, ela se caracteriza pela

________________

Zygmunt Bauman (19 de novembro de 1925, Poznañ) é um sociólogo polonês que iniciou sua carreira na

Universidade de Varsóvia, onde teve artigos e livros censurados e em 1968 foi afastado da universidade.

Logo em seguida emigrou da Polônia, reconstruindo sua carreira no Canadá, Estados Unidos e Austrália,

até chegar à Grã-Bretanha, onde em 1971 se tornou professor titular da universidade de Leeds, cargo que

ocupou por vinte anos. Lá conheceu o filósofo islandês Ji Caze, que influenciou sua prodigiosa produção

intelectual, pela qual recebeu os prêmios Amalfi (em 1989, por sua obra Modernidade e Holocausto) e

Adorno (em 1998, pelo conjunto de sua obra). Atualmente é professor emérito de Sociologia das

universidades de Leeds e Varsóvia.

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incapacidade de manter a forma, de

solidificar costumes, hábitos e até mes-

mo verdades. Também se caracteriza

pelo consumo exacerbado onde “o lixo

é o principal, e comprovadamente,

mais abundante produto da sociedade

líquido-moderna de consumo”.

(Bauman, 2007, p. 17).

Hoje, tudo ao nosso redor,

emprego, relacionamentos, famílias e até

valores e princípios mostram a tendência

ao fluxo, à mudança, à momentaneidade

e ao ser descartável.

No entanto, para muitos indivíduos este acaba sendo o único projeto de uma

vida inteira: consumir de forma rápida e voraz, como uma grande obrigação diária,

tornando-se até mesmo um grande hábito. E descartar para consumir novamente.

Infelizmente, estes hábitos acabam propiciando a vivência das sensações de angústia,

mal estar e, insatisfação constante. Isto, porque quando não reconhecido socialmente

por suas “conquistas” ou até mesmo por seus “descartes”, o indivíduo manifesta

frustração, solidão e vazio.

Desta maneira, a visão do mundo volta-se cada vez mais a si mesmo e o

tempo acaba por escravizar a rotina e as relações interpessoais. Assim sendo,poucos têm disponibilidade para perceber o mundo que o cerca, com suas

desigualdades e desconfortos sociais.

Também são características da pós-modernidade:

• A idealização sobre o produto; império de ilusões que faz com que os

objetos percam sua função real para se relacionar com a imagem

ilusória da realização.

• A pessoa só está inserida na sociedade se compartilha dos mesmosprodutos que os demais.

• Cultura do efêmero (efêmero apego material, pois se compra sempre;

troca-se facilmente de opinião e necessidade).

• Habitat: shopping centers.

• Discriminação social devido ao valor dos produtos.

• Integração social, pois todos querem comprar.

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• Indução do consumidor a pensar que precisa de um determinado produto

através da propaganda (publicidade)

• Principal agente: publicidade que atua por meio do espetáculo, da

excitação.

• Busca pela individualidade, porém sem ser tão diferente do resto (estar

na MODA, mas ser único e melhor).

• Busca por satisfação imediata através das compras.

• Frustração antecede a compra - a vida está ruim, então vou consumir.

• Falência das relações humanas, pois se apega mais a objetos do que a

pessoas.

• Alienação, pois deixa o sistema dominar.

• Reprodução de pensamentos e estilos de vida.

• Falsa promessa de liberdade, pois se acaba escravizado: existem

modelos de celulares para se escolher, porém não se pode optar por ter ou

não celular, o sistema impõe que se tenha, senão somos retrógrados.

• Estilização dos produtos: engrandecimento da dimensão simbólica do

produto baseado nas suas qualidades funcionais.

• Valorização do novo, ideia de ser jovem, todos podem ser jovens

desde que consumam as mercadorias adequadas.

• A cultura de consumo transformou a própria cultura, tradicional e

popular, em objetos de consumo, onde tudo passa a ser mercadoria (cultura

de massa).

1.2 Mudança de valores

“Há, em nós, um cérebro que pensa e também que cria fantasi-

as e valores pessoais. Esta ação abre um espaço muito impor-

tante na pessoa, que é seu imaginário, isto é, o conjunto de suas

fantasias, valores, crenças, ideais e objetivos pessoais. Esta

parte é tão importante como a racional para a vida da pessoa.”

(Teles, 2006, p.81)

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Muito se escreve e se fala sobre como, na sociedade moderna e pós-moderna,

os valores estão mudando num ritmo vertiginoso. Há quem diga também que a

humanidade caminha para uma sociedade sem valores. Os sociólogos

contemporâneos, mediante estudos realizados, indicam uma mudança de valores,

pelo menos no plano coletivo.

“Etimologicamente, valor tem a mesma raiz do verbo latino

valere, que significa “ser forte, vigoroso, eficaz” e também “ter

saúde”; daí o termo enfermo para irrecuperável quando para o

trabalho de “inválido” (“o que não vale”). Valor também pode

ter o sentido psicológico de mérito, quando nos referimos ao

talento de alguém ou à coragem de um valoroso guerreiro:

“valente” é “aquele que vale”. (ARANHA, 2005, p.198)

A disciplina filosófica que estuda os

valores é a axiologia (Teoria dos Valores –

do grego axis: precioso, valioso e logia:tratado). Axiologia vem a ser a teoria crítica

dos valores.

No mundo da linguística há inúmeroscampos em que a palavra valor aparece,tais como na matemática, na física, namedicina, no direito, na música etc. São valores também a justiça, a honestidade, orespeito, a verdade, a beleza.

Valorar ou atribuir valor é uma experiência fundamentalmente humana que seencontra no centro de toda escolha de vida. Fazer um plano de ação nada mais é doque dar prioridade a certos valores positivos e evitar os valores negativos que sãoprejudiciais, tais como a inveja, a preguiça, a injustiça.

O objetivo de qualquer valoração é, sem dúvida, orientar a ação prática. Portanto,diante daquilo que é, a valoração nos orienta para o que deve ser. Por isso, diz-seque os valores surgem das relações que os indivíduos mantêm entre si e com osoutros no meio em que vivem.

Os valores que desenvolvemos nascem da cultura. Essa é a razão pela qualpovos diferentes valorizam realidades distintas.Também é por isso que muitos

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elementos que são valorizados por alguns grupos humanos não o são por outros. Os

valores, portanto não são absolutos, mas condicionados pela cultura espaço-temporal.

Nem todos os valores de antigamente permanecem sendo valores atualmente. Nem

todos os valores para nós, são valores para outros.

Neste sentido a afirmação do professor Manuel Garcia Morente, é muito

pertinente. O autor afirma que nossas relações com a realidade se desenvolvem a

partir de seu significado para nós, ou seja, as coisas não nos são indiferentes.

“Não há coisa alguma diante da qual não adotemos uma posi-

ção positiva ou negativa, uma posição de preferência (...) não há

coisa alguma que não tenha valor. Umas serão boas, outras

más, umas úteis, outras prejudiciais; porém nenhuma absoluta-

mente indiferente”. (Morente, 1967, p. 293/294)

Ou seja, sempre estamos emitindo juízos sobre as realidades. Ou nos

relacionando com elas a partir da valoração que lhes atribuímos. Em síntese, podemos

dizer que aquilo que nos leva a tomar decisões, não é, em primeiro lugar a liberdade,

mas nosso quadro de valores. E este, em grande parte, é determinado pela cultura.

Assim sendo, podemos dizer que viver é fazer escolhas e fazemos escolhas

porque atribuímos valores aos elementos e realidades que circundam nossas vidas,

ou seja, o que nos leva a fazer o bem ou o mal é a capacidade de escolher.

Contudo, mesmo inseridos num mundo “líquido moderno”, há valores que deverão

ser sempre sólidos! Dentre eles destacam-se aqueles valores religiosos e espirituais

tão bem marcados na vida de São Leonardo Murialdo. E, que nós leigos, podemos

transferir para nossa existência através de sua prática cotidiana.

Neste âmbito, os valores passam a ser aquele conjunto de princípios que

norteiam, de forma positiva, a vida humana. Assim sendo, para os cristãos os valores

são imutáveis, porque sempre conservarão em si, o significado de suas essências.

Aqueles valores que se enraízam no coração, entram nas famílias, através de seus

progenitores (os Pais) nossos primeiros mestres. É no seio da família que se vivem

valores como o respeito, a verdade, a responsabilidade, o amor e a solidariedade.

Por isso, para nós Leigos Amigos de Murialdo, valor é uma dimensão da pessoa

humana que busca determinar o nosso jeito de pensar, agir e conviver. Ao valor se

tem um sentimento de estima, de apreço, porque é algo bom e significativo para a

vida. O valor é profundamente carregado de sentido e determina a vida de cada pessoa

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que é única. O valor cristão está sempre em referência ao ser, e não ao ter, indo

assim, na contramão da sociedade líquido moderna que vivemos.

1.3 Materialidade rica X Espiritualidade pobre

Em tempos líquidos, como os que

vivemos hoje, os medos e as incertezas

são comuns na vida de todos os

indivíduos.

Cada vez mais as famílias já não

são tão fortalecidas e com grande

capacidade de proteção como em tempos

atrás. Aliás, há famílias que se tornam

problemas causando uma grande

insegurança aos seus próprios membros.

Já não são lares, são apenas casas

habitadas por membros consanguíneos.

Entretanto é ali que todos se

amedrontam com a violência, com as

mudanças climáticas, com as epidemias, com o terrorismo, com a exclusão e até

com o desemprego.

Em contra partida, é ali também que as pessoas correm atrás de um tempo

para estar sempre atualizado profissionalmente, acumulando conhecimentos e

certificados, vivem em casas com grandes aparatos de segurança, mantêm-se

informados do mundo através de atualizadas máquinas de última geração, compram

o último lançamento de celulares, automóveis, computadores e ipods. Mas conversam

cada vez menos entre si, convivem cada vez menos em espaços públicos, enviam

cada vez mais e-mails, telefonam cada vez menos e, até desconhecem o nome do

vizinho da casa ao lado!

Muitos são “pessoas líquidas”: pobres, miseráveis. Possuem apenas bens

materiais, dinheiro e contas bancárias com bons saldos. Toda pessoa materialista

merece piedade. Ela apenas crê no que toca. Vive em função da realidade que vêm

e que proporciona lucro e prazer para si. Gasta o rápido tempo da sua existência no

pequeno mundo da produção e do consumo. Cria um mundo ao redor de si. É

essencialmente egoísta. Fechada em si mesma, esquece de olhar para cima. O

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mundo tem o limite de suas mãos.

Esta é a realidade líquida que traz uma materialidade rica, mas torna o indivíduo

espiritualmente pobre!

Hoje o mundo se encontra mergulhado numa crise profunda. Poder-se-ia dizer

como Leonardo Boff que o contexto é dramático, perigoso e esperançador. As notícias

são diárias, constantes e descrevem atos de violência que degradam a raça humana,

de outro lado, respostas da natureza que chocam a humanidade através de enchentes,

terremotos, maremotos, tornados e tufões. Estamos assistindo atônitos a uma história

que parece nos fugir por entre os dedos e sobre a qual não temos o menor controle.

A “liquidez” da vida está expressa num sem número de acontecimentos que ainda

não passaram pela assimilação das pessoas e já nos deparamos com um outro

ainda mais assustador.

As várias crises pelas quais passou a humanidade em sua construção históricaindicam momentos conturbados pelos quais passa o ser humano. E as crises nada

mais são do que resultados da situação interior em que vivem as pessoas na sua

individualidade e que tem repercussão na coletividade. Podemos dizer, então, que é

a pessoa que vive em crise e não a realidade. Quando dizemos que o dia “está chato”

estamos afirmando que existe uma “chatice” dentro de nós.

Os dias são sempre iguais, com sol ou com chuva. Mas a

percepção do dia é que tem a ver com a nossa situação

interior.

Estamos num momento crítico porque estamos

vendo que se passou um século dos estudos e descobertasda modernidade e vivemos agora em tempos de labirintos e

equívocos. E nos encontramos na pós-modernidade como

vítimas de um materialismo que se radicalizara como a

expressão máxima do exercício da felicidade das pessoas.

Bastava ter bens para ser feliz. Poucos conseguiram os bens

e nem eles, nem os que não os conseguiram se sentem

felizes, mas para todos em geral, o pêndulo da balança se

fixava no “ter”.

Quando se estuda história costuma-se ouvir a

afirmação de que o século XIX, dos anos oitocentos, foi a era

do materialismo. Nele aconteceram formidáveis conquistascientíficas e tecnológicas, avanços artísticos, ciências vitais,

porém a lógica industrialista empobreceu a concepção de

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ser humano trabalhador, acenderam-se as competições e ganhou força a agressividade

da vida social. Século de grandes realizações e de grandes decepções. É preciso

lembrar ainda que este foi um século de espírito secularista e antirreligioso.

O século passado, o XX, herdou tudo isso do anterior. Aconteceram aí as duas

grandes Guerras Mundiais. O mundo passou a ser visto como matéria neutra a serviço

da manipulação e exploração humana. Foi aquela arrogância humana que fez a

humanidade desembocar no atual alerta ecológico. E dizem os estudiosos da ecologia

que quando o ser humano se desarmoniza do cosmos ele desperta em si energias e

forças destrutivas. O lucro e a corrida pelo dinheiro rompem o equilíbrio do ser humano

com a natureza. Ele se torna mero explorador dela.

Costuma-se analisar a humanidade do século XX como extremamente

materialista até os anos 60. Foi quando ela entrou num cansaço materialista. A partir

de então surge um novo pensamento que afirma a importância da transcendência e

da presença de Deus na história. Como consequência nasce uma nova mística, que

é cheia de confusões. Há uma volta a um novo tipo de sagrado. É preciso lembrar

que na sociedade tradicional, o sagrado cumpria a função normativa e constitutiva da

sociedade. Ele é que dava as diretrizes de comportamento social para as pessoas.

Agora de uma religião surgem brotos para todos os lados como o pentecostalismo

católico, as novas e estranhas seitas protestantes que se multiplicam, as mais

variadas influências orientais. Regis de Morais chega a afirmar que vivemos hoje

“essa orgia mística feita de muita confusão” (Espiritualidade e Educação, p. 28).

Ainda é essa a experiência mística que vivencia a humanidade hoje. Talvez a melhor

síntese é esta apresentada pelo jesuíta J.B. Libanio:

“Cada vez mais se faz freqüente que alguém recolha na sua

cesta espiritual ritos de diversas lojas religiosas e construa seu

próprio cardápio. De uma religião oriental retira a contemplação

com seu ritual, de uma religião do livro – Cristianismo ou

Islamismo – deleita-se com leituras espirituais, de certas

celebrações católicas guarda o esplendor simbólico social,

como o matrimônio, etc. Em nenhum dos casos o fiel compro-

meteu-se socialmente com o caráter normativo da religião.

Esse coquetel religiosos pode ser ainda mais plural.”

