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Número Temático Spinoza e a Imaginação Rio de Janeiro 2017, v. 10, nº 3 ISSN 1982-5870

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NúmeroTemático

SpinozaeaImaginação

RiodeJaneiro

2017,v.10,nº3

ISSN1982-5870

Publicação do Grupo de Pesquisas Spinoza & Nietzsche: estudos de filosofia da imanência

(SpiN) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de

Janeiro (PPGF-UFRJ).

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Reitor Roberto Leher

Vice-Reitora Denise Fernandes Lopez Nascimento

Pró-Reitora de Pós-Graduação Leila Rodrigues da Silva

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS (IFCS)

Diretora Susana de Castro Amaral Vieira

Departamento de Filosofia

Chefe Antônio Saturnino Braga

Coord. do Prog. de Pós-graduação em Filosofia Rafael Haddock-Lobo

Editor Responsável / Editor-in-Chief

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Editores Adjuntos / Associated Editors

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Paula (UNIFESP), Mariana Lins Costa (UFBA), Maurício Rocha (PUC-RJ), Miguel Angel de

Barrenechea (UNIRIO), Olímpio José Pimenta Neto (UFOP), Rebeca Furtado de Melo

(CPII), Regiane Lorenzetti Collares (UFCA), Renato Nunes Bittencourt (UFRJ), Wander

Andrade de Paula (UFES),

Sumário Editorial 7

Artigos temáticos

Imagem, experiência e gênese política em Espinosa 10

Daniel Santos da Silva

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver 28

Elton Luiz Leite de Souza

A primeira ideia verdadeira no TIE: ideia do corpo e ideia-da-ideia 58

André Martins

Spinoza e os espíritos 72

Alex Leite

Artigo varia

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie 86

Philippe Danino

Tradução

Fernand Deligny: O agir no lugar do espírito – Pascal Sévérac 118

Adriana Barin de Azevedo e Guilherme Ivo

Resenha

La semiotica di Spinoza – Lorenzo Vinciguerra 137

Pablo Azevedo

7 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p.7-8, 2017

Editorial

Editorial

Spinoza e a imaginação

Deleuze o afirmara com todas as letras e grande entusiasmo, mas não só ele: é

consensual que a filosofia de Spinoza é uma das mais originais, estruturadas e ousadas

filosofias da imanência de toda a história. Inclusive, é considerada, atualmente, por

muitos de seus estudiosos a principal, mais profícua e vanguardista filosofia

contemporânea ao século XXI, embora pensada e redigida em um longínquo XVII. Uma

compreensão imanentista se revela por sua ontologia, sua metodologia, sua política, sua

ética, sua teoria dos afetos, sua teoria do conhecimento.

Sua compreensão cognitiva e terapêutica da razão como processo dinâmico de

conhecimento da realidade, por meio da percepção de propriedades comuns às coisas

singulares, finda, no entanto, por não tratar com a mesma ênfase o conhecimento pela

imaginação e seu estatuto. Ao afirmar, na proposição 41 da Parte II de sua Ética, que “o

primeiro gênero de conhecimento é a única causa de falsidade”, Spinoza não diz que a

imaginação é sempre e inevitavelmente fonte de ideias falsas. Além disso, Spinoza

nomeia o primeiro gênero de conhecimento como imaginação, igualando-o à opinião,

apenas no escólio 2 da proposição 40 da segunda Parte da Ética, mas, já no escólio da

proposição 17 desta mesma Parte, Spinoza afirma que a mente “imagina” e que “as

imaginações da mente, consideradas em si mesmas, não contêm nenhum erro”, e, desde

então, expõe sua teoria do conhecimento, como um desdobramento do que apresentara

em seu Tratado da Reforma do Intelecto, segundo a qual, todo conhecimento se dá não

só a partir dos sentidos, mas pela associação de imagens formadas pelos sentidos. E mais,

a para alguns enigmática Parte V da Ética, apresentada por Spinoza como o ápice de sua

ética e de sua terapêutica tanto racional como afetiva e cognitiva, demanda em suas

proposições que imaginemos (“as coisas singulares mais distinta e vividamente”, como

no escólio da proposição 6; que ordenemos “imaginações”, no escólio da 10; ou que a

mente vincule “as imagens das coisas à ideia de Deus”, na 14, por exemplo).

Em suma, se, para estudos que por décadas se inspiraram numa leitura de cunho

cartesiano para interpretar Spinoza, a imaginação fora vista como um conhecimento falso

a ser superado, essas observações supramencionadas indicam para o fato de que seu

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p.7-8, 2017 8

estatuto está longe de ser simples e muito menos consensual, o que faz da imaginação um

tema de crescente relevo e importância para os estudos acadêmicos spinozistas.

Neste número temático da Revista Trágica: Estudos de Filosofia da Imanência,

abrimos espaço para esta – na verdade inesgotável – questão, a da imaginação em

Spinoza. Daniel Santos da Silva expõe o vínculo existente entre imaginação e experiência

na política de Spinoza, diferenciando-a desta forma da política contratualista de Hobbes.

Elton Luiz Leite de Souza reflete sobre as implicações do verbo envolver nos gêneros de

conhecimento. André Martins interpreta, no Tratado da Reforma do Intelecto, o que é

apresentado por Spinoza como a primeira ideia verdadeira, vinculada ao fato da recepção

ou percepção do real, como ideia do corpo, e sua relação com a ideia da ideia. Fechando

os artigos temáticos, Alex Leite apresenta como, na correspondência com Boxel, Spinoza

expõe o que entende como o que existe e as relações da imaginação com o verossímil.

Finalmente, Philippe Danino analisa, em seu artigo, detalhada e profundamente, o

estatuto do “filósofo” na obra de Spinoza. Este número dedicado ao filósofo luso-

holandês traz ainda a tradução, por Adriana Barin de Azevedo e Guilherme Ivo, de artigo

de Pascal Sévérac, no qual este argumenta que o agir vem antes da mente propriamente

reflexiva, mas no mesmo lugar desta, como uma natureza psíquica agente ou, nos termos

de Spinoza, como um autômato espiritual. Por fim, Pablo Azevedo resenha o livro

intitulado A semiótica de Spinoza, de Lorenzo Vinciguerra, importante autor ítalo-francês

que se dedica ao tema da imaginação e do signo em Spinoza.

Desejamos a todos uma ótima leitura.

Os Editores

9 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, 2017

Artigos temáticos

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017 10

Imagem, experiência e gênese política em Espinosa

Daniel Santos da Silva*

Resumo: O texto a seguir tenta chamar a atenção para alguns aspectos que

unem, de forma produtiva, as concepções de imaginação e experiência, em

Espinosa, às suas mais fundamentais formulações a respeito do campo político;

para isso, apresento a imprescindibilidade incontornável das propriedades da

imaginação na intelecção - por nossa parte - do que constitui, filosoficamente, a

gênese da Cidade ou, de modo geral, do corpo político. A partir da relação feita

pela obra de Espinosa entre conhecimento, ética e política é possível não apenas

reformular o alcance do contrato social como proposta genética para a política,

mas, além disso, criticar essa proposta e entender a radicalidade do que separa

esta obra política da hobbesiana.

Palavras-chaves: imagem, paixão, experiência, conflito, gênese

Image, experience and political genesis in Espinosa

Abstract: The following text attempts to draw attention to some aspects that

unite productively the conception of imagination and experience, in Spinoza, to

its most fundamental formulations regarding the political field;for this, i present

the essential indispensability of the properties of the imagination in the

intellection of what constitutes, philosophically, the genesis of the City or, in

general, of the political body. From the relation made by Spinoza's work

between knowledge, ethics and politics, it is possible not only to reformulate the

scope of the social contract as a genetic proposal for politics, but also criticize

this proposal and to understand the radical nature of what separates this political

work from the Hobbesian.

Keywords: image, passion, experience, conflict, genesis

É natural que recorramos à experiência quando se trata de compreender os

elementos políticos que movem uma sociedade. Especialmente porque sabemos, até

certo grau, que a situação da coisa pública, em determinado momento, segue de

processos históricos às vezes de longuíssima escala e, ainda, é obra de embates que

apenas uma certa experiência política pode pôr mais às claras. Dentro do amplo espectro

da filosofia política, obras como a do holandês Espinosa e do florentino Maquiavel, suas

ênfases em certos ensinamentos e abalos da vida prática, reclamam essa proximidade

(em parte exigida pelo espírito próprio da Modernidade), mas ressaltam, porém,

algumas sutilezas que tendem a afastar a reflexão filosófica sobre a vida civil do

empirismo dos políticos; os quais, quando movidos unicamente pelo desejo de dominar,

* Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Contato: [email protected]

Imagem, experiência e gênese política em Espinosa

11 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017

mais temem a multidão do que governam em vistas do bem desta.1 Sucintamente,

reconhecer a experiência e subsumi-la na prática política não significa o mesmo que pôr

a experiência como objeto - nesse sentido, a teoria política espinosana, seguindo os

passos da Ética, tem de reclamar a prática como um dos critérios para a pretensão de

validade do que é dito, mas simultaneamente reconhecer, partindo do esforço constante

de ir às causas, os limites dela no que concerne à inteligibilidade do desejos na vida

individual ou coletiva. E como pensar a experiência constitui um ato de experiência,

articulável em várias frentes práticas e cognitivas, pode-se assim impor um movimento

incessante à teoria mesma, para que não se caia na formulação de utopias ou sátiras que

mais imaginam o homem como deveria ser do que o pensam como realmente é.2

O campo político espinosano, se damos relevo ao Tratado político, sustenta-se

explicitamente nas teses ontológicas, éticas e cognitivas fornecidas pela Ética. Assim,

toda desconfiança em direção à experiência e, por outro lado, a inclinação a reconhecê-

la como docente (experientia docens) e tomá-la por objeto de investigação, tudo isso

pode ser explicado, em suas linhas mais fundamentais, pela teoria da imaginação que

lemos na segunda parte da Ética.3 No caso, deparamo-nos com aspectos diversos

compreendidos dentro de um mesmo gênero de conhecimento, o qual se define pelas

relações entre ideias que respeitam às afecções do corpo próprio por corpos externos -

ou seja, segue que pela apreensão imaginativa não temos acesso à essência das coisas

fora de nós, tampouco à nossa própria.4 E, a princípio (e por quase a totalidade de nossa

existência), nossas relações com as coisas foras de nós são ambíguas, na medida em que

por si mesmas não são nem nocivas nem úteis, senão quando analisamos os afetos que

decorrem de um encontro (occursus). A concretude da análise, porém, exige ir mais

fundo - não convém abstrair as relações de seus efeitos atuais nas mentes e corpos que

as integram e constituem, já que mesmo as flutuações de ânimo5 supõem potências

1Tratado Político, I, 2e V, 7.Daqui para a frente, usaremos em relação a essa obra a sigla TP.Cf. A. Negri,

A anomalia selvagem, cap. VIII, ps. 241- 266; M. Chaui, A política em Espinosa, ("Direito é potência.

Experiência e geometria no Tratado político), ps. 197- 264. 2TP, I, 1.Para Maquiavel, o clássico capítulo XV de O Príncipe. 3 Fundamental o estudo de L. Vinciguerra, Spinoza et le signe. La genèse de la imagination, em que, antes

de tudo, vemos a retomada crítica da tradição espinosana em relação aos estudos da imaginação; cf.

especialmente a introdução, que também já prepara o terreno para a gênese da imaginação, ps. 7-24. 4 Cf. a Ética, II, no escólio da prop. XVII: "(...) chamaremos imagens das coisas as afecções do corpo

humano cujas ideias representam os corpos externos como que presentes a nós (velut nobis praesentia

repraesentant), ainda que não reproduzam as figuras das coisas. E quando a mente contempla os corpos

desta maneira, diremos que imagina". 5 Cf. Ética, III, prop. 17: "a flutuação de ânimo... está para o afeto assim como a dúvida está para a

imaginação". Assumir a flutuação como uma experiência da mente dificulta, por outro lado, que caiamos

Daniel Santos da Silva

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017 12

singulares que afetam e são afetadas. Em termos de poder (no caso, de potestas)

constituído com base em tais experiências, vemos os vínculos de sujeição ou de união

(TP, II, 8-13) que caracterizam o estar sui juris ou alterius juris - sob poder de si

próprio ou de outrem, respectivamente - seguirem as coordenadas explicitadas pelas

terceira e quarta partes da Ética, em que vemos as origens e a força dos afetos em

nossas vidas.

É no Tratado teológico-político (TTP), entretanto, que uma série de

consequências políticas é trabalhada inicialmente e por uma ênfase direta a partir das

propriedades da imaginação: não apenas suas configurações servem à compreensão do

que é a profecia e de como operam os profetas,6 mas outros aspectos fundamentais

intervêm, como, por exemplo, a recepção vulgar da lei, que tende a tratá-la pela

mediação das imagens de ganho ou de perda (castigo ou recompensa), fazendo-a surgir

como uma imposição externa com poder de coação sobre os homens;7servem, não

menos, à crítica da imagem de eleição divina;8 à crítica aos aspectos puramente

simbólicos e ritualísticos das religiões que procuram submeter os ânimos de seus

adeptos,9 entre outros aspectos solidificados nesse primeiro tratado político de Espinosa.

E é nesta obra que o filósofo de Amsterdam aprofunda conceitualmente a questão da

gênese do imperium, fazendo uso, simultaneamente, de elementos racionais e

imaginativos para explicar as causas da união política entre homens.

À ética não acompanharia "naturalmente" uma política, pois, se a imaginação

não fosse na vida humana expressão da sua potência, da pluralidade que caracteriza a

forma e o conteúdo do ser individual - aqui fundidos na atualidade vivente (e potente)

da união entre corpo e mens, os quais constituem modos que se identificam sob a

perspectiva da causalidade absoluta da substância. Na medida em que os fluxos de

ideias que remetem ao corpo próprio são atravessados de alteridade, a imagem que

temos de nós e das coisas do mundo são dimensionadas pela fertilidade ou pela pobreza

no erro de pensá-la como um estado. Cf. Vinciguerra, Spinoza et le signe, ps. 28-30; penso especialmente

no seguinte alerta da p. 31: "Le doute et la fluctuation ne sont donc pas des états, mais bien des actes qui

entament la confience dans nos idées, qui brisent la faible composition des croyances sur laquelle repose

l'équilibre fragile de nos vies." 6TTP, I e II. 7TTP, IV e V. Cf. o artigo de Marilena Chaui dedicado ao assunto, "A desconstrução da ideia de lei divina

no capítulo IV do Tratado teológico-político de Espinosa", em Cadernos espinosanos, n. 36, jan-jun. de

2017, ps. 279-321. 8TTP, III. 9TTP, pref., IV e V.

Imagem, experiência e gênese política em Espinosa

13 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017

com que a potência de cada um consegue, sob determinadas circunstâncias, afirmar-se

em sua existência. Os conceitos de conatus, de direito natural e de utilidade respondem

antes de mais nada às disposições do desejo que constitui nossa essência atual, em

comércio fisiológico e afetivo com aquilo que aparece e é imaginado, pela mente, como

exterior. De certo modo, o posicionamento diante do outro, as valorações que daí

surgem, os esforços de conservá-lo ou destruí-lo, são a matéria sobre a qual ética e

política devem dobrar-se, pensando o que é e o que pode ser de acordo com a inserção

dos homens nesse infinito complexo que é a natureza.

Claramente, as operações humanas não são circunscritas apenas ao terreno

imaginativo, e mesmo a experiência possui amplitude conceitual suficiente, em

Espinosa, para se fazer presente em todos os gêneros de conhecimento, imaginação,

razão e ciência intuitiva.10 Mas o conatus, o direito natural e a utilidade (política) não se

descolam em segundo nenhum da estrutura imaginativa, pois não se deixa a imaginação

para trás como quem opta por não fazer uso de uma faculdade. A mente é uma ideia

complexa, constituída de tantas outras que são tanto inadequadas como adequadas11 - e

justamente por saber que a imaginação nunca cessa de operar, Espinosa precisa

reconhecer que, em estado natural ou em estado civil, ela, a imaginação, é potência

atuante nas mais fundamentais determinações da vida individual e da vida comum; a

maioria dos afetos decorre de ideias das afecções do corpo, da memória, das flutuações

a que o ânimo se entrega sem querer se entregar, da imagem que temos de nossa

singularidade e liberdade, da desproporção entre o que desejo para mim e espero para

o/do outro.

Não muito distante dali, Thomas Hobbes igualmente vinculou a utilidade das

coisas e dos eventos ao poder do corpo de impor-se como uma força frente a tudo o que

lhe pode ser hostil e de fazer uso de meios favoráveis tendo em vista sua segurança.

Procurar um valor intrínseco às coisas naturais, talvez uma atitude espontânea de todo

ser com consciência de suas inclinações, não convém, entretanto, ao verdadeiro estudo

da política. Para esta, resumidamente, interessa, antes de mais nada, apreender os

homens dentro da engrenagem complexa da natureza, perpassada de necessidade, e aqui

10Cf. Moureau, Spinoza. L'expérience et l'éternité, parte II, chap. I, ps. 227-306. 11 Cf. Ética, II, as props. 15, 38, 39 e 40.

Daniel Santos da Silva

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017 14

a imaginação vem estabelecer as primeiras coordenadas, através das quais uma certa

necessidade - na esfera da dedução das ideias - pode levar a ciência da natureza humana

a perfeccionar a arte da vida política, ou melhor, a aprimorar os instrumentos e artifícios

que logram conferir unidade ao que é, por natureza, disperso e afásico - a multitudo

antes da união civil, do contrato social.12 A experiência, certamente, é um instrumento

eficaz de sobrevivência, pensa o filósofo inglês, e a prudência que ela expressa vem de

um processo de elaboração imaginativa cuja dinâmica é, assim como em Espinosa, a

própria vida das paixões e a profundidade da memória.

Assim sendo, poderia parecer contraditório, talvez, que duas das mais potentes

filosofias políticas modernas - a de Hobbes e a de Espinosa -, para as quais o corpo é

matéria imprescindível de inteligibilidade da política, tenham recorrido a uma estratégia

genética no momento de ir aos fundamentos da realidade social dos homens (ou seja, ir

além do dado experimentado de que vivemos em sociedade). Com genético, aqui,

refiro-me a um certo movimento de abstração (prescindindo, temporariamente, do

recurso à imaginação) que procura pensar a política em sua origem determinada de

forma geral, mas necessária. Poderia parecer, em outros termos, que a crítica de ambos

às utopias morais e teológicas da escolástica - que pensam a governança atrelada às

virtudes privadas de quem governa - perde seu sentido se coligada à formulação de um

início abstrato da vida política. Porém, essa aparente contradição se esvai quando se

nota que a estratégia de formular a gênese do político diz respeito, primeiro, a negar a

sociabilidade como uma propriedade essencial dos homens (mais uma vez, indo além da

experiência política imediata), e, em segundo lugar, a desvelar os modos constituintes

que possibilitam alcançar, na medida do possível, as verdadeiras finalidades envolvidas

na fundação da Cidade, a paz e a segurança de vida. Pensar a gênese, sente sentido, é

pensar as razões. E as razões, em sua maioria, repousam sobre a vida imaginativa e

passional. Por conseguinte, pelo caminho da gênese, à imaginação e à experiência são

reconhecidos seus lugares na investigação política.

De qualquer maneira, a experiência que a imaginação encampa é assaz rica para

ser encarada sob perspectivas dicotômicas exteriores às suas operações - antes, a

12Cf. Leviatã, XVII, ps. 144-5; ainda Do cidadão, V, 4 e XII, 8. A imaginação ocupa o segundo capítulo

do Leviatã, antecedida pela sensação; lemos na p. 19: "Esta sensação em declínio, quando queremos

exprimir a própria coisa (digo, a ilusão mesma), denomina-se imaginação, como já disse anteriormente;

mas, quando queremos exprimir o declínio e significar que a sensação é evanescente, antiga e passada,

denomina-se memória. Assim, a imaginação e a memória são uma e mesma coisa, que, por várias razões,

tem nomes diferentes. Muita memória, ou a memória de muitas coisas, chama-se experiência".

Imagem, experiência e gênese política em Espinosa

15 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017

pluralidade de aspectos e de funções que ela recobre nos textos de Hobbes e de

Espinosa me faz crer que ambos se distanciam pelo sentido mais profundo - nem por

isso menos ativo - presente na experiência do conflito, inevitável no estado natural das

coisas em que as imagens parecem se suceder sem nenhuma ordenação. Faço aqui um

pequeno recorte dentro de veredas mais amplas de questionamentos, e diz respeito

justamente às estratégias genéticas adotadas por ambos. Pode-se, primeiramente e sem

tanta polêmica, elencar alguns elementos que aproximam os dois autores: o homem não

nasce cidadão, nem individualmente nem como "espécie";13em seu estado natural, não

há como regular os conflitos que nascem dos apetites diversificados, até que intervenha

um poder forte o suficiente para equalizar a todas as ações em uma intenção comum; a

razão aponta que os homens devem abrir mão de parte de seus direitos naturais14 - os

quais disponibilizam quaisquer meios possíveis para a satisfação de um desejo, seja

guiado pela reta razão ou não - em prol dessa força que pode, sabemos, ser sintetizada

pelo direito comum.

A constituição desse direito comum é a própria gênese da forma política. Em

suma, não se trata de estabelecer pontos na história em que todos tomaram consciência

desses "fatos" da natureza15 (em que pode operar a imagem da legitimidade de um

poder), e sim de pensar sobre o porquê tais fatos da natureza impuseram e impõem uma

certa necessidade na vida das pessoas, a política (em que pode intervir a pergunta pela

legitimidade do poder, mas que a ultrapassa). Em Hobbes, o contrato social representa

tal momento, numa espécie de adesão da vontade às verdades que a razão proclama - a

ruptura se instaura, entre estado de natureza, de guerra, e o estado civil, quando ocorre a

transferência do direito natural de cada um ao poder soberano, e, cito Hobbes, "fazer

isso - uma vez que ninguém pode transferir seu poder de forma natural - nada mais é do

que abrir mão do seu direito de resistência".16 Com o forte impulso passional do medo

da morte violenta, a razão enxerga nessa transferência a única saída viável do estado de

guerra, e na passagem à última cadeia dessa linha deliberativa, a vontade assente. A

racionalidade, em última instância, é quem concentra os requisitos para a formulação

concreta dos laços civis, pelo que presenciamos a experiência ter seu papel reduzido -

13Do cidadão, I, 2; TP, III, 6 e V, 2. 14TP, II, 15; Leviatã, XIV e XV. 15 Em contexto semelhante, P.-F. Moureau se pergunta: "(...) la raison leur (os homens) permettra de

surmonter les divisions dues aux passions. Certes, mais le problème est de savoir quand ils deviendront

rationnels, puisque précisément l'objet de l'Éthique III et IV est de montrer qu'en général ils ne le sont

pas"; cf. Spinoza. État et religion ("La place de la politique dans l'Éthique"), p. 53. 16Do cidadão, II, 4 e V, 11 e O leviatã, XIV.

Daniel Santos da Silva

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017 16

embora não completamente aniquilado - em toda compreensão e prática

"verdadeiramente" políticas.17

Há uma profundidade essencial nesse "tempo" de ruptura.18 Qualquer sentido

fundador que tenham as paixões humanas e as imagens que geram simpatia e

aproximação entre os homens, ele é tomado por Hobbes como aquém daquilo que é

condição da verdadeira união política, o contrato social e a instituição da soberania. Por

essa ruptura, toda soberania é absoluta, e essa é a marca distintiva de toda summa

potestas, enquanto força política - com efeito, apenas a união sem o contraponto de um

princípio ordenador exterior à multidão não confere estatura política a nenhuma das

atividades daqueles que se unem. As paixões seguem essenciais, porém

17 A discussão entre prudencialistas - que acreditam que toda a moral de Hobbes só implica obrigação na

medida em que é útil à conservação do indivíduo - e moralistas atravessa muitas leituras dos intérpretes

do filósofo nascido em Westport. A oposição, para mim, é secundária, e não vejo como, por exemplo, a

obediência civil não deveria estar ancorada, simultaneamente, em ambas as perspectivas. O contrato

viabiliza e exige os dois modelos, que ao fim são apenas aspectos diferenciáveis no interior da teoria

política hobbesiana; não é o que pensa, por exemplo, Luciano Venezia, em "El contractualismo de

Thomas Hobbes", in Perspectivas latino americanas sobre Hobbes, no qual defende a perspectiva

moralista da obediência civil. Ao crer que "la teoría de Hobbes descansa sobre fundamentos normativos,

no sobre elementos fácticos" (p. 202), é levado, por outro lado, a admitir que "en particular, la obligación

se funda en el factum de que los agentes del estado de naturaleza consientemente renunciar a su derecho

de naturaleza, tornando con ello obligatorio para los agentes reales actuar como prescriben las normas

morales"; com efeito, sem o factum da guerra e do medo da morte violenta, as leis de natureza nem

fariam sentido, e sem o terror impingido pelo soberano, sem serem os súditos "subjugados pela espada"

(Leviatã, XXVI, p. 228), a obrigação moral de obedecer às injunções soberanas seria sempre remetida ao

foro interno do indivíduo, e "quem está obrigado apenas diante de si mesmo não está obrigado" (Idem, p.

227). Assim, é coerente que o medo apareça apenas uma vez no texto de Venezia (p.202, mesmo quando

é tão essencial à política de Hobbes) e marcando apenas o lado prudencial da doutrina, já que "el

fundamento de la racionalidad de cumplir con ellas (com as obrigações) no reside en las penas adosadas

a las mismas, sino en el reconocimiento de su normatividad intrínseca, justificada contractualmente" (p.

205). Creio que a violência das leis e o poder soberano de provocar o terror também decorrem da

racionalidade das leis naturais e do contrato (sem o que não valeria discutir espinosanamente essa

questão em Hobbes), portanto a teoria da obediência irá requerer, na minha particular interpretação de

Hobbes, o fim dessa dicotomia interpretativa. Cf. Strauss, La philosophie politique de Hobbes, p. 46.

Também creio que vá nesse sentido M. Malherbe, "Hobbes et la mort du Léviathan: opinion, sédition et

dissolution", em Hobbes Studies, Vol. IX - 1996, ps. 14-15 (Malherbe vê no medo apenas um artificio

momentâneo, embora todos tenham a consciência de ter de temer a ira do soberano caso se infrinja a lei).

Cf., enfim, L. Althusser, "Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre", em Écrits

philosophiques et politiques, ps. 552-556. 18 "(...) torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de

mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma

guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou

no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente

conhecida. Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta na natureza da guerra, do mesmo modo

que na natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três

chuviscos, mas numa tendência para chover durante vários dias seguidos, também a natureza da guerra

não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há

garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz." Leviatã, XIII, p. 109.

Imagem, experiência e gênese política em Espinosa

17 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017

instrumentalizadas pelo poder civil, principalmente através do terror.19 Diante da

instituição do poder soberano, toda experiência (prudência) individual e coletiva é

absorvida pela absolutez de cada vontade do soberano, o qual se apropria da força

singular de cada cidadão.Tudo o que decorre do imaginário existencial e afetivo dos

indivíduos é ou despolitizado, ou nem chega à dignidade política senão via

representação.

Essa ruptura é a aventada por Espinosa para apontar o que afasta a sua teoria

política da de Hobbes. Ao assinalar que mantém o direito natural na sua integridade,

ainda que depois da gênese do direito civil, Espinosa, a meu ver, ataca diretamente esta

concepção da transferência voluntária (e racional) do direito de resistência -

dissolvendo, com isso, inclusive a ruptura entre imaginação e razão na constituição do

corpo político. Citando agora Espinosa, na carta 50: "...a diferença consiste em que

mantenho sempre o direito natural e que considero que o magistrado supremo, em

qualquer cidade, só tem direitos sobre os súditos na medida em que seu poder seja

superior ao deles; coisa que sempre ocorre no estado natural".20

Assim, é útil, ou até inadiável, relembrar que a formulação de uma ideia de

contrato existe na obra Tratado teológico-político (TTP), e que ela é abandonada quase

que totalmente na Ética e no TP. É preciso sublinhar que - e isso é objeto de

acuradíssimas interpretações variadas - já no TTP a ideia de contrato, como está no

capítulo 16, é recolocada em outros termos, não hobbesianos: a razão aponta sim o

caminho da união pelo contrato, mas ela mesma percebe a insuficiência dessa ideia para

a gênese do político; ao fim, é a visão do maior bem e do menor mal que determina os

indivíduos a selarem a aliança civil (remeto ao que Moureau tratou como "interesse"),21

e essa é uma verdade que a experiência atesta com força o suficiente para que eles assim

o façam. Nesse sentido, as marcas do corpo sobrevêm como afirmação de resistência - à

solidão, antes de tudo. Além disso, experiência e razão igualmente atestam que se deve

transferir a potência/direito natural de cada um para o corpo coletivo da sociedade, o

que faz da democracia o regime que mais concede aos homens a liberdade que a

19Do cidadão, V, 7: "Essa submissão das vontades de todos à de um homem ou conselho se produz

quando cada um deles se obriga, por contrato, ante cada um dos demais, a não resistir à vontade do

indivíduo (ou conselho) a quem se submeteu; isto é, a não lhe recusar o uso de sua riqueza e força contra

quaisquer outros (pois supõe-se que ainda conserve um direito a defender-se contra a violência); e isso se

chama união. E entendemos que a vontade do conselho é a vontade da maior parte dos membros do

conselho." 20 Carta 50, trad. de Marilena Chaui, Col. Os pensadores, Espinosa, p. 392. 21 Cf. Spinoza. État et religion ("La place de la politique dans l'Éthique"), ps. 56-57.

Daniel Santos da Silva

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017 18

natureza lhes deu (ou seja, o regime que mais permite aos homens o desenvolvimento

dos instrumentos necessários ao seu esforço de ser livre, pelo qual a imaginação é,

enfim, predominantemente virtude).22 Com efeito, já aqui se faz ouvir que, cito, "detém

sobre todos um direito soberano quem tem o poder (potestatem) soberano de

constranger a todos pela força e de retê-los pelo medo do último suplício, objeto de

medo universal. Mas ele só manterá esse direito pelo tempo que conservar a potência

(potentiam) de cumprir aquilo que quer."23 Só tem o poder, quem tem a potência.

E aí também vemos resguardada a ambivalente potência prática da imaginação,

aprofundada nas terceira e quarta partes da Ética. Com efeito, a imaginação conduz a

gênese política espinosana, especialmente através do medo e da esperança. Essa

necessidade é idêntica ao próprio direito de resistência, na medida em que o direito

natural permanece, em sua integridade, no civil. O TTP, XVII mostrará justamente os

limites da concepção contratualista da política, enquanto esta desenlaça da experiência

passional as leis que determinam os critérios de união civil - em Hobbes, tais critérios se

expressam como leis eternas da natureza.24Em Espinosa, eles podem ser universalizados

em fórmula mais simples, a lei universal da natureza humana:

Manda a lei universal da natureza humana que ninguém despreze o que considera ser

bom, a não ser na esperança de um maior bem ou por receio de um maior dano, nem

aceite um mal a não ser para evitar outro ainda pior ou na esperança de um maior bem.

Entre dois bens, escolhe-se aquele que se julga ser o maior, e entre dois males, o que

pareça menor. Sublinho que é aquele bem ou mal que parece ser o maior ou o menor,

respectivamente, para quem escolhe, já que as coisas podem não ser necessariamente

assim como ele julga.25

A ideia mesma de uma aliança racional, eficaz e segura, de base contratual, é

compreendida em sua crueza desejante, subsumida pela complexidade do aparato

22 Cf. Ética, II, o segundo escólio da prop. 17: "E aqui, para começar a indicar o que seja o erro, eu

gostaria que se notasse que as imaginações da mente, consideradas em si mesmas, nada contêm de erro,

ou seja, a Mente não erra pelo fato de imaginar, mas erra somente enquanto se considera que ela carece da

ideia que exclui a existência das coisas que imagina presentes a si. Pois se a Mente, quando imagina

coisas não existentes como presentes a si, simultaneamente soubesse que tais coisas não existem

verdadeiramente, decerto atribuiria esta potência de imaginar (imaginandi potentiam) à virtude de sua

natureza, e não ao vício; sobretudo se esta faculdade de imaginar dependesse de sua só natureza (à solâ

suâ naturâ penderet), isto é, se esta faculdade de imaginar da mente fosse livre." 23TTP, XVI. 24 Cf. Leviatã, XIV e XV. 25TTP, XVI, p. 237. O itálico é meu.

Imagem, experiência e gênese política em Espinosa

19 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017

cognitivo e ético da filosofia de Espinosa: se podemos falar de contrato, ou de qualquer

operação derivada da conveniência racional entre os homens, assim o é na medida em

que todas as esferas do conhecimento podem motivar os homens em diversificadas

linhas de atuação política; desde o pensamento da gênese, a afirmação da experiência do

conflito é incontornável em todos os processos políticos. Por isso mesmo, a própria

ideia dessa aliança racional, ainda que mais próxima em realidade à esfera imaginativa,

inadequada, é formulável em termos práticos - na medida em que no desejo humano

podem convir afetos passivos e ativos, ideias imaginativas e verdades eternas.26

Na já mais madura reflexão do TP, os termos empregados afirmam que as causas

do temor e do respeito em relação ao poder soberano não enviam ao direito civil, mas ao

direito natural, já que as suas razões estão no direito de guerra (TP, IV, 5). Manter o

direito natural integralmente no civil significa conferir a realidade devida ao direito de

resistência dentro da sociedade: se pensado como indivíduo isolado, a potência de um

privado nunca poderá se opor à potência soberana, enquanto esta se define pela potência

da multidão e não de quem ocupa a governança, apenas o concurso entre os

constituintes daquela pode ser garantia adequada do direito civil.27 Mesmo se passiva, é

a potência da multidão que define o direito da Cidade. Manter a integridade do direito

natural no civil é, assim, remarcar a inalienabilidade da experiência do conflito no

âmbito social (e, ao fim, da experiência, redimensionada também como produção

coletiva). Sem precisar recorrer ao contrato social como marco fundador da sociedade

política, o último tratado de Espinosa se aprofunda mais nas formas pelas quais pode

dar-se a submissão de uma potência singular a outra, caso que reclama um conceito

específico de poder, compreendido na potestas (a soberania política traduz, quase

sempre, o termo latino summa potestas): se a filosofia política espinosana pretende

explorar na teoria aquilo que na prática pode criar condições para a liberação dos

homens - produzir um raio de segurança tal que se possa dizer de um corpo político que

26 Colho fagulhas lançadas pela linha interpretativa que segue S. Visentim, cf. La libertà necessaria.

Teoria e pratica della democrazia in Spinoza, p. 164: "Se non si vuole entrare in contraddizione con

l'equazione spinoziana jus=potentia, allora si deve ammettere che l'unica 'parte' del diritto naturale

trasferibile è la sua immagine, cioè la percezione immaginaria del diritto. Solo concependo lo jus

naturale attraverso gli schemi della conoscenza immaginativa è possibile considerarlo una sorta di

'potere virtuale', sottomesso non a leggi necessarie, bensì una volontà potenzialmente onnipotente (lo jus

ad omnia hobbesiano), che si indirizza a un fine piuttosto che a un altro, secondo un principio

trascendente rispetto alla naturalezza del desiderio umano." 27Tomo a liberdade de remeter a um recente artigo meu em que trabalho o tema, cf. "Concurso e

transferência: uma crítica espinosana ao contrato social de Hobbes", em Kriterion, 136, abril/2017, ps.

23-43.

Daniel Santos da Silva

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017 20

ele é sui juris28(tudo isso implica a superação do medo de todos contra todos, ou a sua

transformação em medo comum) -, se assim a compreendemos, o sentido dessa filosofia

inclui avaliar as possibilidades político-institucionais do ponto de vista da manutenção e

do incremento constante da communis potentia, a verdadeira definidora do direito

comum, que deve expressar, por isso, a riqueza de um imaginário singular, mais ou

menos virtuoso, próprio a um certo e determinado corpo político, conforme a seu

ingenium - em que estão envolvidas memórias de liberdade, de servidão, de resistência e

de conflitos particulares.

Fundamentalmente, a experiência comum dos homens que possibilita tal trajeto

remete a dois aspectos da Ética: a) a experiência da semelhança, pela qual a terceira

parte descreve a gênese dos afetos humanos tendo como suporte os encontros

"aleatórios" (porque se referem ao estado natural dos homens) entre os indivíduos e em

que opera a imagem da semelhança com o outro, determinando tal aleatoriedade;29 lá,

acredito que encontramos o primeiro indício forte de que a scientia politica de

maturidade de Espinosa (no TP) depende em grande escala da compreensão de que as

paixões humanas, que também em Hobbes fundamentam os conflitos, devem

fundamentar igualmente a produção do comum - de valores comuns, de experiências

comuns, de costumes e de finalidades comuns, sem que se precisemos recair nas causas

ocultas da simpatia entre os homens, atuantes na ética escolástica.30É, então, pela

aguçada teoria da imitação afetiva desta terceira parte da Ética que é posta a primeira

pedra no edifício da continuidade; se, por um lado, sabe-se que há uma gênese própria

do político em Espinosa, a ruptura por ela implicada não é adequadamente uma ruptura

entre estado de natureza e estado social (nesse caso insisto com a causalidade imanente),

e sim entre aquilo que determina as operações dos indivíduos fora do âmbito da lei

comum e entre as que se fazem a partir dela.

E b), a experiência da conveniência, abordada em conjunto pela quarta parte da

Ética, pela qual, ainda que sem a determinação da lei comum, e assumindo também a

impotência da razão humana diante da força dos afetos, vamos às causas e colhemos

efeitos práticos da conveniência entre os homens, das condições materiais para que os

homens convenham em suas ações; tal convenientia é necessária para a gênese do civil,

28 CF. TP, II, 15. 29 Cf. especialmente as props. 17 e 27 da terceira parte da Ética e suas demonstrações e escólios. 30 Cf. o escólio da prop. 15 da terceira parte da Ética.