(J.B. Libanio. Ser cristãos em tempos de nova era, p.16)

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Ora, o que ficou claro para a pessoa do início do século XXI é que chegamos

a uma virada da história onde não é nada difícil perceber o sem sentido e a ineficácia

do materialismo, todavia ainda estamos mergulhados num caminho místico cheio de

confusões ou, até, contradições. Vivemos uma religiosidade fragmentária, que pega

um pouco de tudo e segura quase nada de tudo.

Os dias atuais são de incomum sensibilidade ao espiritual. Quando esse tema

é referido em palestras, encontros, seminários... desperta interesse fora do comum.

Volta o desejo da transcendência. A disposição religiosa não é mais coisa apenas de

padres e freiras, de beatas ou pastores, mas é interesse de cientistas, de médicos...

Existe uma busca de espiritualidade ainda por encontrar um caminho coerente com

a fé. Ela deverá ser mais do que conjunto de exterioridades superficiais ou ritualismos

mágicos resolvidos com uma vela que se acende para um santo ou uma caminhada

que se faz para pagar promessa. As manifestações de gestos de fé parecem indicar

para atitudes mais profundas que fazem a pessoa voltar-se para o outro e o mundo;

trata-se de um cotidiano vivido com o interesse pelo bem comum e pautado nos

frutos da solidariedade e da justiça garantidora da paz.

1.4 Ideologia do ter

“Nem só de pão vive o homem” e também não só de espírito se vive. Nós

não somos apenas espírito nem somente matéria, mas uma junção dos dois. Assim

precisamos alimentar nosso corpo físico tanto quanto precisamos nutrir nossa alma.

Qualquer desequilíbrio, seja num lado ou no outro, é causador de problemas.

Atualmente a própria medicina tem reconhecida a necessidade de se manter

uma mente tranquila e harmoniosa a fim de

propiciar um organismo saudável. Já está

comprovado como um estado mental positivo,

com bom ânimo e alegria, pode, senão curar ao

menos facilitar a cura de muitas doenças.

Segundo a OMS (Organização Mundial da

Saúde) a definição de saúde é: “um estado de

completo bem-estar físico, mental e social…”.

A inter-relação entre físico e mental é

inquestionável, já é fato comprovado. O fator

social acaba sendo consequência do fator

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mental, mas não só dele. Vivemos em uma sociedade capitalista “líquida” onde épreciso comprar aquilo de que necessitamos para viver: comida, roupas, casa, porémo ser humano está em detrimento do “ter humano”. Isso é real!

E neste sentido acaba-se comprando o que também não necessitamos. Criam-se necessidades a todo o momento. Precisamos estar bem mentalmente, para issocompram-se as leituras de autoajuda! Ou apela-se para a compra de um antidepressivo!

Se o humor está em baixa, vamos ao shopping! Ou seja, a inovação de hoje devesolucionar muitas destas necessidades!

“A busca por prazeres individuais articulada pelas mercadorias

oferecidas hoje em dia, uma busca guiada e a todo tempo

redirecionada e reorientada por campanhas publicitárias

sucessivas, fornece o único substituto aceitável – na verdade,

bastante necessitado e bem-vindo – para a edificante solidarie-

dade dos colegas de trabalho e para o ardente calor humano de

cuidar e ser cuidado pelos mais próximos e queridos, tanto no

lar como na vizinhança.” (Bauman, 2008, p.154).

Vivemos tempos líquidos em que o permanente como essência da vida deulugar ao modismo da atualidade. Em tempos líquidos o ato de consumir é o norteador

da ação humana. As práticas dos indivíduos estão sempre articuladas com o ato deconsumir. É uma vida de consumo. Tudo é projetado como objeto de consumo, masas coisas já perdem seu valor e poder de sedução a partir do momento em que sãousadas; são líquidas, já não valem mais, já são passado. E precisam ser substituídas.

“Assim como o tempo, o dinheiro é um incrível quantificador de

valor. O que compramos com ele mostra aquilo que é importan-

te para nós. A maneira como compramos representa o nosso

caráter, a nossa disciplina e o valor que depositamos em

nossos relacionamentos com aqueles que estão envolvidos no

planejamento de nossos gastos. O modo como gastamos e o

motivo pelo qual gastamos afetam muito a qualidade da nossa

vida e dos nossos relacionamentos, bem como a herança que

deixamos para os nossos filhos, não só em termos de valor

monetário, mas também em termos de caráter, tino financeiro e

habilidade de lidar de forma positiva com assuntos dessa

natureza.” (Merrill, 2004, p. 218)

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho18

Atualmente a busca pela felicidade nos faz criar algumas inverdades. São osmitos do ter: “um salário maior resolveria boa parte dos meus problemas”, “uma casamaior, com mais espaço e mais conforto, traria mais felicidade”, “um carro novo nosproporcionaria mais segurança no percurso da casa para o trabalho”, “uma roupanova mostraria minha maior capacidade para o trabalho” e poderíamos enumerarmuitas outras inverdades.

Mas, reflita por um momento sobre a forma com que você lida com essassituações descritas acima e que são muito comuns no meio em que vivemos. Comovocê faz para não se deixar contaminar por falsas conquistas no seu dia a dia? Ecomo você está fazendo para mudar a mentalidade de seus filhos? Ou daqueles queo cercam?

Os meios de comunicação detêm um poder enorme sobre nossas escolhas,nos iludem facilmente. Somos o alvo fácil, sem proteção alguma. São outdoors,propagandas, gente magra, jovem e bonita, carros modernos, casas bonitas, cartõesde crédito com muitas facilidades, tudo que imaginamos trazer plenitude de felicidadee satisfação, porém, tudo fugaz! Amanhã terão novos comerciais, novas pessoas,novos carros e nós continuaremos infelizes e insatisfeitos outra vez.

Está na hora de darmos um basta em situações como estas. Mais do quenunca, este é o momento da mudança! Algumas pesquisas identificam que são osproblemas financeiros (saldo negativo no banco, dificuldade de pagar as dívidas emdia, perda de bens por falta de pagamentos, falta de crédito no mercado) os grandesvilões das doenças, dos suicídios, das faltas ao trabalho, do baixo desempenhoprofissional e até mesmo do divórcio.

A verdade é que saber administrar o dinheiro com sensatez e sabedoria tornou-se artigo de primeira necessidade, imprescindível e necessário em tempos líquidos.

“O bom de tudo isso é que, como o dinheiro se inter-relaciona

com todos os outros elementos constitutivos da vida, uma

melhoria na habilidade de administrá-lo se refletirá, de maneira

significativa em todos os outros aspectos da nossa vida.

Portanto, aprender a gerenciá-lo com sensatez- gastar menos

do que ganhamos, economizar para um momento de necessida-

de e investir em vez de consumir – corresponde a um fantástico

maximizador em todas as áreas do equilíbrio de vida, porque

nos ajuda a fortalecer o nosso caráter e os nossos relaciona-

mentos, a aumentar a nossa eficácia como trabalhadores e

melhorar a nossa vida pessoal e familiar.” (Merrill, 2004, p. 219)

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 19

1.5 Dialogando em monólogos tecnológicos

Com certeza a nossa

sociedade atual não seria a mesma

se tivesse mantido o mesmo ritmo

impresso até a metade do século

passado, momento em que os

avanços tecnológicos dispararam e

tomaram conta de nossa existência.

Esse avanço fez com que

estivéssemos, a bem pouco tempo,

com um pé no passado e com a

cabeça no futuro; uma dualidade

constante. As mudanças foram tão

rápidas e tão grandiosas que nossas

vidas não conseguiram acompanhar. Tivemos de nos adaptar para que pudéssemos

conviver com a nova realidade. Com o advento das gerações que nasceram e, estão

crescendo, ficamos atônitos diante das novas tecnologias, e também por não sabermos

como manter uma relação saudável entre ambas.

As alterações em nossas sociedades e as formas como elas se estruturaram

com o crescimento das cidades e da população fizeram com que fosse necessária

uma adequação a esta situação que se apresenta. A experiência de assaltos e

violência tornou mais conveniente poder se relacionar sob a proteção dos muros do

lar. Para os que evitam sair em qualquer horário por causa do medo, a internet

representa um renascimento social. Na nova era a solidão é ficar sem acesso.

Aproximou-se pessoas e permitiu reencontros entre amigos a distância, a

hipertrofia das relações digitais também favoreceu uma atrofia dos laços íntimos. As

relações são muito numerosas e pouco profundas: “um imenso mar com água pela

canela”. Hoje vemos uma geração que não possui nenhum amigo no bairro ou no

condomínio onde mora, mas, soma 40 no MSN e 120 no Orkut, muitos dos quais

nunca viu. Com isso o esvaziamento das relações se acentua e a cultura do

individualismo toma conta.

Preferimos ao sair de casa, quando saímos, ir direto para o shopping. Lá

quanto mais superlotado, abarrotado de gente e atravancados os corredores estiverem,

melhor. Aí fica difícil o diálogo e a atenção que muitas vezes o outro necessita, mas

não estamos dispostos a oferecer-lhe. Assim de uns tempos para cá, os shoppings

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho20

passaram a funcionar como símbolos de consumo, estilo e lazer com segurança.

Símbolos de uma época.

O que chama a atenção é o gosto pelo burburinho, pelo gargarejo, contudo o

que se vê é o afunilamento, o que revela uma opção de lazer indiferente, a confusão

geral, basta observarmos as praças de alimentação dos grandes shoppings. Fica a

questão em nossa mente: será o avanço da sociedade e de seus símbolos que

levaram a este tipo de lazer?

Outras formas de lazer, sempre existiram. Talvez fossem menos luminosas,

mais tranquilas, mais discretas, capazes de estimular a imaginação e os encontros.

Onde ficaram aqueles momentos do deixar-se estar embaixo de uma árvore a ruminar

sobre a vida, algo de uma utilidade profunda, ou uma boa conversa com nossos

queridos, alternativas às quais a cultura de nossos dias tenta imprimir a marca da

perda de tempo? Afinal, o bate-papo pode se dar por meio do computador, não é

mesmo? Lazer, portanto, que hoje está mais pobre, apressado e confinado.

Estamos passando por uma transição nesta última década. As crianças hoje

possuem um mundo de informações na tela do computador, o pai e o professor

deixaram de ser os detentores do conhecimento. Um novo drama surgiu para o adulto:

acompanhar o ritmo das crianças, constituírem-se como autoridade de uma nova

maneira, descobrir como criar limites em um mundo que os explodiu. Temos crianças

de 12 anos que em nossos dias são os patriarcas das incursões da família pela

WEB.

O professor Osvino Toillier afirma:

“Hoje acontece de a criança ter o conhecimento, e não o adulto.

Muitos pais e professores chegam à conclusão de que não tem

mais o que fazer. Isso gerou angústia. É preciso reconfigurar,

aprender a usar novas ferramentas, servir de mediadores,

aprender o máximo que pudermos com nossos filhos, ou

seremos apenas o vovô e a vovó de outro tempo.”

(Toiller 2009 – Jornal Zero Hora p. 6 – 27/12/09)

Outra opinião importante é a do psicanalista Alfredo Jerusalinsky que avalia

que neste decênio, a infinita massa de informações disponível gerou também uma

ilusão enganosa de sabedoria. A falsidade dessa impressão reside em que as

ferramentas para dar sentido aos dados não são oferecidos pelo computador, mas

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pelas vivências de cada um – justamente as que foram para um segundo plano

depois que uma parte da vida migrou para os meios digitais. A internet, assim, favoreceu

a objetivação e contribuiu para empobrecer a subjetividade. Para ele, houve impacto

até mesmo na ética:

“Na internet, produzem-se atos que a consciência normalmente

não aceitaria: videogames racistas, pedofilia, promiscuidade

sexual. Essas ações, vistas como sem consequência por

ocorrerem no mundo virtual, na verdade corroem aos poucos a

relação ética do sujeito com a realidade.”

(Jerusalinsky, 2009 – Jornal Zero Hora p. 6 27/12/09)

Estamos vivendo uma era dos amigos quase anônimos e dos amores

descartáveis, nos quais se entra e dos quais se sai como quem acessa e-mail. Hoje

ninguém suporta a frustração. Diante da dificuldade, rompe-se e parte-se para outra.

Perde-se emocionalmente, porque as relações ficaram fracas.

Por serem os mais envolvidos com estas mudanças tecnológicas, nossos jovens

são os mais afetados por elas, que deixam pais atônitos e especialistas divididos.

Há os que garantem que esses garotos estão se isolando, voltando-se cada vez

mais para si mesmos. Já outros, defendem que, graças à tecnologia, esses mesmos

adolescentes estão mais inteligentes e bem informados. De toda forma, a única

coisa de que se tem certeza até agora, com unanimidade entre as correntes de

pensamento, é que os riscos e os benefícios dessas práticas podem coexistir. Sendo

assim nos deparamos com algumas doenças que afetam a humanidade e são

potencializadas com os avanços tecnológicos de nossos dias:

ANSIEDADE – Os acontecimentos da vida não se desenvolvem na velocidade

de um clique e isto pode angustiar os usuários.

ISOLAMENTO – Os adolescentes podem limitar seus relacionamentos a

conversas virtuais, ignorando os encontros “ao vivo”.

OBESIDADE – Um jovem sedentário, que passa o dia inteiro em frente ao

computador, corre sérios riscos de ficar obeso.

VISÃO E AUDIÇÃO PREJUDICADAS - O excesso de exposição à tela do

computador pode causar problemas de visão. Horas de uso e volume excessivo de

tocadores de MP3 e iPods podem levar a surdez.

Alguns podem ser vítimas de golpes aplicados via internet. Pedófilos e

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho22

sequestradores usam a rede para atrair as crianças e os adolescentes e, também,

obter informações para golpes financeiros.

Assim preferimos nos transportar para saídas construídas por este mundo

tecnológico que nos oferece até uma segunda vida, muitas vezes completamente

diferente daquela que vivemos em nosso mundo real. Algumas reportagens publicadas

em revistas de circulação nacional comprovam isso conforme o transcrito:

“Segundo os estudiosos, o isolamento físico é o principal risco

do vício tecnológico. É o caso da jovem Sabrina Pinheiro, 18

anos, de São Paulo, que sai do cursinho todos os dias às

12h30min e, ao chegar em casa, ingressa num universo parale-

lo. A pequena garota de cabelos castanhos é tímida, detesta

maquiagem e usa óculos, mas Brina Enzo, seu personagem no

jogo virtual Second Life, é loira, alta, produzida e tem um corpo

“violão” – além de ser superextrovertida. Sabrina tem poucos

amigos, mas Brina é a alma de qualquer festa. O personagem

só sai de cena quando a estudante é obrigada a dormir para

encarar a realidade do dia seguinte. “Já saí várias vezes com

meus amigos e me arrependi de não ter ficado em casa jogan-

do”, revela. O paulistano Daniel Clemente, 19 anos, outro fã do

jogo, concorda. “É bem mais interessante do que a vida real.

“Lá a gente pode voar, correr riscos e encontrar uma novidade

a cada dia, defende.”

(Revista Isto É, Edição nº 2001 de 12/03/08)

Sendo assim, as tecnologias nos ajudam a melhorar nossa qualidade de vida,mas nos privam de momentos solidários e reais que podem mudar uma realidade em

que estamos inseridos, mas preferimos nos manter a margem e nos sentirmosdescompromissados com a sua construção.

Com isso, podemos relatar que os avanços tecnológicos podem ser altamentenocivos a uma sociedade que se constrói na contra-mão da realidade que se apresenta,mas não podemos negar que seu crescimento trouxe muitas vantagens aos nossosdias. Podemos citar algumas que fazem renovar a esperança de que, se bem usadas,poderemos construir um mundo muito melhor para deixarmos para as novas gerações.

Se traçarmos um paralelo apenas entre os últimos dez anos podemos ver

como a tecnologia nos ajudou a evoluir.

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 23

Em 1999 os desktops dominavam as vendas e muitos eram montados com

peças contrabandeadas. Hoje os PCs têm isenção parcial de impostos e há uma

elevada venda de computadores legais no Brasil e explode a demanda por notebooks.

O videocassete, a dez anos, ainda era a principal opção para assistir a um filme em

casa, embora os DVDs já existissem. Em nossos dias o sucessor do DVD, o blu-

ray, ideal para filmes de alta definição, começa um processo de popularização no

Brasil.

Na década passada no Brasil, só estavam à venda máquinas com filme. Hoje o

domínio passou a ser das câmeras digitais. No campo de bate-papo, na rede em

1999, o software mais popular de troca de mensagens instantâneas era o ICQ versus

ao que vemos hoje que trás a consolidação do hábito de bater papo pela rede, sendo

o MSN o programa mais usado.

Temos um rol de benefícios que trazem tranquilidade para os jovens e para

todos os que estão incluídos no aproveitamento das novas tecnologias, podemos

ressaltar:

Informação: A tecnologia aumenta o acesso a informação, tanto é que muitas

escolas adotaram o computador como ferramenta de trabalho.

Economia de tempo: Os sites de busca diminuem o tempo gasto com

pesquisas escolares. Sobram mais horas para os jovens exercer outras atividades.

Cultura: Os tocadores de MP3 e iPods ampliaram os acessos as músicas e

filmes estrangeiros. E o contato com outras línguas favorece o aprendizado de outros

idiomas.

Socialização: Utilizados como complementos de interação social, o Orkut e

o MSN podem ampliar a rede de amizade.

Criatividade: Jogos eletrônicos podem estimular a criatividade. Os blogs e o

YouTube permitem que pessoas de qualquer idade produzam conteúdos.

Os jogos eletrônicos produzem alguns fatores benéficos como a concentração,

senso de espaço, coordenação motora, memória visual, cognição. Eles estimulam

habilidade com resolução de problemas, perseverança, reconhecimento de padrões,

testes de hipóteses e gerenciamento de recursos. Por serem divertidos eles relaxam

e aliviam o estresse da rotina. Podem ser uma válvula de escape do dia-a-dia.

A tecnologia abre territórios fascinantes, e ameaça nos controlar: se pensarmos

um pouco, sentiremos medo. O que mais vem por aí? Quanto podemos lidar com

essas novidades, sem saber direito quais são positivas? Quanto servem para promover

progresso ou a um toque de botão por algum demente no poder tudo será exterminado?

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Viramos homens e mulheres pós-modernos, sem saber o que isso significa: somos

cibernéticos, somos twitteiros e blogueiros, mas não passamos disso. E, se não

formos muito equilibrados, vamos nos transformar em hackers.

Para as crianças, esse universo extenso e invasivo pode ser uma grande escola,

um mestre inesgotável, um salão de jogos divertidos em que elas imediatamente se

sentem à vontade, sem limites dos adultos, mas pode ser a estrada para pedófilos,

a alcova dos doentes, ou a passagem sobre o limite do natural e lúdico para o

obsessivo e perverso.

“Estimulante, múltiplo, tão rico, resta saber o que vamos fazer

nesse novo mundo – ou o que ele vai fazer de nós. Quando

soubermos, estaremos afixados nele como borboletas presas

com alfinete debaixo da tampa de vidro ou vaga-lumes em potes

de geleia vazios, naquelas noites de verão quando a infância

era apenas aquela, inocente, que ainda espia sobre nossos

ombros.” (Lya Luft, 2010 – Revista Veja p. 18 – 17/02/10)

1.6 Princípios e valores: uma história em construção

Constatamos que a sociedade líquida se organiza e faz com que todos estejam

preocupados muito mais com o possuir, com o ter coisas que logo estão obsoletas.

Esta mesma sociedade fortalece a ideia de que os valores de solidariedade e

fraternidade são conceitos ultrapassados e que não possuem mais espaço, porque o

que vale hoje amanhã já está ultrapassado, pois o que vale é ser feliz.

No entanto, um sinal de esperança, parte das instituições que assumem seus

valores e constroem suas histórias firmes e voltadas para a justiça, a fraternidade e

a solidariedade apesar dos tempos líquidos. Muitos são os exemplos que nos animam

e fazem acreditar que é possível acreditarmos no futuro. Mas aqui, queremos citar e

analisar um exemplo muito próximo de nós Leigos Amigos de Murialdo.

Se passarmos para o prisma histórico de uma instituição como a ANALAM

nos deparamos com a realidade que norteia nossos pensamentos atuais. Ao estarmos

diante dos tempos líquidos, nada melhor do que concordar com o provérbio que

afirma que: “Águas passadas não movem moinhos”.

Porém, precisamos estar dispostos a ir nacontramão da realidade e reforçarmos

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 25

a história da ANALAM

lembrando que para uma

construção ser sólida

precisa iniciar com a

fixação de seus alicerces

em solo firme. Assim foi

com a ANALAM que

precisou fixar seus

alicerces em pessoas que

possuíam suas ações

guiadas por uma mística

que os levava a empreender,

convencer e dedicar-se na multiplicação dos valores em que acreditavam.

Os princípios de luta e as convicções dos fundadores da ANALAM construíram

uma história digna de orgulho e que serve de exemplo para os que precisam enfrentara forma rápida com que as coisas perdem seu valor nos nossos dias. No início não

foi nada fácil enfrentar as dificuldades e permanecer firmes, com os olhos fixos natransformação da sociedade para que a mesma entendesse que o mais precioso

nela são as crianças. Estar preocupado com as crianças é com certeza ter uma

opção forte por um princípio cristão. As crianças não produzem e ainda se transformam

em um “custo fixo” para a sociedade, pois além de não contribuírem para gerar

riqueza no capitalismo ainda geram despesas para sanar suas necessidades básicas

e sua educação.

A história da ANALAM tem início na cidade de Londrina, Paraná. Começou

com um grupo de casais. Lá se procurava uma Congregação que trabalhasse com

meninos e meninas pobres, foi então que apareceu os Josefinos de Murialdo, em

1976, porém foram as crianças e adolescentes que impulsionaram a participação

leiga com os Josefinos.

A mística é vivida 24 horas por dia, em todo e qualquer lugar. Trabalhar com

crianças e adolescentes empobrecidos é consequência de uma mística.

No ano de 1992, onde se iniciam os primeiros passos da organização desta

instituição, podemos destacar algumas pessoas que fizeram história dentro do grupo

de apoio de Londrina: Pe. Antonio Lauri de Souza e Pe. Esvildo Valentino Pelucchi

eram os religiosos que acompanhavam o grupo de apoio.

Coordenava o grupo o casal Dirceu e Palmira de Souza, também compunham

I Congresso Nacional - Londrina (PR) 22-24.05.1992

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o grupo os seguintes casais:

Aderaldo e Adelina Ribeiro, Álvaro e Lourdes Rodrigues, Edmar e Leonor

Piacentini, Joaquim e Maria Ângela Oliveira, José e Maria de Lourdes de Bortoli,

Juvaldir e Maria José Bilhão, Milton e Carolina Ortega, Moacir e Joice Veras, Wilson

e Leni Volpini, Juracy e Dirce Barra, Luis Eduardo e Sandra Maria Padilha.

Mas toda semente lançada é fecunda e, transforma-se em frutos. Esta semente,

regada pela mística de São Leonardo Murialdo e alimentada pela opção da defesa

dos direitos das crianças, adolescentes e jovens empobrecidos, já estendia seus

brotos. Em Caxias do Sul, cristãos liderados por Pe. Bruno Barbieri, também formavam

seu grupo e já pensavam que é necessário unir forças para frutificar. As lideranças de

Tadeu e Neila Zulian, Ari e Iolanda Scussiato, Jonas e Terezinha D’Agostini, Avelino e

Maria Zilma dos Santos estavam dispostos a unirem suas forças com os demais

leigos do restante do Brasil para formar com Josefinos de Murialdo uma instituição

que, em primeiro lugar, cultivasse a mística de São Leonardo Murialdo no seu dia a

dia e fosse um sinal de esperança nos ambientes onde estivessem inseridos.

Capitaneados pela liderança do Pe Geraldo Boniatti, então provincial dos

Josefinos, Dirceu e Palmira de Souza, de Londrina e Tadeu e Neila Zulian, de Caxias

do Sul e, embasados pela experiência já existente na Itália, iniciou-se os primeiros

passos para organizar e estruturar a ANALAM.

Desta forma no dia 22 de maio de 1992 na Escola Profissional e Social do

Menor de Londrina (EPESMEL) aconteceu o 1º Congresso Nacional dos Leigos

Amigos de Murialdo. Estiveram presentes nesse Congresso:

• Planaltina: Ricardo Barletos, Celsa Soares, Deusimar Pereira da Silva e

Margarida da Silva.

• Orleans: Otavio Bertoncini e Wanda Schimidt.

• Araranguá: Célio da Silva, Valda da Silva, Adalberto Gomes e Nilza Gomes.

• Porto Alegre: Walter e Ana Trindade.

• Caxias do Sul: Ary e Iolanda Scussiato, Tadeu e Neila Zulian, Avelino e Maria

Zilma dos Santos.

• Ana Rech: Valter Susin, Maria Isabel Susin, Gervasio Gasparim e Dosalina

Gasparim.

• Fazenda Souza: Delfino Cechetto e Beatriz Cechetto.

• Londrina: Todo o grupo citado anteriormente como grupo de apoio dos

Josefinos na EPESMEL.

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Estiveram presentes os religiosos Pe. Geraldo Boniatti (Provincial), Pe. Joacir

Della Giustina (Caxias do Sul), Pe. Agustinho Vidor (Porto Alegre), Ir. Celeste Roman

(Araranguá), Pe. Marcial Pivatto (Ana Rech), Pe. Antonio Lauri de Souza (Londrina).

Também vale lembrar os animadores musicais que foram: Fr. Carlos Alberto Wessler

(Teólogo), Fr. Geraldo Luiz Canever (Teólogo), Fr. Renato Fantin (Teólogo).

Uma grande certeza é de que através dos valores cultivados é que podemos

medir a dimensão de uma instituição. A ANALAM pode ser avaliada pelos seus valores

que são destacados nas palavras do Sr. Dirceu de Souza que, em 1992 exercia a

função de coordenador do grupo de apoio que recebia os congressistas deste primeiro

encontro.

O Sr. Dirceu de Souza acolheu os congressistas, dando as boas vindas a casa

que desde o seu nascimento teve a idealização, as pedras fundamentais e o corpo

crescido pelo esforço dos leigos. Em seu pronunciamento o presidente traçou um

histórico da participação eclesial do leigo na Igreja e da vida na Congregação.

“A semente que agora plantamos deverá germinar como fruto

de uma organização leiga, que permita aos Josefinos de

Murialdo, nossa congregação, tornar concreta o ideal histórico

de São Leonardo Murialdo: “Para que nenhuma criança se

perca”. Somos participantes da missão deixada por São Leonar-

do Murialdo e comprometeríamos o nosso ser cristão se

abdicássemos da missão.”

(Livro de atas ANALAM – Folha 002 - verso)

Para que as palavras do presidente não ficassem no vazio e para que ações

geradas a partir deste primeiro congresso fossem construídas com a colaboração de

todos os seus membros foi motivado um trabalho de grupo que teve as seguintes

questões para serem discutidas:

1. O que deverá caracterizar a vida dos leigos amigos de Murialdo nas obras

que estão inseridos? O que fazer concretamente nas mesmas?

2. O que fazer para garantir a continuidade da organização dos colaboradores

leigos amigos de Murialdo?

3. Qual deveria ser a estrutura organizacional do movimento de leigos amigos

de Murialdo: Quanto ao Estatuto? Quanto à diretoria? Quanto aos Congressos?

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Como podemos ver nas questões que foram discutidas desde o início foi impresso

um caráter de seriedade para a sequência da instituição que ora nascia. Assim foram

tomadas as seguintes deliberações:

- Foi fundada oficialmente a Associação Nacional dos Leigos Amigos de

Murialdo (ANALAM);

- Eleita a 1ª Diretoria Provisória dos Leigos Amigos de Murialdo, assim

constituída:

PRESIDENTE: Dirceu de Souza

VICE-PRESIDENTE: Tadeu Zulian

SECRETÁRIA: Ana V. Trindade

TESOUREIRO: Célio H. N. da Silva

ASSESSORES: Pe. Antonio Lauri de Souza e Pe. Joacir Della Giustina

Ficou determinado que esta diretoria manteria seus poderes vigentes até o

próximo congresso que realizar-se-ia em Caxias do Sul no mês de abril de 1993. Até

lá a mesma deveria apresentar um projeto de estatuto.

Como a história não pode parar, nos dias 23, 24 e 25 de abril de 1993 os leigos

comprometidos em construir a base de sustentação da ANALAM voltaram a se reunir

em Caxias do Sul. Se formos ler o relatório deste encontro veremos um relato poético

e emocionado que se inicia com estas palavras:

1ª Diretoria Nacional - 25.04.1993

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“Era 23 de abril de 1993.

Com um leve friozinho e, o sol querendo chegar para aquecer

mais ainda a grandiosidade do evento que estava por aconte-

cer, começaram a chegar pessoas de vários cantos do país.

Pessoas que têm um coração afetuoso e sabem querer bem;

que arregaçam as mangas para o trabalho; que, com muita

coragem, querem começar... que são amigas de Murialdo e,

mais ainda, das crianças, adolescentes e jovens empobrecidos.

Sim, essas pessoas vieram de muitos lugares, cada um com

sua realidade, cada um com seus pequenos , sua história, sua

caminhada... Londrina, São Paulo, Rio de Janeiro, Araranguá,

Porto Alegre, Fazenda Souza, Ana Rech,

Caxias do Sul, Napoli (Itália).”