Imagem, experiência e gênese política em Espinosa

21 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017

mesmo sendo prevalentemente passional, já que se trata antes de mais nada de

compreender de que modos as proporções entre paixões - especialmente entre medo e

esperança - determinam a gênese da sociedade civil; assim como acima falei de

convergência entre razão e experiência no que diz respeito à preferência por um bem

maior ou por um mal menor, aqui também se pode assumir essa convergência na

máxima de que nada há de mais útil ao homem do que o homem.31 Neste momento de

sua obra, Espinosa já abandonou completamente a ideia de uma razão calculante e de

uma lógica contratualista do poder civil, e a noção de utilidade já é bem mais clara e

determinante.

Lançando mão da certeza de que os homens são constantemente mais guiados

pela imaginação e pelos afetos passionais do que pela razão, Espinosa faz entrar a

conveniência32 no TP justo pelo viés genético (e mais significativo, pela conexão feita

entre potência individual e ação comum): "Se dois se põem de acordo e juntam forças,

juntos podem mais, e consequentemente têm mais direito sobre a natureza do que cada

um deles sozinho; e quantos mais assim estreitarem relações, mais direito terão todos

juntos".33 Para pensar a gênese do político, abraçando essas duas sortes de experiência

de coletividade, utilizo, em outro momento, da ideia de concurso - encarando como

conceito essa ideia da ação simultânea de indivíduos visando um efeito comum e que é

presente na definição da coisa singular.34 Com isso, é possível pensar a gênese como

movimento e como imanência, em que a razão opera, mas em que as paixões e a

imaginação são as vigas mestras. As paixões determinam, neste aspecto, o direito

natural e, sem transitividade, o direito civil.

31 Cf. as props. 35 e 37 da quarta parte da Ética, com suas demonstrações e corolários. 32 Não é essa, de fato, a primeira aparição, no Tratado político, do verbo convenire. Em, I, 4, Espinosa o

utiliza, justamente, para demarcar a sua ciência política: "Quando, por conseguinte, apliquei o ânimo à

política, não pretendi demonstrar com razões certas e indubitáveis, ou deduzir da própria condição da

natureza humana, algo que seja novo ou jamais ouvido, mas só aquilo que está de mais acordo com a

prática (cum praxi optime conveniunt)". 33TP, II, 13. Si duo simul conveniant et vires iungant, plus simul possunt, et consequenter plus iuris

innaturam simul habent, quam uterque solus; et quo plures necessitudines sic iunxerint suas, eo omnes

simul plus habebunt. 34Cf. a definição de coisa singular, a sétima definição da segunda parte da Ética: "Por coisas singulares

(res singulares) entendo coisas que são finitas e têm existência determinada. Se vários indivíduos

concorrem (concurrant) para uma única ação de maneira que todos sejam simultaneamente (simul) causa

de um único efeito". Cf. meu artigo supracitado em nota, mas, principalmente, Balibar, Spinoza et la

politique, ps. 91-105 (polemizei com a visão aí apresentada por Balibar da gênese do político na Ética em

outro artigo, "Sobre a outra 'gênese' do campo político na quarta parte da Ética de Espinosa", em

Cadernos de ética e filosofia política, 19, 2/2011, ps. 105-123).

Daniel Santos da Silva

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017 22

Para tal perspectiva, tocar em aspectos atinados por essa abordagem significa

exatamente enxergar a experiência humana como, fundamentalmente, experiência do

conflito. Realizado por uma razão calculante (que no caso chega a ser uma

redundância), o contrato hobbesiano pensa a gênese do político como solução para uma

experiência constantemente frustrada de humanidade, já que em guerra não se pode

gozar de nenhuma paz e tranquilidade. Mas, afora os problemas conceituais de se pensar

nessa faculdade racional como fundamento do contrato - problemas que afastam

qualquer resposta simples -, o que me interessa aqui é a pergunta pelo que se abandona

quando se transfere o direito natural ao poder soberano: Hobbes afirma que é inútil o

contrato que implica abrir mão do direito de defender-se a si próprio, determinação

natural inescapável,35mas ao dizer que o direito de resistência é aquilo que é

abandonado em primeiro lugar na ruptura contratualista, quer significar com isso que o

poder soberano enquanto tal é o que define a política, a ponto de apenas existir povo em

relação a essa soberania, fonte de unidade. A política estaria, em sua realidade,

depositada no poder soberano, em seu caráter representativo, e como tal não admite

nenhuma resistência, pois toda ela seria uma tentativa de levar os homens de volta ao

estado de guerra.

Em outras palavras, ao encarar-se o valor da experientia na filosofia de

Espinosa, em diversos estratos da obra, pode-se (re)formular o porte e o alcance do que

seria a genética política espinosista, seja em relação à imaginação ou à razão. Seu

principal caractere - para além da crítica filosófica ao esquema contratualista de política

- é o movimento e a abertura: movimento, na medida em que é sempre a ação coletiva,

coordenada de incontáveis formas - a depender das proporções passionais envolvidas -,

que prepara e cultiva o solo para a definição do direito comum civil, que é o direito

natural do imperium e faz necessariamente referência à potência da multidão;36 abertura,

enquanto essas bases genéticas, coladas à experiência dos homens e à sua história

(memórias individuais e coletivas), propiciam pensar várias formas de configuração

social desde seus fundamentos (o que perpassa as análises dos regimes no TP) e, a partir

disso, formular os critérios que fazem um certo corpo político se aproximar ou se afastar

da concepção e da vivência de um imperium absolutum. Para Hobbes, pela estrutura do

contrato, todos os poderes soberanos, independente da forma, são absolutos por

35Cf. Leviatã, XXVIII, p. 263. 36TP, II, 17: "Este direito que se define pela potência da multidão (multitudinis potentia) costuma chamar-

se estado (imperium).

Imagem, experiência e gênese política em Espinosa

23 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017

natureza própria; para Espinosa, somente o imperium democrático o é: para além do

número que compõe a assembleia suprema (TP, XI, 2), a democracia se distingue pela

natureza mesma do direito que institui.37

Sem a ruptura, Espinosa não precisa pensar no abandono do elemento da

resistência na constituição do político, é como se ele quisesse "simplesmente" mostrar

que essa ideia não passa de uma utopia totalitária ou de uma imagem delirante. O direito

civil, nesses moldes contratualistas, soa a uma abstração adversa às causas, o que de

certa forma esvazia a ideia mesma de gênese como processo real. Ao contrário, o direito

natural, que é potência, permanece como tal diante das determinações das leis civis,

apenas que a potência da multidão, assim concorrendo para um mesmo fim, é a única

concretamente capaz de definir o direito natural da Cidade, ou seja, do corpo inteiro do

Imperium. A experiência do conflito ultrapassa a guerra propriamente dita e comparece

na gênese e na permanência da sociedade; essa é uma abordagem maquiaveliana, sem

dúvida, e não por acaso vemos se multiplicarem as interpretações que vão a Maquiavel

na busca de melhor compreender Espinosa, apesar de notáveis distanciamentos. A

resistência e o conflito são inseparáveis, para ambos, de um pensamento que não caia na

abstração de um formalismo político sintetizado no conceito de representação - e tal

conceito traz em si a imobilidade das experiências dentro do campo político, uma certa

reclusão da potência imaginativa dos homens, na medida em que apenas pela imposição

do medo pelo poder unitário soberano se pode falar de união propriamente política;

qualquer coisa que salte para fora dessa formalidade garantida por contrato pelos

cidadãos é vista como uma incitação à guerra, o pior dos males.

Não se trata, propriamente, de estabelecer o que é político ou não - mesmo que

isso seja importante e válido espinosanamente, um trabalho como esse exige outra linha

de raciocínio, mais complexa -, além de que em Espinosa dificilmente cabem fronteiras

assim definitivas, como se vê pela continuidade do direito natural no civil e a

mobilidade interna do civil em cada regime de imperium. Mas se trata de perceber que

os direitos naturais e civis, enquanto expressões de conatus, são intimamente coligados

à resistência (o segundo capítulo do Tratado político o demonstra). Com efeito, todos os

37TP, XI, 1: "Passo, enfim, ao terceiro e totalmente absoluto (omnino absolutum imperium), a que

chamamos democrático. Dissemos que a sua diferença em relação ao aristocrático consiste antes de mais

em que, neste último, depende só da vontade e livre escolha do conselho supremo o ser nomeado este ou

aquele patrício, de tal maneira que ninguém tenha direito hereditário nem de voto, nem de acesso aos

cargos do estado, e ninguém possa por direito reclamar para si tal direito, como acontece neste estado de

que falamos agora."

Daniel Santos da Silva

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017 24

vínculos jurídicos abordados pelo TP não têm sentido originariamente político, têm-no

quando conflito e resistência se mostram em sua força e extensão conceituais, como

constituintes de um corpo político, como aquilo que dá movimento e vida à

coletividade.38

Para encerrar - com forte sensação de inacabamento -, lembremos que a paz é

virtude a ser conquistada e mantida pelos membros da Cidade. Rechaçando a

formalidade contratualista, o que se opera é uma transformação que se poderia dizer

radical, a meu ver: da ideia de soberania hobbesiana à ideia de summa potestas no TP, o

que tomou corpo foi a potência dos indivíduos, agindo coletivamente, como campo de

instituição da paz e da segurança, virtude civis. Quanto mais se afasta das

determinações decisivas que são realizadas pelo poder supremo da Cidade, quanto mais

se transfere ou se imagina transferir de direito/potência no sentido implicado por

Hobbes, mais se tem servidão, solidão, e menos se tem política, divergência e conjunção

de potências que podem visar, no complexo de suas operações, à instituição de bens

comuns; consequentemente, menos se ouve a voz de quem realmente é sujeito político,

a multidão, por mais plural que ela possa - e que ela deva - ser.39

Isso posto, o poder político faz-se presente aos cidadãos - sempre ligado, em

algum nível, às paixões do medo e da esperança - inclusive como persona, imagem que

pretende representar uma vontade única. Imagem que pode ser mais ou menos efetiva,

quem sabe até muito útil para a formulação de uma igualdade civil necessária aos meios

de segurança e de paz. Também imagens e símbolos podem servir para a preservação de

alguma quietude social, enquanto integram seus hábitos contituintes e constituídos

(penso nas análises de Espinosa sobre a sociedade hebraica, mas o prefácio e o cap. V

do TTP permitem estender o caso também a teocracias cristãs ou muçulmanas);

entretanto, essas classes de imaginação pressupõem a ostensividade imagética do que é

imposto - como o gládio do rei em Hobbes, que deve deixar-se visível até entre as

doutrinas que são ensinadas nas escolas e universidades; ou como a onipresença divina

via ritos e hábitos gravados no corpo dos que devem obedecer. Como imagens, a

filosofia, admite Espinosa, não pode adotá-las na forma de saber seguro sobre a

experiência e a política; mas como imagens que geram afetos, qualquer intenção de

38 Cf. TP, II, 9-13. 39 Cf., de P. Cristofolini, o belo texto "Spinoza. L'individuo e la concordia", em Etica & Politica, 2002, n.

1, ps. 1-15.

Imagem, experiência e gênese política em Espinosa

25 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 10-27, 2017

liberdade deve reconhecer nelas um meio útil ou nocivo para os fins da Cidade - crer-se

desprovido de potência própria, ou ainda reconhecer-se apenas por uma instância

exterior que comanda, recompensa e pune, como em uma situação teocrática, são atos

que dificilmente seriam tomados como veramente úteis ao trabalho liberador do campo

político espinosano. São disposições, diga-se de passagem, que fundam vínculos mais

baseados na imaginação do poder do que no conhecimento de sua verdadeira utilidade:

podem ser relativamente firmes, desde que nenhuma outra imagem exclua ou se

contraponha à existência delas.40

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40 Cf. TP, IV, 4: "A cidade, portanto, para estar sob jurisdição de si própria (Civitas itaque ut sui iuris sit),

tem de preservar as causas do medo e da reverência, pois de outro modo deixa de ser cidade. Com efeito,

para aqueles ou aquele que detém o estado (qui imperium tenet), é tão impossível correr ébrio ou nu com

rameiras pelas praças, fazer de palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por ele próprio ditadas e,

com isso, conservar a majestade, como é impossível ser e não ser ao mesmo tempo. Assassinar e espoliar

súditos, raptar virgens e coisas semelhantes convertem o medo em indigação e, por consequência,

convertem o estado civil em estado de hostilidade (statum hostilitatis vertunt)."

Daniel Santos da Silva

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Recebido em: 12/06/2017

Aprovado em: 26/09/2017

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017 28

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver

Elton Luiz Leite de Souza*

Resumo: Este artigo aborda a imaginação de duas perspectivas: como uma atividade

que se ignora e como uma potência de imaginar. No primeiro caso, ficamos no âmbito

do primeiro gênero do conhecimento, ao passo que no segundo vislumbramos a

participação do imaginar no próprio terceiro gênero. Em ambos casos, apoiamo-nos em

um verbo para pensar essa questão: o envolver. No exercício desse verbo a imaginação

pode encontrar tanto a sua servidão como a seu salut.

Palavras-chave: Spinoza, Imaginação, Desejo, Salut

Spinoza: imagination and its involving activity

Abstract: This article approaches the imagination of two perspectives: as an activity

that if ignores and as a power to imagine. In the first case, we are in the first genre of

knowledge, while in the second we envisage the participation of imagining in the third

genre itself. In both cases, we rely on a verb to think this question: the involve. In the

exercise of this verb, the imagination can find both her servitude and her salut.

Keywords: Spinoza, Imagination, Desire, Salut.

Introdução: os afetos e a imaginação

Quem não tem instrumentos de pensar,

inventa.

Manoel de Barros

Segundo Spinoza, são três os afetos originários: o desejo, a alegria e a tristeza.1

Esses afetos estão na origem, todos os outros afetos derivam deles. Eles estão na origem

não porque remetam ao passado, ao que passou, e sim em razão de que eles são a

origem do que somos agora, enquanto duramos, com nossa mente envolvendo um corpo.

Eles não se originam de nós, somos nós que nos originamos deles. Originar-se, aqui,

não significa um ir para fora e separar-se, significa um estar envolvido, ao mesmo tempo

que um envolver, pois não podemos existir a não ser envolvidos pelo viver. Desses três

afetos se originam outros dois: o ódio e o amor.

Desejo, alegria e tristeza não são estados da alma, são o existir mesmo. A alegria

é uma passagem [transitio] a uma perfeição maior, a tristeza é uma passagem a uma

* Doutor em Filosofia pela UERJ, Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de

Janeiro/UniRio. Contato: [email protected] 1 Para o que se segue: Ética, Terceira Parte, “Definição dos afetos”. Empregaremos aqui a edição

bilíngue, trad. Tomaz Tadeu, Editora Autêntica, 2013 (3ª edição).

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perfeição menor.2 A perfeição é o existir mesmo, ela é o desejo. A perfeição não é um

modelo a alcançar, da perfeição não há modelos. A perfeição não é algo externo a se

desejar, senão a própria origem do desejo. O desejo é a existência mesma, existência

esta que uma essência ou ideia envolve. Por aqui se vê que é impossível escrever sobre

Spinoza sem que logo surja este verbo: o envolver.

A tristeza nunca vem do desejo mesmo, ela pode vir, e vem, de algo externo que

envolve o desejo. Mas esse algo externo não deve ser visto apenas como a coisa que

existe lá, no mundo objetivo. A tristeza é um afeto que acompanha o desejo, mesmo

estando ausente o ser que a causou. A tristeza não se mantém pela presença do objeto,

ela se mantém na diminuição do desejo, ela é a passagem a essa diminuição, e não o

próprio estado. É por isso que é difícil apreender essa tristeza de que fala Spinoza, pois

ela não é apenas um estado da alma, não é somente psicológica. Ela é uma passagem a

uma perfeição menor. A perfeição só é sentida como menor quando conseguimos

compreender a perfeição, a sua ideia adequada, para assim conhecer as variações dela

mesma: para se saber se um grau de azul é mais intenso do que outro, ou menos intenso,

é preciso, antes, formar uma ideia adequada do azul. Um grau de azul pode ser

qualificado como mais ou menos azul em comparação com outros graus da mesma cor,

mas primeiro é preciso existir o azul, que é plenamente ele mesmo sem precisar ser

comparado com outra cor.

Mesmo na tristeza há uma perfeição, uma existência, e é a partir da

compreensão desta que a tristeza pode ser vencida. Aquele que está em uma perfeição

menor, porém carece da capacidade de fazer uma ideia adequada da perfeição, isto é, da

existência e do desejo, pode imaginar que está em uma existência perfeita, desde que o

circundem coisas, posses, propriedades, bens.3 Ou seja, a perfeição será avaliada de

acordo com coisas externas.

A alegria é a passagem a uma perfeição maior. Ela é a passagem a essa

perfeição, e não a própria perfeição. A alegria e a tristeza são afetos nascidos no

encontro do desejo com as coisas externas. Elas são, por isso, paixões: paixões alegres

ou tristes. O amor, nesse nível, é a imaginação de que nossa alegria tem por causa algo

externo. O ódio, ao contrário, é a imaginação de que nossa tristeza tem por causa algo

2 “Digo passagem porque a alegria não é a própria perfeição” (Spinoza, Ética, “Definição dos afetos”, nº

3: A tristeza, explicação). No original latino, o termo “transitio” não está em itálico, apenas na tradução. 3 No Tratado da correção do intelecto, por exemplo, são a essas coisas que Spinoza identifica como

motores da opinião e da mera imaginação.

Elton Luiz Leite de Souza

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externo. Quando sentimos alegria, esse afeto vem acompanhado, envolvido, pela ideia

da existência do ser que nos causou tal afeto. O amor é a imaginação-desejo de que

devemos nos unir a ele. A tristeza, por sua vez, é envolvida pela ideia-imagem do ser

externo que imaginamos ser sua causa. Tanto a alegria quanto a tristeza, embora

imaginações, podem levar-nos a ações, e não apenas imaginá-las. De tal modo que me

esforçarei para fazer o bem a quem amo, e mal a quem sinto ódio. Esse agir não é bem

um agir, ele é um reagir, pois minha ação será explicada por aquilo que imagino, e não

pelo que compreendo.

Curiosamente, é na Terceira Parte da Ética que Spinoza aborda os três afetos,

acrescentando o ódio e o amor, perfazendo cinco. Como se sabe, cinco também são as

partes da Ética. Deus é tema da Primeira Parte, o intelecto da Segunda, o Desejo da

Terceira, o ódio da Quarta Parte (ele é o quarto dos afetos), e da Quinta Parte é tema o

amor. Essa Quinta Parte envolve as quatro outras, na medida em que ela não é o fim das

outras partes, mas o todo que já estava envolvido em cada parte outra, e não apenas na

Primeira e Segunda Partes. Nessa Quinta Parte, pois, o intelecto não apenas conhecerá,

ele também será capaz de amar um amor distinto daquele que é apenas passagem, e não

a perfeição mesma (Amor Dei Intellectualis); nessa Quinta Parte também se

compreenderá que o desejo igualmente age; e o que nos lançava na impotência, a

imaginação, é igualmente retomada, envolvida em uma luz nova, uma luz natural, que

sempre esteve lá, mesmo onde pensávamos haver apenas a treva da servidão e da

impotência. O Deus da Primeira Parte é aquele no qual tudo está envolvido nele, o da

Quinta Parte a tudo envolve.

A servidão não está tanto no amar, mesmo passivo, quanto está no odiar. Por que

o ódio é o quarto dos afetos, e não o quinto? Pela razão de que primeiro precisamos nos

ligar a algo, para depois destruir-odiar, se este for o caso. Boa parte dos ódios são

amores malogrados. Primeiro se liga, para depois se desligar. Ninguém primeiro se

desliga daquilo mesmo ao qual se vai ligar. "Neg-ação": "negar uma ação". Toda

negação é secundária, primeiro é preciso existir uma ação, mesmo que para ser negada.

Afirm-ação: estar firme na ação, estar inteiro, consistente, fazendo da afirmação que se

afirma a alegria suprema, a própria existência. O envolver é sempre primeiro, tanto no

adequado quanto no inadequado, no ativo e no passivo, conforme tentaremos mostrar.

Por que um número ímpar, cinco? Tudo o que é ímpar enfatiza uma

singularidade. O ímpar não se deixa reduzir à lógica do igual-homogêneo.

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Compreendendo melhor a questão, percebemos que são dois pares de afetos e mais um

afeto único, o desejo. O ódio é o contrário do amor; a tristeza é o contrário da alegria. O

ódio é uma negação do amor; a tristeza, uma negação da alegria. É por isso que esses

afetos são paixões: amor e alegria suscitam paixões alegres; ódio e tristeza, paixões

tristes. Somente esses dois pares de afetos podem fazer nascer sentimentos. Os

sentimentos encerram uma dialética na qual os afetos afirmativos (amor e alegria)

podem ser permutados pelos negativos (ódio e tristeza). Não raro, a vida psíquica é um

passar do amor ao ódio, do ódio ao amor; da alegria à tristeza, da tristeza à alegria. Essa

passagem constitui uma flutuactio animi. Mas e o desejo? Qual o contrário do desejo?

Que outro afeto pode negá-lo?

O desejo não possui afeto contrário. Não existe o não-desejo, assim como não

existe não-existência.4 Como declara Spinoza, “o desejo é a essência mesma do

homem”. Podemos então dizer: todos os afetos derivam dos cinco afetos originários.

Contudo, é o desejo o afeto que explica a diferença entre alegria e tristeza, ódio e amor.

O amor é diferente do ódio em razão de ele aumentar a potência do desejo, ao passo que

o ódio a diminui. A alegria é o sentimento desse aumentar, já a tristeza é o sentimento

de um diminuir. As paixões alegres são ainda paixões. Elas dependem de algo que nos

provoca amor e alegria. Na origem desses afetos está uma questão ontológica. Para

Spinoza, o espírito ou ideia é o corpo mesmo apreendido de outra perspectiva, pois o

espírito é a ideia do corpo. O desejo não concerne apenas ao corpo, ele também é ideia.

O desejo é a ideia agindo, a ideia é o desejo pensando. O desejo existe agindo e

pensando, posto que o pensar também é agir. O primeiro objeto do desejo é o corpo do

qual a ideia é ideia. O primeiro objeto do desejo nunca lhe falta. O desejo não pode ser

negado a não ser pelo próprio desejo daquele que deseja. Esse negar é, em verdade, um

diminuir ou diminuir-se: um enfraquecer daquilo que o desejo pode. Enfraquecer o

desejo é diminuir a própria existência.

Podemos retomar agora os outros afetos e explica-los à luz do desejo. E

devemos tomar o termo “explicar” em seu sentido neoplatônico mesmo: “explicar” é o

movimento que desdobra o que está implicado. A questão dos outros afetos está

implicada no exercício do desejar. O amor é aumento da potência do desejo de desejar,

quando o desejo se encontra com um objeto que o faz passar a uma perfeição maior.

4 “O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de

uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira” (Ética, “Definição dos afetos”, nº 1:

O desejo).

Elton Luiz Leite de Souza

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Não há perfeição maior do que existir. O amor é aumento de desejo, aumento de

existência. A alegria é a face interna do amor: ela é o experimentar não do objeto, mas

da própria passagem à perfeição. Por isso, a alegria também se explica pelo desejo. O

ódio é a passagem a uma perfeição menor, causada por um objeto externo. Passagem a

uma perfeição menor não significa imperfeição, pois mesmo na perfeição menor ainda

há alguma perfeição, isto é, desejo, existência, mas é uma existência que pode menos do

que podia. É sempre em relação ao aumento ou diminuição do desejo que se explicam

alegria, tristeza, ódio e amor. De certo modo, ódio e tristeza somente existem quando o

desejo diminui, pois é isto a negação: uma diminuição do que já é afirmativo. Não há o

negativo em si mesmo, tampouco a falta. O desejo não pode faltar a si mesmo, embora

possa diminuir-se. E diminuir-se é passar a uma perfeição menor. É preciso ver, na

perfeição menor, não o menor, mas a perfeição ou existência que ali está. Toda

existência é afirmação. O que chamamos de negação é tão somente uma afirmação que,

por dentro, reage, contendo-se, a um limite que vem de fora.

O desejo não é um “em si”, tampouco o desejo é atividade de um sujeito, um

ego. O desejo é um modo, uma maneira de ser. O desejo é uma maneira de um ser que

se exprime de infinitas maneiras. É em sua imanência, e não fora, que o desejo afirma

esse ser do qual ele é uma maneira. Não há como o desejo afirmar a si próprio sem

afirmar-se como maneira, e não como coisa independente ou isolada. Não é negando

outro modo finito que um modo singular afirma sua diferença e singularidade. Quanto

mais um modo afirma o ser do qual ele é uma maneira, mais apto se torna o desejo a

produzir infinitas coisas. Este é o afirmar-se do desejo: produzir coisas, e não desejar

coisas que faltam.

Quando nos tornamos plenamente ativos, conquistamos a plena posse do desejo,

que é a plena posse de nós mesmos. Então compreendemos que aquele aumentar da

existência que dependia de algo externo na verdade ainda era passividade, embora

alegre. Estar na plena posse de si mesmo não é como estar na posse de uma coisa

externa. A posse de si mesmo se assemelha à posse do pintor em relação às tintas, à

posse do músico em relação aos sons, à posse do poeta em relação às Musas.... É uma

posse de um meio de expressão, é um envolver sendo envolvido por algo que nos

desenvolve. Enquanto não alcançamos essa posse, dependemos ainda de coisas externas

que a favoreçam, que a auxiliem. A dependência do aluno em relação ao professor visa

tornar aquele, aos poucos, independente deste. A passividade somente é positiva quando

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decresce. E o que chamamos de alegria aumentando é uma passividade diminuindo. Do

ponto de vista da atividade, porém, a alegria ativa, a que nasce da posse de nós

mesmos, é potência sendo exercida, sem haver mais passividade diminuindo, pois não

há mais passividade ou impotência.

Segundo a filosofia ortodoxa, quando o corpo age, a alma padece; quando é a

alma que age, é o corpo que padece. Quando o corpo age, a alma se torna passional;

quando a alma age, o corpo é como que “mantido à distância”. Spinoza combate tal

noção afirmando o paralelismo entre corpo e alma. O paralelismo de Spinoza assevera

que uma ação na alma corresponde a uma ação no corpo, e uma paixão na alma tem seu

equivalente em um padecer no corpo. A ideia de “paralelismo” provém da noção de

“par”. Uma coisa é paralela à outra quando elas formam um par. Ou seja, uma alma

ativa forma um par com um corpo ativo, jamais com um corpo passivo. Nesse sentido

spinozano de par, nunca formam um par ativo o senhor e o escravo, o tirano e o servo.

Mas o que é ser par em Spinoza? No que se fundamenta o paralelismo? Corpo e alma

são paralelos, formam um par, na medida em que expressam uma terceira coisa: Deus.

Nenhum dos dois é mais eminente do que o outro na expressão desse terceiro. Se

houvesse tal eminência, eles não formariam um par, vez que um só reinaria reprimindo

o outro. Porém, esse “terceiro” assim o é quando apreendido pelo intelecto no segundo

gênero de conhecimento. Quando atingimos o terceiro gênero de conhecimento,

compreendemos que aquele “terceiro” é, na verdade, sempre Primeiro.5

Para eles formarem um par, é preciso que cada um expresse um ímpar. Deus é

ímpar, isto é, sem par: sem paralelo. É este ímpar, este singular, a causa de todos os

paralelos, de todos os pares-atributos. Nós mesmos, enquanto singularidade, somos

ímpares, somos singulares, somente enquanto nos compreendemos como modificação

desse Ímpar. Todo bom encontro não é dual, mas triádico. No caso do amor, por

exemplo (mas tal exemplo vale para todas as outras coisas), somente nos tornamos par

para o outro quando afirmamos o amor como ímpar. Os amigos são ditos pares, na

medida em cada um é ímpar para o outro. Quanto mais ímpar o amor, quanto mais

singular, mais se torna ímpar o que temos em comum com o outro, uma vez que o amor

é um terceiro indivíduo nascido do encontro entre mim e o outro. Ou seja, é afirmando o

amor, é produzindo-o que torno ímpar o que tenho de comum com aquele a quem amo.

E quanto mais afirmamos o que temos de comum no amor ímpar, mais somos pares:

5 “Primus”, dizia Avicena.

Elton Luiz Leite de Souza

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somos par um para o outro, no bom encontro. Porém, se cada um se coloca como um

todo à parte, já não se coloca mais como par para outra parte. Mesmo o juiz forma um

par com o réu, embora não sejam amigos, desde que exista no juiz, envolvida nele, a

ideia da justiça que o torna justo. Um juiz ímpar não é o mais arbitrário, é o mais justo:

nele a justiça se desenvolve mais potente.

Spinoza afirma que a ideia adequada é sempre a ideia de um corpo. Ela o é

enquanto essência. Contudo, a própria essência, enquanto ideia, tem uma existência

distinta da existência do corpo, e o corpo mesmo tem uma existência distinta da

existência de sua essência. Ora, somente podemos conhecer um corpo mediante sua

ideia. Mas o que temos primeiro de um corpo não é sua ideia, é sua imagem [ imago],

indicadora de um conhecimento confuso, a começar pelo conhecimento confuso de nós

mesmos. Nosso próprio corpo é uma imagem para os outros corpos, corpos estes que

agem sobre o nosso e lhe produzem uma imagem. Os afetos estão envolvidos nessa

questão da imagem, da imaginação. A imagem [imago] não é apenas visual. Há imagens

auditivas, olfativas, etc. Assim, meu corpo é uma produção dos outros corpos enquanto

o apreendo tal como apenas o posso apreender a partir de sua existência: como imagem.

Essa é, em preâmbulo, a questão da imaginação que queremos abordar. Aos poucos,

apresentaremos nossa perspectiva sobre essa questão, sem a pretensão de esgotá-la,

longe disso.

Muito já se escreveu sobre a dificuldade de se ler a Ética em razão de sua forma

de expressão geométrica. O que interessa em Spinoza é a lógica6 da geometria. A

geometria é a lógica das definições e interdependência das partes. Definições, axiomas,

proposições, escólios, demonstrações...são partes da lógica geométrica. Mas qual é a

ideia inicial ou primeira da geometria? A ideia inicial não é nada que possa ser limitado

ou definido. A ideia inicial é a de plano. A geometria começa com a ideia de plano, e

esta ideia não pode ser definida. Um plano não é uma superfície, um plano não tem

espessura; se o tivesse, teria dimensões. O plano antecede as noções de superfície e

dimensão. A geometria cartesiana começa do ponto, representação de um cogito

fechado nele mesmo; a de Spinoza se inicia com a de plano, expressão de um pensar

6 A lógica não é apenas encadeamento de proposições. O procedimento geométrico de Spinoza não é toda

a lógica que sustenta seu pensamento. Da lógica também faz parte a prática das definições, bem como

certos topoi argumentativos, presentes sobretudo nos escólios. Embora sem conferir ao termo a extensão

que aqui damos, cf. Léon Brunschvicg, “La logique de Spinoza”, Revue de Métaphysique et de Morale ,

T. 1, No. 5 (Septembre 1893), pp. 453-467, Paris, PUF.

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aberto a ele mesmo. Um plano não tem limites, não tem direção privilegiada. Nada lhe

está acima ou abaixo. Ele não é o espaço, mas a ideia sem a qual não há espaço. O plano

é uma abertura. Não abertura que se abre a alguma coisa que lhe preexista, mas abertura

aberta para si mesma, em si mesma. Em Spinoza, o plano é a substância, o

Absolutamente Infinito. O plano é intuído. É da intuição que dependem as definições,

embora a definição desse primeiro intuído só é geométrica na forma, não no conteúdo.

Há em Spinoza o singular encontro, nunca antes acontecido, entre a forma de um

raciocínio geométrico unida a uma intuição que não se pode reduzir a raciocínios, pois

ela é de outra ordem, mais semelhante a um afeto singularizante do que a um teorizar

universalizante.

Esse plano encontra sua plena expressão na Ética, sem dúvida. No entanto, ele é

esboçado antes. Esse plano não é apenas relativo ao conhecimento teórico, ele também é

autoconhecimento. Esse plano se estende da ética à política. Quando Spinoza, nos

escólios, comenta e explica as proposições, tal explicação é feita à luz do plano, do qual

a proposição é uma parte. As demonstrações explicitam o que está implicado na

proposição, ao passo que os escólios desenvolvem o plano que está implicado na

proposição. No envolver imanente, é sempre um plano que se encurva, envolvendo.

Experimente-se ler apenas os prefácios, os apêndices e sobretudo os escólios, em

uma leitura transversal, e se verá o plano da Ética implicado nas questões políticas,

teológicas, psicológicas e mesmo “clínicas”. Os escólios não são apenas comentários às

proposições. Eles são um “dizer” que não é apenas palavra, escrita ou falada. É um dizer

bem-dito, Bento ou Benedictus. Esse dizer é o da verdadeira “escola”, como

aprendizado que antecede o ensinar, e não uma “escolástica” servil do Significante

sacralizado. É uma escola cujo aprendizado se faz também por perceptos 7, por

intuições. Esse dizer equivale, talvez, ao que expressa a “diké” grega, mais do que ao

“logos”. Daí a dimensão ética, e não apenas lógica, desse dizer dito, bem-dito, dos

escólios.

De fato, há um “dizer” que se ouve passivamente, nascendo assim uma das

figuras da imaginação: o “ouvir-dizer”, no qual os signos assumem um caráter

imperativo, dado que o poder não está no ouvir, mas no dizer que se ouviu

passivamente, dizer este dito por alguém com o poder (potestas) de se fazer ouvir.

7 Cf. Gilles Deleuze, “Spinoza e as três ‘Éticas’”, Crítica e clínica, São Paulo, Ed. 34, 1997.

Elton Luiz Leite de Souza

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Diferente é o dizer que nasce do compreender. Não é um dizer ouvido do dizer de

outrem com o poder de dizer, é um dizer nascido de um compreender, de uma potência

de pensar. Esse dizer assim nascido ainda é imaginação, como todo dizer. Daí a

presença da retórica, de uma certa retórica poética, nos escólios. Mas é uma imaginação

que compreende sua virtude, como imaginandi potentiam, imitando não uma ausência,

mas a presença da ideia.

Por isso tudo, encontra-se em Spinoza uma definição muito original da filosofia.

A mais original, talvez. Spinoza foge daquela definição comum, quase um clichê, que

faz da filosofia uma “amizade ou amor à sabedoria”. Há uma tarefa que antecede a

experiência de tais afetos. Essa tarefa é idêntica à constituição das virtudes. A vida

filosófica não é uma vida à parte da vida comum, da qual o que imaginamos

[imaginamur8] desempenha um papel fundamental. É preciso partir de certa experiência

de vida.

A experiência pode ser vaga (ou “solta”) não por ser experiência, mas por não

envolver a ideia adequada que nos permite pensá-la9. A vaguez da experiência, na

“experiência vaga”, não é experimentada na própria experiência, pois essa vaguez

advém de um “a priori” civil, dada a existência do homem. Nesse estado, o homem se

acha envolvido em fazeres, ações, percepções, quereres, que se explicam mais por outra

coisa do que por ele mesmo. A vaguez não é ausência de determinação ou rigor formal:

mesmo a rigidez formal de certa moral é, do ponto de vista da potência, vaga. A vaguez

é a antítese da consistência. Parte dessa vaguez é produzida pelos signos imperativos,

que dão aos indiciais a força passiva que têm. O conhecimento por “ouvir dizer” nasce

de um dizer que precede o ouvir. Não é apenas um dizer psicológico ou

sociolinguístico, pode ser, sobretudo, um dizer teológico-metafísico: Moisés

transformou em Leis a palavra que ouviu de seu Deus; Descartes fundou sua filosofia a

partir das palavras que ouviu em um sonho místico; Sócrates ouvia, paralisado, a voz do

Daimon que falava dentro dele; o racionalista Kant ouvia a voz imperativa de sua

8 Esse verbo traduz um “imaginar comum”. Embora de uma perspectiva diferente daquela que adotamos

aqui, essa dimensão da “sociabilidade” pode ser vista em Paolo Cristofolini, “Imagination , joie et

socialite selon Spinoza”, Spinoza: Science et religion – Actes du Colloque du Centre Culturel

International de Ceresy-la-Salle 20-27 septembre 1982, Paris, Vrin, 1988. 9 Tal questão está na base de uma “experiência com a própria eternidade”. Sobre esse tema: Pierre-

François Moreau, Spinoza : L'expérience et l'éternité, Paris: PUF, 1994; e Jean-Clet Martin, Bréviaire de

l'éternité : Vermeer et Spinoza, Paris : Éditions Léo Scheer, 2011.

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Razão-Togada; e mesmo Heidegger dizia que só começamos a pensar quando ouvimos

do Ser o seu apelo...

Envolvemos o mundo, e o mundo nos envolve. Envolvemos o mundo antes de

ter dele uma ideia verdadeira, o mundo nos envolve sem nos exigir que tenhamos dele e

de nós uma ideia adequada. Envolver-se é afetar e ser afetado. Não apenas as alegrias

nos envolvem, também nos envolvem as tristezas. Aquele que ama envolve o objeto que

desperta tal afeto, do mesmo modo que também o ódio é um envolver do objeto odiado.

Nas alegrias e tristezas, envolvemos sendo envolvidos, embora na alegria haja uma

potencialização da nossa potência de envolver, de compreender, ao passo que no ódio

somos envolvidos imaginando envolver. Quando envolvemos algo com o amor, a

alegria nos envolve; quando envolvemos algo com o ódio, é a tristeza que nos envolve.

O amor nos permite desenvolvermo-nos naquilo que nos envolvemos, enquanto o ódio

impede nosso desenvolvimento naquilo que nos envolvemos. A imaginação é essa força

de envolvimento, daí sua plasticidade enquanto ação das imagens. As virtudes também

nos envolvem, como uma fortaleza, uma firmeza, uma fortitudo.

A filosofia não é um afastar-se dessa vida comum, com seus labirintos, cantos de

sereia, prazeres, dores, amizades, amores, angústias, sofrimentos, carnavais e funerais.

O melhor lugar para o sábio não é a caverna ou a floresta, o melhor lugar é a pólis.