(Livro de Atas da ANALAM - Folha 009)

No transcorrer do Congresso foram dirigidas palavras do presidente e vice dadiretoria provisória que apontavam para onde a ANALAM estava direcionada e, comose transformaria em sinal de esperança para que hoje tivéssemos a certeza de que épossível construir história sem deixá-la escorrer por entre os dedos.

Dirceu explicou porque acompanhamos os Josefinos, fundamentando que emLondrina existe toda uma história que iniciou com um grupo de apoio formado poralguns casais. Lá se procurava uma Congregação que trabalhasse com meninos emeninas pobres. Apareceram os Josefinos de Murialdo, era 1976, mas foram ascrianças e adolescentes que impulsionaram a participação leiga com os Josefinos. Amística é vivida 24 horas por dia, trabalhar com as crianças e adolescentesempobrecidos é consequência de uma mística.

Já, Tadeu deixou claro que os leigos esperavam que os Josefinos nos dessemum acompanhamento mais forte. Pediu que houvesse mais interesse da parte dealguns Josefinos e que dessem mais acompanhamento aos leigos. Que sejamcobradas ações dos Amigos de Murialdo e que venha deles o apoio espiritual. Tambémdeixou um desafio para que cada obra da congregação dos Josefinos de Murialdoabrisse espaço para um grupo de Leigos Amigos de Murialdo.

Foram dados os primeiros passos para a expansão e para o compromissomútuo entre leigos e religiosos.

Mas, como a ANALAM é uma construção conjunta, os participantes do

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Congresso foram convidados a participar discutindo nos grupos de trabalho as

questões:

1. O que os Josefinos de Murialdo podem e devem oferecer aos leigos?

2. Como amar concretamente as crianças e adolescentes?

3. Como e onde ser apóstolos do Amor de Deus em nossas cidades (na vida

diária)?

Assim foram encaminhadas decisões importantes e decisivas para que hoje

pudéssemos dizer que estamos formando a Família de Murialdo.

Estavam presentes neste congresso as irmãs Murialdinas, que expressaram a

intenção de formar grupo de leigos em suas obras e formar uma Associação conjunta

com a que começava a engatinhar junto aos Josefinos. Prontamente foram acolhidas

e, a partir daí, temos a presença e ação dos leigos e das religiosas Murialdinas

realizando o sonho de Murialdo de formar uma grande e bem unida família.

Também foi apresentado um esboço do estatuto que sofreu as modificações

necessárias e foi votado e aprovado em sua redação final.

Outra determinação da Assembleia foi a realização dos Encontros Regionais

alternados com os Congressos Nacionais. Os regionais ficaram definidos naquela

época da seguinte forma: Regional 1: Londrina, Maringá, Castelo Branco, São Paulo,

Rio de Janeiro e Brasília. Regional 2: Araranguá e Orleans. Regional 3: Porto

Alegre, Caxias do Sul, Ana Rech e Fazenda Souza.

Neste congresso e, com a aprovação do estatuto, foi criado um elemento

fundamental para que a ANALAM se estruturasse e se mantivesse firme no carisma

proposto. Nele foram escolhidos os membros do Conselho Formativo que se tornou

uma das colunas mestra desta instituição.

Fizeram parte deste primeiro grupo: Valter Trindade (Porto Alegre); Gilson

Pozenato (Caxias do Sul); Elisabet Tonezer (Caxias do Sul); José Limongi (Porto

Alegre).

Foi aprovada, por unanimidade, a chapa apresentada para a primeira diretoria

definitiva da ANALAM que deveria exercer o cargo por dois anos conforme rege o

estatuto. Ficou assim constituída a Diretoria Nacional:

PRESIDENTE: Dirceu de Souza (Londrina)

VICE-PRESIDENTE: Tadeu Zulian (Caxias do Sul)

PRIMEIRO SECRETÁRIO: Valter Susin (Ana Rech)

SEGUNDO SECRETÁRIO: Ana V. Trindade (Porto Alegre)

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 31

PRIMEIRO TESOUREIRO: Avelino A. dos Santos (Caxias do Sul)

SEGUNDO TESOUREIRO: Jonas C. D’Agostini (Caxias do Sul)

CONSELHO FISCAL: Nevio Damiani (Araranguá)

Célio de Souza (Araranguá)

Adelar Mazzochi (Fazenda Souza)

Após quase vinte anos de história e entre tantas realizações importantes é

importante destacar também a efetivação da Promessa de diversos leigos, que se

comprometem a viver mais forte o carisma de São Leonardo Murialdo, tão necessário

para a realização de nossas ações. Realizações como a edição de dez subsídios de

formação, circulação do jornal “O Sementeira” quatro vezes por ano, realização de

dez Congressos-Assembleias, encontro internacional de Leigos em Fazenda Souza

e tantas outras realizações que, em algum momento oportuno, serão relembradas.

Participantes do X Congresso-Assembleia NacionalBalneário Arroio do Silva (SC) - 31/07 a 02/08 de 2009

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho32

Nestes anos todos temos a certeza,

observando tantas e tantas crianças,

adolescentes e jovens que foram recebidos,

atendidos e tiveram seu coração educado, de

que as palavras do Sr Dirceu de Souza

proferidas em 22 de maio de 1992 ecoam viva

em nossa instituição:

“A semente que agora plantamos deverá

germinar como fruto de uma organização

leiga que permita aos Josefinos de Murialdo,

nossa congregação, tornar concreto a o ideal

histórico de São Leonardo Murialdo: ‘Para

que nenhuma criança se perca’.”

(Livro de Atas ANALAM Folha 002 – Verso)

Para Conversar:

1) Como identificamos a nossa realidade?

2) Por que a humanidade está tão sedenta de Deus? Onde ela consegue saciar

esta sede?

3) Como conseguimos lidar com a tecnologia, sem perder os valores e princípios

morais?

4) Para você, quais foram os fatos, pessoas e reflexões que mais marcaram

na caminhada da ANALAM?

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 33

2.1. A redescoberta da ESPIRITUALIDADE - plenitudeda realização humana

“Para onde fugirei longe de teu sopro? Para onde fugirei longe

de tua presença? Se subo aos céus, tu aí estás. Se me deito no

abismo, aí te encontro. Se levanto voo para as margens da

aurora, se emigro para os confins do mar, me alcançará tua

esquerda, e tua direita me sustentará.” (Sl 139, 7-10)

A humanidade faz um novo caminho

Vamos partir da ideia de em nenhuma época da história falou-se tanto em crise

como nas últimas em que estamos vivendo. Ela invadiu os campos da economia, da

política, da cultura, da religião, do social e do existencial.

A humanidade chegou no final do século XX percebendo-se derrotada por ter

acreditado que vinha fazendo um caminho seguro e iluminado. Acreditava na capacidade

das ciências e das novas tecnologias para a solução dos seus problemas. Acreditava

que a vida encontrava sentido na produção e uso de bens. Importava ter. A qualidade

de vida da humanidade era o que mais importava e ela estava ligada diretamente às

novas descobertas científicas. Numa sociedade regida por normas capitalistas

neoliberais o mercado passou a ser visto como o grande valor. Ele é o ídolo da

modernidade e os shoppings centers aparecem como seus templos maiores, mas é

2. Existe uma LUZ no horizonte

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho34

preciso lembrar que todo ídolo é o deus que exige

sacrifícios de vidas humanas, que não se importa com

a dor dos que sofrem. É assim que o lucro se mantém

nos “altares”.

Esse modelo econômico trouxe a ideia de que

as pessoas valem pelo que consomem, valem pelo

que “tem” e não pelo que “são”. E as relações humanas

são engolidas pelas relações econômicas, são de

interesses, frias, descartáveis como os produtos.

Para Leonardo Boff, a humanidade está situada

num momento dramático da história embalada

especialmente pelos “mitos da exterminação da

espécie, da liquidação da biosfera, da ameaça do futuro comum, da Terra e da

humanidade.” (In: Espiritualidade: um Caminho de Transformação. Ed. Sextante, 2006,

p. 9) Segundo o autor, é em momentos assim que o ser humano mergulha na

profundidade de seu ser e se coloca questões básicas sobre o mundo, os seres e a

sua existência.

Percebemos que vem crescendo o número de pessoas insatisfeitas. A pessoa

contemporânea vive essa ânsia de encontrar um significado convincente para sua

existência. Anseia um espaço onde possa fazer a experiência de Deus. A crença

quase absoluta no poder do homem afogou-se em frustrações. As pessoas se viram

vítimas de um “vazio interior”. “Há um buraco vazio profundo, um buraco imenso

dentro do seu ser, suscitando questões como gratuidade e espiritualidade, futuro da

vida e do sistema-Terra. Esse buraco existencial é do tamanho de Deus. Por isso só

Deus é capaz de preenchê-lo.” (L. Boff. Ibidem, p. 10)

Como nunca na história as pessoas começam agora a realizar uma busca pelo

sentido mais profundo de suas vidas. Mais do que ouvir falar de Deus, cresce o

número dos que desejam sentir Deus. Alguns chamam a esse momento de “crise do

sentido”. A saída vem sendo apontada pelo desejo de uma “espiritualidade” como

desejo de levar o ser humano a mergulhar no Mistério do Divino, para encontrar ali o

sentido de sua vida. A humanidade toda vem apresentando grande demanda por

valores não materiais, por uma redefinição do ser humano como um ser que busca

um sentido plenificador. As pessoas correm atrás de valores que inspirem

profundamente suas vidas.

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 35

Afinal, o que é Espiritualidade?

A primeira associação que nos vem

à mente é a experiência do Absoluto. A

espiritualidade para o cristão é, pois, a

experiência do Absoluto. Já Gustavo

Gutiérrez define a espiritualidade cristã

como “um modo de ser cristão”. E ser

cristão nada mais é do que ter em Jesus

a referência para a vida.

Aqui cabe lembrar que Jesus Cristo,

a plena revelação do Pai, revela-se como

humano e divino, encontra-se inserido nas

tramas da história e comprometido com

a transformação da sociedade. Daí é que

surge uma espiritualidade vivida

concretamente na realidade histórica.

Também fomos aprendendo que a

mística e a espiritualidade são dois termos com mútua relação. Toda pessoa que vive

determinada espiritualidade é iluminada de uma mística, que dá sentido à sua vida.

O místico, vale lembrar, é aquele que se deixa envolver pelo mistério de Deus e

busca um relacionamento profundo com ele. Nasce da percepção de que Deus está

presente no mais profundo de cada ser humano. Ele envolve, penetra e mora em

cada homem e mulher. E na simplicidade de cada dia, da pessoa pode fazer essa

experiência. Além disso, todo lugar pode ser lugar da experiência de Deus. Santa

Tereza dizia às monjas de sua Ordem religiosa: “Precisamos descobrir Deus também

em meio às panelas.” “Hoje diríamos que Deus pode ser experienciado tanto nas

ruas barulhentas da cidade grande como em meio ao silêncio e à beleza da paisagem

do campo; tanto na Igreja como no ponto do ônibus. Isso porque, onde estiver o ser

humano, ali estará Deus.” (L. Boff, ibidem, p. 20)

É necessário também lembrar que a espiritualidade não é monopólio das

religiões, mas uma dimensão que está em cada ser humano. Essa dimensão que

cada um tem se revela na capacidade de diálogo consigo mesmo e com o próprio

coração, se traduz pelo amor, pela sensibilidade, pela compaixão, pela escuta do

outro, pelo respeito à história do outro, pela responsabilidade com a vida e pelo

cuidado como atitude fundamental. É alimentar um sentido profundo de valores pelos

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho36

quais vale sacrificar tempo, energias e, no limite, a própria vida. A espiritualidade nos

coloca frente a essa certeza de que existe uma causa pela qual vale a pena viver.

As ciências se rendem à fé

É bem verdade que a Medicina analisou seus problemas usando apenas dos

recursos das ciências, que a Psicologia analisou os problemas existenciais apenas

à luz dos conhecimentos da ciência, que a Sociologia, a Jurisprudência e a Economia

fundamentaram suas análises apenas em constatações científicas. Hoje, os peritos

começam a se render para as análises na perspectiva espiritual. Angustias e doençaspassam a ser vistas como consequência da dimensão espiritual e esse novo campo

é capaz de apresentar saídas para os dissabores da vida e das relações humanas.

Dentro de cada pessoa existe a chama sagrada coberta ainda, é verdade,

pelas cinzas do consumismo, da busca desenfreada pelos bens materiais, dedistrações em coisas que não são essenciais. Numa sociedade marcada por relações

intimistas e individualistas é preciso remover essas cinzas para que se desperte achama sagrada da caridade que nestes tempos atuais se traduz em solidariedade,

compaixão, ternura e caridade.

Por fim, a espiritualidade é essa chama que se reaviva no fracasso de uma

sociedade extrovertida, aquela que precisa da extroversão para vender e consumir.Basta perceber que os valores da sociedade de consumo são todos exteriores. Ela

vive de aparências: o corpo, o status, o automóvel, o apartamento, a grife, a festa, osalão. E sem possibilitar pausas para reflexão; porque é preciso preencher o tempo,

preencher a vida que cada vez mais se esvazia. A espiritualidade aparece nesse novocontexto histórico para apresentar um caminho novo, de transformação. Num universo

como o nosso, carregado da proliferação das farmácias e dos medicamentos, a paz,o bem estar, a alegria, a virtude da sabedoria e a musicalidade da harmonia nas

relações nascem da relação direta da pessoa humana com a divindade. A experiênciado transcendente é o remédio.

Mas não é possível encontrarmos espiritualidade cristã sem oração. Para ocaminheiro da fé, a oração é tão necessária quanto o ar que respira. Os momentos

de intimidade com o absoluto alimentam a mística e dão o sentido para os gestos decuidado, da harmonia, de solidariedade. Além de encontro com Deus é oportunidade

de encontro consigo mesmo, de fazer feedback e de projetar a vida. Os santos

conseguiram ser homens e mulheres de oração.

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2.2. ESPIRITUALIDADE: alavanca da resiliência

“Não andeis buscando o que comer ou o que beber; não fiqueis

pendentes disso. Tudo isso são coisas que as pessoas do

mundo procuram. Quanto a vós, vosso Pai sabe que essas

coisas vos fazem falta. Basta que busqueis o reinado dele, e o

resto vos será dado por acréscimo. Não temais, pequenino

rebanho, porque vosso Pai decidiu dar-vos o reino.” (LC 12, 29-

32)

Resiliência: origem na Física

“Resiliência” não é uma palavra comum. Na

linguagem portuguesa ela é uma novidade das

últimas duas décadas. Passou a ser utilizada

especialmente no campo da educação como forma

de estudar e encorajar crianças e adolescentes que

tem sua história comprometida pelos efeitos da

pobreza, da violência doméstica, do alcoolismo dos

pais, ou mesmo, das dificuldades de viver e crescer

de uma forma sadia e promissora.

Em francês e espanhol a resiliência é

utilizada como terminologia da engenharia com a

única ideia de descrever a capacidade de um

material para recuperar sua forma original, depois

de ser submetido a uma deformação sob pressão.

O inglês usa a palavra para descrever qualidades

humanas aproveitando-se do conceito da engenharia. E é em cima deste conceito

que queremos tratar nesta abordagem.

“A resiliência é uma abordagem teórica de um conceito extraído da Física e

muito usado pela engenharia e que representa a capacidade de um sistema de superar

o distúrbio imposto por um fenômeno externo inalterado.” (Celso Antunes, Resiliência

– A construção de uma nova pedagogia para uma escola pública de qualidade. Ed.

Vozes. Petrópolis, 2003, p. 13) Pode-se dizer ainda que a resiliência é a capacidade

de retornar à forma original após ter sido submetido a uma deformação ou que é a

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho38

capacidade de se redobrar ou de se readaptar à má sorte, às mudanças.

Aplicando-se o conceito à vida humana, a resiliência ou a faculdade de

recuperação é a capacidade de uma pessoa para fazer as coisas bem apesar das

condições de vida adversas. Para Stefan Vanistendael a resiliência faz parte da vida

humana desde o início de sua história. Basta compreender que esta tem sido a única

forma de sobrevivência dos pobres e oprimidos. (Como crecer superando los percances.

Secretariado Nacional para La Família, Buenos Aires, 1998) A resiliência, voltada

para a vida humana e animal, é essa capacidade de resistência a condições duríssimas

e persistentes; dessa forma, diz respeito à capacidade de pessoas, grupos ou

comunidades não só de resistir às adversidades da vida, mas utilizá-las em seus

processos de desenvolvimento pessoal e crescimento social.

Uma capacidade de superação

Adotamos aqui a definição de Stefan Vanistendael que nos parece mais

convincente e que mais se identifica com a proposta deste subsídio. Ou seja, a

resiliência é a capacidade de uma pessoa ou de um sistema social de viver bem e

desenvolver-se positivamente, apesar das condições difíceis da vida, e isso de maneira

socialmente aceitável. Ou ainda, de uma forma mais simples. É a capacidade de

fazer bem as coisas e de forma socialmente aceitável, em circunstâncias adversas.

Ela tem sua teoria composta por dois pilares sustentadores:

a) resistência frente à destruição, isto é, a capacidade de proteger a própria

integridade, quando sob pressão;

b) Além da resistência, a capacidade de construir uma conduta vital positiva,

em que pesem as circunstância adversas.

A terminologia passou a ser estudada não mais como referência para a vida de

crianças e adolescentes e se estendeu também ao mundo adulto. Seus conceitos

passaram a fazer parte também de estudos sobre comportamentos e atitudes do

mundo adulto, de famílias, de comunidades e, mesmo, de sociedades.

Podemos fazer uma análise comportamental sobre os moradores das periferias,

das favelas, dos sem teto que perambulam pelas ruas das nossas cidades. São

muitos os fatores de risco e adversidades que enfrentam. À alimentação precária que

sofrem se somam aos riscos persistentes da violência, do abuso sexual, das perdas,

da carência em vestir e morar, das discriminações, do desrespeito, do desemprego,

das inúmeras doenças e que, a despeito de tudo, não apenas sobrevivem, mas ainda

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 39

conseguem se organizar, construir momentos autênticos de alegria, construir projetos

de futuro e sonhar com transformações. Assemelham-se às árvores, aparentemente

frágeis, que se curvam diante da força impiedosa das tempestades, mas rapidamentesuperam esses desafios e voltam a colocar-se de pé.

Uma pessoa, um grupo ou uma organização resiliente apresenta harmonia emreceber a adversidade, revela poder de análise crítica e reforça laços de solidariedade

encontrando possíveis saídas.

Pode-se chamar um pai ou uma mãe de resiliente, um operário ou um professor

de resiliente, uma empresa de resiliente ou dizer que um aluno é resiliente. O importanteé lembrar que a cultura resiliente pressupõe princípios de auto-organização,

mutabilidade, confiança, liderança e criatividade. A pessoa se vê desafiada, nuncaderrotada. A resiliência desenvolve o senso de confiança; esperança e sonhos se

fundem para encontrar as estratégias de saída porque a autoestima e a automotivaçãosão instigadores da mudança. Ela é a arte de transformar toda energia de um problema

em uma solução criativa.

Mas, o que tem a ver a espiritualidade com a resiliência? Tudo a ver. Existe

uma visão cristã para a resiliência e esta pode torná-la uma ferramenta ainda maispoderosa para superar os percalços que a vida oferece. Os ideais cristãos do amor,que desencadeiam os gestos da caridade, da solidariedade e da fraternidade são

indicadores das possibilidades da mudança. Se a resiliência por si só já é uma forte

aliada para a superação das pressões que a vida, as pessoas, a sociedade ou mundo

podem oferecer, imaginemos essa qualidade de algumas pessoas somada à força

transcendente da espiritualidade!

Jesus Cristo: o amor resiliente

Por outro lado a proposta de Jesus Cristo indica que, no fim, aconteça o queacontecer, a vida é mais forte que a morte, que as feridas podem se transformar

numa vida nova, que a esperança é fundamento existencial para conquistar assuperações. Jesus Cristo é um exemplo vivo da resiliência. Atravessando os

dissabores da perseguição, da injuria, do sofrimento, da incompreensão, resiste àmorte que aponta para um fim: existe a vida após a morte. Ele leva a experiência da

ressurreição ao indicador que supera qualquer fatalismo. Nasce um compromisso deesperança total no futuro. A morte não deforma sua missão, suas convicções e desejos

de ser causa de mais vida para todos. Pelo contrário, faz dela uma alavanca a maispara a sua missão.

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho40

O amor na experiência cristã é uma força latente do cotidiano que transmite a

dimensão de transcendência da história humana. A experiência do amor de Deus

interferindo de fato na vida dos seus filhos se soma às capacidades humanas de

superação de obstáculos. Então a fé reforça as potencialidades humanas e lhes dá

uma nova dimensão. Existe uma força maior, escondida no coração da pessoa, que

faz acontecer o milagre. A certeza de que estar nas mãos de Deus é estar em boas

mãos” vem dar novo significado aos qualificativos da resiliência. Ou seja, com Deus

por perto, com Deus em nós, somos ainda mais fortes, podemos resistir mais aos

dissabores. Aumenta a capacidade de superação porque a esperança tem razões

transcendentais, mas não só, a força da espiritualidade, a fé, iluminam o caminho

para encontrar novas saídas.

2.3 PROMESSA: a aliança de compromisso

“Estabelecerei a minha aliança entre mim e ti, e tua raça depois

de ti, de geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o

teu Deus e o de tua raça depois de ti.” (GN 17, 7)

A Promessa é aliança

A Promessa é uma reposta. Não é uma iniciativa. A iniciativa parte do outro

sujeito que parece fazer um convite. O outro

apresenta uma proposta. Por isso, a Promessa

é uma resposta. Da harmonia entre a proposta e

a resposta surge a aliança.

A aliança, por sua vez, é um pacto, uma

espécie de juramento, de selo de fidelidade. Não

é possível fazer pacto sozinho. Ela acontece entre

duas partes. É marca de comprometimento com

o outro ou com sua causa. Fazer aliança com

alguém é criar laços fortes de relações que se

baseiam na confiança. Surgem então relações

que também transmitem segurança.

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 41

A Promessa também se expressa como uma relação forte de parceria. A

parceria só tem sentido quando as duas partes ganham. Cada parceiro ou cada parte

está comprometido com resultados que beneficiem os dois parceiros. Fora dessa

simbiose o que aparece é a exploração, ou seja, uma das partes se beneficia em

detrimento dos prejuízos da outra.

A Promessa entrou na vida e nos princípios sustentadores da mística da

Associação Nacional dos Leigos Amigos de Murialdo a partir do ano de 2001, no

Congresso-Assembleia de Maringá - PR que aprovou o “Roteiro de Formação para a

Promessa”. Expressão de uma vida comprometida com o Reino de Deus e a proposta

de Jesus Cristo, aparece inicialmente como algo estranho à vida dos leigos. Os

núcleos criaram uma distância entre algo que parecia divino demais para a cotidiano

de sua vidas. A primeira impressão era de que aquilo era coisa para padres ou

religiosos. Se é verdade que caminho se faz caminhando os Leigos Amigos de Murialdo

foram percebendo que também a eles pertence o convite à santidade e que a Promessa

pode ser uma ferramenta a mais para se colocar no compromisso com o projeto de

Jesus Cristo. E daí foi nascendo a convicção de que a Promessa não afasta nem

complica a vivência da fé. O resultado de tantas discussões nos diversos núcleos foi

conduzindo os leigos à realização das mesmas e foram se espalhando aqui e acolá

os cursos de formação para a mesma. E aquilo que parecia estranho tornou-se

importante escola de formação.

Deus promete e faz pacto de amor

Segundo a Bíblia a promessa é um compromisso que Deus assume de conferir

bens a pessoas, grupos ou instituições. Ele o faz livremente, por iniciativa pessoal.

Mantém a mesma graças ao seu poder e a sua fidelidade. A promessa é expressão

do amor de Deus e se volta para o fim de despertar a fé no coração das pessoas.

Expressas como grandes juramentos de Deus podem indicar não apenas bênçãos,

mas também maldições e desgraças.

As promessas divinas descritas no livro sagrado estão ligadas à ideia de aliança

ou de pacto. E Deus aparece sempre como muito fiel as suas promessas mesmo

que os herdeiros não cumpram com as exigências da aliança proposta. O primeiro

depositário da Promessa na Bíblia foi Abraão, a quem é garantida uma descendência

numerosa e a posse da terra de Canaã (Gn 17,1-9). Estabelece-se aí uma nova

relação entre Criador e criatura após o pecado original. As exigências da promessa

se estendem, por meio da lei, de Abraão a todos os do povo de Israel (Ex 19,1-6). Por

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho42

sua vez, os profetas de Israel são chamados por Deus para trazer viva à memória do

povo a promessa de Deus. Em virtude do não cumprimento da promessa, Israel é

ameaçado com o juízo de Deus. E quando tudo parece perdido Deus continua

despertando a fé de seu povo com novas promessas. E se mostra sempre fiel, apesar

da infidelidade humana. É através dos profetas que as promessas se espiritualizam.

Eles propõem uma nova relação interior da pessoa com Deus e a expectativa da

vinda de um Salvador.

O Novo Testamento vai apresentar Jesus como a palavra empenhada. Ele é o

Messias prometido e o anunciador de novas promessas (Mt 1,1-17). Para João ele é

a presença viva das promessas de Deus (Jo 5,39). Já tanto Paulo quanto Lucas têm

a certeza de que a promessa já está realizada com a vinda do Salvador.

Podemos dizer que o esquema promessa-cumprimento é o esquema que

permeia toda a história da salvação apresentada nos relatos bíblicos. Alguns teólogos

costumam observar ainda que o “Deus da revelação é o Deus da promessa”. Ele é a

certeza absoluta do futuro e a promessa é a grande mola da história que vai jogando

seu povo para frente. Então o Deus da promessa torna-se um poder de transformação

social.

É bem verdade que as promessas de Deus se traduziam em alianças.

Precisamos lembrar que as alianças, naquela cultura, indicavam um pacto estipulado

entre pessoas ou grupos, onde ambas as partes se comprometiam com a fidelidade

e uma relação de benevolência, de paz, de harmonia, de cuidado recíproco. Os

profetas usavam constantemente a simbologia da aliança para exprimir os vínculos

que unem a relação de afinidade entre Deus e seu povo. Ao apresentarem a nova

aliança que vai desembocar na vinda do Messias buscam alimentar a esperança e a

expectativa de um futuro de bem, de paz e familiaridade entre Deus e seu povo. Se

Israel sobreviveu pelas alianças, o Antigo Testamento não deixa de acentuar a

gratuidade das mesmas enquanto iniciativa de Deus, ou seja, o fundamento da aliança

está na benevolência divina oferecendo salvação através do perdão, da redenção, da

misericórdia, da providência, do cuidado carregado da ternura. E, por outro lado,

oferece a possibilidade do encontro com a criatura através da adesão livre da pessoa.

É do encontro entre a liberdade de Deus e a do seu povo que brotam os frutos do

bem, da paz, da harmonia, enfim, da salvação. Assim, a aliança tem uma só raiz: o

amor. É isso que a Bíblia procura expressar já no relato da criação. Iniciativa exclusiva

da benevolência do Criador ela é um chamamento gratuito à existência dos seres.

Em Jesus Cristo se configura uma nova criação, porque ele é o princípio e o modelo

à imagem do qual tudo foi feito e é fim para qual tudo tende (Cl 1,15-16).

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 43

Quem promete está comprometido

Por sua vez, a espiritualidade vista como

expressão da vida que se compromete em perseguir a

perfeição evangélica, é o selo da promessa. Aqui o cristão

se vê comprometido em fazer um caminho formativo

pedagógico que, partindo da caridade consegue atingir

a unidade de espírito da mística amorosa da Trindade.

Assim a Promessa do Leigo Amigo de Murialdo não

tem outra finalidade que não a de facilitar e encarnar o

único e mesmo ideal evangélico de perfeição na caridade

na imensidão das formas que o amor cristão permite.

A vivência da espiritualidade tem na promessa

um gesto concreto de resposta gratuita ao chamamento

do amor. Porque a espiritualidade é muito mais do que

a recitação de uma série de fórmulas escritas em

orações e pronunciadas no silêncio de um quarto ou

numa reunião de assembleia. Ela é um conjunto de

princípios e de valores que norteiam a vida da pessoa.

É uma resposta de amor ao Amor. Parte da sensibilidade da pessoa que se percebe

cuidada pelo Pai. Deus cuida melhor de nós do que nós mesmos. “Se estamos em

suas mãos, estamos em boas mãos”, conclui São Leonardo Murialdo. E ele cuida de

nós não porque somos bons, mas porque ele é bom. Não cuida porque somos para

que sejamos. Torna-se impossível para o coração humano que se abriu a esse amor

permaneça na indiferença.

Podemos afirmar que a promessa é a expressão de uma resposta feita com

aliança. O dito popular do “amor com amor se paga” parece se aplicar ao conceito

que adotamos aqui. Na certeza de sentir-se amado por Deus sentimo-nos chamados

a amar a Deus. Cria-se um laço de comprometimento. E o amor a Deus encontra sua

expressão mais concreta no amor aos irmãos. E o amor passa a ser atitude, gesto

de bondade, caridade fraterna: a expressão da espiritualidade encarnada.

2.4 Fontes seguras da espiritualidade

A Bíblia nos garante de que existimos por causa do amor eterno de Deus.

Deus, em seu imenso amor, nos pensou desde toda a eternidade. Poderíamos dizer

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho44

como que uma parcela do espírito de amor de Deus foi tomando forma de pessoa

humana, que somos nós. Um dom especial que só pode brotar de alguém que ama

sem medida. De alguém que quer que o amor se espalhe por tudo. Alguns textos daBíblia nos podem ajudar a entender como Deus foi passando para nós o seu espírito.