Spinoza conheceu esse aspecto ordinário da vida, aspecto este que muda pouco ao longo

dos séculos, não obstante o avanço das tecnologias. Foi em meio a uma crise existencial

que Spinoza encontrou uma medicina mentis. Ele a chamou de emendatio. A filosofia

não começa no amor ou na amizade, ela se inicia em uma emendatio. É o intelecto que

precisar ser emendado, antes mesmo de a imaginação o poder ser. Se a emendatio

concerne ao intelecto, a salut (saúde) envolve a ambos, o intelecto e a imaginação, o

espírito e o corpo - e nos permite pensar, quem sabe, uma salut social, como potência

democrática.

Se o intelecto é a potência que pode envolver a verdade, sendo envolvido nela,

devemos pensar um devir-verdade como produção de um modo de vida que apenas a

verdade do intelecto não é capaz de envolver. Nesse sentido, o autêntico

autoconhecimento é “autoenvolvimento” que nos desenvolve com a potência de nos

envolver-afetar com ideias múltiplas. Desse devir-verdade participa também a

imaginação, como afeto mais do que pela verdade: afeto pela coragem de viver

verdadeiramente. Retornaremos a esse tema na conclusão.

Elton Luiz Leite de Souza

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O Amor nos envolve ativamente quando amar já não é um padecer, o quinto

dos afetos, mas um agir idêntico ao desejo, e se torna mais do que o primeiro, devindo

primeiridade , a essência mesma do homem. Envolvidos nesse Amor, envolvemos o

diverso que ele envolve, diversamente. Por intermédio desse envolver primeiro que

somos, aprendemos a amar o diverso de nós enquanto amamos a nós mesmos. Não seria

isso o que diz Manoel de Barros quando afirma que o poeta é aquele que aprende a dizer

“eu-te-amo” a todos as coisas? Ele não diz isso dizendo eu te amo a cada coisa uma a

uma, ele diz primeiro, como primeiridade afetiva-ontológica, eu-te-amo ao

Absolutamente Infinito que envolve todas as coisas. Esse eu-te-amo é um estar

envolvido pela compreensão, incluindo a compreensão do que é o ódio. Isto é o que

chamamos aqui de primeiridade: o primeiro dos afetos, o desejo, também

compreendido, ontologicamente, como a primeira das ações, o existir, como ideia e

corpo, sem distância.

A ideia adequada não limita seu objeto, ela o envolve. Há um dinamismo nesse

processo, e não um ato (actus) que prescinde de uma potência. O ato da potência não é

uma forma, ele é um processo: o de envolver. Mesmo a ideia inadequada também é um

envolver, embora envolvido em uma imagem, uma exterioridade quantitativa. A ideia

adequada é expressiva, ao passo que a inadequada é impressiva: ela envolve o que um

outro corpo imprimiu no corpo ao qual uma mente está envolvida. Pensar é sempre uma

expressão, enquanto a imaginação [imaginatio] envolve impressões que nos produzem

as coisas. A impressão que padecemos é a expressão de outra coisa, nunca é impressão

de outra coisa a expressão que somos. Assim, somente quando compreendemos a

expressão que somos podemos compreender/envolver a impressão a partir da verdade

que ela é, enquanto atividade de imaginar [imaginatur].

Tudo o que dissemos até aqui é uma abertura ao que queremos introduzir. Este

artigo não tem a pretensão de apresentar uma questão nova. Seu desejo é mostrar,

esperamos, uma leitura de questões conhecidas mediante o apoio em uma ideia-verbo

ainda não muito trabalhada, exatamente a ideia-verbo envolver. Esta Introdução foi

deliberadamente longa. Aliás, o artigo tem apenas esta pretensão: ser uma introdução.

Há questões as quais podemos apenas introduzir, pois os passos seguintes para a

compreensão do que se diz não são apenas teóricos. Essa cautela (caute) vale ainda mais

quando se trata de escrever sobre Spinoza, sobretudo quanto ao tema deste artigo, dado

que o termo “imaginação” não dá conta das sutilezas semânticas do latim,

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver

39 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017

especialmente do latim de Spinoza. Por isso, indicamos o termo latino correspondente

apenas quando necessário, para não sobrecarregar a leitura.

Potências de envolvimento

A cisterna contém,

a fonte transborda.

W. Blake

Entre a imaginação e o envolver não há distância: a imaginação também é aquilo

que ela envolve, e aquilo que ela envolve já é imaginação, imagem. Antes de tudo, a

imaginação não é a faculdade de um sujeito, ela é um envolver primeiro de nós mesmos

com o conhecimento em seu primeiro gênero. E este é, antes de tudo, um modo de vida.

Podemos dizer que a imaginação não está dentro do sujeito. Ou melhor, ela lhe está

dentro, pondo-se fora. Entre a imaginação e a imagem não há distinção: a imaginação é

ação-imagem, imagin-ação. Na percepção que fazemos do mundo mediante nosso corpo

não vemos um corpo e depois sua imagem. O corpo percebido é imediatamente

imagem, como imagem também é nosso corpo. A metafísica medieval afirmava que

nosso corpo é uma imagem ou reflexo de nossa alma, como se fosse um espelho. A

alma seria a causa do reflexo. Em Spinoza, o corpo não é um efeito da alma, não é o seu

reflexo. Ele é o reflexo do mundo externo, sendo ele próprio o externo que outro corpo

reflete.10

A imagem é sem espessura ou interior: ela é a exterioridade pura, exterioridade

esta que também somos, na medida em que somos um corpo. A imaginação é um

envolver-se com essa exterioridade a partir de uma imagem que é seu reflexo, e não

outra realidade substancialmente distinta, como reza a fenomenologia e seu cogito. Nem

se pode dizer que a imaginação é uma relação, pois esta pressupõe os termos e o meio,

ao passo que a imaginação é a exterioridade e seu reflexo, sem que se possa separar o

refletido (os corpos) de seu reflexo (a imagem).

O exemplo de Spinoza é por demais conhecido: quando vejo o sol do tamanho

de uma bola, esta se encontra, sem distância, em mim e fora de mim, ou melhor, ela é

10 Curiosamente, parte das análises de Sartre sobre a imaginação em o Ser e o nada segue uma lógica

semelhante, embora ele não cite Spinoza. Este é mencionado, poucas vezes, em A imaginação e em O

imaginário, mas não por sua teoria da imaginação.

Elton Luiz Leite de Souza

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017 40

meu corpo-imaginação envolvendo uma afecção que produz o corpo-imagem do sol.

Esse ver é imaginação. Hoje, sabe-se que a imagem do sol leva oito minutos entre sua

partida e chegada até meu olho. No entanto, essa partida nunca a verá meu olho, e a

chegada tampouco a posso ver como algo distinto do meu olho. Mesmo fazendo uma

ideia adequada do sol, continuarei a vê-lo do tamanho de uma bola. A ideia adequada

não destrói a imagem, porém a envolve e nos permite conhecê-la como imagem, isto é,

como realidade distinta da ideia. Como toda realidade, a imagem é uma verdade, e não a

cópia imperfeita, uma degradação, de uma “Verdade” sem corpo.

Não apenas a imaginação é capaz dessa atividade-verbo, o envolver, o intelecto

também o é. Mas o envolver da imaginação tem maior amplitude, em razão do vasto e

variado campo de questões que lhe concernem. Ela tem maior amplitude não em

potência ou intensidade, e sim devido à quantidade de realidades que ela envolve. Por

isso o pertencimento da imaginação à extensão, e não ao pensamento (enquanto

atributo). A imaginação é a realidade como quantidade, sobretudo a quantidade

descontínua, que imagina números e substâncias, ou então egos como realidades

distintas de todo o restante da Natureza. A quantidade não é uma ilusão, ela é uma

verdade, uma verdade que se explica pelas afecções de nosso corpo, e não pelas ideias

adequadas do intelecto.

Repetimos: esse verbo-atividade concerne tanto ao intelecto quanto à

imaginação. O que seria o envolver da perspectiva do intelecto? É no próprio Spinoza

que buscamos esse verbo ou ação que as próprias ideias também são. Uma ideia

adequada envolve o objeto do qual ela é uma ideia. Essa ideia-verbo já se apresenta na

Definição 1 da Primeira Parte da Ética: “ Por causa de si compreendo aquilo cuja

essência envolve [involvit] a existência (...)”. No Axioma 7 da Primeira Parte da Ética,

Spinoza afirma ainda: “Se uma coisa pode ser concebida como inexistente, sua essência

não envolve [involvit] a existência”. Essa ideia/verbo aparece ainda em outras 93 vezes

na Ética, incluindo a Quinta Parte, na qual assumirá uma importância considerável.

O que seria exatamente esse envolver? Não é qualquer envolver, pois se trata do

envolver primeiro, no qual a própria essência/ideia envolve a existência da qual ela é a

ideia. Esse envolver não pode ser pensado como uma forma, um eidos, tampouco é um

limite. Não se trata de um envolver análogo ao de um papel que embrulha um objeto,

uma vez que, nesse caso, o envolvido preexiste ao envolvedor. O envolver da ideia

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver

41 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017

produz não o ser corpóreo do envolvido, a ideia produz a si mesma enquanto

envolvimento de um envolvido que ela própria é, vista de outra perspectiva; assim como

o envolvido, o corpo, é o envolvedor mesmo, visto de outra perspectiva. Tão importante

quanto o envolvedor e o envolvido é o envolvimento enquanto processo de envolver,

que envolve inclusive o passado e o futuro do envolvido, enquanto seu acontecer. Há

uma duração imanente ao envolvimento, enquanto variação imanente do sentido que se

diz do envolvedor e do envolvido, como grau do conhecer. O sábio e o homem

passional têm isto em comum: eles envolvem e são envolvidos, porém não envolvem e

são envolvidos pelas mesmas realidades. O homem da imaginação [imaginatio] envolve

sendo envolvido por ela, inclusive quando ela é triste; o sábio envolve seu imaginar

[imaginandi potentiam11] com a ideia adequada que o envolve e o torna envolvido com

realidades que a imaginação não envolve. O imaginar do sábio e a imaginação do

homem reativo se distinguem não pelo que elas envolvem, mas por aquilo que envolve

o imaginar do sábio: envolve-o um conhecer que também se autoconhece, assim se

fazendo ativo, ativamente alegre. O sábio compreende o imaginar como uma atividade

que ele envolve, já o homem passional toma a imaginação como uma faculdade da qual

ele supõe ser o “sujeito”. O sábio tem pouca imaginação, embora não lhe falte o

imaginar enquanto virtude e potência. A mente é apenas causa formal da salut12, pois

ela mesma deve ser envolvida pela Potência Absoluta enquanto causa imanente dela e

do corpo. Por isso, o sábio não é apenas quem conhece ou teoriza, ele é aquele que age

envolvido por aquilo que pensa.

Envolver é um “volver para fora”, um “voltar-se a”. “Volver” também é um

retornar que se faz após ir. Esse “voltar-se a” não é exatamente um “ter consciência de”,

pois esse “voltar-se a” antecede toda consciência e também a envolve, a ela e seu ego.

Envolver é um voltar-se para fora, constituindo-o ou sendo constituído por ele.

“Envolver” não é “participar”. Em Platão, o sensível participa do Inteligível, sem que

este o envolva. Em Spinoza, a essência não é um ser mais eminente que o corpo deveria

imitar para ser. A ideia e o corpo são modificações de um mesmo ser que se expressa

como ideia e corpo. Em toda participação há uma diferença entre aquele que participa (o

corpo) e o participado (a Essência ou Ideia Transcendente), diferença esta exterior ao

participado e sua Identidade, pretendida modelo a ser imitado. Em Spinoza, a essência

11 Cf. Ética, Segunda Parte, Escólio da Proposição 17. 12 Cf. Ética, Quinta Parte, Demonstração e Escólio da Proposição 31.

Elton Luiz Leite de Souza

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017 42

é uma diferença intrínseca ou grau de potência do Pensar, como condição de todo

pensamento, mesmo que não se possa conhecer tudo o que pode um corpo que a ideia

envolve. Esse envolver também é voluta, força imanente que antecede, em afirmação e

potência, a voluntas (vontade). Há em Spinoza a identificação do ser com a potência,

sem fazer desta última uma “vontade de potência”, pois há mais na potência do que

pode querer toda vontade.

Há uma distinção entre a ideia e o pensamento, entre o modo e o atributo. A

ideia pode ser finita ou infinita, como graus do Absolutamente Infinito (Deus), ao passo

que o pensamento é sempre infinito, enquanto atributo (de Deus). Não existe

pensamento finito, a não ser como imaginação [imaginationem]. Não seria isto a

imaginação: a imaginação de que pensamos? Talvez por isso ser tão difícil perceber a

imaginação e seu poder (potestas), dado que ela é pensamento finitizado, limitado pela

existência do corpo, aqui e agora, padecendo a ação de outros corpos. Pensar [cogitare]

é horizontar-se, para dizer como Manoel de Barros13, um envolver da ideia com o

infinito pensamento. O imaginar [imaginari ] não é uma atividade distinta da atividade

de pensar, dado que nesta atividade está também envolvido o desejo, a existência.

Porém, a imaginação não é pensamento, ela não é um atributo do Absolutamente

Infinito. A imaginação não é um pensamento confuso, ela é uma ideia confusa. Ela está

envolvida em nossa existência, ela é nossa existência enquanto mundo que nos envolve,

no qual estamos envolvidos.

A imaginação é o primeiro gênero de conhecimento, porém ela não é

pensamento. Somente no segundo gênero de conhecimento encontramos o pensamento

em sua infinitude. O terceiro gênero não é apenas pensamento, ele é o pensar. Um

pensar que compreende/envolve inclusive o que é o imaginar, apreendendo-o como

virtude produtiva da mente. O conhecer e o imaginar não são faculdades distintas da

mente, eles são modos ou maneiras de a mente existir: envolvendo e sendo envolvida

por um efeito, no caso do imaginar, envolvendo e sendo envolvida pela ideia adequada,

no pensar. O pensar não se torna pensar sem compreender as razões de sua impotência,

de sua tristeza, para assim se curar (salut) delas, embora a imaginação não seja uma

doença.

13 Cf. Manoel de Barros: a poética do deslimite, Faperj/7letras, 2010 (de nossa autoria).

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver

43 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017

O primeiro gênero não é um conhecimento feito pela imaginação, ele é um

conhecimento da imaginação. Conhecer a imaginação não se faz apenas imaginando. É

preciso fazer uma ideia adequada da imaginação, envolvê-la nessa ideia. Essa ideia

adequada é a própria mente. Assim, o pensar envolvendo a imaginação a compreende

como imaginar [ imaginatur] ou atividade da própria mente. O pensar devolve a mente a

ela mesma: ele é a mente envolvendo a si mesma, sem ser envolvida pelas afecções que

os outros corpos deixam no corpo do qual ela é a ideia. Somente assim, inteira, a mente

é o corpo mesmo apreendido de outra maneira.

Conhecer a imaginação também é conhecer o que são a sociedade, os homens, os

desejos, os prazeres, a vida civil, as linguagens (incluindo as não verbais), enfim, as

alegrias e tristezas, os ódios e amores. Desse conhecimento adequado também pode

advir uma alegria distinta daquelas provindas da imaginação, o que não significa dizer

que da imaginação não possam vir alegrias, alegrias que podem favorecer ao próprio

pensar em seu exercício no terceiro gênero, conforme veremos mais adiante.

Quando o infinito pensamento envolve o nosso pensar singular, este supera o

primeiro gênero, o imaginar, retirando deste o seu aspecto profético e delirante, quando

se intromete no conhecimento da natureza. Envolvida pela ideia adequada, a imaginação

se torna um apóstolo em cujas produções há percepções imageantes da ideia verdadeira,

que a fez conhecer a si mesma14. Porém não há como envolver a imaginação no

conhecer de si mesma a não ser fazendo a mente conhecer a si mesma primeiro,

emendando-se, envolvendo-se na potência que confere salut à potestas imaginativa. A

imaginação é uma potestas, um poder, ao passo que o pensar é uma potentia, uma

potência. Porém o imaginar pode conquistar uma potência [imaginandi potentiam],

quando envolvido pela potência do intelecto emendado. Queríamos enfatizar esse ponto:

apenas o pensamento [cogitationis], o atributo-essência, não produz a salut enquanto

experiência, não vaga, do pensar consigo mesmo. Tanto o pensar [ cogitare] quanto o

imaginar [imaginatur] dizem respeito à existência. O pensar concerne à existência do

corpo enquanto envolvido pela ideia, ao passo que a imaginação [ imaginatio] é a ideia

confusa nascida da relação do corpo com outros corpos, enquanto amor ou ódio, ódio ou

amor. Tanto o pensar quanto o imaginar se relacionam com o corpo enquanto grau de

existência, e não como modo da extensão apenas. Isso explica os dois sentidos de modo

ou maneira: como modo no atributo e como modo da Potência Absoluta. É enquanto

14 Sobre a “imaginação-apóstolo”, não mais “profética”: Deleuze, Spinoza e o problema da expressão,

Capítulo 18 : “Rumo ao terceiro gênero”.

Elton Luiz Leite de Souza

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017 44

modo no atributo extensão que o corpo pode ser conhecido pela nossa ideia-intelecto,

enquanto modo no atributo pensamento. Mas é como modo da Potência, como

existência, que o corpo será questão tanto para o imaginar quanto para o pensar.

A ideia finita é a essência singular de um corpo igualmente singular. A essência

singular também é chamada por Spinoza de “essência íntima”. Ela é íntima enquanto

grau da Potência, que é íntima a todas as coisas. Só o Pensar (Potência Absoluta) é

íntimo ao pensar (enquanto grau dessa Potência). O atributo pensamento é o que se

atribui ao Pensar Absoluto, sendo o próprio Pensar o agente da atribuição, e não o

atributo mesmo. Talvez seja por isso que a próprio atributo pensamento também possua

sua extensão, uma extensão de amplitude, a partir da qual ele envolve e é envolvido

(pela Potência). Não seria isto o pensamento: uma potência de envolvimento que dá à

ideia a capacidade de envolver seu objeto, e não apenas, de fora, representá-lo? A ideia

adequada envolve o corpo seja como modo no atributo pensamento, quando então é sua

essência, seja como modo da Potência (Deus), quando ela é o corpo mesmo

envolvendo-se a partir de outra perspectiva, ao mesmo tempo que o corpo é a ideia que

envolve a ela mesma, sem ser por outra ideia finita envolvida, dado que ela se expressa

como grau da Potência Absoluta, que a conecta com todas as ideias que essa Potência

Produz. É esse envolver primeiro, passível de ser apreendido de duas perspectivas,

como corpo e como ideia, que dota a própria ideia de verdade, antes mesmo de ela ser

objeto de outra ideia, como objeto. Um devir-verdade unindo o primeiro ao terceiro

gênero, como um modo de vida ético.

Mesmo a impotência, o ódio e a tristeza são envolvimentos com aquilo que

odiamos ou nos deixa tristes. Essa é a dificuldade de lutarmos e vencermos o ódio, dado

que ele nos envolve, envolvendo-nos com aquilo que nos entristece, ao mesmo tempo

pondo-nos à parte com o envolver do pensar potente, que assim nos poderia envolver

com a salut.

Repetimos: na inadequação também há um envolver. Acreditamos que essa

extensão do envolver abarca o que depois se chamará de “ser-no-mundo”, “estar

lançado no mundo”, “consciência irrefletida”, “territorialização” , “mundo próprio”.

Não é aqui o lugar para sustentar esta tese, apenas a indicamos: já estão em Spinoza

esses problemas “ônticos”, “pré-ontológicos”, “inautênticos”, “mundanos”. Pensando o

Tratado sobre a correção do intelecto sob essa perspectiva, é o intelecto que precisa ser

emendado, envolvido com a potência que lhe é imanente. Emendando o intelecto

desemendamos nossa mente dos envolvimentos que a alienam de si mesma. Envolver-se

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver

45 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017

não é um “acidente”, ele constitui nossa essência enquanto envolvida com a existência

de nosso corpo em relação com outros corpos. A existência é, ela mesma, um envolver-

se com outras existências, as quais afetamos e somos afetados. Nosso poder de agir está

envolvido nas coisas sobre as quais ele age, sendo também agido por elas, a partir dos

efeitos ou signos que elas nos deixam, suas imagens. O envolver da ideia adequada é

sempre expressivo, ao passo que o envolver da ideia inadequada é indicativo ou

“impressivo”: ele indica que algo nos envolve, que devimos envolvidos por efeitos.

Em seu livro Spinoza e o problema da expressão, Gilles Deleuze aponta para a

complementariedade do par expressão-envolvimento. Porém, ele indica que nem todo

envolver é expressivo. O envolver possui uma amplitude maior que a da expressão. Esta

é sempre adequada, ao passo que há envolvimentos com a inadequação, com a paixão,

alegre ou triste. Mas Deleuze não desenvolve esse tema, e não será nossa intenção aqui

construir hipóteses acerca desse não desenvolvimento. O que podemos supor é que esse

tema não pode ser desenvolvido sem abordar o tema da imaginação (que interessa

pouco a Deleuze), para assim compreendermos que mesmo na inadequação pode haver

uma positividade. A positividade não está na inadequação em si, mas no fato de mesmo

nela haver um desejo de envolvimento, mais do que de isolamento, embora o envolver

da imaginação, sobretudo na tristeza, seja sempre um isolamento de nós mesmos: por

vezes os homens se isolam do que podem fazendo parte de um rebanho, de uma massa,

das quais se valem profetas e tiranos, para guiá-los ou submetê-los. Enquanto profetas

falam a rebanhos, apóstolos falam a poucos, mesmo diante de muitos, a partir da ideia

singular que os envolveu, singularizando-os.

O primeiro gênero não é uma primeiridade. A imaginação é primeira não por ser

um degrau, um primeiro passo, do conhecimento. Spinoza emprega "gradus" (“grau")

como sinônimo de "modus" (“maneira")15. A palavra gradus expressa um momento de

um processo. Originalmente, gradus é associado ao caminhar ou aos passos de um

caminhar. Para compreender um gradus, portanto, é preciso apreender o todo do qual ele

faz parte, do qual ele é uma parte ou momento. De degrau a degrau se sobe a escada,

cada degrau é um momento necessário de uma escalada ou subida. Porém, o primeiro

gênero não é um degrau da escada do conhecimento, isso porque ele não é

conhecimento, enquanto prática apoiada no atributo pensamento. A imaginação é

15 Cf. “Spinoza e o sentido”, Revista Conatus – Filosofia de Spinoza, vol 7- nº 14, dezembro de 2013, 19-

30 (artigo de nossa autoria): “A imaginação não é um primeiro degrau que leva ao segundo. Talvez se

possa dizer que ela é sempre o último, no sentido de último termo (como os infinitamente pequenos são

os termos últimos, e não primeiros, da Natureza). ”

Elton Luiz Leite de Souza

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017 46

sempre grau, não um degrau. As alturas que a imaginação triste promete são todas

alucinatórias, e delas advém sempre um tombo, uma queda. A imaginação promete

saltos mirabolantes, miraculosos, por intermédio dos quais se atinge píncaros, sem que

os anteceda degrau ou esforço, gradualmente.

Não se atinge o degrau do terceiro gênero sem passar pelo degrau do segundo,

este leva àquele. Contudo, essa imagem da escada é tão somente uma virtude criada por

um imaginar, é apenas uma imagem que tenta imitar [ imitari]o que não é imagem.

Adequadamente falando, o conhecimento não é uma escada, exatamente pela razão que

motiva este artigo: o conhecimento é uma maneira de envolvimento. Em uma escada, o

degrau mais elevado não envolve o mais baixo, eles são exteriores um ao outro. Em

Spinoza, o terceiro gênero pode envolver o primeiro, fazendo-nos compreender sua

necessidade, sem diminuir essa potência ativa de compreensão imanente. No poema

Para ser grande, Pessoa afirma que a lua é grande, potente, porque ela é capaz de se

refletir na mais simples poça do caminho, sem que esse refletir/envolvimento (palavras

nossas) a diminua: é ela que dignifica a poça, pois ela se reflete na poça tal qual se

reflete no oceano.

Há ainda um grau na imaginação, porém não um degrau para o segundo gênero.

Ela é um grau envolvido confusamente na vida, e não em teóricos livros, mas isso só

conhecemos quando alcançamos o degrau do segundo gênero que, do ponto de vista do

conhecimento, é sempre o primeiro. Tudo o que está envolvido em nós adequadamente

está envolvido também com o universo inteiro: “Quando se fala muito claramente, fala-

se muito infinitamente (Maria Gabriela Llansol) ”. Não se pode explicar o universo

inteiro a não ser explicando-nos como parte envolvida com o universo. É o infinito que

nos está envolvido, mas explicado a partir de nós mesmos, como grau dele. Singularizar

é intensificar. Toda explicação potente é uma forma em rascunho, como diria Manoel

de Barros, que explica uma potência que nunca é puramente formal.

A distinção ativo/passivo também atravessa o sentido de envolver. O envolver é

ativo quando nós mesmos estamos envolvidos na ideia que nos permite desenvolvê-la,

desenvolvendo-nos, aumentando nossa potência de compreender e nos envolver ainda

mais com a potência das ideias, sendo por essa potência envolvidos. O envolver é

passivo quando somos envolvidos pela ideia confusa que não nos desenvolve, que não

nos explica, e sim explica outra coisa por nosso intermédio, por meio do nosso padecer.

Nesse último caso, não formamos uma ideia, apreendemos uma imagem.

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver

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Assim, tanto o intelecto quanto a imaginação são potências de envolvimento. O

envolvimento do intelecto nos conecta, ao passo que o envolver da imaginação nos

isola, fazendo-nos existir como um todo à parte. O álcool não é apenas um corpo que o

alcoólatra ingere, ele também é uma imagem-mundo que envolve o alcoólatra. O ciúme

envolve o ciumento num mundo onde o ciúme é a “regra”, a verdade inquestionável

delirante. Libertar o passivo desse envolvimento restritivo somente o podemos fazendo-

o entrar em um envolvimento maior, de maior amplitude ou potência. O primeiro

gênero envolve a todos como se ele fosse o único gênero ou modo de vida. O homem do

segundo gênero não deixa de envolver também o primeiro, porém não é mais envolvido

apenas pela imaginação. O primeiro gênero não é verdadeiramente conhecimento,

porém ele já é envolvimento com a existência, com um grau desta.

O homem não nasce egoísta. Ele nasce envolvido em uma existência, e nesta

persevera, envolvendo-se e sendo envolvido. A morte vem sempre de fora, e rouba tudo

o que envolvemos, para este tudo ser envolvido por outros seres que não somos. A

morte é a presença de um poder de envolvimento maior do que o nosso, que é maior nos

excluindo, ao passo que a vida é uma potência maior que a nossa, mas que nos envolve

como um grau dela. O que chamamos de gripe, por exemplo, é tão somente a busca do

vírus pela sua própria saúde, isto é, por fortalecer sua existência. Não existe doença,

existe apenas saúde, vida. Se o vírus nos provoca a doença, não é por ódio ou raiva de

nós, mas por amor ao modo de ser dele, modo de ser este que ele sempre afirmará com o

máximo de potência que ele tiver. Não se vence o vírus o odiando (odiar é uma

imaginação). Somente o vencemos compreendendo o seu modo de ser e agir. A

compreensão é a saúde do pensamento.

O homem que envolve o primeiro gênero é envolvido na doxa, e luta por ela

como se nela estivesse sua salvação envolvida. No primeiro gênero vive-se ao sabor

dos encontros. A cristalização de alguns desses encontros gera costumes, tradição,

“imaginários”, mas não pensamento e ação. O homem é um “Deus” para outro homem

apenas enquanto ambos estão envolvidos pela ideia de humanidade, e esta pela ideia de

democracia, com o infinito a envolver todas elas.16 O homem envolvido pela ideia

adequada alegra-se em ser o instrumento para envolver aqueles que ainda não estão

16 Essa é, em outras palavras, a tese de Negri em: “Democratie et eternité”. In: Spinoza: Puissance et

ontologie. Paris: Kimê, 1994, p. 148.

Elton Luiz Leite de Souza

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envolvidos por ela.17 Se os homens em geral não conseguem, apenas com o próprio

intelecto, serem envolvidos pela ideia adequada, ainda assim poderão de alguma

maneira serem envolvidos por ela, desde que sigam e se deixem envolver pelas leis

democráticas.

Os corpos não envolvem uns aos outros. Um beijo não envolve exatamente

amor, como no beijo do Judas, assim como o socar não envolve ódio, como no soco do

pugilista profissional, que soca por amor ao boxe, e não por ódio ao seu adversário. O

afeto não está na marca, beijo ou soco, mas na ideia que pode envolver essa marca, ideia

adequada ou confusa, inteira ou mutilada. Enquanto movimento do corpo, o beijo não é

confuso, confusa pode ser a ideia enquanto imaginação que envolve esse movimento.

Uma ideia inteira é uma ideia integrada em outra ideia que a explica e

envolve.18Acreditamos que se pode interpretar assim a conquista da salut (Quinta Parte

da Ética). É nossa imaginação que nos envolve em uma ausência, não é o corpo que nos

marcou que envolve nosso corpo ao marcá-lo. Os corpos ou se compõem, formando um

corpo maior, ou se decompõem, um destruindo o outro. Não obstante, os corpos são

constituídos por relações características que duram enquanto durar a ideia adequada que

os envolve. Envolver é a potência de uma ideia, mesmo confusa. A ideia confusa

envolve apenas um signo, uma afecção, um efeito, mediante o qual ela é envolvida por

um afeto ou paixão que não a explica, não a desenvolve, não a singulariza. A ideia

adequada envolve o objeto do qual ela é a essência ou ideia, de tal modo que ela nos dá

a conhecer o objeto envolvendo-nos igualmente no conhecimento que nos potencializa e

nos faz desejar conhecer ainda mais.

Não são poucos os problemas metafísicos implicados nesse único verbo-

atividade. Vejamos o mais amplo deles, ainda que muito brevemente. Em Spinoza,

Deus é causa sui, ele produz a si mesmo. A tradição metafísica, ancorada na ideia de

Ser, recusa aplicar ao Absoluto a ideia de causa. O Ser, Deus, não é causa de si mesmo.

Se assim o fosse, Deus seria, ao mesmo tempo, causa e efeito de si mesmo: ele seria

dois, não seria um. Para essa ortodoxia, Deus não tem causa, embora sua existência não

seja um acaso. Se conhecer é conhecer pela causa, não podemos conhecer a existência

de Deus, apenas a fé nos eleva até esse mistério. Segundo São Tomás, por exemplo,

17 Cf. Ética, Quinta Parte, Proposição 28 e Escólio. 18 Sobre a ideia de “integração”: Matheron, Individu et communauté chez Spinoza, Premiere Partie,

Cbapitre 3: “L’unification externe: individualité complexe et univers organisé”, Paris: Minuit, 1988.

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver

49 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017

Deus é o único ente cuja essência é existir. Cada ente finito participa dessa existência,

conforme a essência que possui. Participa, recebendo-a. Cada essência recebe a

existência, segundo sua essência limitada (limitada é a essência recebedora, não a

existência doada).

No entanto, a questão decisiva, incompreendida pela tradição metafísica, não

está tanto na ideia de causa quanto está na noção de “si”. O “si” não é exatamente um

“Motor Imóvel”, tampouco é uma substância clássica, cujo sentido é solidário ao de

acidente; o si também não é uma Pessoa. Ele é Potência, não é Ser19 (no sentido de que

a ideia de Ser extrai seu valor de uma relação negativa com a de ente). Ele não é dois,

ele é natura naturante e natura naturada : uma mesma natura, naturante e naturada.

Deus não é duas naturezas, como Intelecto e Vontade20. Ele é a mesma natura unívoca

do unívoco Ente. Há apenas um ente que se expressa de infinitas maneiras, segundo

uma essência ou atributo comum a ele e às suas expressões. Há um único ente que se

expressa de infinitas maneiras. Cada maneira é um modo dele, uma modificação. Cada

modo finito é um grau dessa potência infinita que Deus é. Um modo não é um ente

diferente, posto que um modo não é um ente. Em Spinoza, a diferença produtora,

“ontológica”, não acontece entre o ente e o Ser, ela ocorre na imanência do Ente que

não é Ser, mas Potência em Ato ( actus). Só há ser da potência. “Potência ativa” é um

pleonasmo, “potência passiva” é um absurdo, assim como círculo quadrado.

Ao invés de uma Metafísica ou de uma Ontologia Fundamental, ou mesmo uma

Ontologia da Potência, talvez devêssemos pensar uma Potenciologia Plural, a partir de

Spinoza. Curiosamente, “potenciologia” é um termo da farmacologia que indica a

capacidade que tem um remédio de curar, proporcionar saúde. Ou talvez devêssemos

reservar a essa obra tão somente o simples nome “filosofia”, enfim filosofia. Essa

talvez seja uma maneira de compreender porque Spinoza não assina sua obra. Ademais,

a autêntica assinatura filosófica não é exatamente escrever o nome próprio depois da

obra acabada. A assinatura é a própria obra, e esta não é feita apenas de letras escritas

no papel. Não raro, essa assinatura somente é conquistada ou afirmada ao preço de se

trocar de nome (como Spinoza: nascido Barukh, renascido Benedictus). Uma obra

19 Ver: Bernand Rousset, “Les implications de l’identité spinoziste de l’être et de la puissance”, Spinoza

:puissance et ontologie –Actes du Colloque organisé par le Collège International de Philosophie ,

mai/1993 à la Sorbonne (org. Myriam Revault et Hadi Rizk), Paris:Kimé, 1994.

20 Cf Ética, Primeira Parte, Escólio da Proposição 17 .

Elton Luiz Leite de Souza

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017 50

realmente filosófica talvez não precise de um nome que expresse apenas uma parte

disciplinar dela, seja como metafísica ou ontologia. Se ela pode receber um nome,

apenas o poderá recebendo o nome do todo, um todo aberto, não totalizável:

simplesmente filosofia, sem nada dever à teologia, ao Estado ou à egologia. Quando

Spinoza afirma que “ninguém sabe o que pode um corpo”, é de uma incógnita que se

trata, não de uma ignorância, mesmo Douta. Essa incógnita não é um negativo do

pensamento, mas sua mais absoluta e afirmativa positividade. Essa incógnita tampouco

é um mysterium. Toda potência é uma incógnita. O mais singular é o mais incognitus .

Em Spinoza, o próprio Absolutamente Infinito possui uma facie: o homem da salut é o

personagem cujo rosto singular é a expressão ou maneira de ser desse rosto infinito.

Não se trata do rosto como parte do corpo ou “janela” para um mundo interior. Todo o

corpo se torna um rosto, uma matéria expressiva, quando o envolve a ideia que o

singulariza. E o próprio corpo singulariza a ideia, com a potência incógnita da Vida.

Será que se pode chamar adequadamente ‘ente” o que Spinoza nomeia como o

Absolutamente Infinito? Decerto que ele emprega o termo “ente”, porém há nele a

tradição dessa ideia? Pode haver a ideia de ente sem uma hierarquia entre entes? Pode

haver Ser sem uma diferença em relação aos entes? É possível filiar Spinoza à história

da metafísica e sua gramática ente/Ser? Se Heidegger faz a crítica da metafísica, não há

em Spinoza uma crítica dessa crítica, lá mesmo onde aquela se esboça? Não temos

como responder a essas questões aqui. Apenas as mencionamos como pano de fundo

que acompanha nosso tema.

Conclusão: a imaginação e a medicina mentis

Creio que nasci com um olho divinatório.

Manoel de Barros

O homem da imaginação passiva vive no âmbito do primeiro gênero de

conhecimento. Como a imaginação é composta pelas imagens, e estas nascem da ação dos

corpos exteriores sobre o corpo do homem passional, tudo o que o homem passional

imagina como verdade dependerá de uma confirmação externa. Somente o entendimento

pode conhecer adequadamente o que a imaginação conhece inadequadamente,

confusamente, mutiladamente.

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver

51 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017

Todavia, quando o entendimento não é potente para corrigir a imaginação, esta

segue sua pretensão de conhecimento. Ela procurará no mundo exterior signos que

confirmem o que ela imagina ser verdade, como o homem ciumento que descobre em

tudo, mesmo no sorriso exclusivo que a amada endereça a ele, os signos da traição. A

dependência em relação a signos requer da imaginação uma prática delirante de

interpretação. A interpretação imaginativa é a marca da potestas do profeta. Mas não há

profetas sem Messias e Demônios: cada um põe seu Messias em suas promessas (“amanhã

serei o que hoje não sou”), ao mesmo tempo que encontra seu Demônio naqueles que não

o reconhecem como profeta, isto é, como aquele que detém a “verdade” do outro (“o

inferno são os outros”, já dizia Sartre...). Não raro, o Demônio de quem pretende ser

profeta é um outro profeta com pretensão igual, o que lança a todos em uma “guerra civil

de opiniões contrárias”, que é como Spinoza define, à sua maneira, a psicopatologia da

vida cotidiana.

Interpretar não é a mesma coisa que argumentar. A argumentação é a prática

necessária que parte da ideia adequada. Toda autêntica argumentação é afirmação político-

jurídica, pedagógica, da salut. A argumentação emprega a interpretação como expressão

da potência de pensar. A argumentação pode apoiar-se em demonstrações

geometricamente apresentadas, sem espaço para a interpretação delirante; mas ela também

pode, e deve, ético-pedagógico-politicamente, enfim criticamente, ir ao mesmo campo

existencial da interpretação delirante, para assim envolver a linguagem com ideias, e não

apenas com signos indiciais, interpretativos ou imperativos. Ou seja, o campo da

linguagem não se confunde apenas com a esfera dos signos.21

Como já se disse, qualquer coisa pode tornar-se signo para a imaginação: uma

moita queimando, uma estrela cadente, um rio que seca, uma águia carregando uma

serpente no bico, as entranhas de uma ovelha, um copo d’água, uma vela acesa, a

escuridão do quarto, etc. A imaginação transforma em signo tais coisas quando as retira de

sua existência natural, e as faz de representantes das imagens que ela sofre, supondo

produzi-las ou recebê-las por algum canal ou meio extraordinário, sobrenatural. Ela

encontrará em tais signos sentidos ocultos, misteriosos, que requerem toda uma submissão

a preceitos, uma ritualística, uma iniciática. Quando posta a serviço de tais imaginações, a

regra se transforma em rito. E quando o signo se torna a hipostasiação do que a

imaginação ignora ser criação sua, nasce o culto. E tudo pode virar objeto de tal culto:

21 Cf. Henri Meschonnic, Spinoza poema del pensamiento, Buenos Aires, Cactus, 2015.

Elton Luiz Leite de Souza

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017 52

uma pedra, um pedaço de gesso, um rio, macacos e ratos (como na Índia), mesmo chagas e

feridas, além de medíocres livros cultuados como se fossem de autêntica filosofia.