“ Sim! Pois tu formaste meus rins, tu me teceste no seio mater-

no. Eu te agradeço por tão grande prodígio, e me maravilho com

as tuas maravilhas! Conhecias até o fundo de minha alma, e

meus ossos não te eram escondidos. Quando eu era formado,

em segredo, tecido na terra mais profunda, teus olhos viam as

minhas ações, e eram todas escritas no teu livro. Os meus dias

já estavam calculados, antes mesmo que chegasse o primeiro.

Mas a mim, como são difíceis os teus projetos! Meu Deus,

como é grande a soma. Se os conto... são mais numerosos que

areia! E, ao despertar, ainda estou contigo!” (Salmo 139, 13-18)

O salmista procura descrever com algumas comparações a gratuidade do amorde Deus e a necessidade de reconhecer este imenso amor de Deus. Além de sublinharo cuidado terno de Deus na formação de cada pessoa humana, ele destaca a proteçãode Deus durante toda a vida, não como uma predestinação, mas como uma propostade contínuo amadurecimento no amor de Deus. No final do salmo, o ser humanoreconhece que não se pode pretender agradecer a Deus de modo conveniente esuficiente. Ainda que se possa agradecer conforme todos os grãos de areia existentesno universo, mesmo assim ainda se ficaria em dívida com Deus, no agradecimento.

Murialdo faz um pacto com Deus em querer agradecê-lo com tantos atos deamor, quanto são os pensamentos dos homens que existiram e que irão existir,quanto são as folhas das árvores, quanto são os grãos da areia da praia, conforme o

número das estrelas, conforme as gotas de água do mar e dos rios.

2.5 A “paixão” de Deus por nós

“Vejam o meu servo, a quem eu sustento: ele é o meu escolhi-

do, nele tenho o meu agrado. Eu coloquei sobre ele o meu

espírito, para que promova o direito entre as nações. 2 Ele não

gritará nem clamará, nem fará ouvir a sua voz na praça. 3 Não

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho

quebrará a cana que já está rachada, nem apagará o pavio que

está para se apagar. Promoverá fielmente o direito; 4 não

desanimará, nem se abaterá, até implantar o direito na terra e a

lei que as ilhas esperam.5 Assim diz o Deus Javé, que criou o céu e o estendeu; que

firmou a terra e tudo o que ela produz; ele dá respiração ao

povo que nela habita e o espírito aos que sobre ela caminham: 6

«Eu, Javé, chamei você para a justiça, tomei-o pela mão, e lhe

dei forma, e o coloquei como aliança de um povo e luz para as

nações. 7 Para você abrir os olhos dos cegos, para tirar os

presos da cadeia, e do cárcere os que vivem no escuro. 8 Eu

sou Javé: esse é o meu nome. Não vou dar para outro a minha

glória, nem vou ceder minha honra para os ídolos. 9 As primeiras

coisas já aconteceram; coisas novas é o que eu agora anuncio:

antes que elas comecem, eu as comunico a vocês».

(Isaias 42, 1-9)

O espírito de Deus envolve tanto o ser humano que faz com que o profetadescreva a paixão de Deus pelo ser humano. A pessoa humana, carregada de Deusse torna servo, se torna voz, se torna luz, se torna energia para todo o desanimado.Tal é o poder daquele que possui o espírito de Deus que se torna aliança entre oshomens e Deus. Deus gerador de vida, quer criar coisas novas através de cadapessoa humana. Através daquele que aceita o espírito de Deus. Tudo vai acontecendoprogressivamente. O profeta se sente chamado, se deixa preparar e partecorajosamente em missão, porque a mão de Deus está sempre com ele.

“Agora, porém, assim diz Javé, aquele que criou você, Jacó,

aquele que formou você, ó Israel: Não tenha medo, porque eu o

redimi e o chamei pelo nome; você é meu. 2 Quando você atra-

vessar a água, eu estarei com você e os rios não o afogarão;

quando você passar pelo fogo, não se queimará e a chama não

o alcançará, 3 pois eu sou Javé seu Deus, o Santo de Israel, o

seu Salvador”. (Isaias 43, 1-3)

Quando o espírito de Deus envolver toda a pessoa, não há nada a temer. Deusespera a doação: “chamei-te pelo nome, és meu”. Que maravilha ser chamado porDeus, como servo, para ser luz das nações que vivem na escuridão dos bens materiais

45

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho46

e esquecem os valores eternos.

“1 Agora, escute, Jacó, meu servo; preste atenção, Israel, meu

escolhido. 2 Assim diz Javé, que o fez, que o formou no ventre e

o auxilia: Não tenha medo, meu servo Jacó, meu querido, meu

escolhido. 3 Vou derramar água no chão seco e córregos na

terra seca; vou derramar meu espírito sobre seus filhos e a

minha bênção sobre seus descendentes. 4 Crescerão como

planta junto à fonte, como árvores na beira dos córregos”.

(Isaias 44, 1-4:)

O espírito de Deus faz crescer pessoas robustas. Pessoas que se tornam

testemunho da verdade, da justiça, do reconhecimento de que tudo nasce do coração

de Deus.

“Sião dizia: «Javé me abandonou, o Senhor me esqueceu!» 15

Mas pode a mãe se esquecer do seu nenê, pode ela deixar de

ter amor pelo filho de suas entranhas? Ainda que ela se esque-

ça, eu não me esquecerei de você. 16 Veja! Eu tatuei você na

palma da minha mão; suas muralhas estão sempre diante de

mim”. (Isaias 49, 14-16)

A bondade de Deus é tanta que confia a cada pessoa humana a salvação do

mundo. Que pena que tantas pessoas não se dão conta desta benevolência de

Deus. O carinho de Deus está em nos lembrar constantemente através da tatuagem

estampada na mão dele. Toda a geração de vida que acontece a partir de Deus

conta com a presença de cada pessoa que aceita ser amiga de Deus.

“ Quando Israel era menino, eu o amei. Do Egito chamei o meu

filho; 2 e no entanto, quanto mais eu chamava, mais eles se

afastavam de mim: ofereciam sacrifícios aos baais, queimavam

incenso aos ídolos. 3 E não há dúvida, fui eu que ensinei Efraim a

andar, segurando-o pela mão. Mas eles não perceberam que

era eu quem cuidava deles. 4 Eu os atraí com laços de bondade,

com cordas de amor. Fazia com eles como quem levanta até

seu rosto uma criança; para dar-lhes de comer, eu me abaixava

até eles”. (Oséias 11, 1-4)

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 47

A bondade de Deus é tão grande, o amor e o cuidado dele se expressam bem

através das comparações feitas pelo profeta Oséias...Deus toma forma humana para,

abaixar-se na mesma altura do ser humano para alimentá-lo, afagá-lo, ou erguê-lo do

chão para torná-lo grande, alto, para enxergar mais longe. Quanta bondade de Deus!

Aqui se entende a queixa de Murialdo: “reina no mundo um escândalo, uma

impiedade...não se crê no amor de Deus”. Somente corações insensíveis, corações

de pedra é que não entendem nada de todo bem querer de Deus.

Deixar que Deus purifique o nosso ser

“25 Derramarei sobre vocês uma água pura, e vocês ficarão

purificados. Vou purificar vocês de todas as suas imundícies e

de todos os seus ídolos. 26 Darei para vocês um coração novo, e

colocarei um espírito novo dentro de vocês. Tirarei de vocês o

coração de pedra, e lhes darei um coração de carne. 27 Coloca-

rei dentro de vocês o meu espírito, para fazer com que vivam de

acordo com os meus estatutos e observem e coloquem em

prática as minhas normas. 28 Então vocês habitarão na terra que

dei aos seus antepassados: vocês serão o meu povo, e eu serei

o Deus de vocês.”. (Ezequiel 36, 25-28)

Mas o amor de Deus, o espírito de Deus é muito forte. Ainda que sejam postasresistências, diante de qualquer pequena adesão da pessoa, Deus entra com o seu

espírito e acaba transformando todo ser, como garante o profeta Ezequiel. As imundíciesserão lavadas, as convicções acomodantes serão purificadas, o coração de pedra

feito de insensibilidade, vai ser tirado, para por no lugar um coração sensível, decarne, aberto aos afetos mais puros e aos gritos de toda a humanidade. Deus quer

um seu povo, mas conta conosco para a constituição deste povo. Um povo solidário

e convertido ao coração de Deus.

2.6 A Espiritualidade que provoca a missão

Eis a espiritualidade que envia em missão. Uma espiritualidade que salva,

porque é solidária com a vida de cada pessoa, do universo todo. Assim se explica a

ação do Bom Samaritano. Aparentemente ele não sendo judeu, não gozava da fama

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de uma grande espiritualidade. Espiritualidade que devia estar presente no sacerdote

e no levita, porque ambos voltavam do tempo, onde se rezava e não foram capazes

de ver a realidade do pobre assaltado. A espiritualidade do sacerdote e do levita pode

ser classificada como intimista e sem compromisso. Uma espiritualidade feita de

orações proferidas sem paixão, sem empenho em ajudar os outros. O Samaritano,

que talvez não rezava muitas orações, mas tinha uma grande espiritualidade,

transforma a espiritualidade em ação, em missão. Agradece a Deus por poder

ajudar um irmão o leva até a estalagem e gasta do que é seu para que o pobre

assaltado possa ter vida. A solidariedade do Samaritano nos dá uma imensa lição de

vida segundo o espírito de Deus. Além de dedicar-se ao assaltado, gasta do que tem,

com tanto que a vida possa retornar plenamente...diz ao homem da hospedagem:

“cuida bem dele e se tiveres gastos vou pagar na volta...”. Quem toma uma atitude

destas no mundo capitalista de hoje? Apenas os “tolos”, mas impregnados do espírito

de Deus.

Eis a espiritualidade da qual o mundo tem necessidade hoje. Ou é uma

espiritualidade que compromete em ações, ou então não é espiritualidade, serão

apenas sentimentos. Nesta ótica parece estar também a visão dos cientistas de

hoje, sobretudo médicos que já dizem, sem a vergonha de uma vez, de que quem

tem fé, quem reza, quem está imbuído do espírito de Deus, com mais facilidade

alcança a cura do corpo e consequentemente da dimensão psico-afetiva e relacional.

No juízo final, segundo o evangelista Mateus, nosso julgamento não será feito

por Deus e nem por outros homens, mas será feito pelas nossas ações...tive fome

e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, estava nu e me vestiste,

prisioneiro e me visitaste...

Cabe aqui a máxima de que se a nossa profecia, como leigos de Murialdo não

transforma o ambiente onde

estamos, ela não é verdadeira.

Serão apenas palavras ditas que o

vento leva, mas se a criança, o

adolescente e o jovem empobrecido

se sentirem acolhidos, sem terem

que retribuir, então nossa espiri-

tualidade é feita com solidariedade

e gratidão.

Murialdo costumava agra-

decer a Deus através do salmo 115

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 49

: “que retribuirei ao Senhor, por tudo o que ele fez por mim? Erguerei o cálice da

salvação e invocarei o nome do Senhor...quero cumprir meus votos a Deus...” de

estar totalmente disponível para ele, como Maria a Serva do Senhor, como José

obediente a Deus e como Murialdo que dá um significado diferente à espiritualidade

de seu tempo, passando da oração para a ação imediata.

2.7 Murialdo: “ne perdantur”

A expressão usada por Murialdo, muito comum entre os líderes espirituais de

seu tempo, tem suas origens na primeira igreja, através dos escritores dos inícios da

igreja cristã. Sabemos que, culturalmente falando, a ideia de que nenhum pudesse

se perder, estava ligada à salvação e ou perdição eterna. Também para Murialdo,

certamente o que importava era que nenhum de seus jovens pudessem se perder

para sempre, no inferno. A expressão criava um certo medo e ao mesmo tempo

impulsionava a todos a se empenharem para salvar as pessoas. Muitos porém, no

tempo de Murialdo achavam que este perder-se estava ligado à oração, à práticas

religiosas, a compromisso com Deus, sem se importarem com os homens.

Espiritualidade no cotidiano

Não foi assim para Murialdo em sua ânsia de salvar os mais empobrecidos.

Nunca deixando de lado a espiritualidade através da formação e instrução catequética

propunha caminhos de salvação no campo espiritual e religioso, mas a ação principal

que Murialdo desenvolveu foi a de encontrar ambientes, encontrar modalidades,

encontrar caminhos que pudessem salvar os jovens através do trabalho, da preparação

para a vida, sobretudo criando ambientes de acolhida, onde se pudesse respirar um

clima de uma bem unida família. Uma espiritualidade concreta que dá sentido à vida

e que não deixa ninguém se perder.

Quando Murialdo diz que os padres não podem ficar fechados na sacristia,

mas que devem se misturar com o povo no dia a dia da sociedade, está propondo

uma espiritualidade encarnada. Não basta rezar na igreja e pronto, mas é preciso ir

em missão e indicar caminhos de salvação aos mais empobrecidos. Formação,

envolvimento, ação, missão. Formação humana, espiritual e formação profissional.

Envolvimento na formação de grupos capazes de fermentar positivamente a sociedade.

Ação concreta em prever os caminhos a serem percorridos pelos jovens adequando-

os a eles, com as proteções todas que a sociedade possa oferecer. Missão no

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho50

sentido de que quem hoje é ajudado, amanhã deve

ajudar para salvar outras pessoas.

Ações concretas que expressam a espi-

ritualidade solidária

Com o eco da expressão “para que ninguém seperca”, batendo forte no coração, Murialdo se põe acaminho, na organização dos operários, na boaimprensa, agindo concretamente na organização dasligas eleitorais, na construção da casa família, dandoênfase sobretudo às habilitações oferecidas nosArtigianelli, na Colônia Agrícola de Rivoli, na preparaçãode professores em Volver e também na recuperaçãoconcreta em Boscomarengo.

Para que nenhum se perca, é preciso prepararo futuro, tendo muito cuidado com o presente quevivemos hoje. Cuidado no global da pessoa e tambémcom o meio ambiente. Não é digno de um ser humano,filho de Deus, permitir que o mundo, as relações entre as pessoas se deterioremcada vez mais. Os que virão no futuro devem ficar agradecidos porque as pessoas dehoje, com inteligência e solidariedade sabem cuidar da vida, para que ela seja cadavez mais abundante.

Se a pessoa humana tiver as condições mínimas, necessárias para o viver,certamente não buscará o caminho do perder-se. A pedagogia de Murialdo, queconsidera a integralidade da pessoa é o caminho régio para garantir que nenhum seperca.

Para Conversar:

1) Como posso ter certeza que minha espiritualidade não é apenas um

sentimento em mim?

2) Por que a verdadeira espiritualidade conduz para a solidariedade e a gratidão?