Interpretar os signos requererá dons exclusivos, ou dependerá da graça recebida por

poucos escolhidos. Mesmo um texto escrito poderá se tornar signo para tais práticas

interpretativas da imaginação passional. Descobrir-se-á uma “cabalística” em tudo, mesmo

em um texto de poesia (até mesmo no texto de Spinoza!). Inverter-se-á a ordem das frases,

ou descobrir-se-á uma algorítmica oculta sob as palavras. Nascerão seitas distintas, cada

uma descobrindo algo ainda mais oculto do que a outra, rival, descobriu. Mesmo uma

música pode ser objeto de tal imaginação: crer-se-á que o artista codificou mensagens

esotéricas em uma inocente canção, mensagens estas que poderão ser ouvidas desde que

se faça o CD rodar ao contrário, como na famosa música dos Beatles. Estabelece-se entre

as imagens da imaginação e os signos uma “relação” que não é mais regida pelas leis da

natureza: recorre-se ao kármico para explicar tal relação , ou a uma graça angélica que a

Luz Sobrenatural concedeu, de tal maneira que o signo necessita sempre de uma

interpretação da própria imaginação para atestar que o signo exterior porta a mensagem

do significado das imagens que ela sofre, mas que ela, no entanto, ignora sofrer.

Sob tal existência passional, os signos se convertem em sintomas. Há uma

sintomatologia que indica um modo de vida alienado de si, do seu poder de compreensão e

ação. É sempre a imaginação, ou suas afecções, que produz, de forma alienada, o

significado do signo que ela emprega como representante do que ela imagina existir

independentemente dela. Na verdade, é sempre ao redor de si mesma que a imaginação

passiva, triste, roda. E rodando... rodando... como num rodamoinho, ela vai se enfurnando

em seu “buraco negro”, fazendo submergir nele não apenas a vida pessoal daquele que a

sofre, como no caso de um distúrbio psicoafetivo, mas também grupos ou sociedades

inteiras, tal como acontece nas guerras e litígios que têm por causa intolerâncias,

dogmatismos e preconceitos de toda ordem. Enquanto a ideia confusa necessita de um

signo externo para dar lastro ao seu delírio, a ideia adequada age na mente sem precisar de

signos exteriores a ela mesma. Envolvida em uma ideia verdadeira sempre há outra ideia

verdadeira, e esta não é um signo daquela. A verdade se mostra de forma imediata, como é

de forma imediata que alguém muda, e não pela promessa de ação futura. A ideia

adequada não tem representantes, ninguém tem a potestas de falar por ela.

Ao se mostrar de forma imediata, ela nos torna imediatos a nós mesmos, vencendo

o adiamento que sempre fazemos para sermos nós mesmos. Do imediato não há esperança,

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver

53 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017

do imediato há usufruir. A imaginação necessita de representantes, de mediadores, de

autoridades que impõem obediência. A ideia verdadeira, porém, não possui mediadores ou

representantes: ela se impõe, mas com a força da liberdade. Ela opera de forma imediata:

ela não é fruto que amadurece e que nos pede uma espera, ela é o martelo que forja e que

nos conduz à ação, à produção. À produção de nosso modo de existência, sobretudo.

Quanto mais o homem da tristeza e do ódio crê alcançar a verdade mediante

signos, mais ele se afasta da adequação, mais ele se vê como um privilegiado de poderes

ocultos que o fazem um enviado, um privilegiado, um iluminado, um vidente, alguém que

pode curar, transmitir paz, mas também amaldiçoar, ferir, ser o instrumento da fúria

divina. O perigo de tais mecanismos é sua associação com o poder do Estado. Quando isso

ocorre, nasce uma forma de exercício de poder conhecido como teológico-político. Sob

essa forma de poder, o político se apoia no teológico a fim de justificar o caráter

semidivino do titular da potestas; por outro lado, o teológico se serve do político, ou é

servido por ele, para se fazer obedecer à força. Não se trata apenas da força física, embora

esta possa ser empregada; trata-se também da força jurídica, da força institucional, da

força (potestas) moral. O “profeta” de tal poder não é exatamente o bíblico, ele é parte de

uma tipologia da imaginação triste.

Refém de seus fantasmas ( “phantasia”) , mas crendo neles como se fossem reais, a

imaginação busca uma carne para eles, e assim nascem seus signos: natimortos. Com esse

procedimento, a imaginação ignora que as próprias coisas possuem uma alma viva, e esta

alma é a ideia adequada delas mesmas. Uma semiótica da Natureza, ao invés de uma

simbólica ou semiologia da imaginação. O objeto de tal semiótica é o Sentido Unívoco da

Natureza que se expressa em cada diferença, de forma diferente.

Em um de seus últimos cursos ministrados, publicado sob o título A coragem da

verdade, Michel Foucault, que pouco se refere a Spinoza, cita o autor da Ética de uma

forma que revela a admiração que nutria por Spinoza, a despeito das poucas palavras

escritas que lhe dedicou. Segundo Foucault, em Spinoza fazer filosofia é inseparável da

produção de uma vida filosófica. Esta não é uma vida à parte, é a vida mesma. Produzir

uma vida filosófica requer não apenas amor à verdade, pede sobretudo coragem, como sua

causa eficiente. E disto a própria vida de Spinoza dá o testemunho. Decerto que não faltou

amor à Verdade a Sócrates. Mas poucos foram além do amor, poucos exerceram esta

coragem que a verdade pede. Há uma dimensão clínica nessa verdade, pois toda cura

começa na coragem. Coragem não para enfrentar a doença, coragem para viver de acordo

Elton Luiz Leite de Souza

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017 54

com a saúde (salut).

Há uma influência dos estoicos sobre Spinoza no esforço que este empreende

para instituir uma medicina da alma. Parece absurdo que o homem tenha criado uma

medicina corporis e que, no entanto, tenha descuidado de uma medicina mentis. O

homem pôde produzir a medicina corporis quando conseguiu vencer o curandeirismo nas

questões que envolviam a saúde do seu corpo. Todavia, no que diz respeito à salut de sua

alma, entrega-se o homem ainda a curandeirismos travestidos de teoria, mesmo

psicológicas. Não há como alcançar essa medicina mentis, essa salut, sem passarmos

pela questão da imaginação e de sua possibilidade de devir um imaginar que se

compreende como potência, isto é, produção. Como alma e corpo são um só, é abstrata a

ideia de que um possa estar são e o outro doente. “Doença”, aqui, é outro nome que

damos ao ódio e à tristeza, enfim, à impotência. Acreditamos que essa medicina mentis é

inseparável de um devir-verdade que inclui, inclusive, uma medicina corporis, enquanto

modo de vida ético. Não se trata de uma verdade que apenas ao intelecto envolve e

compreende, mas um devir-verdade que também envolve a imaginação e aquilo que

fazemos, como fazemos e por que fazemos.

A imaginação não é, em si, uma impotência: ela é um grau menos potente da

mesma realidade da qual o segundo gênero é um grau mais potente. O terceiro gênero

envolve mais potência ainda, potência de compreensão, e é por intermédio dele que se

pode compreender a razão e a explicação de seu grau menos potente, a imaginação. Não

há consciência fenomenológica da imaginação ou das imagens, o “fenomenológico”

emerge depois, quando as imagens se condensam em feixes que, por intermédio dos

signos da linguagem (sobretudo a verbal), além da memória, ensejam um imaginário

psicossocial. Quando Spinoza afirma que “ninguém sabe o que pode um corpo”, deve

incluir-se aí também o corpo social? Essa questão igualmente concerne ao corpo da

linguagem?22 A imaginação também não poderia participar dessa resposta, desde que

envolvida pela potência de compreensão, devindo uma potência de imaginar?

Talvez a relação da imaginação com o terceiro gênero, seu desemendar-se da

“experiência vaga” e do “ouvir dizer”, tenha lugar quando ela se torna apta a um “dizer”

que não vem de um ouvir, enquanto passividade, mas um dizer-imaginar, um imagear,

que expressa o que o entendimento viu, demonstrativamente, e mais ainda o que o

22 Assim compreendida, a linguagem se torna inteira produção de sentido, “poema”, é o que sustenta

Henri Meschonnic ( Spinoza poema del pensamiento).

Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver

55 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 28-57, 2017

intelecto intuiu, livremente. A imaginação assim emendada não diz apenas com palavra,

ela também “diz” em imagens, com imagens: não seria esse o imagear que está na

pintura de um Vermeer?23 Não estaria também esse imagear envolvido nos sons que

podemos ouvir em Les éléments, de Rebel? A questão da sociabilidade se inscreve aí,

como potencialização da sensibilidade. Esse dizer imaginativo envolve uma lógica cuja

base não é o logos, mas o ordo. Daí a dimensão política ser, ao mesmo tempo, um fazer

e um dizer, uma práxis e um parlar.

Assim como a imaginação logra assumir um ordo que a razão pode envolver,

ordo este que nasce das próprias forças da imaginação, a política também pode envolver

uma organização que a liberdade de pensar pode envolver. A ordem da Natureza não é

puramente racional, embora seja inteligível, pois mesmo as paixões pertencem à ordem

da Natureza e se permitem explicar por ela. É a organização política que deve ser

racional (ou se esforçar para isso), não seu conteúdo, uma vez que este também diz

respeito às paixões comuns que afetam os homens existindo em sociedade. Ordo não é

um imperativo formal/moral, tampouco uma Ordem Transcendente. Ordo é a regra de

produção imanente de uma multiplicidade. Um quadro, uma polifonia, um discurso e

mesmo uma sociedade democrática não podem ser produzidos sem um ordo do qual a

imaginação também envolva e seja envolvida na produção de suas regras.

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23 Cf. Sara Hornäk, Spinoza e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura, São Paulo: Paulus, 2010.

Elton Luiz Leite de Souza

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Recebido em: 29/06/2017

Aprovado em: 22/09/2017

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017 58

A primeira ideia verdadeira no TIE: ideia do corpo e ideia-da-ideia*

André Martins**

Resumo: O presente trabalho tem como propósito esclarecer o significado da

“primeira ideia verdadeira” no Tratado da Reforma do Intelecto (TIE) de

Spinoza. Para tal, é preciso analisar o sentido da imaginação e do afeto em

Spinoza, e sobretudo entender com clareza os conceitos-chave de ideia do corpo

e ideia da ideia.

Palavras-chave: ideia; imaginação; afeto; corpo.

The first true idea in TIE: idea of the body and idea-of-idea

Abstract: The present work aims to clarify the meaning of “the first true idea”

in Spinoza’s Treatise on the Emendation of the Intellect. For such, an analysis of

the sense of imagination and affect in Spinoza is needed, as well as the clear

understanding of the key concepts of idea of the body and idea of the idea.

Keywords: idea; imagination; affection; body.

Spinoza descreve no Tratado da Reforma do Intelecto (TIE)1 quatro formas de

percepção. A primeira, pelo ouvir dizer, e a segunda, pela experiência vaga, nos

ensinam muitas coisas úteis “ao uso da vida” (§ 20), mas nos ensinam apenas efeitos

sem causas, o que nos impede que os conheçamos claramente (§ 26 e 27), o que só

acontece quando conhecemos suas causas, isto é, suas essências. A terceira forma

permite que se conheça a essência, mas “não adequadamente” (§ 19, III). Neste caso,

conhecer não adequadamente significa precisamente, tal como Spinoza esclarece em

nota, que conhecemos (intelligimus) o efeito, porque o sentimos, e apenas concluímos

(concludebamos) a causa, sem a conhecer (§ 21, nota 1). O exemplo dado é o da união

de corpo e mente. Sentimos somente nosso corpo, e concluímos então que nossa mente

está unida a este corpo, e que não está unida a outro corpo (§ 21). Conhecer o efeito

consiste em conhecer a própria sensação (sensationem ipsem, § 21, nota 1). A conclusão

da causa é certa (certa), confiável, mas não segura o suficiente (non satis tuta, § 21,

nota 2). Por quê não? Spinoza explica em nota (dando assim, aliás, uma das explicações

* Artigo desenvolvido a partir do texto apresentado no XI Colóquio Internacional Spinoza Américas,

PUC-RJ, em novembro de 2014. ** André Martins é professor Associado da UFRJ. Contato: [email protected] 1 Usamos a tradução de Carlos Lopes de Matos in Espinosa, São Paulo, Abril, 1983 (Col. Os Pensadores),

cotejando-o com o texto original em latim.

A primeira ideia verdadeira no TIE: ideia do corpo e ideia-da-ideia

59 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017

para a origem das ideias falsas ou erros da mente, § 21, nota 2): porque conhecendo-se

as causas, ou essências, pelos efeitos, é preciso tomar-se muito cuidado para não se cair

em erro, uma vez que as sensações nos permitem apenas conhecimentos abstratos

(subjetivos, possamos talvez dizer), sendo facilmente confundidos pela imaginação (isto

é, facilmente podemos associar à imagem sentida outras imagens que não explicam

adequadamente o que se sentiu). De modo geral, pelas sensações, “o que é em si uno, os

homens imaginam como múltiplo”, pois ao conceberem separadamente (seorsim) as

coisas, lhes “impõem nomes que são usados por eles para coisas mais familiares” e

assim as imaginam “como costumam imaginar as coisas a que primeiramente

impuseram esses nomes” (§ 21, nota 2). Na esteira do exemplo ora dado por Spinoza,

podemos dizer (seguindo a crítica de Spinoza aos estóicos no próprio TIE, §74) que os

homens tendem assim a imaginar o corpo sentido e a mente que sente como duas coisas

separadas, concebendo-os por analogia a dois corpos, tal como lhes é familiar, e assim a

concebê-los como duas substâncias, percebendo a mente como uma espécie de corpo,

porém imaterial. Ou seja, embora possamos concluir corretamente uma causa da

sensação de seu efeito, ou a essência da causa pelo conhecimento do efeito, o fato de a

causa não ter sido conhecida primeiramente pela mente, não nos dá a certeza de que a

inferência foi feita corretamente, isto é, que a inferência foi feita por associações de

imagens corretas e não por mistura (portanto, por associação indevida) de imagens

vindas de outros hábitos ou outras sensações, por semelhança ou familiaridade. Como

vemos pelo texto de Spinoza, conhecer o que sentimos (e aqui Spinoza utiliza para

‘conhecer’ o latim ‘intelligere’) apenas por inferência lógica não é seguro, pois

podemos nos confundir pelas palavras que usamos, e assim não perceber a realidade da

coisa a ser compreendida. Por outro lado, ainda que não seja seguro ou obtido

adequadamente, ainda assim o conhecimento da essência de algo (de sua causa) pode

ser correto, isto é, verdadeiro, se sentirmos o seu efeito com clareza.

A quarta forma de percepção, pelo conhecimento da essência (portanto da

causa), seria por isso a única segura, pois não depende de inferência: o efeito está

implicado na causa, e, portanto, o conhecimento do efeito está implicado no

conhecimento da causa. No exemplo de Spinoza: “por conhecer a essência da alma, sei

que ela está unida ao corpo” – se a mente é a ideia do corpo, é necessariamente de sua

natureza estar unida a ele2. Em outras palavras, o conhecimento da causa consiste não

2 Como lembra Carlos Lopes de Mattos em sua tradução, na nota 26.

André Martins

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017 60

mais em um conhecimento abstrato e imaginativo que necessita tirar conclusões para

conhecer, mas no conhecimento do real, sem a necessidade de conclusão ou inferência

lógica alguma.

Ou ainda: o conhecimento da essência é o conhecimento adequado da sensação

que se sente claramente. É, portanto, uma ideia (adequada) da ideia (sentida) do corpo.

A quarta forma de percepção, portanto, consiste em não só eu saber algo, mas ao saber,

“saber que sei isso” (§ 22), isto é, saber que eu sei corretamente isso, pois saber algo

pela essência me dá a segurança da certeza do que sei sobre aquilo.

Saber algo significa compreender algo verdadeiramente. Se sinto meu corpo,

compreendo que minha mente é unida a ele, isto é, que corpo e mente são um só, caso

não me confunda com imagens inadequadas. O que pode me impedir de conhecer

verdadeiramente, no caso, não é o sentir o corpo, que é claro e verdadeiro, mas a ideia

que tenho ou que infiro disso. Ou seja, a ideia do corpo, a ideia que é o próprio sentir, é

verdadeira. A ideia dessa ideia é que pode ser ou não verdadeira. E não será verdadeira

somente quando eu, além de associar imagens inadequadamente, por exemplo, imaginar

a mente como uma alma na forma de um corpo imaterial, aderir a essa ideia

inadequada, isto é, considerar que essa inferência inadequada é verdadeira. Neste caso,

o que será falso não será propriamente e ideia inadequada, mas sim a adesão a ela como

se fosse verdadeira. Quando não há essa adesão, a ideia da ideia não será verdadeira

nem falsa, mas fictícia. E a ideia da ideia será verdadeira em duas situações, descritas na

terceira e na quarta forma de percepção, respectivamente: quando eu inferir

corretamente a causa a partir do efeito, quando o conhecimento será verdadeiro, mas

inadequado, e quando eu conhecer a partir das causas. A inadequação não implica a

falsidade da ideia. Ou mais precisamente: (a) a inadequação de uma ideia se define por

ser um conhecimento pelo efeito; neste sentido a ideia inadequada é inadequada ao ser a

ideia do corpo, isto é, a ideia sentida, uma vez que o que o corpo sente é o efeito dos

outros corpos (e do ambiente de um modo geral) em nós; (b) a ideia dessa ideia pode se

dar pelo conhecimento da essência (o que no TP se dá na quarta forma de percepção, e

na Ética será o caso nos segundo e terceiro gêneros de conhecimento; cf. E II 40); (c)

mas a ideia dessa ideia pode também se dar por associação de imagens respeitando o

que sentimos (terceira forma de percepção no TP: sentimos a essência), quando portanto

será verdadeira porém inadequada; (d) mas pode acontecer também de essa associação

de imagens vincular ao que é sentido ideias e imagens inadequadas, advindas de outras

experiências mais familiares e habituais, de modo que a inferência feita a partir da ideia

A primeira ideia verdadeira no TIE: ideia do corpo e ideia-da-ideia

61 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017

sentida do corpo e das imagens associadas leve (d.1) a uma ideia-da-ideia fictícia (que

não é verdadeira nem falsa) ou, o que é mais freqüente (pois que com freqüência a

inferência se dá na busca da compreensão adequada da causa), (d.2) a uma ideia-da-

ideia falsa. Em resumo, a ideia do corpo pode gerar uma ideia-da-ideia inadequada

verdadeira, mas não impede que se tenha uma ideia-da-ideia que seja falsa. O desafio

assumido por Spinoza é então o de buscar meios de se ter ideias-da-ideia adequadas, de

modo a que sejam, enquanto adequadas, necessariamente verdadeiras. Para que a ideia-

da-ideia seja verdadeira, e, por conseguinte, para que seja adequada, deve ter origem na

ideia do corpo (obviamente) e não se dissociar dela. Spinoza deixa claro: a dissociação

na mente se dá quando essa associa erroneamente ao que o corpo sentiu imagens

habituais e familiares de outras experiências e adere a elas.

Sem dúvida os segundos exemplos dados por Spinoza respectivamente para a

terceira e a quarta formas de percepção podem nos ajudar a entender mais claramente

isso. No terceiro, conhecemos “a natureza da visão e sua propriedade de fazer com que

uma coisa enxergada de longe lhe pareça menor do que de perto”, o que nos permite

concluir “que o sol é maior do que parece” (§ 21). As duas premissas são verdadeiras,

assim como a conclusão. Mas essa conclusão, embora verdadeira, não está implicada

nem na essência do sol nem na essência da visão, mas se infere da associação desses

dois conhecimentos. Pela quarta forma de cognição (cognitione), por conhecer a

natureza da unidade (por experimentá-la, senti-la e compreendê-la), “sei” que “dadas

duas linhas paralelas a uma terceira, são também paralelas entre si” (§ 22). A conclusão

do paralelismo entre as duas linhas é, não exatamente concluído, mas implicado

(embutido, ou envolvido) no fato de cada uma delas serem paralelas a uma terceira.

No primeiro caso (terceira forma de cognição), não há implicação, mas

associação, no entanto verdadeira. Não há segurança quanto a se tratar de uma ideia

verdadeira pois é possível haver algum outro fator, dado ou variável que não está sendo

levado em conta, mas que, caso fosse, mostrasse que a conclusão é falsa. Ficcionemos

um exemplo: poderia haver algum efeito ótico até então desconhecido, devido a

características do ar, digamos, que fizesse com que o sol fosse de fato do tamanho que

percebemos, mesmo estando distante. Ou seja, podemos ter certeza da essência da visão

e de suas propriedades, mas sua aplicação (por associação de imagens) a casos

específicos da experiência está sujeita a erros, pois suas conclusões dizem respeito a

efeitos, não estando implicadas nas propriedades essenciais conhecidas. No segundo

André Martins

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017 62

caso, há implicação (e, portanto, coerência, mais que associação lógica de premissas), e

por isso certeza da verdade.

Na terceira forma de percepção, sei algo (sei que sinto o corpo, ou que a visão

nos faz ver o que está distante como menor do que é, e sei essa propriedade da visão

porque a experimentei, a senti modificando o meu corpo), e a partir disso concluo algo a

mais, mas não tenho como saber se essa conclusão é de fato verdadeira (apenas infiro

que seja). Ou seja, sei a conclusão, mas ao sabê-la, ainda assim não sei se a sei

(verdadeiramente). Essa forma de cognição não é, portanto, segura, por não ser

adequada, embora possa ser verdadeira. Somente a forma de cognição que conhece as

essências e causas é segura de que é verdadeira. No entanto, essa quarta forma de

percepção ou de cognição das essências, não é obtida imediatamente. É já uma

sofisticada ideia da ideia, um pensamento reflexivo que é fruto de uma longa

investigação (§ 31). Mas como ou por onde começar a conhecer com segurança?

Spinoza propõe então (§ 30 a 32) que pensemos quais seriam os instrumentos

intelectuais iniciais que nos permitirão começar a investigar, a partir dos quais

possamos construir outros instrumentos intelectuais mais sofisticados, “assim

prosseguindo gradativamente até atingir o cume da sabedoria” (§ 31), somente

propiciada pela quarta forma de cognição ou percepção. Esse primeiro instrumento

deve, portanto, ser inato ao intelecto, já que é inicial e não construído, e se confunde

assim com a formação imediata da primeira ideia verdadeira. Spinoza afirma: “deve

existir em nós, como instrumento inato, uma ideia verdadeira” (§ 39), caso contrário não

seria possível avançar até uma ideia-da-ideia seguramente verdadeira. Esse primeiro

instrumento, a partir do qual se pode erigir um conhecimento seguro de quarto tipo, em

si mesmo não é seguro, mas apenas verdadeiro. Esse primeiro instrumento não é nem

garante a quarta forma de percepção, ao contrário, é uma forma primária e rudimentar

de conhecimento, mas é verdadeiro e inato. E é por ser verdadeiro e inato que é

necessário, inevitável, como primeiro passo para se chegar à segurança de certeza da

verdade como índice de si mesma propiciada pela quarta forma de conhecimento, o

conhecimento pelas essências, pelas causas.

Mas o que Spinoza entende por primeira ideia verdadeira, uma ideia inata,

oriunda da “força nativa” (vim nativam, § 31) do intelecto? Ou ainda: em que sentido

A primeira ideia verdadeira no TIE: ideia do corpo e ideia-da-ideia

63 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017

para Spinoza “a primeira essência objetiva é inata em nós” (prima essentia obiectiva

nobis innata sit, § 34, nota)?3

Aqui é preciso entender que a primeira ideia verdadeira não é ‘já existente’ ou a

priori em nosso intelecto4 – nem no sentido de ser uma essência objetiva de algo que

existe, mas anterior a este algo, anterior à sua essência formal; nem no sentido de ser

uma essência objetiva sem que o seja de uma essência formal, uma ideia ou uma forma

pura. Como então entender o que seja uma essência objetiva inata, que existe em nós?

Aqui Spinoza traça a imensa diferença entre sua filosofia da imanência e

filosofias da transcendência como a de Sócrates e Descartes (e posteriormente, podemos

dizer com segurança, a de Kant). Talvez, neste ponto, a dificuldade de alguns

comentadores em perceber a novidade de Spinoza, decerto mais perceptível na Ética,

tenha levado-os a considerar o TIE uma tese fundamentalmente cartesiana5, ao recorrer

à necessidade de se ter uma ideia inata – quando, a nosso ver, muito pelo contrário, a

ideia inata estabelecida no TIE constitui, ao contrário, precisamente o que fundamenta a

Ética, tornando-se assim inestimável ferramenta para sua compreensão e

esclarecimento.

A primeira ideia verdadeira é uma essência objetiva de um corpo que nos afetou,

portanto de um corpo que tem uma essência formal. Mas se diz dessa essência objetiva

que é inata, no sentido de que é imediata, de que é inato ao intelecto formá-la; ou ainda,

de que o intelecto consiste no próprio ato de formar essa essência objetiva primeira –

que por isso é verdadeira: é porque essa primeira essência objetiva é imediata, própria

ao intelecto em si, que se diz que é inata, e que é necessariamente verdadeira. A

primeira ideia verdadeira, portanto, existe (e não pré-existe) em nós, não como um

conteúdo dado, ou como uma essência objetiva pronta em nosso intelecto, a priori, mas

3 Nunca é demais lembrar que a essência objetiva, segundo Spinoza, é a essência inteligível, a ideia

quando essencial. Por sua vez, a essência formal é o objeto da essência objetiva. Assim, o objeto real (o

corpo) é a essência formal da primeira essência objetiva (a ideia do corpo). Essa primeira essência

objetiva será objeto de uma nova ideia, sendo, portanto, para essa segunda essência objetiva, sua essência

formal (isto é, seu objeto). Mattos (na nota 35 de sua tradução) explica da seguinte maneira: “formal é o

por si, em sua essência real, oposto a objetivo, ou seja, conceitual, na ideia.” 4 Como pensara Mattos (na nota 33 de sua tradução), que a considera, ademais, não originada das coisas,

“mas atividade autônoma do intelecto”. Este erro parece comum entre comentadores, o de achar que a

força nativa do intelecto significaria uma origem no próprio intelecto de forma pura, sem a presença do

corpo, como se o intelecto pudesse existir sem o corpo, o que contrariaria toda a ontologia de Spinoza.

Ora, ao contrário, trata-se de ideia própria ao intelecto, não como previamente existente ou já dada, mas

como imediata, sem mediação da associação de imagens do corpo e de ideias, isto é, como ideia do corpo

que se afetou. Esta afecção e sua ideia se originam do encontro com o objeto, como no exemplo da

primeira ideia verdadeira de Pedro. Mattos, tal como outros comentadores, parece aqui projetar sobre

Spinoza um inatismo cartesiano que, no entanto, lhe é clara e inequivocamente estranho. 5 Cf. por exemplo, A. Matheron, ‘Pourquoi le TIE est-il resté inachevé ?’ Revue des Sciences

Philosophiques et Théologiques, 71, 1987.

André Martins

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017 64

porque (ou no sentido de que) nós existimos, e porque sendo corpo e mente, formamos

essa primeira essência objetiva a partir de nós mesmos, de nosso próprio intelecto,

porém não de um intelecto isolado do real, mas ao contrário, de nosso próprio intelecto

no que este forma a ideia de nosso corpo afetado por um outro corpo.

A primeira ideia inata não é, portanto, uma ideia específica de uma imagem ou

traço singular (como seria para Platão, por exemplo), pertencente autonomamente ao

intelecto – afinal, ideias são formações dinâmicas, processos, concepções da mente, e

não figuras. Tampouco a primeira ideia verdadeira é uma ideia sem objeto, pois que só

há ideias do corpo e ideias de ideias, não fazendo sentido existirem ideias que não sejam

do corpo afetado ou abstrações a partir dessas ideias do corpo, pairando puras e isoladas

em nosso intelecto, como se nosso intelecto ou essas ideias-da-ideia fossem algo fora da

natureza.

A primeira ideia verdadeira é a ideia que acompanha cada e toda imagem

singular (de um traço singular) que se forma em nossa interação com as demais coisas

singulares, o mundo, o outro, o ambiente. Diz-se dessa primeira ideia que já existe em

nós porque se forma em nós concomitantemente e incortonavelmente em nossas

interações, portanto diz-se no sentido de que ela não é construída por uma reflexão da

mente, não é a ideia que se tem de algo, não é uma ideia-da-ideia. Precisamente porque

a ideia que se tem de algo é já a ideia-da-ideia de algo – pois que não há nenhuma coisa

que seja somente corpo, sendo também, sempre e necessariamente, ideia, sua ideia, isto

é, simultânea e concomitantemente pensamento.

Ou seja, para que se compreenda o que Spinoza está dizendo ser a primeira ideia

verdadeira, e que essa nos é inata, é preciso entender que um indivíduo (uma coisa

singular) é já, desde o início e sempre, um corpo e sua ideia – e que esse corpo sendo

modificado, essa modificação é uma modificação no corpo e sua ideia (isto é, o afeto: o

afeto se define como uma modificação do corpo e sua ideia; é uma ideia sentida quando

o corpo é modificado, afetado, marcado, concomitante a esta modificação). Tanto o

corpo externo como o nosso que por ele foi afetado são corpos e suas ideias. ‘Existe em

nós’ significa, portanto: não veio de outro lugar, embora só exista em nós quando do

encontro com outros modos, com outros corpos. É porque nosso corpo foi afetado, que

uma ideia do outro corpo se faz em nossa mente sem que venha de outro lugar. Não vem

do outro corpo (ou modo), ou de uma reflexão acerca do outro corpo que nos afetou, ou

de associações de imagens ou ideias, isto é, não tem origem na ideia da afecção por ele

causada, mas é concomitante à própria afecção, é a própria ideia da afecção. A

A primeira ideia verdadeira no TIE: ideia do corpo e ideia-da-ideia

65 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017

formação da primeira ideia – seu surgimento no encontro – é inata a nós, ao nosso

intelecto, à nossa mente, portanto, porque, dito nos termos da Ética, pertence ao atributo

pensamento como pensamento-da-extensão, de maneira que a cognição ou percepção do

objeto se dá imediatamente – sem mediação da reflexão, sem mediação de uma

operação mental secundária – como uma (agora torna-se claro) primeira ideia. Fica

então evidente que esta só pode ser verdadeira, pois que (no sentido que) é real e

imediata. Ela se dá na afecção, lhe é concomitante, e, portanto, se confunde com o afeto.

A ideia do corpo é uma sensação, um sentimento, que é o pensamento (sentido) da

afecção ou modificação do corpo. O corpo ser modificado, isto é ‘afectar-se’, implica a

ideia dessa afecção, o pensamento do corpo; afecção e sua ideia precisamente são o que,

como se sabe, na Ética Spinoza definirá como afeto (E III def.3). A afecção e sua ideia

são o afeto, estão juntos no afeto, são um no afeto e enquanto afeto. Por isso a ideia do

corpo é sentida: “em si, de fato, [a ideia] não é outra coisa senão uma sensação” (§ 78),

esclarece explícita e inequivocamente Spinoza.

A primeira ideia ser uma primeira essência objetiva inata. Que se diz inata,

portanto, por ser uma primeira essência objetiva espontânea, inevitável, necessária,

imediata, e não vir de fora do indivíduo, nem derivada por reflexão. Ela é verdadeira

não no sentido de ser uma ideia-da-ideia verdadeira, mas precisamente por ser a

primeira ideia, a única que pode se formar em nós quando nos afetamos. Daí ser o

índice de nossa imanência, da imanência de nosso corpo e mente, isto é, de nosso corpo

e sua ideia: é a própria ideia do corpo afetado. O primeiro pensamento, de nosso corpo

pensante, só pode ser uma sensação, um sentimento – pois não é uma ideia refletida pela

mente, por qualquer sujeito do conhecimento, mas pensada/sentida pela mente como

sensação. A primeira ideia é a de um afeto, de um encontro, é a que se forma no corpo

afetado. Somente esta pode ser o primeiro instrumento do conhecimento adequado, pois

todas as demais serão ideias da ideia – isto é, serão ideia dessa primeira ideia do corpo

(e ideia da ideia dessa ideia, e ideia da ideia da ideia dessa ideia etc.). O primeiro

instrumento do conhecimento só pode ser a primeira ideia, pelo fato de ela ser a

primeira – não há como começar por outro lugar, não há como começar por uma ideia

da ideia. Daí precisamente a crítica de Spinoza, que agora se torna clara e evidente, às

filosofias de Sócrates e Descartes, pois ambos acreditam ser possível se iniciar o

caminho do conhecimento ou da verdade por uma ideia da ideia, desencarnada, por uma

ideia que não é do corpo afetado, interagindo com outros corpos, o que os fez duvidar

do mundo sensível e dos sentidos – “ao invés de adquirir o verdadeiro conhecimento

André Martins

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017 66

dos sentidos” (§ 78), escreve Spinoza, que assim critica os que “nem a si mesmos

sentem”, “dizem que nada sabem, e mesmo isso, ou seja, que nada sabem, dizem que

ignoram”. Mas é precisamente porque têm um conhecimento inadequado e confuso do

real, que “temem confessar que existem” (§ 47), embora, “no que se refere ao uso da

vida e da sociedade”, a “necessidade” os tenha obrigado “a supor que existem” (§ 48).6

Voltemos o exemplo dado por Spinoza. “Pedro, por exemplo, é uma coisa real; a

verdadeira ideia de Pedro, porém, é sua essência objetiva” (§ 34). A verdadeira ideia de

Pedro é sua primeira essência objetiva, porque é a ideia de seu corpo. E é nesse sentido

preciso que ela lhe é inata: Pedro só existe como corpo e sua ideia, como corpo e mente.

A primeira essência objetiva de Pedro é verdadeira porque é a ideia de seu corpo,

coincidindo assim com a própria mente de Pedro, como fato de seu pensar. Não é uma

ideia que Pedro tem, mas a ideia que Pedro é, assim como Pedro é seu corpo. E essa

ideia que Pedro é, é dinâmica, um processo contínuo concomitante às afecções de

Pedro.

Por sua vez, essa essência objetiva “é, em si, algo real e totalmente diverso do

próprio Pedro”, ou mais precisamente, algo diverso de seu corpo, sendo, portanto, uma

essência (formal) peculiar – sua ideia é, assim, “também algo inteligível, isto é, objeto

de outra ideia, a qual terá em si objetivamente tudo o que a ideia [primeira] de Pedro

tem formalmente”. Essa ideia da ideia primeira de Pedro “tem, da mesma forma, a sua

essência [formal], que também pode ser objeto de outra ideia, e assim indefinidamente.”

Isto é, a ideia da ideia (primeira) de Pedro será objeto de uma outra ideia, que será,

portanto, uma ideia da ideia da ideia.

6 Daí a impressão por parte dos filósofos pós-kantianos e do próprio Kant de que a Ética seria dogmática:

por começar sua reflexão por Deus (isto é, pelo real). No TIE, o método de investigação do real, ao se

iniciar pela primeira ideia que é sensação, afirma que somente se chega ao pensamento de Deus (que é,

por sua vez, a ideia-da-ideia verdadeira primeira, primordial) através do afeto. Mas não através da

experiência que deve ser superada, como em Agostinho ou em Kant; e sim sendo a reflexão verdadeira

aquela que pensa a ideia do corpo (e a ideia dessa ideia etc.), sem se dissociar da ideia do corpo. Porque o

real é extensão e pensamento, só se pode pensá-lo reflexivamente porque, enquanto modificações, nele

nos afetamos de corpo e pensamento. O fato de o primeiro pensamento ser afetivo, necessariamente

encarnado, isto é, não ser uma ideia da ideia sem que esta seja ideia do corpo, expressa o fato de que não

sou um sujeito pensante imaterial (encarnado ou transcendental), mas que sou pensante porque o

pensamento é a própria ideia do corpo (no que diz respeito ao modo) e porque o pensamento é o

pensamento da extensão (no que diz respeito à substância). Só é possível partir da ideia de Deus, na Ética,

porque chegou-se a ela, como mostra o método do TIE, pela sensação individual – pela imanência, por

um pensamento individual que é primeiro sensação e em seguida reflexão (ideia falsa caso se dissocie da

ideia do corpo, ideia verdadeira caso não se dissocie do real por associações inadequadas de imagens). A

ideia de Deus é, pois, clara e indubitavelmente (contrariamente ao que, por estranho que pareça, muitos

comentadores entenderam), uma ideia da ideia, não podendo ser, portanto, a primeira ideia verdadeira;

será, sim, a primeira ideia-da-ideia verdadeira (pois que diz respeito ao que a tudo constitui), que somente

é atingível pelo indivíduo através do primeiro instrumento, este sim a primeira ideia verdadeira, que é a

ideia do corpo.

A primeira ideia verdadeira no TIE: ideia do corpo e ideia-da-ideia

67 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017

A primeira implicação disso é que enquanto a ideia primeira de Pedro não pode

ser senão verdadeira (só pode ser verdadeira, é necessariamente verdadeira) – pois que é

a própria ideia do corpo de Pedro –, a ideia dessa ideia pode ser verdadeira ou falsa.

Spinoza dedicará vários parágrafos do TIE para explicar como se forma uma ideia falsa,

que, grosso modo, não difere de uma ideia fictícia senão pelo fato de a falsa ter nosso

assentimento (assensum, § 66), isto é, a ideia da ideia falsa consiste em crer (assentir)

ser real o que no entanto é não é real, ou ser presente aquilo que não é presente ou atual

(enquanto que na ficção sabe-se que a ideia não é real, não sendo portanto nem

verdadeira nem falsa; já as ideias duvidosas baseiam-se em ideias falsas). É nesse

sentido que somente uma ideia da ideia pode ser falsa, nunca uma ideia do corpo (isto é:

a primeira ideia da mente, de uma afecção do corpo, anterior à primeira ideia da ideia,

não erra).