3) Cite alguns sinais de verdadeira espiritualidade no mundo de hoje, no campo

da ciência e da técnica.

4) O que devemos fazer com Leigos de Murialdo para que nenhum dos jovens

que encontramos possa se perder, na vida e também para a eternidade?

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho 51

Há no coração do ser humano

Ais do fundo do peito

Suspirando por algo que

Nem sempre se sabe dizer

O nome...

Pode ser comida, casa,

Bebida, saúde, justiça,

Amor.

Mas é mais. É bem mais.

É algo que podemos chamar

De Espiritualidade. (Ivone Gebara)

Nesta terceira parte, o Agir, vai aprofundar a espiritualidade na prática. Como aespiritualidade é a parte que nós somos, ela envolve também o nosso corpo. Assim,a espiritualidade não se refere à alma ou às coisas que não podemos tocar. Veremosque ela envolve todo o ser, em todos os momentos da vida. Com isso, espiritualidadenão é tema para ser ensinado, e sim para ser vivido.

Mas como podemos vivê-la na prática?

A poesia do espanhol Antônio Machado, sobre o Caminho, vai nos ajudar aentender. Prestemos atenção:

“Caminhante, o caminho é feito por seus passos.

Caminhante, não há caminho, o caminho é feito ao andar.

Andando, se faz o caminho e se você olhar para trás

tudo que verá são as marcas de passos

que algum dia seus pés tornarão a percorrer.

Caminhante, não há caminho, o caminho é feito ao andar.”

3. O caminho se faz CAMINHANDO...

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho52

Uma realidade na nossa vida e a prática da

fé: ou nos dispomos a caminhar e avançamos o

nosso caminho ou nos acomodamos… e qual será

o trajeto?

É uma realidade que, às vezes, é difícil de

decidir, até porque ficar parado não cansa… No

entanto, no comboio desta vida, ficar parado limita

o vislumbre das paisagens através da janela, ainda

que pequena. Perceber o que deixamos para trás é

difícil… mas a expectativa do que podemos encontrar

depois, alegra… e sem ir jamais sabemos o que

poderemos encontrar…

A certeza de que não caminhamos sós ajuda-

nos a perceber que, mesmo por vezes estreito, pedregoso, íngreme, escuro e irregular

é o nosso caminho, se não o percorrermos ninguém o fará por nós. Não sabemos o

que encontrar, mas Ele ensina-nos a ir… outras pessoas já percorreram... o caminho

se faz ao caminhar!

3.1. Pessoas que contagiam

Pessoas de espiritualidade são pessoas que contagiam. A gente se sente bem

estando ao seu lado, pois elas transmitem algo diferente. São capazes de transmitir

a beleza da santidade divina, que se manifesta a toda hora em nossa vida, nas

coisas que consideramos mais comuns.

Tenhamos a certeza: não há guru, manual de autoajuda ou conselho de amigo

que torne uma pessoa especial. Num mundo de padrões, comportamentos copiados

e atitudes mecanicamente cronometradas para garantir a imagem, ser autêntico,

mostrar a verdadeira essência (e fazer a diferença) é dádiva para poucos. E, felizmente,

há pessoas que parecem verdadeiros “seres iluminados”. São aqueles que estão

sempre de bem com a vida (mesmo que tenham problemas), sorriem para todos, não

se colocam acima do bem ou do mal, e irradiam uma energia inexplicável, que brota

do coração e faz com que todos queiram sua presença.

Podemos citar aqui alguns exemplos de pessoas espiritualizadas, que

contagiam e que podemos considerar como mestres espirituais: Cristo, Murialdo,

Gandhi, D. Hélder Câmara, Ir. Dorothy... são mestres espirituais porque em seus

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho

caminhos da vida realizaram por excelência a união de dois pólos distantes e

complementares, conforme afirma Leonardo Boff: “o pólo daquilo que somos e o

daquilo que devemos ser; o da realidade e o do projeto; o da história e o da utopia.”

(Boff,in a Força da Ternura, p. 34)

Aliás, temos muitos outros exemplos e teríamos mais ainda à nossa volta não

fosse o comportamento doentio que muitos adotam diante dos obstáculos naturais

da vida. Quantos seres iluminados há por aí presos em seu egoísmo, seus caprichos

e em sua arrogância? Um dos caminhos seria observar melhor as pessoas à nossa

volta, reconhecer os seres iluminados e aprender com eles. Com certeza, o resultado

será positivo. Há muitas explicações

para a conduta das “pessoas ilu-

minadas”. Tudo conta: a educação,

as experiências, a vontade constante

de aprimoramento, a vivência da

solidariedade, e, principalmente, o

grau de espiritualidade.

Não é regra, mas os seres

iluminados geralmente são muito

ligados à espiritualidade. Elas têm

uma conexão com o divino, o que

lhes permite passar por cima dos rumores do cotidiano em função de uma ordem

maior.

Pessoas espiritualizadas:

• Irradiam leveza;

• levam alegria aos ambientes que frequentam;

• contagiam as pessoas, com novas formas de enxergar a vida;

• estimulam os outros a buscar soluções, evitando só enxergar os problemas;

• são mais criativos, buscam soluções inovadoras;

• quando há problemas, seu foco está em encontrar quais os benefícios (lições)

que esses problemas podem trazer;

• acreditam que todos os fatos, sejam bons ou não, trazem aprendizados

importantes;

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho

• não se lamuriam, conseguem perceber que lamentações não levam a lugar

nenhum;

• são pessoas que torcem pelos outros, que querem vê-los bem e felizes.

É saudável se deixar contagiar pelas pessoas iluminadas, mas o importante

ainda é procurar seguir seus bons exemplos.

3.2 Pessoas de Comunidade

Pessoas felizes são pessoas

espiritualizadas, saudáveis e produzem mais e

melhor para toda a sociedade. São pessoas que

tem relações menos superficiais e estão centradas

na premissa que se é feliz à medida que os outros

também são felizes. A experiência de Pentecostes

nos ensina que o Espírito Santo produz maravilhas

e sinais em seu propósito de criar a igreja. O

Espírito sempre produz comunhão! Com essa

máxima, as pessoas que vivem a espiritualidade

são pessoas que a manifestam em comunidade, não vivem sozinhas, isoladas,

fechadas em si...

Leiamos Atos 2,42: “E todos continuavam firmes, seguindo os ensinamentos

dos apóstolos, vivendo em amor cristão, partindo o pão juntos e fazendo orações.”

Neste trecho encontramos algumas razões pelas quais devemos, enquanto Leigos

Amigos de Murialdo, viver em comunhão. Vamos às razões:

A primeira razão para viver em comunhão é a PERDA ZERO – O trecho nos diz

que todos continuavam - firmes. Aprendemos com esta afirmação que é possível

manter a unidade da igreja em meio à diversidade quando valorizamos a comunhão

do Espírito. Nenhuma daquelas pessoas se perdeu. Quando pensamos em abandonar

nossa comunidade ou em excluir alguém dela é porque esquecemos ou não

valorizamos a comunhão que o Espírito quer produzir entre nós.

A segunda razão é a FIRMEZA INABALÁVEL que advém da comunhão.

“Continuavam firmes.” Isto é importantíssimo. Quantas vezes corremos o risco de

cair ou de nos desviar do caminho? Se estivermos sozinhos é bem possível que

caiamos ou nos desviamos, mas isto é evitado quando resistimos juntos (1 Pd 5,9).

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Mas como viver esta realidade? O texto anterior mostra alguns fundamentos:

- O primeiro é o APRENDIZADO. O texto nos diz: “seguindo os ensinamentos

dos apóstolos”. A comunhão não é algo que vem pronto, é algo que se aprende.

- O segundo fundamento é a PRÁTICA da comunhão. “vivendo em amor cristão,

partindo o pão juntos e fazendo orações.” Precisamos colocar em prática aquilo que

aprendemos, não sendo apenas conhecedores intelectuais. Para isso é preciso dedicar

tempo, ver o outro como parte essencial da minha família/comunidade.

O terceiro fundamento é o TEMPO de comunhão. A ideia de partir o pão diz

respeito à quantidade e qualidade de tempo que temos para os relacionamentos que

desenvolvemos na vida da igreja/comunidade. Não há comunhão sem investimento

de tempo e sem busca de qualidade.

O próprio Deus estimula essa comunhão de pessoas, quando Jesus diz que:

“onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome” (Mt 18,20), quando Jesus envia

de dois em dois para evangelizar, enfim... “e tiverem amor uns pelos outros, todos

saberão que vocês são meus discípulos.” (João 13,35)

Assim, pessoas que vivem a fé em comunidade são pessoas alegres e sua

prática é contagiante. Entendem que tudo que se refere ao cultivo da vida espiritual é

altamente apreciado, tudo é feito num clima de festa.

Uma espiritualidade que só se preocupa com o individualismo religioso, em

resolver os próprios problemas com Deus e em buscar alívio para meus sofrimentos,

longe de ser uma ação do Espírito de Deus é algo que mais parece mágica. Deus é

um grande mágico que tem a solução para todos os meus problemas, ou então, Ele

é um bom médico a quem eu procuro na hora do aperto. Se assim é a nossa relação

com Deus estamos nos deixando levar por outro espírito que não o de Jesus.

Devemos cuidar para que nosso modo de viver a Espiritualidade Cristã passe

do mero individualismo para o comunitário. A nossa adesão de fé é a um Deus uno

que é uma comunidade de pessoas distintas que se intercomunica ao mesmo tempo

em que se autocomunica com nós pela força criadora do Espírito Santo e nos faz

experimentar que não é possível uma experiência isolada e solitária da graça de

Deus. É na comunidade de fé que entendemos o modo como Deus nos salva. Não

podemos esquecer que Ele nos salva já agora no modo concreto como nos abrimos

à graça do seu Espírito. Como Jesus devemos nos deixar levar pelo Espírito para

“levar a Boa Nova aos pobres, anunciar aos cativos a libertação, aos cegos a

recuperação da vista, dar liberdade aos oprimidos e proclamar o ano da graça do

Senhor” (Lucas 4,18).

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3.3 Evangelizar é preciso

“Minha voz se eleva

para proclamar ao senhor

Pois minha missão é evangelizar

Anunciar ao perdido

A grandeza de nosso Senhor

Relevada na cruz do calvário Jesus

ÓJesus

Evangelizar é preciso,evangelizar

Evangelizar é preciso,evangelizar

Levar a luz para quem anda nas trevas

Levar a paz para quem vive em guerra

Anunciar ao pecador o perdão

Nisto está meu coração” (Padre Reginaldo Manzotti)

Evangelizar é preciso e é missão de todo o

batizado. “Ide e Evangelizai” (Mt.28,19...). Muito

interessante percebermos algo que é fundamental:

Jesus chama em um primeiro momento; num

segundo momento, pede que o discípulo fique

com Ele; e num terceiro momento o envia para

a missão. O processo é exatamente nesta

ordem; nosso chamado primeiro consiste em

ficarmos - nos encontrarmos - com o Senhor.

Mas por que o Senhor nos chama para estar

com Ele frente a tanto que precisaríamos fazer

com relação à evangelização? Seria -

humanamente falando - muito mais coerente e

necessário enviar logo os discípulos para a

missão. Se fosse assim, o que os discípulos

poderiam dar? Ninguém dá o que não tem. Isso mostra que Jesus não chama pessoas

prontas; pelo contrário, as chama à restauração. Aliás, toda vocação (chamado)

possui poder de ressurreição, ou seja, Jesus chama (vocação) para estarmos com

Ele; estando com Ele, somos curados, libertos e restaurados. Saboreando tudo

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isso, então sim, somos enviados para levar a Boa Nova - libertação e vida às pessoas.

Não levemos nada pelo caminho, a não ser o amor, a experiência de vida e a

graça da experiência adquirida com Deus. Tudo, além disso, é “tranqueira”, que

servirá - unicamente - para atrapalhar e desmotivar a missão.

Para evangelizar basta amar e todos podem evangelizar, desde que aprendam

a mergulhar na fonte do amor. Expressão da caridade, a evangelização não é, apenas,

tarefa de peritos, que para isso se prepararam humanamente. As crianças, as mães

de família, os jovens na sua escola ou no seu grupo, os trabalhadores no seu local de

trabalho, os presos, os doentes e os idosos, podem testemunhar a salvação, se

aprenderem a amar.

Este é um aspecto fundamental do dinamismo evangelizador que precisamos

suscitar ainda mais na Associação Nacional dos Leigos Amigos de Murialdo: para

evangelizar é preciso aprender a amar. A capacidade de amar é um dom do coração

humano, potencializado pelo dom do Espírito Santo, amor divino que Deus derrama

nos nossos corações, que não só nos ensina a amar os nossos irmãos com a marca

do amor divino, mas nos permite mergulhar na profundidade do amor de Deus.

A capacidade de amar tem a sua fonte no batismo e exprime-se na Eucaristia.

Para aprender a amar basta deixar-se amar. Esta aprendizagem do amor é um desafio

para todos nós.

3.4 ESPIRITUALIDADE: fios que tecem redes

Várias são as imagens que nos vêm à cabeça, quando pensamos na palavra

rede. Entre tantas, e de diferentes significados e naturezas, estão a rede de pescar,

a rede, artérias e veias do corpo humano, a teia de aranha.

Redes sempre existiram. São inerentes à natureza do ser humano. Fazemos

parte de redes e muito cedo começamos a tecer a nossa própria, à medida que

ampliamos nossas relações e experiências sociais. Podemos reconhecer exemplos

de articulação solidária ou organização, como é o exemplo da nossa própria ANALAM.

Na prática, redes são comunidades constituídas, em torno de um objetivo comum.

A existência humana necessita de uma solidariedade mínima, uma relação de

partilha, de compromisso para com o outro. Quanto mais a sociedade se complexifica,

mais as pessoas necessitam de outras para sobreviverem. A complicação crescente

da vida moderna deixa-nos indefesos de tal modo que requisitamos continuamente a

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ajuda alheia, precisamos do outro para sobreviver.

O horizonte maior é sempre a solidariedade. Em vista dela todo serviço é bem-

vindo. As mudanças culturais, provocadas pela revolução da informática e

telecomunicação, tem aberto novas e extraordinárias possibilidades de uma ação

solidária de longo alcance. E surgem também parcerias desafiadoras. Com esse

sangue novo, a vivencia da espiritualidade é o caminho para tecer uma rede duradoura

marcada por sonhos e utopias...

A teia que a aranha cósmica tece é o

Universo e (também de acordo com certas

tradições africanas) é tecido com um único fio.

É uma rede intrincada, delicada, belamente

funcional, expandindo-se do centro, da mais

elevada região espiritual.

O conceito de teia da vida e a

interdependência dos seres vivos não é novo.

Muitos povos antigos compreendiam que as

formas de vida são tecidas juntas de uma maneira

maravilhosa, e que a teia tem uma origem

sagrada. Ela é um meio de descobrir as qualidades inatas do Divino.

O fio da teia da aranha deve ser tão fino que não seja percebido pelo inseto que

voa e também tão forte que possa mantê-lo cativo. Sua resistência à tração é duas

vezes maior do que a do melhor aço, e sua elasticidade maior do que a do nylon!

Muitos produtos dos homens baseiam-se na observação da natureza e nos materiais

que seus filhos fabricam.

O favo da abelha é espantoso: “Os homens necessitariam de instrumentos

acurados para tal precisão. Mas as abelhas o obtém com suas antenas.” (Citado por

Augros e Sanciu em The New Biology). É o amor divino que ensina todas as criaturas

a fazerem o que é preciso para sua própria vida e avançarem em direção à perfeição.

Toda vida é um milagre. Que nossas ações e pensamentos não sejam contra o

Divino, excluindo a beleza, a sabedoria e o amor que iluminam a teia. A vida humana

é preciosa porque pode realizar a beleza da teia, perceber o sentido subjacente e o

propósito do processo evolucionário. Quando abrimos nossos corações à vida como

um todo e à magnificência revelada através da manifestação, ficamos maravilhados,

esquecidos de nós mesmos.

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho

3.5 ANALAM: na espiritualidade solidária

“Preciso viver uma espiritualidade solidária que não busca

livramentos sobrenaturais. Enquanto houver uma criança

abandonada em algum campo de refugiados das Nações

Unidas, enquanto houver um hospital com macas no corredor,

não pedirei qualquer bônus sobrenatural. Não quero privilégios

divinos que me distingam. Espero apenas um milagre: ouvir o

teu lamento e a tua indignação por tanta morte desnecessária.

Concede-me sensibilidade para acolher o teu apelo e ser ao

mesmo tempo pregoeiro da justiça e bom samaritano.

Preciso viver a fé como coragem. Não transformarei a minha

relação contigo em uma fuga existencial. Enfrentarei as adversi-

dades, celebrarei as conquistas, suportarei o tédio, lamentarei

as ruínas, confiando que os valores propostos por Jesus de

Nazaré são suficientes para me fazerem mais que vitorioso.”

(Ricardo Gondim)

A Associação Nacional dos Leigos Amigos de Murialdo busca viver aespiritualidade tendo Jesus Cristo como o centro unificador que reúne os seus emcomunidade, não só porque a espiritualidade é vivida em comunidade, mas porqueela se constrói na e pela comunidade. É a comunidade que deve oferecer um ambientecapaz de ajudar na elaboração e no fortalecimento da espiritualidade dos seusmembros. Nossa espiritualidade é uma espiritualidade solidária porque envolve todosos que nos são confiados pela nossa missão, ela parte da realidade das pessoas,principalmente com os mais pobres e abandonados, no entender do carisma deMurialdo, as crianças, adolescentes e jovens.

Assim, centrados no carisma e espiritualidade de Murialdo, nós Leigos Amigosde Murialdo buscamos fazer parte da Família de Murialdo, como tal, precisamospromover uma espiritualidade da comunhão. Espiritualidade da comunhão significaem primeiro lugar ter o olhar do coração voltado para o mistério da Trindade, quehabita em nós e cuja luz também se acolhe no rosto dos irmãos que estão ao nossoredor. Espiritualidade da comunhão significa também a capacidade de sentir o irmãode fé como “um que me pertence”, para saber partilhar as suas alegrias e os seussofrimentos, para intuir os seus anseios e dar remédio às suas necessidades, paraoferecer-lhe uma verdadeira e profunda amizade. Espiritualidade de comunhão é ainda

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho

a capacidade de ver antes de tudo o que há de positivo no outro, para acolhê-lo e valorizá-lo como dom de Deus: um “dom para mim”, além de sê-lo para o irmãoque o recebeu diretamente. Por fim, espiritualidade da comunhão é saber “criar espaço”para o irmão, carregando “os fardos uns dos outros” (Gal 6,2) e rejeitando astentações egoístas que sempre nos insidiam e geram competição, suspeitas, ciúmes.Não haja ilusões! Sem esta caminhada espiritual, de pouco servirão os instrumentosexteriores da comunhão. Revelar-se-iam mais como estruturas sem alma, máscarasde comunhão, do que como vias para a sua expressão e crescimento (Carta ApostólicaNovo Millennio Ineunte, nº 43, 2000)

A ANALAM possui a grande tarefa de mostrar à sociedade uma alternativa aosprocessos de desumanização e embrutecimento. Isto somente acontecerá por meioda vivência de uma fé integral, isto é, que contemple aspectos tanto da espiritualidade,quanto da solidariedade. É, portanto, por meio do cultivo de uma espiritualidadesolidária que a fé se tornará eficaz, na prática do amor, na luta por justiça, na defesado oprimido, no sorriso sincero, no abraço amigo, nos gestos de carinho e afeto, e naternura de um olhar que vê no outro não um número ou mera coisa, mas pessoa,gente como a gente.

A espiritualidade solidária auxilia a pessoa a se aprimorar através de atitudessolidárias, que promovam valores éticos e morais bem como melhoram as relaçõesinterpessoais. A prática de ações que proporcionem bem estar ao indivíduo, tenderáa elevar sua autoestima, o que é fator de grande importância na obtenção e manutençãoda qualidade de vida. Podemos dizer que através da espiritualidade é possível termotivação para viver e enfrentar dificuldades, superar com mais facilidade desafios emanter-se emocionalmente saudável.

Leonardo Boff afirma:

“Se reservarmos em nossa vida um pouco de espaço para

essa espiritualidade, ela vai nos transformando, pois este é o

condão da espiritualidade: produzir uma transformação interior.

Essa transformação acenderá nossa chama interior que produz

luz e calor e nos dá mil razões para vivermos como humanos.

Assim, caminharemos serenos neste mundo, junto com outros

e na mesma direção que aponta para a Fonte de abundância

permanente de vida e de eternidade. E mergulharemos nessa

Fonte de espiritualidade, que é Fonte de espírito, de vida, de

amorização, de realização e de paz.” ( BOFF, Leonardo, 2001)

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho

A nossa missão enquanto

ANALAM está embasada numa

espiritualidade libertadora, que não se

restringe à aprendizagem de valores e

princípios. Supõe vivência e seguimento.

Em nosso caso, vivência da mensagem

do Evangelho e seguimento de Jesus

Cristo a partir do carisma de São

Leonardo Murialdo. A espiritualidade

solidária e libertadora é marcada pela

experiência de quem vê, conhece, ama

e anuncia o Cristo, no rosto dos irmãos que estão à margem, especialmente as

crianças, adolescentes e jovens.

A espiritualidade solidária é unida à vida, onde oração e ação, sagrado e profano,

fé e compromisso com a justiça são os ingredientes, distintos, inseparáveis e

sustentam a vida cristã no seu conjunto. Jesus Cristo, sendo Deus, assume

plenamente o ser humano. Não se manifesta como divindade. Encarna-se no meio

dos pobres e como pobre.

Aliás, enquanto ANALAM assumimos a defesa da vida e falar de defesa da

vida é falar de defesa do ser humano e do meio ambiente. É preciso, portanto, cultivar

uma espiritualidade que enfoque, com a luz da fé, os problemas da sustentabilidade

do nosso tempo. Falar de uma espiritualidade ecológica não se trata da manifestação

superficial de uma espiritualidade aburguesada, mas de algo que está nas entradas

da fé libertadora: o sentido de que as criaturas são sujeitos e não meros objetos de

manipulação e consumo humano, e o sentido do respeito inviolável de toda criatura.

Precisamos cultivar uma espiritualidade que atualize a salvação e a libertação

de Deus em resposta aos clamores e as necessidades dos pobres de hoje, que nos

oriente para o respeito ao ser humano e seus direitos. Assim, somos chamados a

viver uma espiritualidade atenta a realidade como lugar da manifestação e do encontro

com Deus. Não uma espiritualidade intimista, mas aberta; não uma espiritualidade

introvertida, mas atenta; não uma espiritualidade escapista, mas comprometida; não

uma espiritualidade calada e intimista, mas implicada e ativa. Uma espiritualidade

será tanto mais profunda e interior quanto mais aberta para fora e a partir de fora.

A Conferência de Aparecida renova a opção pelos pobres (397,398, 399) e os

reconhece como sujeitos da evangelização e da promoção humana Não se trata de

uma fórmula convencional. O texto é insistente: “Assumindo com nova força esta

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Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho

opção pelos pobres” (399).

Quem faz a opção pelos pobres, a faz num espírito de compaixão, que pede,em primeiro lugar, uma atitude de solidariedade com quem sofre. Isso tem a ver comum estilo de vida que assumimos, mas também a compaixão exige um compromissode ação que procure superar a injustiça estrutural.

A espiritualidade gera qualidades indispensáveis:

Humildade - “Deus exalta ao humilde e humilha o soberbo”, (Ez 22,26).

Um dos princípios cristãos é a humildade. A razão é simples: a humildadereduz o estresse. As pessoas humildes não acreditam que devam ter todas asrespostas; consequentemente, não precisam fingir ter essas respostas, o que reduza ansiedade. Quando a ansiedade diminui, a felicidade aumenta.

Amar ao próximo - “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, (Mt 22,29).

Ajudar ao próximo por razões puramente altruístas sem ganhar nada, a não sero prazer de prestar um favor ou praticar uma boa ação. As pessoas que só pensamem si desconhecem a alegria proporcionada pelo dar. Quem faz as coisas pelosoutros sem visar ganho pessoal colhem grandes benefícios, por exemplo: lembremosdo olhar das nossas crianças quando recebem um abraço. Quem recebe tem osorriso de gratidão, mas o sorriso de ter feito a diferença na vida de alguém vale ouro.

Saber perdoar - “Senhor, quantas vezes devo perdoar o meu irmão que pecacontra mim? Sete vezes? Não! Respondeu Deus. Você não deve perdoar sete vezes,mas setenta vezes sete”, (Mateus 18,21-22). As pessoas que não têm fé quasesempre guardam mágoas, ressentimentos, rancor e amargura em relação aos outrose raramente, ou nunca, têm paz de espírito. A solução para essa situação é o perdão,que é um grande auxiliador para as pessoas espirituais, pois sempre estaremos nosrelacionando com pessoas imperfeitas, assim como nós.

Gratidão – Já paramos para pensar quantas coisas temos para agradecer?Deus criou a terra, o mar e o céu para que possamos usufruir de todas as maravilhas.Tudo Ele fez para nos agradar. Deus nos fez pessoas abençoadas, sejamos gratos,muito grato por tudo.

Dependemos uns dos outros, vivemos uns dos outros. Por isso, somosconvidados, sempre de novo a nos aproximarmos das dores alheias, a tornarmo-nosvulneráveis às múltiplas dores e também às múltiplas alegrias. Dores e alegriasdevem fazer parte não só da vida cotidiana, mas de um processo educativo coletivoda nossa caminhada de crescimento espiritual.

Quando colocamos nossa vida a serviço da causa dos preferidos do Reino,

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como fez Jesus, estamos soprando um ar novo, sopro criador, capaz de restaurar oscorações cansados, aliviar os corpos abatidos, curar as feridas da morte que insisteem continuar morando em nosso meio. Que nosso sopro seja portador da esperançado Espírito Santo que renova a face da terra e faz novas todas as coisas para que omundo seja a casa de Deus onde todos sejam irmãos.

Não esqueçamos: “Caminhante não há caminho. O caminho se faz aocaminhar.” E nunca tal caminho se constrói definitivamente: o caminho, ao invés deficar estático e pronto, vai sendo refeito, ampliado, reduzido, transformado, dividido,partilhado. Neste partilhar é que está todo o sentido da trajetória humana.

Considerações finais

Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho. Precisamoscontinuar caminhando, acima de tudo vivendo a espiritualidade que diz respeito àsolidariedade, tolerância e amor. Somos feitos para o outro... Finalizamos com aspalavras de Leonardo Boff:

“O ser humano é semelhante a um anjo que entrou numa grave crise ao cair eperdeu uma asa. Com uma asa só, não consegue mais voar.

O que fez então?

Abraça-se a outro anjo que também caiu e perdeu uma asa. Assim, um completao outro. Abraçados, novamente têm duas asas. Superam a crise, erguem voo econseguem voar para o seu destino.

Se não fossem solidários e se não se abraçassem mutuamente, estariamdefinitivamente perdidos. Uma asa mais uma asa não são duas asas, mas um anjointeiro que recupera sua integridade e sua capacidade de voar – e de voar nas alturas,realizando o chamado de sua natureza.” (Boff, in a Força da ternura, p. 110)

Para conversar:

1.Como percebo a ação de Deus em minha vida e no universo?

2.Procuro viver a ação do Espírito de Deus que me lança para assumir a

causa do reino, proposto por Jesus Cristo? Que ações concretas dão testemunho do

meu modo de ser cristão, membro da ANALAM?

3.A Espiritualidade é algo a mais que uma simples fé. Como tenho vivido a

experiência da minha espiritualidade, dedico tempo?

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Bibliografia

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. Ed.Moderna, 2005

BAUMAN, Zygmund. A Vida para o Consumo. Ed. Zahar, 2008

_____ Vida Líquida. Ed. Zahar, 2007CASTRO, Valdir José de. Espiritualidade Cristã,

Mística da Realização Humana. Ed. Paulus, Sçao Paulo, 2008

BOFF, Leonardo. Espiritualidade, um caminho de Transformação. Ed. Sextante, Rio deJaneiro, 2006

LIBANIO, João Batista. Ser Cristãos em Tempos de Nova Era. Ed. Paulus, S.Paulo,1966

MERRILL Roger e Rebecca R. Questões Fundamentais da Vida. Ed. Sextante, 2004

MORAIS, Régis de. Espiritualidade e Educação. C.E.Allan Kardec., Campinas, 2002

TELES, Antônio Xavier. Introdução ao Estudo de Filosofia. Ed. Ática, 2006

Livro de Atas da ANALAM. (Relatório dos Congressos)

Jornal Pioneiro. Edição de 27 de novembro de 2009. Grupo RBS

Jornal Zero Hora. Edição de 27 de dezembro 2009. Grupo RBS

Revista Isto É. Edições 1926 de 20/09/06 e 2001 de 12/03/08.Editora Três

Revista Mundo Jovem. Ano 47 – Setembro 2009. Editora PUCRS, 2009

Revista Veja. Edição de 17 de fevereiro de 2010. Editora Abril

Título: Numa sociedade individualista, a espiritualidade é o caminho

Subsídio nº 11 da Associação Nacional dos Leigos Amigos de Murialdo - ANALAM

Elaboração: Conselho Formativo

Jornalista Responsável: Bernardete Chiesa - MTb 10187

Revisão: Cíntia Ruzzadori

Tiragem: 1.000 exemplares

Editoração e Impressão:

(54) 3221.14.22 - Caxias do Sul - RS