Assim como a primeira ideia de Pedro é verdadeira, pois é a ideia de seu corpo,

quando somos afetados por Pedro temos uma primeira ideia dessa afecção, isto é, uma

primeira ideia de Pedro. E, em si, essa primeira ideia de Pedro em nós, por sua vez, será

necessariamente verdadeira (real) em nossa mente, pois é a ideia de nosso corpo afetado

por ele (anterior a qualquer interpretação, a qualquer reflexão ou ideia da ideia).

Podemos, isso sim, nos enganar ao termos uma ideia dessa primeira ideia em nós acerca

de Pedro. Ou não nos enganar: podemos também ter uma ideia adequada de Pedro em

nós, através de sua afecção em nosso corpo, isto é, uma ideia adequada da (primeira)

ideia de Pedro em nós. Neste caso, teremos uma ideia da ideia verdadeira, um

pensamento, uma ideia dinâmica verdadeira acerca de Pedro. No caso do engano,

formaremos uma ideia da ideia falsa; e isso se dá quando, consciente ou

inconscientemente, associamos às afecções e imagens de Pedro em nós, imagens de

coisas e afetos que não estão presentes, tomando-os como se estivessem formando,

assim, ideias inadequadas, e caso atribuamos presença a elas, formaremos ideias falsas

acerca de Pedro.

Assim, “qualquer um”, diz Spinoza (§ 34), pode “ver que sabe o que é Pedro e

também que sabe que sabe e, de novo, sabe que sabe que sabe, etc.” Ou seja, uma coisa

é conhecer a essência (formal) de Pedro, isto é, dele (ao que ele nos afeta) fazer uma

primeira ideia (ter uma ideia de Pedro); e outra coisa é conhecer a primeira essência

objetiva de Pedro (ter uma ideia dessa sua primeira ideia em nós, isto é, ter uma ideia da

ideia de seu corpo que nos afetou). A primeira ideia de Pedro nos é inata, não porque

temos em nós a ideia de Pedro, mas porque ela é o mesmo que o afeto gerado em nós no

André Martins

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017 68

encontro com Pedro. E nesse sentido é primariamente verdadeira. Em seguida, podemos

formar uma ideia dessa primeira ideia afetiva. Esta segunda, poderá, portanto, ser

adequada ou não, assim como verdadeira ou falsa.

Trata-se de dois conhecimentos distintos sobre Pedro, e o segundo não deriva

necessariamente do primeiro. Ou nas palavras de Spinoza: “Daí se verifica que para

conhecer a essência [formal] de Pedro não é preciso conhecer a [isto é, ter uma ideia da]

própria ideia de Pedro [da sua primeira essência objetiva, aquela que toma Pedro como

seu objeto, isto é, a ideia do corpo de Pedro], e muito menos a ideia da ideia de Pedro” –

pois a primeira ideia de Pedro em mim é a ideia do meu corpo afetado por Pedro, e não

a ideia da própria ideia de Pedro, isto é, não é a ideia da (ou acerca da) mente de Pedro.

A primeira ideia de Pedro em mim não é reflexiva, mas afetiva. Prossegue Spinoza: “O

que equivale a dizer que não é necessário, para que eu saiba, que saiba que sei”. Uma

coisa é conhecer Pedro (afetar-se por ele); outra é ter uma ideia acerca da primeira ideia

(afetiva) que tenho de Pedro (isto é, da afecção de Pedro em mim).

É comum a experiência mostrar que conhecemos algo que, no entanto, não

conseguimos explicar. Esse primeiro conhecimento é necessariamente verdadeiro, no

sentido de que é a impressão do outro em nós; e essa sensação é o único ponto de

partida seguro para um conhecimento reflexivo acerca desse outro, a partir do quê se

poderá dizer que a verdade é índice de si mesma. Buscar compreender esse

conhecimento primeiro, por sua vez, pode nos dar uma ideia-da-ideia verdadeira, isto é,

adequada. Ou não.

Por vezes podemos ter a impressão de que a ideia que temos de algo, de Pedro

por exemplo, é falsa desde o início, mas quando isso ocorre, é porque já se trata de uma

ideia da ideia de Pedro, por associações a afetos, imagens e ideias passadas, e não da

primeira ideia de Pedro em nós, que é sempre afetiva, isto é, é sempre a ideia de nosso

corpo marcado por Pedro. Essa nossa primeira ideia é um sentimento, ou sensação, pois

confunde-se com o próprio afeto em nós como efeito do encontro com Pedro, uma vez

que o afeto nada mais é do que a ideia da afecção do nosso corpo marcado pelo outro

(isto é, a afecção de nosso corpo e sua ideia, tal como define a Ética).

Spinoza enuncia dessa maneira o ponto chave de sua filosofia da imanência.

Enquanto não é preciso ter-se uma ideia (ou ter consciência, ou ter um conhecimento

reflexivo) da ideia de Pedro para conhecê-lo, o inverso é necessário, pois que “para

saber que sei, devo necessariamente antes saber” (§ 34): não é possível ter-se uma ideia

da ideia, sem antes ter-se uma ideia do corpo – pois toda ideia da ideia é antes uma

A primeira ideia verdadeira no TIE: ideia do corpo e ideia-da-ideia

69 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017

ideia da ideia do corpo. E mais, o conhecimento falso é aquele que se dissocia da ideia

do corpo, isto é, da realidade, assentindo-se a abstrações e universais que não

corresponderão à realidade. Ou, dito no sentido inverso: sempre que a ideia da ideia se

dissocia da ideia do corpo, forma-se uma ideia (da ideia) falsa – o que ocorre na

idealização, presente em toda e qualquer metafísica, que é um exemplo claro de

inserção assentida de ideias e imagens passadas e prévias que ao invés de servirem de

apoio para a compreensão da coisa singular presente, funcionam como obstáculo a essa

compreensão, no que reduzem o novo e singular ao já conhecido anteriormente, fixando

aquele em imagens que não corresponderão à coisa ou situação atual. A ideia (da ideia)

verdadeira não apenas parte necessariamente de uma ideia do corpo, mas precisa, para

ser verdadeira, manter-se associada a ela. Uma ideia da ideia que parta da ideia do

corpo, buscando, no entanto, livrar-se, purificar-se deste, na tentativa de constituir-se

em uma ideia absoluta ou verdadeira em si, necessariamente estará associando-se a

outras ideias, motivos, intenções, imagens, que não estão presentes, oriundas de

definições (provavelmente morais) vindas de outras experiências passadas, e acopladas

à sensação atual de modo a falseá-la, sob a narrativa de dizer-lhe a verdade. A verdade é

incontornavelmente a compreensão da ideia do corpo, da primeira essência objetiva, e

não uma pretensa depuração da primeira ideia, da sensação acerca do sensível, da

essência formal considerada (previamente, por petição de princípio, sem dúvida como

defesa psíquica inconsciente) impura, em direção a uma suposta verdade em si, pura,

formal – sem que fosse antes e necessariamente a essência objetiva de uma essência

formal extensa, real e atual. A verdade não somente passou antes pelos sentidos ou pela

experiência, para delas se dissociar; mas a ideia verdadeira é aquela que compreende os

sentidos e a experiência, ao invés de associar-se a imagens prévias na imposição de uma

pretensa verdade externa àquilo que se propõe conhecer.

O que vale dizer que não é possível ter-se uma ideia verdadeira sobre a primeira

ideia, se esta não for verdadeira, isto é, se esta não for uma ideia do corpo, uma ideia

afetiva – não é possível eu saber que conheço Pedro, se eu não o conhecer... Essa

aparente redundância ou evidência esclarece a necessidade absoluta da imanência, tanto

para que se pense, simplesmente (mesmo que se tenha ideias falsas, isto é, ideia da ideia

falsa), como para que se tenha ideias verdadeiras (isto é, ideia da ideia verdadeira). A

certeza do conhecimento só pode se dar quando antes se conhece (a ideia-da-ideia

verdadeira é uma ideia verdadeira acerca da primeira ideia verdadeira). Em outras

palavras, a ideia da ideia que nos dá a certeza segura (quarta forma de percepção ou

André Martins

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017 70

conhecimento) de que se trata de uma ideia-da-ideia verdadeira, não pode ter como

ponto de partida uma ideia objetiva sem que o seja de uma essência formal, isto é, de

um corpo que nos afeta.

Spinoza conclui: “Daí se vê que a certeza nada mais é que a própria essência

objetiva, a saber, o modo como sentimos a essência formal é a própria certeza” (§ 35,

grifo nosso). A primeira ideia verdadeira, a primeira essência objetiva, é verdadeira com

certeza porque é o modo como sentimos a essência formal do nosso corpo afetado. Este

é o ponto de partida para a certeza de qualquer ideia da ideia, isto é, de qualquer

essência objetiva que tem como objeto a essência formal da ideia do corpo. “Donde se

segue, de novo, que para a certeza da verdade não precisamos de nenhum outro sinal

senão ter uma ideia verdadeira. Pois, como mostramos, não é necessário, para que eu

saiba, que eu saiba que sei”. Este primeiro ‘sei’ é dado, no que diz respeito à primeira

ideia verdadeira, isto é, à primeira essência objetiva (que toma a essência formal do

corpo como objeto), pelo sentir o corpo que é seu objeto (por isso essa essência, como

ideia do corpo, é dita inata – já que sentimos o corpo tal como ele é, como nos diz a

Ética (E II 13, cor.), e não poderia ser diferente, pois que a ideia do corpo é obvia e

necessariamente unida a ele, por definição, isto é, de fato, na realidade). Enquanto que,

no que diz respeito à ideia da ideia, isto é, às demais essências objetivas (isto é, a cada

essência objetiva que toma a essência formal da ideia anterior como objeto), a certeza

do ‘sei’ só é dada pelo conhecimento das causas, das essências (ou ‘definições’) – no

que consiste a quarta forma de percepção ou cognição –, e não de seus efeitos ou da

inferência ou conclusão por associação de ideias acerca de outras essências.

Por isso, conclui enfim Spinoza, “que não é o verdadeiro método procurar o

sinal da verdade depois de adquirir as ideias”, como pensara Descartes, “mas que o

verdadeiro método é o caminho para que a própria verdade, ou as essências objetivas

das coisas, ou as ideias (tudo isso quer dizer o mesmo), sejam procuradas na devida

ordem” (§ 36) – ordem que principia pela ideia do corpo, que é sentida (e por isso é

necessariamente verdadeira), imediata, como ideia da afecção do próprio corpo, afetado

pelo corpo que é percebido. Isto é, ordem que principia no afeto, no que este é a

(primeira) ideia (verdadeira) do corpo, sem a qual toda ideia da ideia será falsa, porque

parcial e confusa – sendo este o próprio significado da inadequação: uma ideia não

A primeira ideia verdadeira no TIE: ideia do corpo e ideia-da-ideia

71 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 58-71, 2017

adequada à essência formal da qual ela seria ideia, porque não adequada à (dissociada

da) ideia do corpo de quem a pensa.7

Recebido em: 18/06/2017

Aprovado em: 23/09/2017

7 Do mesmo modo, a adequação é o fato de que “a ideia se apresenta objetivamente do mesmo modo que

se apresenta realmente [formalmente] o seu ideado” (§ 41). O que está implicado na própria definição ou

realidade da ideia como essência objetiva de sua essência formal, seja essa o corpo, e nesse caso não há

como haver falsidade, ou outra ideia, quando a falsidade é precisamente a inadequação à qual se assente;

isto é, a não correspondência senão parcial ao ideado (pelo fato da mistura de outra imagens ou ideias por

associação inadequada), causando a inadequação em relação à própria mente pensante, raciocinante, isto

é, em última instância, ao próprio corpo afetado.

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017 72

Spinoza e os espíritos

Alex Leite

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar a correspondência entre Spinoza

e Boxel a respeito do tema dos espíritos e seus desdobramentos. A partir de um

conjunto de seis cartas, percebemos um diálogo marcado por divergências de

princípios, opiniões tensas e um humor pouco citado pelos leitores de Spinoza.

Em síntese, o tema se desdobra em um debate sobre o que podemos afirmar que

existe, a relação da imaginação com o verossímil e a insuficiência do argumento

de autoridade para a concepção da verdade.

Palavras-chave: Spinoza; Boxel; Espírito; Imaginação.

Spinoza and the Spirits

Abstract: The purpose of this work is to present the correspondence between

Spinoza and Boxel regarding the theme of the spirits and their unfoldings. From

a collection of six letters, we perceive a dialogue marked by divergences of

principles, tense opinions and a humour little quoted by the readers of Spinoza.

In synthesis, the theme unfolds in a debate about what we can say to exist, the

relation of the imagination to the verisimilitude and the insufficiency of the

argument of authority for the conception of truth.

Keywords: Spinoza; Boxel; Spirit; Imagination.

A Carta 51, enviada por Hugo Boxel, pretende saber a opinião de Spinoza a

respeito da existência de espíritos1. Spinoza responde, após algumas palavras

fraternas, que mesmo um assunto sem importância2 pode ser examinado. E ao

ressaltar a grande estima e respeito que sente pelo amigo, diz que adotará um tom

moderado em sua resposta3.

Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Contato: [email protected] 1 Spinoza, B. Obra completa II: correspondência completa e vida. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 220.

Para as referências das cartas consultaremos também as seguintes edições: 1) Spinoza, B.

Correspondance. Paris: Flammarion, 2010. 2) Spinoza, B. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1954. 3)

Spinoza, B. Spinoza Opera. Heidelberg: Carl Winter, IV, 1925. Nas referências utilizaremos as

informações da edição além da sigla Ep seguida do número da carta. 2 Spinoza, B. Obra completa II: correspondência completa e vida. São Paulo: Perspectiva, 2014, Ep. 52,

p. 221.

Na versão latina da carta vemos o termo nuga. Em português temos o termo nuga no sentido de ninharia,

insignificância e inútil. O curioso é Spinoza se dispor a continuar a correspondência sobre um assunto que

considera tolice. Mas, segundo ele, o motivo da continuidade se deve ao fato de que mesmo um assunto

bobo pode ser útil. A diferença é que, para Boxel, o assunto é sério. Já aqui, podemos antever que a

correspondência não será confortável. 3 Inicialmente, a moderação de Spinoza consiste em deixar de lado a questão de saber se os espíritos são

frutos da imaginação. Ibidem, p. 221.

Spinoza e os espíritos

73 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017

Primeiro, como Boxel sustenta que vários autores antigos e modernos,

filósofos e teólogos, afirmaram a existência desses seres, não concordando apenas

sobre a essência deles4, a observação inicial de Spinoza é que ele próprio jamais leu

algum autor digno de confiança capaz de demonstrar a existência de espíritos.

Afirma que até aquele momento desconhece o que tais seres são, que, de fato,

ninguém ainda o havia feito percebê-los. Afirma também que quando uma coisa é

mostrada com clareza pela experiência, podemos ter o conhecimento necessário

dela; mas, se os filósofos citados por Boxel nomeiam de espíritos coisas

desconhecidas, ele não poderia contrariar isso, já que desconhecia uma infinidade de

coisas5.

Em seguida Spinoza pergunta: “o que são esses espíritos, são crianças, tolos ou

insanos?”6 Porque de acordo com os relatos que ouvira, esses seres pareciam

desprovidos de sensatez; ou num sentido mais benevolente, estavam mais próximos

de um estado pueril, como quem participa de jogos infantis. E antes de terminar a

resposta, observa que podemos reconhecer nas narrativas sobre os espíritos o desejo

que os homens têm de contar as coisas do modo como eles gostariam que fossem,

não do modo como elas são7. Principalmente porque em tais histórias não há

testemunhas além do próprio narrador, o que permite contá-las com facilidade e ao

bel-prazer. Diz ainda que as histórias sobre esses seres são forjadas para justificar o

temor8 provocado pelos sonhos ou visões. Ou ainda para valorizar a audácia e a

opinião do narrador. A resposta termina afirmando a desconfiança a respeito dos

relatos sobre as circunstancias em que os espíritos aparecem; e a curiosidade de

saber quais histórias convenceram Boxel de tal forma, que até mesmo colocar o

assunto em dúvida lhe parecia absurdo.

A reação de Boxel, na Carta 53, é de que não esperava outra resposta de

Spinoza. E posto que os dois têm pontos de vistas diferentes, o desacordo entre eles

4Ibidem, Ep. 51, p. 220. 5 Ibidem, p. 221. 6 Spinoza, B . Spinoza Opera. Heidelberg: Carl Winter, IV, 1925, Ep. 52, p. 244. Suntne infantis, stulti,

vel insani? 7 Sobre a relação entre “coisa” e “imaginação” vemos no Apêndice da Ética uma observação de Spinoza:

“cada um julga as coisas de acordo com a disposição de seu cérebro, ou melhor, toma as afecções de sua

imaginação pelas próprias coisas”. Cf. Spinoza, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 73. 8 Sob o domínio da imaginação, os relatos a respeito dos espíritos podem ser inclusive movidos pelo

temor. No final da Carta 52, Spinoza faz uma síntese das causas que podem conduzir os relatos: 1) contar

a partir do próprio desejo; 2) sem interlocução; 3) pelo gosto de inventar; 4) movido pelo temor; e 5)

como sinal de coragem de quem relata. Spinoza, B. Obra completa II: correspondência completa e vida.

São Paulo: Perspectiva, 2014, Ep. 52, 2014, p. 222.

Alex Leite

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017 74

não alterava a amizade9. Mais uma vez, o vínculo de amizade parece reforçado,

mesmo com a evidente divergência de opinião; que se mostrará ao longo da

correspondência como divergência de princípio.

A respeito da indagação de Spinoza, que havia perguntado se os espíritos eram

crianças, tolos ou insanos, Boxel responde que as opiniões preconcebidas impedem

a verdadeira indagação. Em seguida, pontua as razões que o levaram a acreditar na

existência de espíritos. A primeira delas, escreve ele, por serem pertinentes à beleza

e à perfeição do universo. A segunda, pela maior semelhança dos seres espirituais ao

criador. Eles são mais parecidos com o criador do que os seres corporais. A terceira

que, assim como existem corpos sem almas, existem também almas sem corpos. A

quarta razão, e não menos fabulosa, afirma a crença em uma região espiritual,

localizada em um espaço mais elevado entre nós e as estrelas, repleta de habitantes

espirituais. Na parte mais alta dessa região habitam os verdadeiros espíritos, e na

parte mais baixa, criaturas feitas de uma substância sutilíssima, muito tênue,

invisível. Por fim, afirma que na opinião dele há espíritos de todo gênero, mas talvez

nenhum do sexo feminino10.

Após pontuar as razões de sua crença, Boxel destaca algumas referências

literárias que sustentam a existência de espíritos. De fato, vários autores, além de

Plínio e Suetônio, alimentam também sua convicção. Para ele, esses autores são

dignos de confiança, porque são eruditos, sapientes e amantes da verdade. Relata

ainda a história contada por um burgomestre, um homem erudito e sábio, que havia

escutado que na cervejaria de sua mãe, quando fabricavam cerveja, apareciam

espíritos. Aparições que ocorriam com certa frequência. Assim, tanto os relatos das

experiências dos eruditos, quanto as razões pontuadas forjaram a convicção de

Boxel11.

9 Ibidem, Ep. 53, p. 222: “desacordo de opinião, sem dano para a amizade”. 10 Ibidem, p. 223.

Sobre a dúvida de Boxel a respeito de espíritos femininos, Spinoza se mostra através de um humor muito

próximo ao que vemos no Apêndice da Ética I, quando expõe o modo de pensar dos que adotam o

finalismo como destino divino. Nas entrelinhas do seu argumento contra o finalismo, aparece um humor

em que a “estupefação” daqueles que acreditam no encadeamento dos fatos como destino, é colocada

como o motivo de julgar de herege os que procuram conhecer as coisas pelas verdadeiras causas. Assim,

não se trata de uma simples ironia, já que seu humor mostra a gravidade da ignorância. Spinoza, B. Ética.

Belo Horizonte: Autêntica, 2007, EI A, p. 69-71. 11 É curiosa a imagem do homem convicto. Mais curiosa ainda é a exposição dos motivos da convicção.

Mas Boxel é interessante por ser franco. Ele expõe de maneira franca o modo como sua convicção foi

forjada. Pode-se até ver, talvez, uma ingenuidade, mas o que mais interessa não é isso. O que interessa é o

eco da superstição presente em sua maneira de pensar. Por isso, o humor de Spinoza não pode ser visto

Spinoza e os espíritos

75 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017

Uma convicção que excluía relatos sobre maus espíritos que atormentavam

pobres homens em vida e após a morte; do mesmo modo que a magia, considerada

por ele como fábula. E critica os testemunhos de monges e clérigos, que relatam

aparições com o objetivo de forjar a crença no purgatório; consequentemente, usam

o temor dos incautos como uma grande fonte de renda12.

No final da carta, Boxel contrapõe o que Spinoza havia pontuado a respeito

dos relatos ouvidos sobre os espíritos, que pareciam mais tratar de seres tolos e

insanos do que criaturas providas de sensatez. Contraposição apoiada na autoridade

de um certo erudito, que ressaltava a leviandade de negar a existência de tais

criaturas. Para o tal erudito, desmentir tantos relatos dignos de credibilidade seria

uma ousadia, além de uma imprudência. Portanto, tratava-se de dar crédito a certas

autoridades13 que acreditavam na existência de criaturas espirituais.

De acordo com Spinoza, a autoridade pessoal dos eruditos não é uma prova da

verdade. Aliás, uma antiga lição da filosofia é justamente a de que o argumento de

autoridade é ineficiente para a demonstração da verdade. Por exemplo, da raiz

quadrada de dois resulta um número “irracional”14 não por ter sido o pitagórico

Hípasos a demonstrar, e sim pelo modo adequado da sua demonstração. Ora, se os

outros pitagóricos soubessem disso não o teriam afogado no mar, como reza a lenda.

Como sabemos, o resultado necessário de uma demonstração não decorre da força

da autoridade. Somente o que é próprio de uma coisa pode ser demonstrado. O que

não nos impede de perceber que a prática da demonstração pode ser, em certas

circunstâncias, uma contraposição a um modo corriqueiro de considerar as coisas.

Na carta posterior15, a resposta de Spinoza preserva a cordialidade, mesmo

discordando das razões e leituras de Boxel sobre a existência de espíritos. Chega a

como simples ironia ou com ar de superioridade. Na verdade, Spinoza discerne na “tolice” a atuação de

um imaginário, que ameaça a autonomia de colocar em questão certas convicções. 12 Também para Spinoza, o uso do temor como exercício de um domínio do outro aparece de forma

dramática. Ibidem, EIV P45 S2. 13 Spinoza, B. Obra completa II: correspondência completa e vida. São Paulo: Perspectiva, 2014, Ep. 53,

p. 225.

O vínculo entre a afirmação de algo e a autoridade pessoal, é mais um ponto interessante da carta de

Boxel. O que é afirmado é digno de confiança pela força da autoridade ou por ser verdadeiro? São duas

coisas distintas, mas vinculadas com frequência. De certo modo, aderimos mais certas afirmações pela

força daqueles que afirmam, do que pelo exame próprio. Mas resta sempre saber em que sentido é

imprudente negar as afirmações de grandes autoridades. Não negar seria uma prudência, segundo Boxel?

Mas como vemos na sequência, Spinoza segue pela via da investigação autônoma. 14 Cf. “Os Pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários.” In: Souza, J. (org). São Paulo: Nova

Cultural, 1991, p. XIX. 15 Spinoza, B. Obra completa II: correspondência completa e vida. São Paulo: Perspectiva, 2014, Ep. 54,

p. 226-230.

Alex Leite

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017 76

dizer que se sente fortalecido por saber que a amizade entre os dois estava

preservada. Contudo, embora as primeiras palavras reforcem a estima, logo em

seguida, frisa um trecho da carta de Boxel, que o expõe ao gracejo. De fato, Boxel

escreveu na carta anterior que estava convencido da existência de espíritos de todos

os gêneros, exceto talvez do sexo feminino. Como resposta a tal dúvida, Spinoza

escreve de maneira espirituosa que, com uma simples olhada, os que viram espíritos

nus, e têm a mesma dúvida, poderiam se certificar da existência dos femininos, caso

soubessem, óbvio, diferenciá-los pela genitália. A dúvida dele, diz a carta, era saber

se os que viram os espíritos ficaram com medo ou não sabiam mesmo diferenciar os

gêneros pelas partes íntimas16.

O tom da carta mescla a perplexidade e o gracejo a respeito do tema. Sobre os

autores citados por Boxel, Spinoza escreve que apenas encontrou os livros de Plínio

e Suetônio, mas que já bastavam. Para ele, tratava-se de desvarios e de um gosto por

histórias fora do comum, que deixam os homens atônitos e impressionados. Ele

também se diz pasmo, mas não com as histórias relatadas, e sim com os autores das

histórias. O impressionava o fato de autores tão talentosos e com discernimentos,

abusarem da eloquência com o objetivo de persuadir os homens com tolices desse

gênero.

Entretanto, deixando mais de lado os autores, Spinoza se detêm nas afirmações

do seu correspondente. E indaga se é por negar a existência de espíritos, que ele,

Spinoza, considera menos as histórias desses autores ou é a crença de Boxel o

motivo da grande confiança neles. Uma crença mais próxima da fantasia, já que

acredita em espíritos do sexo masculino e dúvida do feminino. Fantasia que pode ser

comparada à imaginação corrente de que Deus é do sexo masculino.

Todavia, após o misto de gracejo e perplexidade, a resposta de Spinoza ganha

uma inflexão ao se deter na relação entre o fortuito e o necessário. Antes, Boxel

havia escrito que somente aqueles que acreditam no mundo como fruto do acaso,

não se convencem das razões apontadas por ele sobre a existência de espíritos.

Assim, Spinoza, ao perceber a falácia, desenvolve um argumento que desconcerta o

raciocínio de quem vincula a criação do mundo à vontade facultativa de Deus. No

final do argumento, ele afirmará que o mundo é o efeito necessário da natureza

16 Spinoza, B . Spinoza Opera. Heidelberg: Carl Winter, IV, 1925, Ep. 54, p. 251: Miror eos, que Spectra

nuda conspexere, oculos in genitalia non conjecisse, fortè prae timore, vel prae ignorantiâ hujus

discriminis.

Spinoza e os espíritos

77 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017

divina. Por isso, admitir que o mundo poderia não ter sido criado, como uma

premissa da livre vontade de Deus, introduziria o casual na vontade divina, portanto,

a possibilidade da inexistência do mundo é o que afirmaria a crença no acaso. Logo,

a condição que o próprio Boxel colocou, para identificar os descrentes, voltava-se

contra ele. Como veremos depois, a reação dele será de completa estranheza acerca

da associação entre necessidade e natureza divina.

Ao prosseguir a resposta, Spinoza rebate as razões17 que sustentam a convicção

de seu correspondente. Sobre a afirmação de que a existência de espectros é

pertinente à beleza do universo, a contraposição é a de que a beleza não é uma

qualidade inerente ao objeto, mas um efeito em quem o considera. A beleza é

relativa aos sentidos e aos diversos temperamentos. Nelas mesmas, ou em relação a

Deus, as coisas não são belas e nem feias. A crença na beleza inerente ao universo

torna Deus um criador de coisas ou para o apetite e agrado dos sentidos humanos ou

o do apetite e os sentidos para a beleza. Dois propósitos que, mesmos sustentados,

não provam a existência de criaturas sutilíssimas. Assim, Spinoza não vê de que

modo tais criaturas contribuem para ornamentar mais o mundo. Para ele, o mundo

seria até mais decorado se fosse concebido pelas nossas fantasias; já que podemos

inventar diversos seres como centauros e sátiros. Seres que são inventados pela

imaginação, não concebidos pelo entendimento.

A segunda razão contrapõe a afirmação de que os espíritos exprimem mais

uma imagem de Deus do que as criaturas corporais. O argumento de Spinoza

começa com a afirmação de que não vê como tais criaturas podem exprimir mais

Deus do que outras. Afinal, entre Deus e qualquer outra criatura não há nenhuma

proporção, seja uma criatura maior ou menor. Claro, percebemos aqui, que a base da

afirmação Boxel é a suposta superioridade dos seres espirituais. Afirmação sem

nenhum valor para Spinoza, já que não diz nada sobre a essência ou propriedade do

que afirma. Por isso, conclui a contraposição comparando os espectros aos seres

fabulosos originados da imaginação.

Spinoza considera a terceira justificativa tão absurda quanto as outras. Para ele,

não faz sentido a afirmação da existência de corpo sem alma ou alma sem corpo. E

em tom de apelo malicioso, pergunta se também não seria verossímil uma memória,

uma audição e uma visão sem corpo, uma vez que encontramos corpos sem

17 Spinoza, B. Obra completa II: correspondência completa e vida. São Paulo: Perspectiva, 2014, Ep. 54,

p. 228-230.

Alex Leite

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017 78

memória, sem audição e sem visão. Como também esfera sem círculo e círculo sem

esfera.

Sobre a quarta e última, Spinoza afirma que ignora o que pode ser seres

superiores e inferiores. Porque ao se tratar de espaço infinito, definições como “em

cima” e “embaixo” não fazem sentidos. Sendo assim, conclui que as razões citadas

não convencem ninguém sobre a existência de fantasmas; ou melhor, convencem os

que deixam de dar ouvidos ao entendimento, e são seduzidos pela superstição.

Sedução que enfraquece o entendimento e estimula a crença em histórias tolas.

Antes de finalizar, Spinoza lembra que, como havia dito na carta anterior, não

negava totalmente as histórias, mas as conclusões tiradas delas. Na verdade, afirmou

antes que ignorava uma infinidade de coisas. Porém, embora ignorasse, não

conseguia ver nas narrativas nada digno de confiança. O próprio modo como as

circunstâncias foram narradas dão às histórias mais ornamentos do que veracidade.

Isso o fazia concluir que os narradores não estavam preocupados com a verdade dos

relatos, e sim interessados em impressionar a imaginação dos leitores e ouvintes.

Escreve ainda que esperava de Hugo Boxel uma história que mostrasse com clareza

a existência do que ele acreditava. E se refere como risível à história contada pelo

burgomestre, de que certos espíritos fabricavam cerveja na cervejaria de sua mãe.

Histórias que não deixavam de ser risíveis, mesmo contadas por pessoas de bom

senso e eruditas. Acrescenta ainda que podemos rir mesmo dessas histórias, quando

examinamos os efeitos das imaginações e das paixões contidas nelas.

A reação de Boxel, na Carta 55, é inicialmente a de responder passo a passo as

objeções de Spinoza; apenas deixando de lado a perplexidade do amigo perante os

autores que escreveram sobre os espectros. Afirma em seguida que na sua opinião,

espíritos do sexo feminino não existem porque não são gerados. E quanto à forma

exterior deles, isso pouco o importava. Afirmações que chegam a ser infantis aos

olhos de Spinoza.

E prossegue com uma definição de acaso como um acontecimento

imprevisível. Um alvo atingido sem intenção. Depois contrapõe esta definição ao

sentido de livre arbítrio; definido por ele como decisão de fazer algo que pode não

ser feito. O que é uma contradição em termos spinozanos, pois, resolver fazer algo,

poder fazer e não fazer, não é sinal de liberdade, e sim de alguma confusão ou

constrangimento. Mas, para Boxel, a definição de liberdade envolve a capacidade de

deliberação contrária ao já deliberado. Deus é livre justamente porque poderia não

Spinoza e os espíritos

79 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017

ter feito o mundo. Resolveu fazê-lo, no entanto, estava em seu poder não ter feito.

Portanto, conclui ele, a liberdade é contrária à necessidade18. Conclusão que, como

sabemos, entra em desacordo com o que pensa Spinoza19. Assim, ao contrapor o

necessário e o livre, o argumento reforça que se a vontade de Deus fosse uma

necessidade, ele teria que agir sempre necessariamente, o que seria absurdo, segundo

ele, porque a vontade divina se define tanto pela capacidade de fazer, quanto de não

fazer.

Depois, Boxel chega até a admitir que concorda em não confundir os atributos

humanos com os de Deus. Admite que não sabemos a maneira como Deus opera20,

quer, conhece, examina, vê, escuta; porém, a negação dessas operações e suas ideias

como as mais elevadas em Deus, o torna um ser completamente estranho para ele.

Por isso, diz que ignora o que Spinoza entende e chama de Deus.

Afirma ainda que uma coisa não deve ser negada apenas por não ser percebida.

E exemplifica com a definição de mente como espírito incorpóreo, invisível, que

opera através de corpos mais sutis, os humores. Entretanto, reconhece que de fato

ignora a maneira como a mente se relaciona e opera através dos humores, mas esse

desconhecimento não o impede de afirmar que sem eles a mente fica passiva,

diferente de quando os humores estão agitados, porque nesse caso, a mente faz o

contrário do que deveria. Logo, o fato de não vermos como uma coisa opera não

impede uma certa percepção e um sentimento dela. Isso acontece com a mente e

com Deus. Assim, diz ainda que embora o entendimento de como Deus opera não

seja do modo humano, não devemos negar que as operações dele não estejam de

acordo com as nossas. E mesmo que seja incompreensível a vontade de Deus, sua

inteligência, seu modo de ver e escutar, podemos afirmar que isso não é feito pelos

olhos e pelas mãos, mas pelo entendimento. Isso seria, segundo ele, análogo ao

vento e o ar, que sem mãos ou qualquer outro instrumento destroem regiões e

montanhas; algo impossível ao humano sem mãos ou máquinas. Além disso, adverte

que atribuir necessidade a Deus é o mesmo que privá-lo de vontade e de livre

arbítrio. E tal atribuição exibe a imagem do ser infinitamente perfeito como um

18 Spinoza, B. Obra completa II: correspondência completa e vida. São Paulo: Perspectiva, 2014, Ep. 55,

p. 231. 19 Spinoza, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, EI Def. 7. 20 Boxel não faz a distinção entre operar e agir.

Alex Leite

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017 80

monstro21. Como vemos, a noção de Deus concebida por Spinoza aparece a Boxel

como estranha; sem nada de sólido.

Aliás, a falta dessa solidez, segundo Boxel, contrasta com a exigência de

Spinoza ao demandar provas demonstrativas sobre a existência de espíritos. Sobre

este assunto a conjectura, o provável e a verossimilhança são satisfatórias, diz ele. E

dá o exemplo dos céticos, que na falta de razões verdadeiras se contentavam com o

mais provável. Afinal, são poucas as demonstrações do tipo: a lua está situada

abaixo do sol, consequentemente o sol será eclipsado em certo lugar da terra. Caso o

sol não seja eclipsado durante o dia, a lua não estará situada diretamente debaixo do

sol. Uma demonstração assim, da causa ao efeito e do efeito à causa, era mais rara,

segundo ele. Por isso, sua defesa do uso mais amplo da conjectura.

Feita a defesa do uso mais amplo do argumento a partir de conjecturas

nascidas tanto de experiências inesperadas e ouvir dizer, quanto de leituras de

autores renomados, Boxel passa ao argumento da beleza como boa

proporcionalidade e melhor composição de uma coisa em relação a outra. Dessa vez,

parte da premissa de que Deus atribuiu ao intelecto e ao discernimento uma

harmonia com as coisas proporcionais, não com as sem proporções. A prova disso

seria o deleite com os sons consonantes e o aborrecimento com os dissonantes.

Conclui ele, então, que beleza e perfeição são idênticas e inerentes às coisas

completas; sendo dado ao humano a capacidade de discernir o belo pelo agradável e

o feio pelo desagradável.

Sobre o agrupamento feito por Spinoza ao colocar no mesmo conjunto

centauros, seres mitológicos e espíritos, Boxel dirá que isso não se aplica ao que ele

pensa, porque os espíritos são gêneros supremos semelhantes a Deus na medida em

que Deus também é espírito. Mas a demonstração clara disso não é possível. Por

isso, ele instiga Spinoza a fazer uma demonstração da existência de Deus do mesmo

modo como repete uma das propriedades do triângulo. E dúvida que Spinoza

conceba Deus com a mesma clareza do triângulo.

Em seguida, por um lado, nega a existência de um corpo sem memória e de

uma memória sem corpo ou de um círculo sem esfera e de uma esfera sem círculo,

afirmações inferidas de forma irônica por Spinoza. Por outro, confirma as noções de

21 Spinoza, B. Correspondance. Paris: Flammarion, 2010, Ep. 55, p. 306: “Si tu attribues à Dieu la

necessite et que tu le prives de volanté et de libre choix, on pourrait se demander si tu ne fais pas, de celui

qui est un Être infiniment parfait, le portrait et l’image d’un monstre”.

Spinoza e os espíritos

81 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017

alto e baixo tomando como referência o sol, a posição das estrelas em relação à terra,

da terra em relação a saturno e de saturno em relação a júpiter.

Por fim, defende-se da insinuação de que acreditar na existência de espíritos é

mais uma crença forjada pela superstição, do que pela filosofia. Assim, afirma que

todos os filósofos antigos e modernos estavam convictos da existência desses seres.

Logo, não é quem acredita nesses seres, que nega os filósofos, mas quem não

acredita. Portanto, Boxel inverte a insinuação ao citar que Plutarco, estoicos,

pitagóricos, platônicos, peripatéticos, eruditos e modernos não negaram. Somente

Spinoza insiste em não aceitar, mesmo diante de testemunhas que afirmam ter vistos

e ouvidos. Além de não aceitar, coloca os testemunhos de eruditos, filósofos e

historiadores no rol das narrativas dos supersticiosos. Uma associação absurda, para

Boxel. Como também parece-lhe absurda e inverídica a afirmação de que César,

Cícero e Catão caçoaram das narrativas sobre os espectros. César teria

ridicularizado, segundo ele, apenas os presságios e adivinhações.

A correspondência entre os dois está se dando provavelmente em setembro de

1674. Uma correspondência entre pontos de vistas distintos e maduros. Sobre essa

distinção, a resposta de Spinoza será bem clara, na Carta 56. Não sem motivo, ele se

apressa em responder, após algumas palavras generosas sobre o restabelecimento da

saúde do amigo.

De início, Spinoza ressalta a dificuldade de duas pessoas se entenderem

quando partem de princípios diferentes a respeito de assuntos que dependem muito

da conciliação com outros.

Entretanto, pelo menos sobre o mundo não ser um efeito do acaso, eles

estavam de acordo. Um acordo em parte, já que Boxel queria convencê-lo da não

oposição entre o fortuito e o necessário. Segundo ele, o inesperado do acaso e a

inevitabilidade da necessidade negam a liberdade. Por isso, as duas não podem ser

ditas opostas. Um argumento nada compatível com o modo de pensar de Spinoza. E

para evidenciar essa incompatibilidade, ele repete o exemplo de que a soma dos três

ângulos do triângulo é igual a dois retos não por acaso, mas por necessidade.

Acrescenta ainda o exemplo da percepção do calor causado pelo fogo. O calor como

um efeito não casual. Logo, diferente do seu correspondente, adota como princípio a

compatibilidade entre liberdade e necessidade; chegando a afirmar que vê como

absurda e contrária à razão a oposição entre as duas.

Alex Leite

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017 82

O terceiro exemplo acentua ainda mais as diferenças entre os dois. Como

vimos, para Boxel, a liberdade divina seria negada se a criação do mundo fosse um

efeito que não admitisse o contrário, ou seja, a não criação. Deus é plenamente livre,

porque ao ter feito o mundo poderia não tê-lo feito. Faz parte do seu livre decreto a

possibilidade contrária ao que fez. Diferente do que pensa Spinoza, quando

identifica a liberdade de Deus às ações que decorrem de sua própria necessidade.

Unicamente da própria necessidade, uma vez que o possível não é uma propriedade

da natureza divina; é próprio da imaginação.

Na sequência afirma que seu correspondente parece não perceber a diferença

entre constrangimento ou violência e necessidade. Por isso, escreve-lhe que não é

por obrigação que um homem queira viver e amar, e sim por necessidade, que é

ainda maior, porque Deus é, conhece e age necessariamente. Conclusão que reforça

o contra argumento a respeito da ideia de que faz parte do livre decreto de Deus a

possibilidade de não aprovar ou de não querer uma coisa. De não aprovar o que já

aprovou ou de não querer o que já quis. Uma ideia apropriada à imaginação e ao

querer humano, porém, incompatível com a natureza divina.

Ao continuar, Spinoza frisa justamente sua surpresa ao saber que, para Boxel,

o fato de não atribuir a Deus visão, audição, atenção e querer, o torna um ser

incompreensível. Observa ainda que estas atribuições só podem ser consideradas as

mais elevadas em Deus por uma conjectura nossa; semelhante ao triângulo que diria

que Deus é triangular, caso falasse.

Assim, após usar um antigo argumento contra a confusão entre propriedades

humanas e divinas, Spinoza lamenta a pouca disposição de tempo para explicar o

que pensa sobre a natureza divina e outras questões colocadas pelo amigo. Contudo,

mesmo alegando falta de tempo, não deixa de marcar outra diferença entre os dois.

Agora, a de que o mais provável, a conjectura e a verossimilhança servem para

decisões imediatas na vida cotidiana; diferente da atividade investigativa. Na

investigação não somos obrigados a admitir o que é ainda provável. Não que a

conjectura não deva ser concebida. Em muitos casos podemos nos contentar com

ela, mas não de forma a admitir como verdadeiro o que é apenas provável. Entre a

verdade e o verossímil, o segundo exige cautela e a primeira, adesão imediata; uma

vez que, somente a admissão do que é verdadeiro evita a sequência de proposições

falsas.

Spinoza e os espíritos

83 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017

Spinoza admite que de fato as ciências divinas e humanas estão repletas de

litígios e de controvérsias, mas eles não podem concluir disso que todos os assuntos

ali tratados sejam incertos. Para um cético sim, porque o apego excessivo ao estudo

da contradição o leva a rir até das demonstrações geométricas. Ou mesmo duvidar

que o todo é maior que a parte e outros axiomas.

Que podem faltar demonstrações sobre certos assuntos eles admitem. Nesse

caso, pode-se usar um raciocínio plausível. Sendo o plausível ou verossímil o que

pode até ser posto em dúvida, mas não contradito. Porque a contradição não é a

prova do verdadeiro, mas pode ser do falso. Numa contradição, a verdade é o que

ainda deve ser demonstrada. Mas também se raciocina por exclusão, isto é, não

havendo provas que contradigam uma afirmação, ela parecerá verdadeira. É um

critério de verossimilhança derivado não da prova da própria afirmação, e sim de

que, não havendo prova do contrário, o que é afirmado prevalece. É um critério

pouco seguro. E de certo modo, por um lado, fácil de desmontar quando se usa o

simples ponto de vista de que, o acordo entre a afirmação e o fato é um critério

razoável de verificação. Porém, por outro lado, essa razoabilidade se torna

comprometida quando a crença na afirmação passa a ser fortalecida pela repetição e

pela autoridade pessoal de quem afirma. Dois elementos, como sabemos,

fundamentais para reproduzir e reforçar a convicção no nosso imaginário.

Que Boxel esteja convencido da existência de espectros é notório pela maneira

como argumenta; que a argumentação seja adequada, Spinoza nega. Nega porque

uma demonstração verossímil não pode ser contradita. Contradizê-la equivale a

torná-la provavelmente falsa. A dúvida cabe, já que até mesmo a demonstração

verdadeira pode ser duvidada por quem a desconhece. Como duvidavam os céticos,

citados por ele, das demonstrações geométricas. Duvidavam, mas não podiam

contradizê-las.

Enfim, Spinoza adota a afirmação da propriedade inteligível como princípio da

atividade investigativa. O tão repetido exemplo do triângulo, de que a soma dos três

ângulos é igual a dois retos é, para ele, o modelo de raciocínio a ser adotado quando

nos propomos a investigar a existência de alguma coisa. Afinal, não precisamos

saber todas as propriedades da coisa investigada, basta que apenas algumas sejam

inteligíveis, para que a vida investigativa prossiga livremente. É mais aconselhável,

segundo ele, um ponto de partida através de uma propriedade inteligível, do que

uma conjectura que conduziria a um emaranhado de afirmações suscetíveis às

Alex Leite

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 72-84, 2017 84

contradições. Por isso, a distinção entre propriedade inteligível e fantasia é a única

forma de evitar a adesão às famosas “qualidades ocultas”22 das coisas; a que,

segundo Spinoza, alguns filósofos aderiram. Adesão que ele pontua como um

elemento de desqualificação da autoridade da tradição filosófica. Autoridade

bastante citada por Boxel, mas que não passa de um critério subliminar de poder. –

Critério este desprezado por Spinoza em função da ineficiência quanto ao que exige

a própria atividade investigativa. Para ele, somente uma atividade que começa por

uma propriedade inteligível pode guiar o entendimento em direção ao conhecimento

verdadeiro; consequentemente, tornar-se um exercício livre do peso da autoridade

pela afirmação do que podemos entender de nós mesmos, das coisas, de Deus.

Recebido em: 12/06/2017

Aprovado em: 19/09/2017

22 Spinoza, B. Obra completa II: correspondência completa e vida. São Paulo: Perspectiva, 2014, Ep. 56,

p. 238.

85 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, 2017

Artigo varia

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 86

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie1

Philippe Danino*

INTRODUCTION

Parler de Spinoza et des philosophes, c'est d'emblée s'inscrire dans la multiplicité

d'un rapport : multiplicité des philosophes convoqués – explicitement ou non – dans les

textes, multiplicité des manières de les désigner, des types de relations que Spinoza

entretient avec eux et des usages qu’il en fait. Les « entrées » semblent innombrables et

irréductibles à quelques directions. La difficulté est visible en particulier à travers les

différentes modalités sous lesquelles apparaissent les références aux philosophes :

façons de nommer ou de ne pas nommer, usage ou non de citations, modalités des

rappels des doctrines, etc. Mais elle s'exprime surtout comme un problème

d’identification : à quoi, à qui avons-nous en effet à faire ? Aussi bien aux philosophes

qui sont nommés (une bonne trentaine) ; à ceux qui renvoient à des penseurs précis (par

exemple les Scolastiques) ; aux « philosophes » en tant qu’ils renvoient à la catégorie

générale de ceux qui œuvrent en philosophie ; à ceux dont la mention n’apparaît que

sous les dénominations générales d’« Anciens », d’« auteurs » ou d’« écrivains » ; à

ceux, encore, qu’expriment plus vaguement toutes les tournures du type « la plupart »,

« certains », « beaucoup », etc., « qui pensent », « qui écrivent », « qui disent » que…; à

tous ceux, enfin, dont la mention reste implicite.

Par nécessité, ici, de circonscrire le propos, nous nous proposons de nous en

tenir à une donnée au moins clairement identifiable, savoir le terme même de

« philosophe(s) »2 – sans omettre, bien évidemment, les philosophes explicitement

nommés. Mais dans ce cadre persiste néanmoins le même problème : constatons-nous

1 Ce texte est élaboré à partir de la communication effectuée dans le cadre de la journée d’études

« Spinoza et les autres », Université de Paris I, Centre d’Histoire des Systèmes de Pensée Moderne, 27

novembre 2010.

Les abréviations et traductions utilisées dans cette étude seront les suivantes : TRE pour Traité de la

réforme de l’entendement, trad. M. Beyssade et CT pour Court traité, trad. J. Ganault in Œuvres I,

Premiers écrits, Paris, PUF, coll. « Épiméthée », 2009. ― PPD pour Principes de la philosophie de

Descartes et PM pour Pensées métaphysiques, trad. C. Appuhn in Œuvres I, Paris, Garnier, 1964. ― TTP

pour Traité théologico-politique, trad. P.-F. Moreau et J. Lagrée, Paris, PUF, coll. « Épiméthée », 1999.

― TP pour Traité politique, trad. C. Ramond, Paris, PUF, coll. « Épiméthée », 2005. ― Éthique, trad. B.

Pautrat, Paris, Éditions du Seuil, 1988. ― Pour la Correspondance, trad. C. Appuhn in Œuvres IV, Paris,

Garnier, 1966. * Professor Associado de Filosofia no Secundário e no CPGE (França-Paris). Contato: [email protected] 2 66 occurrences à travers l’œuvre (correspondance comprise).

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

87 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

une multiplicité éclatée des rapports de Spinoza aux philosophes ou bien cette

multiplicité est-elle réductible ? N’est-elle pas susceptible de s’organiser autour de

quelques pôles – lesquels dessineraient alors comme un tableau des usages des

philosophes par Spinoza ? C’est un tel tableau que nous proposons de nommer

« topologie », au sens d’un espace discursif reconnaissable qui, sur un objet précis,

s’organise et s’ordonne suivant quelques lignes identifiables.

Une telle recherche nous semble envelopper un double enjeu : non seulement

observer si se dessine comme un portrait spinozien de ce que serait un « vrai

philosophe », avec ses caractères et ses démarches propres, mais encore observer si les

diverses façons de traiter les philosophes n’enveloppent pas quelque éclairage sur l’idée

même que Spinoza se fait de la philosophie.

Nous proposant de travailler à partir des occurrences, faisons part, au préalable,

de trois observations. Premièrement, le terme « philosophe » est bien plus fréquent que

celui de « philosophie » (47 occurrences). La différence quantitative entre les deux

termes se trouve renforcée par la présence de multiples tournures renvoyant encore aux

philosophes, tels les substantifs d’« Anciens [antiqui, veteres] », d’« auteur [auctor] »,

d’« écrivain [scriptor] », de « métaphysicien [metaphysicus] », etc. Est-ce dire que

Spinoza a plus à cœur de se situer par rapport à ses pairs, passés ou contemporains, que

de définir et de caractériser la discipline même qu’il pratique ? Ou bien n’est-ce pas en

faisant l’un qu’il accomplit l’autre ? Deuxième observation : il faut d’emblée noter – ce

qui sera éclairé par la suite – un statut singulier du Traité théologico-politique.

L’ouvrage réunit à lui seul un tiers du nombre total d’occurrences. Certes, il s’agit là du

livre le plus volumineux de Spinoza. Mais surtout, il y est question de séparer le

philosophe du théologien ; le premier se voit systématiquement évoqué dans un geste de

comparaison voire de confrontation (avec le théologien, le prophète, le vulgaire…), une

préoccupation beaucoup moins marquée chez d’autres penseurs tels Bacon, Descartes

ou Hobbes, davantage attachés à définir qu’à situer ou à distinguer. Il est enfin assez

remarquable, à l’exception d’une occurrence, que le philosophe ne soit jamais, dans cet

ouvrage, l’objet de critique, Spinoza entendant essentiellement le situer et, par là-même,

très souvent, le défendre3. Troisième observation : si le terme « philosophe », comme

nous le disions, peut aussi bien renvoyer à des individus précis – nommés ou non – qu’à

3 Démarche qui suppose l’existence de quelque menace ou danger, tels qu’en faisaient clairement part les

motifs de rédaction du TTP dans la Lettre 30 de septembre ou octobre 1665 à Oldenburg.

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 88

la catégorie générale de ceux qui œuvrent en philosophie4, la très grande majorité des

occurrences renvoie à un pluriel indéterminé, c'est-à-dire à une catégorie générale.

I. LE PHILOSOPHE ET SES AUTRES

1/ Le philosophe et le « vulgus »5

Le vulgaire, ou la foule, n’est pas sans posséder une certaine capacité de

compréhension immédiate – telle qu’elle peut par exemple tirer par elle-même de

l’Écriture ce qui est nécessaire au salut ou avoir une certitude à l’égard de cette même

Écriture6. Il n’en reste pas moins que le vulgaire a pour caractéristiques non seulement

de graves déficiences (une faiblesse d’esprit et de complexion, un défaut de rationalité

tel qu’il juge habituellement « suivant la disposition que les sens externes imposent à

l’imagination »7) mais également de dangereux comportements (oscillant entre orgueil

et crainte, la foule ne peut être arrachée à la superstition8 et se caractérise par son

extraordinaire et dangereuse inconstance, pouvant, quand elle est sans crainte, devenir

terrible).

Spinoza, tout d’abord, reprend l’opposition traditionnelle du philosophe et du

vulgus. Dans le Court traité, afin d’étudier des attributs de Dieu, il décide de ne pas

s’embarrasser des représentations que les hommes ont habituellement de ce dernier,

mais de se contenter « d’examiner brièvement ce que les philosophes savent en dire »9.

La distinction peut être ici interprétée de façon quantitative, au sens de la multiplicité

des représentations populaires du divin, mais elle peut l’être aussi de façon qualitative,

au sens où les paroles ou discours des philosophes sur Dieu (« ce qu’ils savent en

dire »), même faux, vaudraient toujours mieux que des « représentations » communes

4 À cet égard, les emplois du terme se distribuent selon quatre déterminants : un singulier général (« un »,

« quelque », « le » philosophe), un singulier déterminé (un philosophe tel…, comme…), un pluriel

indéterminé (« les », « des » philosophes) et un pluriel déterminé (certains philosophes précis, les

philosophes qui pensent, qui écrivent que…). 5 13 occurrences en lien direct avec le philosophe. Le « vulgus », que traduisent aussi bien, selon les

contextes, les termes de « commun », de « foule » ou de « vulgaire », n’est pas à assimiler au peuple (des

citoyens) ni à la plèbe (« plebs »). Le terme renvoie plutôt, comme pour la plupart des penseurs de cette

époque, au non-éduqué voire au déraisonnable. 6 TTP VII. 7 Ibid. 8 Ibid., préface. 9 I, VII, 2.

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

89 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

d’emblée entachées d’imagination. Le Traité théologico-politique, quant à lui, creuse à

plusieurs reprises le fossé qui sépare celui qui examine et qui sait de celui qui préjuge,

ignore ou imagine. Dans la préface, l’ouvrage, relativement à sa destination et à son

utilité, est recommandé au seul « philosophe lector », non pas aux non-philosophes

(« reliquis ») – dépeints comme ceux dont l’esprit est empli de préjugés – ou à la foule

livrée à la superstition et à la crainte. Le chapitre VI du même ouvrage rappelle que les

philosophes jugent des choses « à partir des perceptions de l’entendement pur et non

suivant la disposition que les sens externes imposent à l’imagination – selon la coutume

de la foule ».

Toutefois, cette partition somme toute assez attendue entre rationalité

philosophique et représentations communes, est loin de définir à elle seule, sous la

plume de Spinoza, les rapprochements divers entre les philosophes et le vulgaire. On

connaît en effet la première règle de conduite de cette sorte de morale provisoire

qu’énonce Spinoza au § 17 du Traité de la réforme de l'entendement : « nous mettre à la

portée de la foule dans nos paroles et toutes les actions qui ne nous empêchent pas

d’atteindre notre but ». Cette règle, qui peut avoir le sens d’une adaptation sociale et

prudente de la part du philosophe, n’en fait pas moins apparaître aussi la foule comme

un moyen (« nous pouvons en obtenir bien des avantages »). Plus encore, elle est partie

prenante de la fin que nous nous proposons, ce « bien véritable, capable de se

communiquer »10, l’acquisition d’une nature humaine plus forte et la possibilité « de

parvenir à jouir d’une telle nature, avec d’autres individus », parce qu’« il appartient

aussi à mon bonheur de faire que beaucoup d’autres partagent ma compréhension des

choses (…) »11. L’expression « ad captum vulgi loqui », loin d’être une règle seulement

sociale, traduit donc une exigence de la philosophie, celle d’un partage du « vrai bien »

avec le plus grand nombre – même si elle exprime dans le même temps la difficulté

d’une adaptation aux capacités du vulgaire, sans compromission avec l’exigence

proprement rationnelle. Le vulgaire est ici d’autant moins méprisable ou condamnable

qu’il prend pleinement part à la félicité du philosophe, et qu’il importe à ce dernier de

préparer les autres à la vérité12. Il est encore d’autres types de rapprochement entre les

philosophes et le vulgus, comme le fait de considérer ensemble les acceptions commune

10 TRE, § 1. 11 Ibid., § 14. 12 Une dimension de communication déjà présente dans le CT (II, 12) ; Spinoza y montre que le sage

n’ignore pas les jugements des autres et qu’il doit en tirer le meilleur profit pour tous.

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 90

et philosophique d’un mot dans le cadre d’une enquête sémantique13 ou bien d’évoquer,

sous un certain contexte, les philosophes vus par la foule14. Mais il apparaît surtout, au

fond, que la distinction renvoie à celle de l’entendement et de l’imagination.

Certes. Mais il arrive aussi au philosophe de manifester bien davantage sa

proximité. Car lui aussi, comme on le verra plus bas dans le cadre d’une critique

spinozienne des philosophes, peut bien souvent prendre l’imagination pour

l’entendement et juger des choses d’après la disposition du corps. Le départ entre

rationalité philosophique et représentations communes ne définit donc pas l’univocité

d’un discours sur les philosophes, discours ambivalent en raison même de

l’ambivalence de son objet, les philosophes n’échappant pas toujours à leurs propres

déficiences qui prennent la forme des préjugés ou de l’ignorance. Mais cette

ambivalence du discours ne peut apparaître et faire sens que sur la base d’une pensée

elle-même normative. Spinoza ne peut donc éviter, explicitement ou non, de poser

quelque norme touchant la nature et la démarche du philosophe – ce qu’on verra

également plus bas –, à l’aune de laquelle pourront se comprendre les possibles

errements ou déviations de ce dernier.

2/ Le philosophe, le théologien et le prophète. Des philosophes situés et défendus

Dans le Traité théologico-politique bien plus qu’ailleurs, le propos sur le

philosophe est positif ; il s’agit de le défendre comme tel et de justifier sa place, en

particulier face au théologien et au prophète.

a) Le philosophe et l’interprétation de l’Écriture sainte ; lumière naturelle et

révélation

La méthode d’interprétation de l’Écriture sainte, telle que Spinoza l’élabore au

chapitre VII du Traité théologico-politique, conduit à situer le philosophe, homme de

lumière naturelle, face au texte biblique. Les philosophes ont d’autant moins de

monopole en matière d’interprétation de l’Écriture que celle-ci n’est pas, Spinoza

s’opposant sur ce point à Maïmonide, une source de vérité d’ordre spéculatif. Les

philosophes ne sont pas des prophètes, hommes « qui excellent par l'imagination » et

13 PM I, 6 : « Ce qu’est le Vrai, ce qu’est le Faux, tant pour le vulgaire que pour les philosophes ». 14 TTP VII, occurrence singulière où l’on voit, après la mésaventure de Thalès, ce qui du philosophe – au

statut ici tout à fait hypothétique – pourrait derechef donner à rire à la foule.

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

91 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

purent être « grossiers, dépourvus de toute instruction »15 ; pas plus, d’ailleurs, ces

derniers, comme la thèse de Maïmonide le suppose, ont-ils été « d’éminents philosophes

(…) puisqu’il veut qu’ils aient tiré leurs conclusions de la vérité de la chose », ce dont

le chapitre II a montré la fausseté. Bref, la méthode d’interprétation de l’Écriture ne

devant être « que la lumière naturelle commune à tous »16, les philosophes ne forment

en rien une élite d’herméneutes. L’Écriture n’enseigne en effet que des choses très

simples ; et si tel n’était pas le cas, s’il y avait à interpréter et à comprendre

métaphoriquement certains passages, c’est qu’alors elle aurait été écrite « non pour la

foule et le vulgaire ignorant, mais seulement pour des gens très savants, et surtout pour

les philosophes »17.

Dans la Lettre 9 de 1663 à Simon de Vries, l’usage de la lumière naturelle

distingue déjà les philosophes des prophètes, comme l’appellation de « pur

philosophe », dans la Lettre 23 du 13 mars 1665 à Blyenbergh, renvoie au fait de

n’admettre « d’autre pierre de touche de la vérité que l’entendement naturel et non la

théologie ». Car appartient à cette dernière ce qui, comme l’essence ou l’existence des

anges, n’est connu que par Révélation18. On comprend alors qu’afin que le prophète

passe pour l’interprète des décrets divins, la connaissance dont il se réclame doit être

d’un autre ordre que la connaissance naturelle19. Et l’on comprend encore que « si les

hommes qui écoutent les prophètes devenaient prophètes comme deviennent

philosophes ceux qui écoutent les philosophes, alors le prophète ne serait pas

l’interprète des décrets divins »20.

b) Aspects du discours sur le théologien ; défense et distinction du philosophe

Le discours de Spinoza à l’égard du théologien n’est pas univoque, quoiqu’il

diffère en degré et non en nature. Quatre aspects de ce discours sont repérables.

15 Ibid. II. 16 Ibid. VI. 17 Ibid. XIII. 18 PM II, 12. 19 Sur la nature et les rapports des connaissances prophétique et naturelle, ces deux types de connaissance,

voir en particulier TTP I, p. 93 ; XII, p. 429 ; XV, p. 495-499. 20 TTP, annotation 2 au chapitre I. Ce propos rapproche les philosophes des prophètes pour mieux les en

séparer et les rattacher à l’idée d’une science naturelle, certaine et universelle. Mais on remarquera qu’il

est également question ici d’un mode d’acquisition de la philosophie ou, plus précisément, d’un mode du

devenir-philosophe : écouter les philosophes. Si Spinoza n’hésite pas à qualifier la science naturelle de

« divine » (TTP II, p. 81) – au sens où Dieu n’est rien d’autre que la nature elle-même –, ce n’est pas en

effet le prophète qui la fait connaître. Car recevoir une telle science requiert l’exercice de l’entendement

naturel, faculté partagée de ceux qui font connaître comme de ceux qui reçoivent. Or, le prophète

n’interprète la révélation que pour le fervent.

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 92

En premier lieu, le propos est parfois neutre, au sens où les théologiens

apparaissent simplement comme représentants de doctrines ou promoteurs d’acceptions

que Spinoza se propose de discuter21. En deuxième lieu, on voit le plus souvent Spinoza

s’employer à critiquer des théologiens fort peu intelligents. C’est, par exemple dans

l’appendice à la partie I de l’Éthique, souligner leur inconséquence touchant l’action de

Dieu ; c’est encore pointer leur inintelligence du fait que l’Écriture parle selon la

compréhension du vulgaire mais qu’ils pensent devoir « interpréter métaphoriquement

ce que la lumière naturelle leur montrait ne pas convenir à la nature divine (…) »22 ;

c’est enfin montrer qu’ils ne résolvent rien lorsqu’ils assignent pour cause à

l’impuissance des hommes, menés par leur plaisir, « un vice de la nature humaine, ou

un péché, qui tirerait son origine de la chute de notre premier ancêtre »23. Il n’est donc

pas rare que des hommes, « réputés grands théologiens », donnent pourtant dans des

absurdités manifestes24. En troisième lieu, à voir certains conjuguer stupidité et attitudes

pour le moins condamnables, le discours peut se faire nettement plus dépréciatif. Il en

est en effet, si étroits d’esprit, qu’on les peut difficilement convaincre même par des

raisons très solides25, ou d’autres, ordinairement soucieux « de la meilleure manière de

déformer les Lettres sacrées pour en tirer leurs inventions et leurs thèses et les abriter

sous l’autorité divine »26. On sait encore combien Spinoza, défendant les avantages de

la vie sociale, conseille de délaisser les théologiens qui maudissent « les choses

humaines »27, en trouvant facilement dans la réalité sociale des arguments pour en faire

un objet de détestation. En quatrième et dernier lieu, le discours peut être carrément

virulent à l’encontre de théologiens odieux et haïssables dans leurs comportements.

Spinoza n’emploie ce ton que lorsqu’il est lui-même victime de tels comportements, ce

qui s’exprime à travers trois Lettres à Oldenburg. Quant à son hésitation à publier un

21 Voir par exemple PM II, 6, 8, 9 et 12. 22 TTP XIII. 23 TP II, 6. 24 CT II, 26, 4. On notera qu’il arrive à Spinoza de parler de « théologiens ordinaires [communes

theologi] » (TTP V et XIII) ou encore « vulgaires [vulgares] » (Lettre 21 du 28 janvier 1665 à

Blyenbergh). Ce sont eux qui sont en général la cible de ses critiques. Faudrait-il alors distinguer entre de

« mauvais » et de « bons », de stupides et d’intelligents théologiens, ou bien poser l’existence de certains

qui ne seraient pas ordinaires ? Leibniz, dans le Discours préliminaire de ses Essais de théodicée (§ 14),

évoquant l’affrontement de camps qu’avait suscité la publication, en 1666, de l’ouvrage de Louis Meyer,

La philosophie interprète de l’Écriture sainte, n’écrit-il pas : « On parle depuis en Hollande de

théologiens rationaux et non rationaux, distinction de parti dont M. Bayle fait souvent mention (…) ; mais

il ne paraît pas qu’on ait encore bien donné les règles précises dont les uns et les autres conviennent ou ne

conviennent pas à l’égard de l’usage de la raison dans l’explication de la Sainte Écriture » ? 25 TTP V. 26 Ibid. VII. 27 Éthique IV, 35, sc.

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

93 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

ouvrage « sur la purification de l’entendement », il écrit : « Je crains que les théologiens

de notre temps n’en soient offusqués et qu’ils ne m’attaquent de la façon haineuse dont

ils sont accoutumés (…) »28 ; on connaît le premier motif de la composition du Traité

théologico-politique qui est de dénoncer les préjugés des théologiens misologues29 ; on

sait enfin, par la Lettre 68 de 1675, que la haine menaçante des théologiens, qui

« guettait [Spinoza] de toutes parts », leur firent déposer une plainte contre lui,

l’obligeant ainsi à ajourner la publication de l’Éthique.

Les théologiens, se vantant de posséder une lumière surnaturelle, veulent

« s’élever par la pensée au-dessus de la foule des philosophes »30 et l’emporter en savoir

sur ces derniers, « qui ne disposent que de la lumière naturelle »31. Il est alors important

et même urgent de rappeler, contre cette supériorité revendiquée et menaçante, la place

et le rang qui reviennent légitimement au philosophe – défense qui est bien évidemment

celle de la raison face aux prétentions de la révélation. C’est à la raison seule qu’il

revient de revendiquer le domaine de la vérité. Ainsi, comme l’affirme le chapitre XV

du Traité théologico-politique, ceux qui prétendent avoir « un autre esprit qui les assure

de la vérité (…) se vantent faussement », et c’est peut-être « une grande crainte d’être

vaincus par les philosophes et d’être la risée du public, qui les fait se réfugier dans le

sacré ». Le philosophe – et Spinoza au premier chef, relativement aux accusations

d’athéisme dont il fait l’objet – doit ainsi être défendu dans sa place et dans son rang

contre « ceux que le vulgaire adore comme des interprètes de la nature et des Dieux »,

et qui tiennent le philosophe « pour un hérétique et un impie » dès lors qu’il recherche

les vraies causes des miracles et « s’emploie à comprendre les choses naturelles comme

un savant, au lieu de les admirer comme un sot »32.

Mais c’est encore contre d’illégitimes assimilations et d’éventuels usages abusifs

de ses propos que le philosophe est défendu. Ainsi, la préface au Traité théologico-

politique dénonce ces controverses des philosophes qui « sont agitées dans l’Église et au

Sénat, avec les plus grands mouvements de l’âme ». Spinoza s’en prend ici à l’usage

théologique et politique de ces controverses, qu’on entend sans doute soit stigmatiser

soit « récupérer ». Il s’agit enfin de défendre la philosophie contre son assimilation aux

dogmes religieux : cette confusion fut une stratégie des Ecclésiastiques, au point que

28 Lettre 6. Cette « haine théologique » (TTP XVII), violence du dogmatisme et du pouvoir, est

coextensive aux « préjugés communs de la théologie » que Spinoza entend bien supprimer (ibid. VIII). 29 Lettre 30 de 1665. 30 PPD I, 9, sc. 31 TTP XIII.

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 94

l’interprète de ces dogmes « devait être un philosophe et un théologien éminent, et

s’occuper d’une multitude de spéculations inutiles »33. Le brouillage dont il est ici

question entre dogmes et philosophie renvoie à une stratégie délibérée de la part du

pouvoir religieux afin que les rois chrétiens ne s’emparassent pas de ce pouvoir. De

l’assimilation de la philosophie à ce qui n’est pas elle procède ainsi son

instrumentalisation, alors même qu’elle n’a pas à être la servante de la foi ni l’arme

d’un pouvoir contre un autre.

Mais si Spinoza se comprend sans aucun doute lui-même parmi les philosophes

qu’il s’attache à démarquer des théologiens, il n’en travaille pas moins à se démarquer

lui-même des philosophes. Autre lieu d’une démarcation, qui a ses propres enjeux.

II. LE PHILOSOPHE ET SES PAIRS

1/ Comment on se rapporte à ses pairs

a) Des références à des conceptions philosophiques communes

Certes, un premier ensemble d’occurrences34 voit « les philosophes »

simplement convoqués à titre de références, le plus souvent à des fins de rappels de

conceptions philosophiques communes, ce qui permet à Spinoza de prendre position. Le

propos, ici, n’est pas spécialement critique ni véritablement polémique. Il expose ce que

pensent, disent ou enseignent les philosophes sur tel ou tel point, exposition qui sert

souvent de point d’appui à l’argumentation spinozienne. Ainsi, dans le but de préciser le

mode d’action de la Substance, Spinoza évoque l’entendement, qui est, « comme le

disent aussi les philosophes, cause de ses concepts »35. Il explique, dans les Pensées

métaphysiques, ce qui a amené les philosophes à produire, à partir des choses naturelles,

des modes de pensée tels que « genre, espèce, etc. »36 ou encore, dans le Traité

politique, sous quelle acception une cité peut être dite pécher en reprenant le « sens où

philosophes et médecins disent que la nature pèche »37. Spinoza n’hésite donc pas à

rappeler le passé de la philosophie, en vue, comme c’est toujours le cas, de marquer ses

32 Éthique I, appendice. 33 TTP XIX. 34 14, toutes au pluriel. 35 CT I, II, 24. 36 I, 1.

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

95 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

positions par rapport à une certaine tradition, ou d’aider à préciser du vocabulaire –

dans un lien, comme nous le verrons plus bas, à une analyse du langage des

philosophes.

b) Les « philosophes » comme cibles d’une critique

À un deuxième niveau, plus fréquent38, les philosophes se voient mentionnés ou

exposés d’une façon clairement et parfois violemment critique. Le rapport est ici de

discontinuité ou de rupture, à l’égard de philosophes qui ont à la fois le statut

d’instruments et celui d’adversaires. Sur des points particuliers de doctrine, Spinoza

discute, réfute ou, dans le meilleur des cas, corrige – autant de manifestations d’une

démarcation. Certes, la démarche n’est ni très étonnante ni très singulière ; si Spinoza

prend « la peine de réfuter des objections à ses yeux inconsistantes, c’est parce que cela

lui permet, indirectement, de préciser ses propres positions, en écartant certaines

interprétations abusives qui pourraient en fausser la signification »39. Mais il faut

compléter : à travers la discussion et la réfutation, Spinoza entend préciser ses positions

comme plus justes. En d’autres termes, écarter les interprétations qui pourraient fausser

la signification de sa propre philosophie, c’est, dans le même geste, revendiquer cette

dernière comme vraie – comme en témoigne la Lettre 76 à Burgh.

Ainsi, et pour nous limiter à quelques exemples, l’examen de « ce que les

philosophes savent dire » de la définition de Dieu, a le sens, dans le Court traité, d’un

exposé préalable de positions d’adversaires (en l’occurrence les Scolastiques, en

particulier Heereboord), positions qui finissent par être qualifiées de « sophismes par

lesquels ils cherchent à embellir leur ignorance »40. Dans les Pensées métaphysiques, il

est question d’expliquer pourquoi les philosophes « ont confondu l’âme avec les choses

corporelles »41. Au chapitre IV du Traité théologico-politique, ils font montre de

déficience rationnelle lorsque, pensant transcrire des faits de la nature, ils « racontent

davantage leurs opinions ». On connaît enfin l’ouverture du Traité politique en forme de

critique appuyée des philosophes (il peut autant s’agir de Platon que de Hobbes) en

matière d’approche des affects comme de théorie et de pratique politiques.

37 IV, 4. 38 19 occurrences. 39 Pierre Macherey, Introduction à l’Éthique de Spinoza. La première partie, la nature des choses, Paris,

PUF, 1998, p. 195. 40 I, VII, 9. 41 II, 12.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 96

Sur un ton plus dur, on voit Spinoza s’en prendre à plusieurs reprises à des

philosophes considérés comme particulièrement inconséquents et irrationnels. Tels sont

ceux qui, en proie à l’étonnement, « se sont fait l’idée qu’en dehors de leur petit champ,

ou du petit globe terrestre qu’ils habitent (parce qu’ils n’examinent rien d’autre), il n’y

en a aucun autre »42. Les philosophes visés (certainement Aristote, cité juste avant en

note) ne sont pas loin d’être ici considérés comme des ignorants ou des êtres bornés –

l’étonnement étant la première passion de qui connaît par le premier mode de

connaissance. Manquerait encore du bon sens le plus élémentaire « quelque

philosophe » qui douterait encore de la distinction entre l’essence et l’existence dans les

choses créées43. On connaît enfin ceux auxquels s’en prend Spinoza dans l’appendice à

la première partie de l’Éthique (Pythagore et peut-être le Platon du Timée), qui, prenant

leur manière d’imaginer pour des attributs des choses, se sont « persuadés que les

mouvements célestes composent une harmonie ».

Il est donc, pour Spinoza, des philosophes ignorants, manquant de bon sens et

qui laissent aller l’imagination à ses délires sans même la distinguer de l’entendement.

Si l’auteur de l’Éthique avoue qu’il n’est « pas accoutumé de signaler les erreurs

commises par d'autres »44, il n’hésite pas pour autant à formuler le caractère infra-

rationnel de leurs démarches en tant qu’elles procèdent manifestement d’une ignorance

ou encore d’une imagination s’ignorant comme telles. À défaut de tâcher de

comprendre les choses par leurs causes réelles (et non finales), ces penseurs procèdent

par projections, anthropomorphisme, associations, donnent dans les êtres d’imagination

et les fictions, et forgent, comme le souligne le début du Traité politique, Satires et

chimères. À juger ainsi des choses d’une façon inadéquate, il n’est alors pas surprenant

de les voir attachés non aux propriétés communes, rationnellement dégagées, mais à la

particularité, dans laquelle ils se perdent, comme ceux qui s’étonnent du fait de leur

attachement à « leur petit champ »45. C’est au point où l’on peut se demander, problème

qu’on examinera plus bas, s’il s’agit là encore, dans l’esprit de Spinoza, de philosophes

et de philosophie.

42 CT II, III, 3. 43 PM I, 2. Spinoza renvoie ici le philosophe à l’expérience : « qu’il aille simplement chez quelque

statuaire ou sculpteur en bois » (ibid.) qui conçoit l’objet avant de le faire exister. 44 Lettre 2 du 10-26 août 1661 à Oldenburg. 45 Comme l’écrit P. Macherey, là où les philosophes, selon Spinoza, « voient de l’universel (…), il n’y a

en fait, sans même qu’ils s’en aperçoivent, que du particulier, ce qui indique manifestement qu’ils sont

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

97 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

2/ L’importance de la dimension du langage (philosophique)

Le rapport de Spinoza à ses pairs s’articule très fréquemment, et de façon

explicite, à des questions de langage, plus précisément à des détermination de

vocabulaire philosophique. Cette articulation recouvre néanmoins des statuts différents,

critiques ou non.

a) Un « parler en philosophe »

La Lettre 19 du 5 janvier 1665 à Blyenbergh évoque la réaction que les

philosophes doivent normalement adopter face au langage essentiellement

anthropomorphique et parabolique des prophètes : les philosophes, comme « tous ceux

qui sont au-dessus de la loi, c’est-à-dire pratiquent la vertu par amour pour elle, parce

qu’elle est ce qu’il y a de meilleur et non parce que la loi l’ordonne, ne doivent pas être

choqués par ce langage ». Il suffit en effet de comprendre qu’un tel langage est adapté à

ceux qui sont mus par la crainte et qui ont besoin de lois ordonnant la conduite, et qu’il

n’a rien de commun avec la spéculation philosophique, ordonnée à la vérité. Il y a donc

lieu de bien distinguer un « parler en philosophe » et un « parler en prophète » ou « en

théologien » – qui est un parler toujours anthropomorphique et qui, comme tel, passe

totalement à côté de la vraie nature de Dieu46. Corrélativement, l’acte même d’énoncer

qu’on parle en philosophe est une façon de se situer face à son interlocuteur comme de

faire en sorte qu’il se situe lui-même, à l’intérieur ou à l’extérieur du champ du

philosophique.

b) Reprendre pour soi des significations philosophiques reçues et les préciser

Spinoza évoque souvent, par ailleurs, la façon dont les philosophes comprennent

un terme précis, non pas à des fins de discussion critique mais pour mieux asseoir le

sens de ce dont lui-même parle. On le voit ainsi préciser qu’il appelle « loi » la loi

divine naturelle (dont le commandement suprême est d’aimer Dieu) « au sens où les

philosophes appellent lois les règles communes de la nature selon lesquelles tout se

sortis du champ de la connaissance rationnelle » (Introduction à l’Éthique de Spinoza. La seconde partie,

la réalité mentale, Paris, PUF, 1997, p. 311). 46 Signalons seulement que prendrait toute sa place, dans ce cadre, l’analyse des cinq occurrences, à

travers l’œuvre, de l’adverbe « philosophicè » (PPD I, 7, sc. ; PM II, 6 ; Lettre du 13 mars 1665 à

Blyenbergh). Toutes ont trait en effet à cette même exigence de parler « philosophiquement » ou « en

philosophe », ce qui signifie d’abord avoir pensé en philosophe, c'est-à-dire adéquatement.

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 98

produit »47. C’est dans la lignée des philosophes qui renvoient bien plus ici aux savants

qu’aux moralistes, que Spinoza entend se situer. C’est encore ce même usage, à des fins

de précision, que l’on observe dans le Traité politique à travers ce passage évoqué plus

haut touchant la signification du verbe « pécher » pour une Cité, Spinoza se référant là

au sens en usage chez les « philosophes et médecins »48.

Un point, à travers cette démarche de précision, est digne d’intérêt : en appeler

aux hommes d’un savoir rationnel que sont ici les médecins et les philosophes (au sens

de ceux qui versent dans la « philosophie naturelle »), c’est clairement opter pour une

approche en savant et non en moraliste ou en religieux. La précision, appuyée sur ce

qu’entendent les philosophes eux-mêmes, revêt donc aussi le sens d’une démarcation

vers des acceptions rationnelles de termes chargés par ailleurs de significations

théologico-morales.

c) Reprendre des significations philosophiques reçues pour mieux s’en déprendre

On voit souvent Spinoza pratiquer la référence explicite à des significations

philosophiquement reçues, de façon à mieux poser, par contraste, ses propres

significations et, ce faisant, établir la vérité. Il définit ainsi, dans les Pensées

métaphysiques, ce qu’il entend par « changement », savoir « toute variation pouvant se

produire dans un sujet quelconque, l’essence même du sujet gardant son intégrité »,

alors que « les philosophes » comprennent plus largement sous ce terme une

modification essentielle qu’ils nomment, eux, « transformation »49. Dans le même

ouvrage, Spinoza déclare rejeter « la définition vulgaire de la création » et décide alors

de laisser de côté « les mots du néant communément employés par les philosophes,

comme si le néant était une matière de laquelle les choses fussent tirées »50.

d) Critiquer un mauvais usage des mots par les philosophes

« Les philosophes » se trouvent enfin fréquemment pris à parti en raison de leurs

différents mésusages du langage. Voilà qui peut consister, en premier lieu, à se soucier

davantage des mots que de bien concevoir les choses. Les Pensées métaphysiques

précisent ainsi que la question de l’unité et de l’unicité de Dieu n’a que peu « et n’a

47 TTP, annotation 34 au chap. XVI. 48 IV, 4. Le discours médical du XIVe siècle utilisait en effet le verbe « peccare », en relation avec

l’adjectif « peccant(e) », à propos des humeurs du corps corrompues ou en trop grande abondance. 49 II, 4. 50 II, 10 (définition thomiste, reprise par toute la scolastique).

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

99 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

même aucune importance, pour ceux qui sont occupés des choses [rebus] et non des

mots [nominibus] »51. Des philosophes (en particulier Heereboord) font donc erreur s’ils

pensent que s’attacher aux mots est plus important que de bien concevoir les choses.

C’est là un thème spinozien récurrent, en particulier dans cet ouvrage attaché à

expliquer les difficultés de la métaphysique scolastique. En second lieu, certains font un

usage illégitime du vocabulaire. Le dernier paragraphe des Pensées métaphysiques,

entendant exposer « Pourquoi les Philosophes ont confondu l’âme avec les choses

corporelles », explique cette confusion par « l’emploi qu’ils ont fait de mots d’ordinaire

appliqués aux choses corporelles pour signifier les choses spirituelles qu’ils ne

connaissaient pas »52. La confusion procède ainsi d’une ignorance (celles des « choses

spirituelles ») sur laquelle s’enracine l’emploi alors fautif et inconsidéré de mots,

emploi proprement métaphorique. En troisième lieu, il est un mauvais usage du langage

qui consiste à confondre les mots et les choses ou encore à prendre les mots pour les

choses. On connaît ce passage des Pensées métaphysiques dans lequel, désirant se faire

« une idée juste » de ces notions, Spinoza se propose d’examiner « Ce qu’est le Vrai, ce

qu’est le Faux tant pour le Vulgaire que pour les Philosophes »53. Spinoza entend

montrer ici que rien, dans l’histoire du mot, ne justifie qu’on l’applique aux choses

mêmes ou à l’être. Mais les scolastiques attribuent à l’objet ce qui concerne la pensée. Il

s’agit donc, tout à la fois, de savoir de quoi l’on parle et d’obéir à ce constant souci de

cerner ce qui est réel et ce qui ne l’est pas – en évitant en particulier toute hypostase,

comme telle toujours fautive. Ainsi, dès le premier chapitre des Pensées métaphysiques,

Spinoza, dénonçant comme fausse et « déraisonnable » la division de l’Être en Être réel

et Être de raison, ajoute : « Je ne m’étonne pas cependant que les Philosophes attachés

aux mots ou à la grammaire soient tombés dans des erreurs semblables ; car ils jugent

des choses par les noms, et non des noms par les choses »54.

P.-F. Moreau met en relief l’ampleur de la critique : « une triple coupure est

instaurée d’un seul coup : entre mots et choses (les mots n’ayant guère, semble-t-il, de

51 I, 6. 52 « Les philosophes » ici visés sont, comme dans l’ensemble des PM, les métaphysiciens scolastiques.

Ces derniers (on peut penser par exemple à Buridan) ont forgé la liberté d'indifférence de la volonté ou

son indétermination sur le modèle des corps contraires en équilibre, appelés (à tort) indéterminés. 53 I, 6. Sur ce texte, on consultera avec profit l’article d’Ariel Suhamy, « L’histoire de la vérité. Pensées

métaphysiques I, ch. VI », in Les Pensées métaphysiques de Spinoza, Publications de la Sorbonne, 2004

(dir. Chantal Jaquet), p. 71-96. 54 Un tel attachement, avec ses conséquences, est ce que Descartes pointait déjà : « tous les hommes

donnent leur attention aux paroles plutôt qu’aux choses ; ce qui est cause qu’ils donnent bien souvent leur

consentement à des termes qu’ils n’entendent point, et qu’ils ne se soucient pas beaucoup d’entendre

(…) » (Principes de la philosophie, I, art. 74).

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 100

teneur ontologique) ; entre la méthode qui part des choses et celle qui part des mots (le

vide ontologique se prolongeant en piège épistémologique) ; entre deux philosophes – la

désignation des adversaires comme philosophes "verbales sive grammaticales"

semblant indiquer le langage, ou l’attachement au langage, comme origine ultime de

leurs erreurs »55. Le langage enveloppe le danger d’une illusion : celle qui tient à la

confusion toujours possible des idées et des mots par lesquels nous désignons les

choses. La critique spinozienne de l’usage du langage par les philosophes, porte au

demeurant sur son usage ordinaire par la philosophie ordinaire. La traduction

hollandaise des Pensées métaphysiques présente, au début de la partie I, l’indication

suivante : « Le but et l'objet de cette Partie est de démontrer que la Logique et la

Philosophie ordinaires servent seulement à exercer et à fortifier la mémoire ; de façon à

bien retenir les choses qui, au hasard des rencontres, sans ordre ni enchaînement, sont

perçues par les sens et dont nous ne pouvons ainsi être affectés que par les sens ; mais

ne servent pas à exercer l'Entendement »56.

3/ Le rapport aux autres philosophes historiques – ou sur les philosophes

explicitement nommés57

À côté des « philosophes » comme catégorie générale, et du terme qui, sans les

nommer, renvoie à des penseurs précis, nous ne saurions passer sous silence les

philosophes explicitement nommés – considérés ici de façon comparative et générale,

non dans la particularité que Spinoza entretient avec tel ou tel.

a) Qui ?

Examiner les modes de relation et d’usage que Spinoza entretient avec les autres

se heurte au problème suivant : dans la masse des penseurs qui font l’horizon des

références spinoziennes, qui est « philosophe » et qui ne l’est pas ?58 Traiter un tel

55 Spinoza. L’expérience et l’éternité, Paris, PUF, coll. « Épiméthée », p. 308. 56 Une complète intelligibilité de ces critiques demanderait qu’on remonte à leur fondement :

l’articulation du langage et de l’imagination. Les mots sont en effet fondamentalement attachés à

l’imagination. Ils en forment « une partie » (TRE, § 88), ne sont « que les signes des choses en fonction

de ce qu’elles sont dans l’imagination, non en fonction de ce qu’elles sont dans l’entendement » (Ibid., §

89). 57 Nous nous contenterons ici de remarques élémentaires, ce point étant développé dans notre article :

« Spinoza et le passé de la philosophie : un passé sans histoire ? », à paraître dans Astérion, revue

électronique de philosophie, histoire des idées et pensée politique (http://asterion.revues.org), n°8, 2011. 58 On compte plus d’une trentaine de noms auxquels Spinoza fait référence, qui vont de Thalès et Zénon

pour les plus anciens, à Huet et Leibniz. Précisons, d’une part, qu’outre les noms propres, Spinoza

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

101 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

problème demanderait de pouvoir déterminer qui, précisément, Spinoza considérait

comme philosophe (et donc aussi comme non philosophe), et en même temps ceux que

nous, aujourd’hui, retenons sous cette dénomination (y mettrons-nous tel commentateur

médiéval de l’Écriture sainte ? un même commentateur mais qui aurait aussi écrit sur

Aristote ?…). Nous nous en tiendrons ici aux grands noms que notre tradition a elle-

même retenus sous cette appellation.

C’est dans le Traité théologico-politique et la Correspondance que les références

se concentrent le plus fortement. Chaque auteur est peu cité et nombre d’entre eux ne le

sont qu’une seule fois. Les plus cités sont, dans un ordre qui ne surprendra pas :

Descartes (l’inaugurateur sinon le promoteur de la philosophie nouvelle, celui qui

influence et duquel, aussi bien, il faut se démarquer), Maïmonide et Ibn Ezra

(convoqués exclusivement dans le Traité théologico-politique) puis Aristote.

b) Pour quels usages ?59

Spinoza restitue parfois la pensée d’un auteur passé à titre de simple rappel

d’une conception philosophique courante. C’est par exemple le cas avec l’énoncé, dans

le Court traité, de la définition aristotélicienne du désir60 ; avec l’explication, dans les

Pensées métaphysiques, des raisons qui ont amené les philosophes à produire des modes

de pensée tels que « genre » ou « espèce »61 ; avec l’affirmation, « avec Paul, et peut-

être avec tous les philosophes anciens (…), que toutes choses sont et se meuvent en

Dieu »62… Il n’y a là qu’exposition de ce que pensent ou enseignent les philosophes, en

vue d’un usage philosophique présent (démarcation, précisions terminologiques, etc.).

Les auteurs sont encore convoqués à titre d’exemples, de supports de

l’argumentation voire – chose plus surprenante de la part de Spinoza – d’arguments

d’autorité. Ainsi dans les Pensées métaphysiques : « Pour bien entendre cet attribut

qu’est la simplicité de Dieu, il faut se rappeler ce que Descartes a indiqué dans les

Principes de la philosophie (…) »63 ; au chapitre V du Traité théologico-politique :

procède souvent par appellations générales, comme lorsqu’il évoque « les Atomistes »,

« les Dogmatiques », « les Sceptiques », « les Latins », « les Thomistes » ou encore « les Philosophes

nouveaux » – appellations sous lesquelles il est plus ou moins facile de reconnaître les auteurs visés.

D’autre part, il va de soi qu’outre les philosophes explicitement nommés, il y a tous ceux qui, plus

implicitement, trament le propos – tels Léon l’Hébreu, Giordano Bruno ou encore Juste Lipse. 59 On ne donnera ici que quelques exemples, autant que possible représentatifs et différenciés selon

l’époque, les œuvres de Spinoza et les usages qu’il en fait. 60 II, 17, § 2. 61 I, 1. 62 Lettre 73 de novembre-décembre 1675 à Oldenburg. 63 II, 5.

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 102

« comme le dit Sénèque le tragique, personne ne supporte longtemps un pouvoir violent

(…) » ; ou encore dans l’Éthique où, une fois l’ambition définie et sa puissance

soulignée, Spinoza laisse place à une citation de Cicéron selon laquelle même les

philosophes qui écrivent sur le mépris de la gloire sont au plus haut point menés par

elle64.

S’il arrive à Spinoza, certes rarement, de porter un jugement positif sur un

philosophe – comme c’est le cas dans le Traité politique avec l’évocation du « très

pénétrant Machiavel »65 –, l’usage critique négatif est le plus fréquent. Ainsi, le Court

traité déclare de peu d’importance « l’assertion de Thomas d’Aquin, suivant laquelle

Dieu ne pourrait être démontré a priori sous le prétexte qu’il n’a pas de cause »66. La

Lettre 2 à Oldenburg de 1661 est consacrée, on le sait, à trois erreurs de Bacon et de

Descartes. La position de Maïmonide relative à l’interprétation de l’Écriture se voit

condamnée « comme nocive, inutile et absurde »67. Sont encore de nature critique et

polémique les deux références à Descartes dans les préfaces aux parties III et V de

l’Éthique, sur la question de l’empire qu’a l’homme sur ses passions.

c) Vers l’idée d’une topologie

Certes, les opinions des philosophes, anciens ou récents, sont présentes comme

autant de propositions à travers lesquelles Spinoza pose, démontre et démarque ses

propres réflexions. Il ne s’agit pas de viser ou de considérer un passé en tant que tel, de

poser sur les auteurs quelque regard d’ordre historique, en resituant des conceptions ou

des thèses dans leur contexte, dans leur temps, au sein de relations d’influences ou de

comparaisons – ce à quoi se livre par exemple Hobbes dans le chapitre 46 de son

Léviathan. Le rappel des auteurs passés est d’emblée situé dans l’actualité

philosophique ; il est toujours question de réfléchir à travers eux. Bref, le rapport aux

auteurs est philosophique et non historique. Cependant, un certain nombre de passages –

nous en retiendrons quatre – semblent présenter, dans leur geste et dans leur propos,

comme des indices possibles d’une vision historique à l’égard d’auteurs traités.

Ainsi, dans le chapitre VI de la seconde partie des Pensées métaphysiques,

Spinoza veut établir « Ce que les philosophes entendent communément par vie » et,

pour ce faire, examine d’abord l’opinion des Péripatéticiens, en citant, en expliquant et

64 III, définition 44 des affects, explication. 65 V, § 7 et X, § 1. 66 I, 1, 10.

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

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en situant. Deuxièmement, dans la Lettre 2 à Oldenburg d’août ou septembre 1661,

relative aux trois erreurs de Bacon et de Descartes, on peut lire que « Vérulam prend

souvent l’entendement pour l’âme, en quoi il diffère de Descartes » ; Spinoza, ici,

distingue, compare, laisse entendre une certaine supériorité de Descartes (qui ne tombe

pas, lui, dans la confusion) et se prête à l’énoncé d’une certaine filiation. C’est un

schéma semblable de filiation, troisièmement, qu’on retrouve dans la préface à la partie

V de l’Éthique où Descartes, philosophiquement inconséquent, se voit rattaché aux

Scolastiques, façon, pour Spinoza, de le situer. On connaît enfin la fameuse réplique

faite à Boxel à propos de l’existence des spectres : « L'autorité de Platon, d'Aristote, etc.

n'a pas grand poids pour moi : j'aurais été surpris si vous aviez allégué Épicure,

Démocrite, Lucrèce ou quelqu'un des Atomistes et des partisans des atomes »68.

Quel intérêt ces passages présentent-ils ? C’est qu’on y voit Spinoza mettre en

place des indications et des analyses de positions philosophiques de prédécesseurs : des

« Péripatéticiens modernes » qui, sur la question de l’existence de Dieu, comprennent

mal des « Péripatéticiens anciens »69 ; Bacon placé sur la même ligne que Descartes70 et

celui-ci sur la ligne des Scolastiques. Dans son traitement des auteurs, le penseur

hollandais ne fait donc pas que réfuter en parlant au présent. Du passé de la philosophie,

on le voit tracer comme des lignes : des filiations, des lignes de cohérence et de pensée,

de vérité et d’erreurs – une certaine vision géométrique, si l’on veut, du passé de la

philosophie. Et ces lignes, dans la mesure où demeure quasiment constant l’usage

philosophique, sont aussi de préférences et d’affinités : Démocrite plutôt que Platon,

Sénèque plutôt que Sextus Empiricus, Machiavel plutôt que Hobbes. Tout se passe

comme si nous avions à faire à une sorte de « topologie », telle que nous l’avons définie

dans notre introduction, par laquelle Spinoza peut lui-même dire sa place, se réclamer

d’un auteur sans devoir en assumer toutes les thèses. Voilà qui par exemple lui permet

de s’appuyer implicitement sur Aristote pour critiquer Descartes71.

S’il n’y a donc pas de rapport au passé en tant que tel, ces lignes que trace

parfois Spinoza attestent d’une histoire qui n’est ni méprisée ni congédiée, et qui se

67 TTP XIII. 68 Lettre 56 d’octobre-novembre 1674. 69 Lettre 12 à Meyer d’avril 1663. 70 Outre la Lettre 2, voir la Lettre 6 de 1661 ou 1662 (§ 13). 71 Comme au § 85 du TRE, relativement à l’insuffisance de la clarté et de la distinction cartésiennes. Sur

ce point, G. Deleuze note que « Spinoza se retrouve aristotélicien contre Descartes » (Spinoza et le

problème de l’expression, Paris, Éditions de Minuit, 1968, chap. X, p. 142).

Philippe Danino

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trouve mise au double service d’une formulation de la vérité et d’une démarcation

affirmée.

III. LES PROPRIÉTÉS DU VRAI PHILOSOPHE

Si le rapport de Spinoza aux philosophes est le plus souvent critique, il est loin

de se réduire à cet aspect. De fréquents propos, en effet, énoncent sans détours – sinon

parfois négatifs – des qualités, des caractères ou des démarches requises du philosophe.

Ces déterminations positives disent aussi bien ce qu’est ce dernier et, en un discours

prescriptif, ce qu’il doit être. Quatre grandes déterminations sont repérables, dont

l’articulation est assez évidente.

1/ Les réquisits théoriques

a) La connaissance : le philosophe est un savant

Dans le domaine de la connaissance, tout d’abord, les philosophes ne sauraient

ignorer certaines vérités telles que l’axiome : « est vraie toute définition, c'est-à-dire

toute idée claire et distincte »72, ou bien encore la façon par laquelle Dieu gouverne la

nature, à savoir non par des miracles mais « selon ce qu’exigent ses lois universelles »73.

Le philosophe, autrement dit, est aussi un savant. Le chapitre XII du Traité théologico-

politique précise que tout ce qui de l’Écriture sainte est corrompu ou fautif se trouve

« dans l’une des circonstances du récit historique (…) ou dans un miracle, pour

tourmenter les philosophes (…) ». Le philosophe, dans cette formule ironique, apparaît

comme un savant intéressé à la connaissance de la nature et de ses lois, c'est-à-dire

encore, comme le précise l’appendice à la partie I de l’Éthique, celui qui « cherche les

vraies causes des prodiges et s’applique à connaître en savant les choses de la nature ».

Savants sont encore les philosophes lorsque Spinoza, dans la Lettre 30 de 1665, confie à

Oldenburg sa satisfaction « d’apprendre que les philosophes dans le cercle desquels [vit

Oldenburg], restent fidèles à eux-mêmes en même temps qu’à leur pays ». Cette Lettre

renvoie aux savants mêmes dont parlait Oldenburg dans la Lettre 29, ceux qui

« n’oublient pas qu’ils sont philosophes », c'est-à-dire, précise-t-il, qui poursuivent des

72 Lettre 4 de septembre-octobre 1661 à Oldenburg. 73 TTP VI.

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

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expériences sur l’hydrostatique, « l’anatomie, la mécanique ou d’autres matières ».

Savant est enfin le philosophe dans la Lettre 6 à Oldenburg74, dont le désir est de savoir,

non pas ici savoir en général, mais au sens de « connaître les différences qu’il y a d’un

liquide à l’autre » et, plus généralement, de « comprendre la nature d’un fluide en

général ». La philosophie du philosophe est ici la philosophie naturelle ou physique et, à

titre de savant, son désir est celui de connaître la nature de la matière. Cette acception

est inséparable de la notion traditionnelle de science comme représentation rationnelle

du réel, par opposition à la recension simplement historique des faits75.

Le propos ne semble pas très original, au sens où il rejoint l’idée de toujours du

philosophe animé d’un désir de savoir, porté sur la connaissance et l’explication de la

nature et de ses lois. On en tirera néanmoins l’enseignement suivant : être philosophe,

chez Spinoza, c’est être savant en philosophie naturelle (connaître l’hydrostatique, la

mécanique …), de telle sorte que la philosophie n’exclut pas des connaissances

spécialisées.

b) La démarche : faire les distinctions et se soucier du réel

Spinoza ne cesse d’insister sur une capacité caractéristique du philosophe, qui se

présente en même temps comme un devoir : celui d’éviter les confusions, de faire

soigneusement les distinctions requises, ou encore de saisir ou de connaître les

différences – à l’exemple de ce désir qu’on vient d’évoquer, « de connaître les

différences » entre divers liquides.

La Lettre 4 de 1661 à Oldenburg suppose qu’un philosophe sache distinguer

entre « fiction » et « concept clair et distinct ». Le Court traité, lui, précise que

confondre un être réel avec un être de raison est « ce qui doit être rigoureusement évité

par un vrai Philosophe »76. Normatif, le propos est en même temps discriminant en tant

qu’il désigne un philosophe comme « rechtschapen ». Cet adjectif hollandais,

qu’Appuhn traduit par « vrai », renvoie plutôt à « honnête », « droit » ou encore

« irréprochable ». Une juste démarche de pensée doit donc permettre d’éviter quelque

fatale confusion. Mais on notera qu’elle laisse place, dans le même temps, à des façons,

74 Une occurrence singulière, car la seule à parler du « désir de tous les philosophes [omnibus philosophis

maxime desideranda] » et l’une des rares, aussi, à poser dans sa formulation, un universel. 75 C’est à la philosophie ainsi conçue que Descartes attribue un caractère « pratique » – par contraste avec

la philosophie purement spéculative – et qu’il parle « (…) des matières de philosophie telles que sont les

sons et la lumière » (Lettre à Huygens, 1er novembre 1635, AT I, 332, 1).

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 106

pour des philosophes, d’être ni droits, ni irréprochables ou peu scrupuleux. Le chapitre

VI du Traité théologico-politique, traitant de la bonne démarche d’interprétation des

miracles, précise que « dans l’Écriture, beaucoup de choses sont racontées comme

réelles (…) alors que ce n’étaient que des représentations et des choses imaginaires »

(comme le fait qu’Élie est monté au ciel sur un char), événements qui « ne doivent donc

pas être admis comme réels par les philosophes ». Enfin, et d’une autre façon, lorsqu’un

philosophe ne doit pas chercher ce que la souveraine puissance de Dieu peut faire, mais

doit juger de « la nature des choses par les lois que Dieu a établies en elles »77, l’objet

d’investigation suppose cette même démarche de différenciation entre nécessité et

possibilité, déduction rationnelle et représentations imaginatives.

Les séparations et distinctions que sait, doit ou doit savoir effectuer un

philosophe, le sont entre des éléments réels et des éléments qui ne le sont pas – fictions

ou êtres de raisons. Un tel souci du réel, de la part du philosophe, se rencontre encore

d’une certaine façon dans les deux premiers paragraphes bien connus du Traité

politique, où il est question de ces philosophes qui « n’ont jamais conçu de politique qui

puisse être en usage et être tenue pour autre chose qu’une chimère (…) ». Cette critique

est bien celle d’un type de « décrochage » fâcheux d’avec la réalité (qu’on l’appelle

pratique, usage ou expérience), cause d’un propos indissociablement imaginatif et

stérile. La préoccupation particulière d’un philosophe consiste donc à savoir

correctement identifier ce qui est assurément réel et à connaître ce qui est comme il est

en vérité. Un tel souci ne peut que reposer sur une démarche d’entendement.

c) L’entendement – naturel – au service de la vérité

Ne pas rire, ne pas pleurer mais comprendre, selon la fameuse formule souvent

et diversement reprise78, tel est le geste qui doit être celui du philosophe, geste de la

raison intéressée à l’identification de causes.

Au moment où la relation avec Blyenbergh commence à se dégrader, Spinoza lui

avoue qu’il le considérait jusque-là « comme un pur philosophe, n’admettant (…)

d’autre pierre de touche de la vérité que l’entendement naturel [naturalem intellectum]

76 II, IV, 7. Cas très rare ici, le terme est au singulier, renvoyant ainsi (comme pour la Lettre 4) à une

figure générale ; cette occurrence est en outre la seule de l’ouvrage à enseigner quelque chose de positif

sur la bonne démarche d’un philosophe, fut-ce par le biais d’une prescription négative. 77 PM, II, 12. 78 Éthique II, 32, sc. et 35, sc. ; III, préf. ; IV, 35, sc. ; TP I, 1 et 4 ; Lettre 30 de 1665 à Oldenburg.

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

107 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

et non la théologie »79. Que signifie donc cette expression d’« entendement naturel » ?

À un premier niveau, elle doit s’entendre dans une opposition tant à cette « lumière

surnaturelle » que se vantent de posséder les théologiens80 qu’à ce qui anime les

croyants. C’est ainsi que Spinoza, dans cette même Lettre du 13 mars 1665, oppose aux

« convictions (…) touchant l’entendement naturel », « la foi et l’espérance » dans

lesquels Blyenbergh désire, lui, persévérer. L’expression d’« entendement naturel »,

attribut du « pur philosophe », renvoie ainsi à l’autonomie d’une activité81. Par

conséquent, le caractère naturel de l’entendement renvoie, à un deuxième niveau, à sa

spontanéité, à ce que nous pouvons connaître et comprendre à partir de notre propre

puissance de former des idées selon les seules lois de l’entendement, telles que « nous

savons par l’entendement naturel qu’un poison donne la mort »82. L’entendement est

donc naturel en considération de sa « force native » et comprend nos « instruments

innés »83, lesquels renvoient en dernière instance, comme le développent les derniers

paragraphes du Traité de la réforme de l'entendement, aux propriétés des idées qui

constituent son essence. L’idée d’entendement naturel renvoie, à un troisième niveau,

cette fois génétique, à son statut modal, comme « partie de l’intellect infini de Dieu »84

et ne se conçoit dès lors que par l’attribut pensée. C’est pourquoi il doit être rapporté,

comme tout ce qui est modal, « à la nature naturée, et non à la naturante »85, et c’est

bien en ce sens, d’effet, qu’il peut être dit naturel.

Dans son usage déductif et démonstratif, l’entendement – et Spinoza, sur ce

point, s’inscrit bien en son siècle – est donc l’outil même du philosophe en quête de

vérité. Cet outil lui est propre. Non pas cependant en tant qu’il en serait seul possesseur

mais, comme Descartes le disait de la raison à l’ouverture du Discours de la méthode,

en tant qu’il en ferait un usage particulier (déductif, démonstratif) et, surtout, privilégié,

relativement à la révélation du théologien, à l’imagination et aux représentations

communes. C’est ainsi que les philosophes, qui « ne disposent que de leur lumière

79 Lettre 23 du 13 mars 1665. 80 TTP XIII. 81 Une autonomie telle que les enseignements de l’entendement naturel dispenseraient non pas de se

soumettre aux lois comme directives extérieures, mais de les recevoir et de s’y soumettre dans l’ignorance

et la passivité (TTP II). Cette autonomie se trouve encore marquée par ce « bonheur » et cette « paix »

qu’attribue Spinoza à celui qui cultive son entendement naturel et qui, comme tel, ne dépend pas de

« l’empire de la fortune (…) mais de sa propre vertu interne » (ibid. IV). 82 Lettre 19 du 5 janvier 1665 à Blyenbergh. 83 TRE, § 31 et 107. 84 Éthique II, 11, cor. 85 Ibid. I, 31.

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 108

naturelle »86, « s’efforcent de comprendre [conantur intelligere] les choses non par des

miracles mais par des concepts clairs (…) ; car ils savent assurément que Dieu gouverne

la nature selon ce qu’exigent ses lois universelles (…) »87. Par l’entendement, ils tirent

« des conclusions vraies »88, sont capables de « percevoir les vérités un peu hautes »89,

en tout cas ceux qui s’emploient, comme nous l’avons déjà mentionné, à juger des

choses « à partir des perceptions de l’entendement pur [puri intellectus] »90.

2/ Dimension pratique et différence éthique. Les affects du philosophe

S’efforcer de comprendre les choses par le seul entendement et non simplement

les imaginer, n’est pas sans conséquences « pratiques ». La Lettre 19 à Blyenbergh, déjà

citée, précise ainsi que pour le philosophe, se comporter d’après ce qu’il comprend,

c’est se situer « au-dessus de la loi », c'est-à-dire pratiquer la vertu, mais « par amour

pour elle, parce qu’elle est ce qu’il y a de meilleur et non parce que la loi l’ordonne ».

Se creuse ici la séparation d’avec le vulgaire, lequel a besoin des règles de vie qui ont

« forme de lois », mais également d’avec le prophète qui, par l’entremise de paraboles,

présente au vulgaire ces règles sous cette même forme. Comprendre dispense d’obéir, et

le chapitre II du Traité théologico-politique confirme ce rapport du philosophe à la

liberté, par opposition à une conduite soumise à la seule loi : Moïse enseigna en effet

aux Israélites à bien vivre non « en tant que philosophe, en s’appuyant sur la liberté de

leur âme, mais plutôt en tant que législateur, en les contraignant par l’empire de la loi ».

Se conduire « en tant que philosophe », sans doute Spinoza en livre-t-il encore

une détermination dans la Lettre 13 du 17-27 juillet 1663. Priant Oldenburg de

transmettre des réflexions à Boyle, il lui confie : « J’ai donc résolu de m’expliquer

ouvertement, et j’ai cru que cette franchise entière était ce qui devait être le plus

86 TTP XIII. 87 Ibid. VI. 88 CT II, III, 3. 89 Lettre 19 du 5 janvier 1665 à Blyenbergh. 90 TTP VI. L’expression « puri intellectus », fréquente sous la plume de Spinoza et apparaissant au § 91

du TRE, est ordonnée aux idées claires et distinctes par opposition aux « mouvements fortuits du corps »,

c’est-à-dire à l’imagination. L’entendement est spécifié comme pur pour être mieux dégagé de

l’imagination – en vue de l’établissement des idées vraies. C’est cette même idée que reprend la Lettre 37

du 16 juin 1666 à Bouwmeester ; elle insiste, quant à la méthode dans la recherche de la vérité, sur la

puissance propre de l’« entendement pur », de « diriger et enchaîner nos perceptions claires et distinctes »

selon des lois fermes, sans être dès lors exposé aux perceptions dépendant des accidents du corps ou du

hasard. La pureté de l’entendement renvoie donc à l’idée d’un entendement purifié, non contaminé, si

l’on peut dire, par la sensibilité, l’opinion ou l’imagination (voir encore TTP II, p. 113). De ce point de

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

109 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

agréable à des philosophes »91. Se trouve ici défini comme un rapport souhaité et

souhaitable, voire normal, entre philosophes, rapport fait de sincérité et d’ouverture. Et

si le philosophe apprécie cette franchise (agréable, plaisante), c’est d’une part qu’il la

sait adéquate et propice à son objet (la recherche de la vérité dans les sciences), mais

aussi à l’amitié, ce qui ne saurait être le cas, comme l’a précisé juste avant Spinoza, de

la flatterie et du mensonge ; d’autre part, et en conséquence, il sait qu’il n’y a rien à

craindre de cette franchise.

Le point de vue pratique renvoie encore à une dimension proprement éthique.

Qu’en est-il du philosophe à l’égard des affects ? N’en est-il pas touché comme

n’importe qui, et n’y aurait-t-il pas en même temps quelque affect qui lui serait propre ?

Comme nous le rappelle Cicéron, cité par Spinoza dans l’Éthique, « même les

philosophes qui écrivent des livres sur le mépris de la gloire, les signent de leur nom,

etc. »92. Comme tout un chacun, c'est-à-dire en tant que mode fini humain, il ne peut se

faire que le philosophe « ne soit pas une partie de la nature, et puisse ne pâtir d’autres

changements que ceux qui peuvent se comprendre par sa seule nature »93. Un désir de

gloire est donc compréhensible, même de la part d’un philosophe. Mais ce qui est

compréhensible n’est pas nécessairement acceptable. Ainsi, autant Spinoza, dans le

chapitre V du Traité théologico-politique, nommera Salomon « le Philosophe » en

raison de sa grande sagesse, autant le même Salomon a pu, dans sa conduite, se montrer

« indigne du comportement d’un philosophe, notamment lorsqu’il s’est abandonné aux

voluptés »94. Il y a donc comme un type de comportement digne d’un philosophe –

simple reprise, sans doute, de l’image d’Épinal du sage modéré et averti, sachant éviter

les excès dans les plaisirs.

Un comportement digne d’un philosophe mènerait-il alors à un type de plaisir

qui lui serait spécifique ? L’Éthique nous apprend que « la différence n’est pas mince

entre le contentement qui, par exemple, mène l’ivrogne et le contentement que possède

vue, il ne saurait être surprenant de voir Spinoza défendre le philosophe, comme devant Boxel qui s’était

appuyé sur des philosophes pour soutenir l’existence des spectres (Lettre 54 de septembre-octobre 1674). 91 « Constitui igitur, mentem meam apertissimè explicare ; et nihil hôc viris philosophis gratius fore

judicavi ». La traduction de M. Rovère (Flammarion, GF, Paris 2010, p. 113) est plus juste que celle

d’Appuhn – sans toutefois rendre (comme le fait Appuhn) le pluriel de ces « viris philosophis » : « J’ai

donc entrepris d’expliquer ouvertement ma pensée, et j’ai jugé que rien ne ferait plus plaisir à quelqu’un

qui est philosophe ». 92 III, définition 44 des affects, explication. 93 Ibid. IV, 4. 94 Resté célèbre pour sa sagesse, Salomon l’est aussi pour son amour des richesses et des voluptés. Le

Livre des Rois (XI, 3) ne lui attribue pas moins de 700 épouses et de 3000 concubines.

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 110

le philosophe »95. Dans le cadre d’un propos relatif à la disparité des expériences

affectives, Spinoza pose donc, au passage, l’existence d’un gaudium propre au

philosophe, explicitement articulé aux affects actifs et donc à l’exercice, qui lui est

également propre, de l’entendement. Quel est ce contentement ?

Il y a, de tout affect, « autant d’espèces qu’il y a d’espèces d’objets qui nous

affectent »96, car dans chaque passion, s’exprime, à titre de cause, la nature de l’objet

particulier qui nous affecte. Mais c’est d’une façon redoublée que les expériences

affectives se singularisent et se multiplient : fonction des espèces d’objets, les affects

diffèrent encore suivant les individus, autant que diffèrent leur désir, c'est-à-dire leur

essence97. Désir, joie, tristesse, comme expressions de l’effort de chaque individu pour

persévérer dans l’être, sont donc inséparables de la puissance propre de l’être particulier

qui l’éprouve, selon, de surcroît, des situations empiriques et des points de vue

irréductibles à des conditions générales. Même si deux amours se ressemblent quant à

leur forme générale et obéissent à une même règle de production, elles ne peuvent

jamais être identiquement vécues. C’est pourquoi, si l’on considère la seule espèce

humaine, le contentement est de nature variable suivant les individus. Dans ce gaudium

– qui désigne ici un sentiment d’épanouissement – ivrogne et philosophe diffèrent entre

eux « autant que l’essence de l’un diffère de l’essence de l’autre »98. Certes, Spinoza

n’exclut nullement un contentement de l’ivrogne – car sa nature rencontre aussi bien ce

par quoi elle donne la mesure de sa perfection –, et parle en termes de différence

(« differare »), non de hiérarchie. Cependant, seul est bon ce qui peut être défini à partir

de notre seule puissance, et notre puissance étant la raison, ce qu’il y a de meilleur est

de concevoir adéquatement toutes choses. Par conséquent, si la puissance du philosophe

est l’effort pour comprendre et agir autant qu’il le peut sous la conduite de la raison, le

contentement qui en est produit est plus fécond, plus stable et plus durable, comme il

ouvre à la fermeté et à la générosité. L’ivrogne, dans son amour ou désir immodéré de la

boisson, « est mené [ducitur] », alors que le philosophe, lui, « est maître [potitur] » de

ses satisfactions – ce qui renvoie à la distinction entre affects passifs et affects actifs.

Tous deux, bien qu’ils appartiennent à la même humanité, se distinguent radicalement

par le fait qu’ils exploitent leurs dispositions affectives selon des orientations inverses.

95 III, 57, sc. C’est la seule occurrence du terme « philosophe » qui, dans l’Éthique, n’a rien de critique. 96 Ibid. III, 56. 97 Ibid. III, 57. Et l’on pourrait ajouter, pour les hommes, tous les les effets de la culture et de l’éducation

reçue (ibid. III, 55, sc. et III, définition 27 des affects). 98 Ibid. III, 57, sc.

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

111 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

Si ce qui importe à la raison du philosophe ne tient pas à l’actualité même de la chose

mais à son essence, à sa vérité et à son éternité, il se rendra alors moins sensible à son

immédiateté ; comme l’écrit F. Alquié, « l’ivrogne ne se soucie pas de sa santé : il veut

boire. La raison nous conduit, au contraire, (…) à négliger un bien présent et moindre

pour un bien futur plus grand, et à éloigner ce qui, bon dans le présent, sera cause d’un

mal futur »99.

À ce contentement propre au philosophe s’articule, d’une part, le prologue du

Traité de la réforme de l'entendement, où le philosophe est amené à se détacher des

biens communément poursuivis (richesses, honneurs et plaisir) pour rechercher un bien

véritable capable de produire « une éternité de joie continue et souveraine »100. D’autre

part, le chapitre V du Traité théologico-politique montre que le philosophe, qui connaît

« par la lumière naturelle l’existence de Dieu et les autres dogmes (…), est parfaitement

heureux, bien plus heureux que la foule, car il n’a pas seulement des opinions vraies, il a

encore un concept clair et distinct ». Il est donc bien un bonheur du philosophe,

différent, lié à l’activité de l’entendement dans son travail propre de connaissance et de

compréhension, de telle sorte que le philosophe affirme par là ce que nous pourrions

appeler sa différence éthique.

L’ensemble des attributs positifs du philosophe présentent une grande

homogénéité. Théoriquement, il est un homme d’entendement par différence d’avec

l’imagination et, en cela, soucieux d’un réel devant toujours être, comme tel,

soigneusement distingué des formes de non réalité. Pratiquement, il est un homme de

liberté, démarqué des attitudes d’obéissance et de soumission qu’il sait reconnaître. La

compréhension du réel comme tel est liberté et génératrice d’un contentement supérieur.

IV. EXAMEN DE DEUX PROBLÈMES CONSÉQUENTS

1/ Ambivalences des philosophes et statut du discours critique

99 Servitude et liberté selon Spinoza, Centre de Documentation Universitaire (Les Cours de la Sorbonne),

1959, repr. dans Leçons sur Spinoza, Paris, La Table Ronde, 2003, p. 339. 100 Certes, il s’agirait encore de s’assurer que l’itinéraire réflexif et l’exigence éthique qui font l’objet de

ce prologue sont bien ceux d’un philosophe – un terme qui n’est présent qu’une seule fois dans le TRE (§

27, n.). Mais sans doute la question est-elle mal formulée, au sens où celui même qui entreprend un tel

itinéraire et assume cette exigence, c'est-à-dire aussi celle d’une réforme de l’entendement, est

précisément philosophe.

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 112

Les philosophes se voient donc traités par Spinoza selon des usages et des tons

certes variés mais moins « éclatés » qu’on ne le laissait entendre au début de cette étude.

Pour autant, le propos à leur égard, à travers l’ordre d’exposition que nous avons

proposé, n’est pas sans présenter d’importantes ambivalences.

On les voit en effet osciller entre rationalité et ignorance : ils sont ceux qui

évitent et combattent les préjugés101 et, tout à la fois, qui se montrent capables de

sophismes et coupables d’ignorance102. Si les philosophes doivent savoir différencier le

réel des formes de non réalités et s’en tenir à ce qui est, ils sont en même temps, en

matière politique, hors des réalités de la nature humaine et ne songent qu’à des utopies

stériles. Dans leur rapport au commun et au vulgaire, autant on les voit l’emporter du

point de vue du discours, autant sont soulignées leur incohérence et leur confusion ;

autant ils sont hommes de raison tandis que le commun est « enclin par nature à la

superstition », autant, concevant « les affects dont nous sommes tourmentés comme des

vices (…) »103, ils ne diffèrent guère des superstitieux qui « s’entendent plus à réprouver

les vices qu’à enseigner les vertus »104. Si donc Spinoza critique et parfois fustige les

philosophes, nous l’avons vu aussi bien les défendre, s’engager auprès d’eux comme

l’un des leur – surtout s’il y a menace, danger ou dépréciation illégitime. De là un

premier problème, portant sur la signification de cette ambivalence : touche-t-elle les

mêmes penseurs, qui seraient alors plus ou moins philosophes selon les moments, ou

bien renvoie-t-elle à deux catégories bien distinctes de philosophes, comme s’il en était

de « bons » et de « mauvais », voire de « vrais » et de « faux » ?

D’un côté – même si le cas de figure est rare – on peut dire qu’il s’agit des

mêmes philosophes qui, tour à tour, font montre de la rigueur la plus louable comme des

inconséquences les plus fâcheuses. Descartes en est le meilleur exemple, qui s’est

« appliqué à expliquer les affects humains par leurs premières causes »105 mais fut

amené, pour soutenir la possibilité d’un empire absolu de l’esprit sur les affects, à

adopter « une hypothèse plus occulte que toute qualité occulte »106. Et s’il faut le saluer,

avec Bacon, d’avoir voulu accorder les phénomènes avec la raison, tous deux, dans le

même temps, n’ont pas été sans avoir « commis quelque erreur »107. Sous un autre point

101 TTP, préface. 102 CT I, VII, 9. 103 TP I, 1. 104 Éthique IV, 63, sc. 1. 105 Ibid. III, préface. 106 Ibid. V, préface. 107 Lettre 13 du 17-27 juillet à Oldenburg. Voir encore Lettre du 10-26 août 1661 à Oldenburg.

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

113 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

de vue, ce sont les mêmes philosophes qui, soucieux de vivre selon la raison, de

conduire leurs désirs et de reconnaître les biens dignes d’être poursuivis, se découvrent

enclins comme tout un chacun – et Spinoza semble bien le reconnaître avec Cicéron – à

cet affect bien peu philosophique qu’est la gloire – en sa forme passive tout du moins –,

en dépit même des verdicts qu’ils prononcent contre elle.

Mais d’un autre côté, l’ambivalence peut aussi bien renvoyer à un net départ

qu’opère Spinoza entre les philosophes. Les « philosophes nouveaux »108 n’ont

certainement pas à ses yeux le même statut que les Scolastiques, et l’on sait le peu de

considération qu’il nourrit à l’égard des Sceptiques109. Spinoza, comme nous l’avons

vu, a ses préférences et ses affinités. À l’appui de cette thèse, chose digne d’être mise en

relief, tout comme il peut parler de « vraie » philosophie110, il n’est pas sans parler, à

plusieurs reprises, de « vrai » voire de « pur [merum] » philosophe111. Ce propos

normatif inclinerait donc à penser qu’il y aurait, à côté de ceux qui seraient de vrais

philosophes, d’autres qui, au fond, ne le seraient pas ou pas vraiment.

Mais l’ambivalence qui marque le traitement des philosophes ne ferait-elle pas

l’objet d’une troisième signification : celle d’une distinction entre une figure idéale du

philosophe et l’effectivité historique de ceux dont il parle ? En d’autres termes, alors que

le discours « négatif », prépondérant, viserait des penseurs réels, le discours « positif »,

lui, considèrerait la figure plus générale du ou des philosophes, souvent dans ce qu’ils

sont mais plus encore, démarche peut-être paradoxale de la part de Spinoza, dans ce

qu’ils devraient être. On remarquera que ceux qui sont la cible de la critique

spinozienne, ceux dont sont mises en évidence les insuffisances et les inconséquences,

les erreurs ou les confusions, sont tous des penseurs précis, porteurs passés ou

contemporains de doctrines et de conceptions déterminées. Sauf pour Descartes dans la

préface à la partie V de l’Éthique et pour les Pensées métaphysiques, où l’occurrence

n’a que le statut d’une hypothèse112, il est toujours question, dans ce cadre, des

philosophes113. Même lorsque le tout début du Traité politique évoque ceux qui « n’ont

jamais conçu de Politique qui puisse être en usage et être tenue pour autre chose qu’une

108 TRE, § 27, n. (il est fait ici allusion à Bacon). 109 Cf. TRE, § 47 et 48 ; CT II, VII, 9 ; Lettre 56 de septembre-octobre 1674 à Boxel. 110 Lettres 15 du 3 août 1663 à Meyer et 76 de décembre 1675-janvier 1676 à Burgh. 111 Respectivement CT II, IV, 7 et Lettre 23 du 13 mars 1665 à Blyenbergh. 112 I, 2. 113 Des philosophes qui ne sont jamais cités. Soit ils sont aisément identifiables (par exemple CT I, VII, 2

sur les attributs de Dieu ; PM II, 6 sur le concept de « Vie » ; Éthique I, 33, sc. 2 sur l’intellect de Dieu) ;

soit ils le sont plus difficilement (par exemple Lettre 12 du 20 avril 1663 à Meyer sur l’infinité de la

substance étendue ; TTP VI, sur la tendance à raconter ses opinions plutôt que les faits mêmes).

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 114

Chimère », il ne s’agit pas d’un jugement à l’encontre des philosophes en général – ni

donc à l’encontre de la philosophie en général114. A contrario, ce sont les philosophes,

en général, qui donnent lieu, dans l’immense majorité des cas, à un discours « positif ».

Autrement dit, dès que le discours change et se fait plus avantageux, voire prescriptif, ce

n’est plus de philosophes effectifs dont parle Spinoza (d’où l’usage bien plus fréquent

ici du singulier). C’est ainsi que confondre un être réel avec un être de raison est « ce

qu'un vrai Philosophe doit éviter avec soin »115 ; que connaître les différences entre

divers liquides est chose « qui répond au désir de tous les philosophes »116 ; qu’« un

philosophe ne cherche pas ce que la souveraine puissance de Dieu peut faire (…) »117 ;

ou encore que les philosophes ne doivent pas être choqués par le langage

anthropomorphique des prophètes118. Le positif se dit dans le général, le négatif, dans le

particulier.

Tirons au moins de cette observation l’enseignement suivant : il est peu de

philosophes « réels » qui, aux yeux de Spinoza, soient véritablement dignes de

louange119, et aucun qui n’ait à être considéré comme un modèle.

2/ Non-philosophie ou bien philosophie erronée ?

Que le discours critique vise toujours des philosophes précis et que cette critique

se fasse parfois très appuyée à l’encontre de quelques philosophes, ignorants ou laissant

aller l’imagination à ses délires, voilà qui soulève une question – évoquée plus haut :

s’agit-il encore ici, aux yeux de Spinoza, de philosophes et de philosophie ?

On pourrait d’abord penser que la philosophie de ces philosophes-là n’en est pas

vraiment une. Elle procède le plus souvent de l’imagination, de la disposition du corps,

alors que ce qui est digne de s’appeler philosophie ou activité philosophique ne saurait

ainsi se solder par de l’ignorance ou de la confusion. Mais cette thèse se heurte à une

114 Selon L. Bove, « ce passage vise indirectement Hobbes dont la théorie du corps politique tombe aussi

dans le domaine des constructions imaginaires des philosophes » (Traité politique, Introduction et notes

par L. Bove, Paris, Le livre de Poche, 2002, note 4, p.156). Selon C. Ramond, le vocabulaire qu’emploie

là Spinoza renvoie à plusieurs passages de Platon (Traité politique, op. cit., p. 275). 115 CT II, IV, 7. 116 Lettre 6 à Oldenburg. 117 PM II, 12. 118 Lettre 19 du 16 janvier 1665 à Blyenbergh. 119 Rappelons cependant l’hommage qu’il formule dans la préface à la partie III de l’Éthique : « Il n’a pas

cependant manqué d’hommes très éminents [viri praestantissimi] (et nous avouons devoir beaucoup à

leur travail et leur activité) pour écrire bien des choses remarquables sur la façon correcte de vivre, et

donner aux mortels des conseils pleins de sagesse ».

Spinoza et “les philosophes”: essai d’une topologie

115 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017

double difficulté : elle sous-tend en effet soit que quelques philosophes seulement

méritent cette appellation, soit que la seule philosophie authentique possible est la

« vraie » philosophie, celle-là même dont Spinoza parle à Burgh dans la Lettre 76. Or,

d’une part, on ne voit pas bien qui, pour Spinoza, serait ici pleinement philosophe,

puisqu’il faut mettre en évidence même les erreurs des « Modernes » comme Bacon ou

Descartes120. D’autre part, rien ne permet de soutenir que Spinoza se pense comme le

seul philosophe ou bien le seul à développer une pensée qualifiable de philosophique ;

prétendre comprendre la « vraie » philosophie, ce n’est pas se prétendre le seul à

véritablement philosopher. Mais surtout, en tant qu’homme, c'est-à-dire en tant que

mode fini, le philosophe ne peut pas ne pas suivre l’ordre commun de la nature. Il ne

saurait donc, comme quiconque, échapper à l’influence des multiples causes extérieures,

fussent-elles celles de l’autorité et de la tradition. C’est pourquoi sa puissance, comme

celle de tout un chacun, se trouvant « extrêmement limitée, et infiniment surpassée par

la puissance des causes extérieures »121, il faut reconnaître, même s’il fait de son mieux,

qu’il n’est pas toujours au fait de sa puissance de comprendre – comme de vivre selon la

raison. En témoignent, comme on l’a vu, tous ceux qui sont en proie à ce désir de gloire

qu’est l’ambition, tous ceux dont on a vu les discours s’appuyer sur des images voire

des chimères, et même, avec l’étonnement, se perdre dans la particularité.

On est donc conduit à penser que Spinoza admet qu’une philosophie, même

erronée, en laquelle l’imagination puisse prédominer sur l’entendement, demeure bien

une philosophie, et à rejeter ainsi la thèse d’un partage entre de « vrais » et de « faux »

philosophes. Philosopher, cela n’exclut pas de faire erreur, de ne pas toujours bien

définir ou distinguer les mots, de prendre un être de raison pour un être réel ou encore

de comprendre les choses par les causes finales. Faire erreur ou penser inadéquatement

sur tel ou tel point, ce n’est donc ni cesser à certains moments d’être philosophe, ni être

un usurpateur ou un raté. Platon parlant de l’harmonie céleste, Aristote promouvant

l’étonnement, Sextus Empiricus, l’incertitude généralisée ou Descartes, un libre pouvoir

de la volonté, n’en font pas moins de la philosophie, aussi discutable soit-elle. Les

rectifications et corrections auxquelles procèdent par exemple les Pensées

métaphysiques ne placent donc pas hors du champ de la philosophie ceux qui (tels

Aristote ou Heereboord) en sont l’objet.

120 Et même si un Machiavel, dans le TP, a grâce aux yeux de Spinoza, ce n’est que d’un point de vue

particulier, non de celui de sa pensée en général 121 Éthique IV, appendice, chap. XXXII.

Philippe Danino

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 86-116, 2017 116

VRAIE PHILOSOPHIE ET VRAI PHILOSOPHE

Ce qui vient d’être dit ne conduirait-il pas à distinguer entre « vrai philosophe »

et « vraie philosophie », et à assigner une certaine tâche à cette dernière ? Car si l’idée

de philosophie peut faire l’objet d’un propos général, le philosophe, lui, est incarné ;

aussi sage soit-il, il ne peut manquer d’être sujet à l’erreur, à l’ignorance et à

l’imagination. N’est-il pas alors celui dont la tâche serait de réduire, si l’on peut dire, la

part de l’inadéquat ? Voilà qui donne un sens à la philosophie elle-même, qu’il faut

prendre garde de confondre avec le philosophe. Si l’on pose que la « vraie philosophie »

est en soi pure de toute dimension imaginative, le « vrai philosophe », qui n’en est pas

moins un mode fini, est celui dont l’activité consisterait précisément à travailler –

comme le fait Spinoza à l’égard du langage ou de certains correspondants tels

Blyenbergh ou Boxel – à la distinction de l’imagination et de l’entendement, de façon à

gagner, par ce dernier, une connaissance du réel de plus en plus adéquate122.

Recebido em: 20/06/2017

Aprovado em: 19/09/2017

122 Ce qui n’empêche, et sur la base même d’une telle distinction, de prendre utilement appui sur un

certain type, ou plutôt un certain usage, maîtrisé, de l’imagination, usage que développent les propositions

5 à 14 d’Éthique V – dans un but d’associer des idées des images des choses à l’idée de Dieu.

117 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, 2017

Tradução

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017 118

Fernand Deligny

O agir no lugar do espírito

Pascal Sévérac

College International de Philosophie

Maître de conférences à l’Université Paris-Est Créteil

Resumo: Um lugar do espírito é um lugar do sentido, muito frequentemente

entendido como lugar da palavra. Qual é, então, o lugar daquelas crianças

autistas, mudas – com as quais Deligny viveu e pensou? Recusando-se a

“semelhantizá-las”, mas ao mesmo tempo buscando criar rede com elas, F.

Deligny encoraja o agir – intransitivo – contra o fazer e sua intencionalidade,

próprio ao espírito consciente e voluntário. Com as crianças autistas, aprende-se

que o agir é mais arcaico que o espírito – o agir toma o lugar e o posto do

espírito. Mas, no próprio lugar do espírito, há também uma natureza psíquica

agente, um automatismo espiritual que é um aparelho de rastreagem, um

aparelho de traçagem e de tramagem do seu próprio lugar, com os outros.

Palavras-chave: Deligny, Espinosa, autismo, espírito, consciência,

intencionalidade, agir, fazer, comum, automatismo, rastreagem.

Habitualmente, fala-se com mais naturalidade do “espírito de um lugar” que de

“um lugar do espírito”, fórmula que pode soar estranha aos ouvidos do senso comum. O

espírito de um lugar remonta à sua composição, natural ou artificial, às impressões

afetivas que suscita, às emoções que provoca: recomenda-se, geralmente, respeitar ou

salvaguardar o espírito de um lugar, que vira lugar patrimonial, santuarizado. Decerto, o

espírito do lugar apega-se à subjetividade que é afetada pelo lugar, mas parece

pertencer, sobretudo, ao próprio lugar: seria antes de tudo o lugar que faz seu espírito,

isto é, os sentimentos, as ideias, a história que ele envolve. Pensar, em contrapartida, a

existência de lugares do espírito, é antes tomar o espírito como um dado de fato, uma

realidade, donde se pergunta onde ela poderia se encarnar, em que lugar privilegiado

poderia ser apreendida. O lugar do espírito seria como que a localização ou a

espacialização sensível do espírito – realidade caracterizada, no entanto, bem amiúde,

como insensível, inextensa ou imaterial.

Se o espírito, portanto, não é rejeitado como não-ser ou ficção (o que, em uma

filosofia, pode sempre ocorrer), ele é mais frequentemente entendido: ou como “função”

própria ao corpo (função orgânica se é pura e simplesmente assimilado ao cérebro, ou

inorgânica se é definido como um efeito do cérebro); ou então como entidade imaterial

distinta do corpo. Contudo, seja qual for a realidade que se lhe atribui (material às

vezes, imaterial frequentemente) e o estatuto que se lhe confere (sopro de vida,

119 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017

princípio de conhecimento, substância ou modalidade, instância individual ou

coletiva...), admite-se na maioria das vezes que o reconhecimento da localização de um

espírito se dá através de certas obras significantes: obras que têm um sentido, utilitário

ou estético; obras que têm uma finalidade ou que questionam a finalidade, como

algumas obras de arte podem fazer; obras, em todo caso, que se dirigem a outros

espíritos e são suscetíveis de serem reconhecidas por eles. Haveria espírito, portanto,

onde há expressão de uma inteligência, ou até mesmo manifestação do seu inverso, a

besteira.

Em suma, haveria lugar do espírito onde houvesse lugar significante: lugar de

um sentido eventualmente produzido por um espírito, lugar de um sentido reconhecido,

em todo caso, por um espírito. Se um lugar do espírito não é necessariamente um lugar

fabricado por um espírito, um lugar onde tenha se encarnado, se materializado, se

naturalizado um espírito, ao menos é um lugar onde o espírito se sente em casa, ali onde

ele pode, mesmo que imaginariamente, “achar-se entre os seus”.

Até mesmo Pascal, ao nos tornar sensíveis ao nosso descentramento, à nossa

instabilidade entre os dois infinitos, abre caminho para um reconhecimento paradoxal de

um lugar do espírito. O pensamento do infinito, por um lado, certamente revela nossa

incompreensão quanto ao que somos, espírito1 e corpo unidos. Somos então

arremessados na mais extrema das confusões:

Disso resulta que quase todos os filósofos confundem as ideias das coisas, e falam das

coisas corporais espiritualmente e das espirituais corporalmente [...]. E ao falar dos

espíritos, eles os consideram como em um lugar e lhes atribuem o movimento de um

local a outro, que são coisas que pertencem apenas aos corpos.2

Mas, por outro lado, essa confusão, essa incompreensão de si no infinitamente

infinito (nisto que nem pode muito bem ser considerado como um lugar: o universo sem

confins) não é desaparecimento total da possibilidade de um lugar do espírito: pois

“afinal, é o caráter mais sensível da onipotência de Deus, que nossa imaginação se perca

neste pensamento.”3

1 [Nota dos tradutores: A tradução do termo esprit, do francês para o português, é uma questão muito

debatida, uma vez que a língua francesa não possui palavra que distinga “espírito”, com suas diversas

significâncias, de “mente”. Optamos traduzir por “espírito” ao longo do texto, respeitando a brincadeira

do autor ao falar do “espírito de um lugar”. Quando se tratar de Espinosa, porém, sabe-se que as traduções

francesas se acostumaram a verter a palavra latina mens por esprit, com toda confusão conceitual que isso

acarreta, ao passo que a língua portuguesa tem na palavra “mente” uma herança do latim. Portanto, para

os textos de Espinosa, a tradução que escolhemos verterá mens por “mente”, e não “espírito”.] 2 Fragmento do texto “Disproportion de l’homme”, em Pensées (Sellier 230, Brunschicg, Lafuma 199). 3 Ibid.

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017 120

Ainda haveria um sentido nessa confusão das marcações, nessa perda do sentido.

A partir desta concepção inacabada de um lugar que verdadeiramente nem é um, de um

lugar indeterminado e incompreensível, haveria a possibilidade de ser sensível ao

espírito infinito de Deus. O infinito do universo ainda daria sinal para um espírito: o

silêncio desses lugares pode, certamente, provocar um pavor, mas este próprio pavor é

significativo – e é por isso que, à maneira de Pascal, pode-se dizer algo a respeito dele.

Se, por excelência, um lugar do espírito é o lugar de um sentido, de um sentido

escondido ou pronunciado, de um sentido transmitido ou simplesmente recebido, então

parece difícil pensar um lugar do espírito que não seja um lugar de palavra, ou ao

menos, de linguagem. É pelo uso dos signos, visuais ou sonoros, que rastreamos, no

mundo finito dos homens, a presença do espírito: mais precisamente, a fala, enquanto

expressão singular de um sistema de simbolização do mundo, é frequentemente

apreendida como o espaço de presença de um espírito em ato. Sem dúvida, pode-se

contestar, à maneira de Joëlle Proust (na obra Como o espírito chega às feras4), a ideia

cartesiana de que a ausência de uma linguagem externa, isto é, a ausência de uma

capacidade linguística pública, seja a prova de uma ausência de linguagem interna, e

assim de um espírito: não é porque um ser não fala que ele está necessariamente

desprovido de espírito. Mas é verdade que a fala – na medida em que não se reduz à

simples vocalização mecânica ou a uma pura imitação da linguagem humana (como

seria o caso do papagaio), portanto na medida em que ela é verdadeiramente uma

composição ou uma combinatória de signos destinados a se fazerem compreendidos –

pode com razão ser considerada como o indício da presença de um espírito. O espírito

poderia assim ser localizado pelo uso de signos articulados.

Entretanto, o que acontece àqueles que, apesar de reconhecermos pertencerem à

espécie humana, não utilizam nenhuma linguagem articulada, nem fala, nem sequer

“linguagem de signos”? O que acontece àqueles que parecem ter a maior incapacidade

não apenas para usar a linguagem, seja ela exterior ou interior, mas, sobretudo, para

realizar a mínima atividade significante, seja ela qual for? Difícil recusar-lhes o espírito:

tal ideia, geralmente, nem mesmo vem... ao espírito; mas é igualmente difícil dizer a

quê esse espírito se liga, em que lugar pode-se localizá-lo, ele ou suas manifestações.

Pensemos aqui nessas crianças que costumamos chamar de autistas, ou pelo

menos em algumas dentre elas: sobre o autismo, sobretudo nestes últimos anos, houve

4 Comment l'esprit vient aux bêtes, NRF Gallimard, Paris, 1997, p.26

121 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017

uma quantidade considerável de trabalhos, que principalmente trouxeram à tona o elo

entre autismo e genética. Não é o caso aqui de abrir caminho nesta literatura, muitas

vezes repleta de estudos interessantes5. Fiquemos apenas com o que diz um autor

inclassificável, que pode ser qualificado de “educador” (mesmo que ele evite tal

definição), de médico-escritor ou simplesmente de poeta: Fernand Deligny.

Recentemente foram publicadas, pelas edições Arachnéen, suas obras, textos curtos,

romances, ensaios peculiares, enfim, narrativas6.

Quem foi Fernand Deligny (1913-1996)? Primeiramente, professor primário em

uma classe especial, em Paris (para aqueles então chamados de “débeis mentais leves”),

depois, durante a guerra, no hospital psiquiátrico de Armentières, foi nomeado em 1945

diretor do primeiro COT – Centro de Observação e Triagem do Norte, lugar aberto onde

adolescentes foragidos de casas de correção ou de proteção conseguiam se refugiar.

Depois da guerra, ele se filia ao partido comunista e, em 1949, anima “La Grande

Cordée”, associação presidida por Henri Wallon e que se dedicava ao acolhimento,

sobretudo em Albergues da Juventude, de crianças ditas inadaptadas, delinquentes e

caracteriais: “La Grande Cordée” receberá adolescentes até início dos anos 60. Ao

longo destes anos, de 1962 a 1964, Deligny dirige Le moindre geste, verdadeiro “filme

de loucos”, rodado na região de Cévennes. Em 1965-66, ele é convidado por Jean Oury

e Félix Guattari para trabalhar na clínica de La Borde (próxima a Blois); e no fim de

1966, lhe é confiado o cuidado de Jean-Marie, então com 12 anos de idade,

diagnosticado como “encefalopata profundo”: Janmari se tornará o verdadeiro

companheiro de Deligny, aquele com quem, num certo sentido, ele aprendeu tudo. Do

final dos anos 60 até sua morte, ele se ocupará de crianças autistas, próximo a Monoblet

em Cévennes, em sua “jangada”, como ele dizia.

A originalidade do trabalho de Deligny, em especial de seu trabalho de escrita, é

a de pontuar essa vacância de linguagem própria às crianças autistas das quais ele se

ocupa, assim como de todos os efeitos produzidos por tal ausência. Ele admite que a

linguagem é necessária, embora não suficiente, à tomada de consciência de si, ao

reconhecimento de sua própria identidade, de sua própria unidade. Poderíamos ainda

objetar, principalmente na esteira de Nietzsche e Wittgenstein, que esta definição de

uma identidade de si é apenas uma ficção, uma invenção da gramática. Talvez. O fato é

5 Para uma síntese recente, ver Jacques Hochmann, Histoire de l’autisme, Odile Jacob, Paris, 2009. 6 Deligny, F. Œuvres, edição estabelecida e apresentada por Sandra Alvarez de Toledo. Com textos de

Michel Chauvière, Annick Ohayon, Anne Querrien, Bertrand Ogilvie, Jean-François Chevrier,

L’Arachnéen, Paris, 2007.

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017 122

que o autista, para Deligny, não tem acesso a esta identidade de si, real ou fictícia, que

torna possível o uso de uma fala articulada: uma fala para dizer o mundo e se dizer no

mundo – “a identidade consciente-inconsciente fica pendurada no mesmo prego que o

discurso”7. Os sintomas clínicos, pelos quais se estabelece um diagnóstico de autismo,

são geralmente os seguintes: a criança é indiferente aos outros, ou ao menos reage de

modo bastante estranho à presença deles; ela não fala ou tem uma linguagem inabitual

(repete palavras ou frases ouvidas como um eco) – o próprio Deligny se encarregava de

crianças encerradas em um mutismo profundo e que em sua época podiam ser

qualificadas de crianças com “severo retardo mental”. A criança autista parece não se

interessar pelos objetos ou, quando se interessa brinca com eles de um modo estranho

(como, por exemplo, quando sacode ou gira os objetos de maneira repetitiva); o mesmo

acontece com seu próprio corpo: ela balança as mãos de modo repetitivo, gira e algumas

vezes bate a cabeça contra a parede – o que chamamos as “estereotipias”. Dizemos que

o autista não tem uma consciência unificadora de seu corpo, vivendo seu corpo como

corpo disperso, fragmentado, sem identidade fixa e definida.

Para Deligny, não se trata de minimizar os efeitos desta vacância de linguagem,

desta incapacidade de simbolizar que seria própria do autismo:

[...] o indivíduo, sem sombra de dúvida, existe. Ou sabe disso, ou não tem ideia; ou ele

se diz isso, ou dizer-se lhe escapa, ou antes, ele escapa do dizer-se; ele escapa seria

dizer demais, uma vez que “ele”, por não dizer-se, só existe para aqueles que dizem e

cuja consciência e inteligência funcionam segundo o modo que é próprio do homem-

que-somos.8

O homem-que-somos é “o ser consciente de ser” – expressão frequente sob a

pluma de Deligny, designando aquele que pode, pela linguagem, identificar um “eu” e

um “ele”. Não haveria, contudo, em sua obra, uma pressa muito grande ao opor, assim,

o homem ordinário, consciente de ser, e a criança autista, ser “a-consciente” segundo

sua fórmula? O que nós sabemos sobre a consciência do autista? Trata-se de uma

ausência radical de consciência ou de uma consciência de si modificada? Deligny

realmente não entra nesse questionamento. Mas, quando ele utiliza o “a” privativo para

qualificar o autista como “a-consciente”, ele ao menos quer dizer isso: a consciência de

7 Le Croire et le Craindre, em Fernand Deligny. Œuvres, L’Arachnéen, p.1124. Observar : CC. 8 L’Arachnéen et autres textes, p.88. [Nota dos tradutores: Para os excertos do Arachnéen, consultamos

(fazendo certas alterações) a excelente e recente tr. br.: O Aracniano e outros textos, tr. Lara de

Malimpensa, São Paulo, edições n-1, 2015.]

123 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017

si da criança autista não é a mesma que a consciência de si ordinária; a rigor, é possível

até afirmar que a consciência de “si” (de um si unificado) não existe no autista.

Com isso, deveríamos concluir que o autista não tem nenhuma consciência de

objeto – nem de si, nem dos outros, nem das coisas? A grande questão que Deligny se

coloca é, antes de tudo, esta: podemos dizer alguma coisa da consciência da criança

autista que esteja em relação com nossa própria consciência? Podemos falar da

consciência delas a partir da nossa?

Protejam-se de qualquer tipo de projeção sobre as crianças autistas, responde

Deligny, que não pára de lutar contra as várias figuras que a identificação toma, essa

leitura do outro pela unificação simbólica ou linguística de um eu. O “nome” e o sujeito

vão de ombro a ombro, e o ser falante que somos tem uma propensão a identificar e

unificar pelo nome aquilo que percebe – e, portanto, a apostar na existência de uma

subjetividade para aqueles que lhe parecem ser, apesar de tudo, semelhantes. Ora, para

Deligny, mesmo chamar Janmari pelo nome já marca o abuso de linguagem: ao nome

próprio para o qual “se” devém um sujeito singular, Janmari não responde. Este nome e

a identificação que ele autoriza existem para outro, não por si. O chamado, nesse

sentido, é vazio. Quando Deligny fala das crianças que lhe rodeiam, ele frequentemente

fala de casos singulares; no entanto, estes casos singulares são ao mesmo tempo seres

anônimos: seres sem interioridade, é o que diriam? Não se trata tanto de negar a

interioridade, mas de não pressupô-la, projetando-a sobre o outro:

Onde se entrevê o logro desaventurado disso que geralmente é admitido como processo

necessário à persistência de nossa espécie e que se chama identificação, isso pelo qual o

sujeito deve sim passar, de bom ou mau grado.9

O gesto fundamental da abordagem deligniana do autismo consiste, portanto, em

não “semelhantizar”: respeitar a criança autista é antes reconhecer que ela e nós não

somos da mesma família, que nela não há instância psíquica – razão teórica ou prática,

consciência de si, projeto ou intenções – que possa fazer dela nosso próximo, ou nosso

semelhante:

Quando eu leio jornais ou livros – eu não tenho televisão – percebo que há ali

um excesso constante por semelhantizar: colocar-se no lugar de, e se fosse

comigo? A identificação chega ao cúmulo. Acho de mau gosto esta

semelhantização, mesmo que ela parta de um “bom sentimento”. Por que tomo

esta posição? Porque falo de um lugar em que o outro, a criança autista que vive

9 CC, p. 1209.

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017 124

a vacância de linguagem, é colocado em uma camisa de força quando não

respeitamos o fato de que a identidade consciente/inconsciente entre “ele” e nós

está longe de ser uma certeza, um a priori. Semelhante? De modo algum. Irmão?

Certamente não. Se, comparado à linguagem, isto que geralmente funciona no

simbólico neste caso não funciona, então irmão ele não é, este ELE-aqui. Não

somos da mesma família.10

Ao mesmo tempo, todo o andamento de Deligny está orientado na busca de uma

identidade comum, de uma outra identidade que não linguística ou simbólica, uma

identidade que faça comunidade e que, no entanto, não é para ser interpretada, para ser

decifrada. O trabalho de Deligny inscreve-se, portanto, nesta tensão: recusa a

“semelhantizar”, e, no entanto, busca do comum, dessa rede ou dessa tecedura pela qual

a comunidade se faz. Portanto, respeitar o ser autista não é buscar semelhantizá-lo; nem

tampouco “respeitar o ser que ele seria enquanto outro; é fazer o que for preciso para

que a rede se trame. Fazer o que for preciso? Não há nada a fazer, a não ser permitir que

a rede se faça.”11

Em um sentido, esta busca do comum é primeiramente negativa: trata-se antes

de impedir-se de interpretar e de assinalar no outro as atividades significantes, pelas

quais, de ordinário, rastreia-se a existência de um espírito. A interpretação é a atividade

que dá sentido, ou que descobre o sentido oculto naquilo que é dado. Perguntar-se

também onde há espírito, individual ou coletivo, buscar quais são os lugares do espírito,

conduz frequentemente a interpretar alguns espaços como significantes, certas obras do

trabalho humano como podendo ser reconhecidas pelo espírito como localidade do

espírito.

A atividade de Deligny consiste, portanto, num primeiro sentido, em substituir a

interpretação pelas iniciativas, que podem ser lúdicas ou laboriosas, gestuais, escritas ou

filmadas. No lugar de interpretar o espírito a partir de seus traços, de suas obras, de suas

transformações da natureza, ou na natureza, trata-se de deixarem advir iniciativas, de

permitir gestos e relacioná-los. É neste primeiro sentido, portanto, que deve ser

entendido o título que demos a este texto: “o agir no lugar do espírito”. O agir substitui

o espírito; o agir toma o lugar e o posto do espírito, pois quanto ao espírito no fundo,

não há do que se preocupar.

Estávamos em busca de um modo de ser que lhes permitisse existir, nem que tivéssemos

de modificar o nosso; e não levávamos em conta as concepções do homem, fossem

10 CC, p. 1122. 11 L’Arachnéen et autres textes, p. 95.

125 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017

quais fossem, e de forma alguma porque quiséssemos substituir tais concepções por

outra; pouco nos importava o homem; estávamos em busca de uma prática que excluísse

de saída as interpretações que se referem a um código; não tomávamos as maneiras de

ser das crianças por embrulhadas mensagens cifradas e dirigidas a nós.12

Portanto, nada de interpretação; eis uma proposta, em Deligny, um tanto

decepcionante para quem busca chaves de leitura do mundo dos autistas ou de teses

sobre a existência do espírito humano e suas manifestações. Nada de interpretação, mas

antes, permissões: “permitir” é outro desses termos aos quais Deligny se afeiçoa (e que

vai dar título a um dos capítulos de Le Croire et le Craindre). Permissão para entender

não relativamente a uma legalidade instituída (já que as regras não têm vez nos lugares

de convívio animados por Deligny); mas permissão entendida como um deixar-fazer, ou

melhor: um deixar agir a partir daquilo que, naturalmente, se trama.

O agir no lugar do espírito consiste, desde então, em um duplo movimento, de

desvalorização do espírito e de valorização da natureza.

Deligny opera, com efeito, uma desvalorização das faculdades ordinárias do

espírito: desvalorização do entendimento, compreendido como faculdade das ideias,

como consciência do objeto, a começar pela consciência de “si” (desvalorização da

dualidade sujeito-objeto, portanto); e desvalorização da vontade, entendida como

afirmação do objetivo, instância do projeto. Nada querer pela criança, pois a própria

criança autista nada quer: nem visada de objeto, nem busca de objetivo; nem

intencionalidade, nem finalidade. Este não querer como princípio das tentativas de

Deligny é também uma não violência: querer pela criança incorreria em impor uma

norma de comportamento ineficaz, inoperante, incompreensível. Não se trata tanto de

evitar qualquer relação de poder, mas de esquivar, como o próprio autista parece fazer,

qualquer tentação de uma atividade finalizada. Trata-se, então, de apreender a atividade

do autista como a de uma normatividade que não corresponde à intencionalidade, ao

chamado, ao projeto: a “normatividade” do autista, isto é, no sentido de Canguilhem,

sua capacidade de instituir normas de vida, de mudá-las e brincar com elas13, não remete

à normatividade ordinária, a da inteligência e da vontade, a de um espírito tomado em

uma lógica de simbolização do mundo.

Desvalorizar a normatividade espiritual do intelecto e da vontade significa,

portanto, substituí-la por uma normatividade natural, “inata”, uma normatividade

12L’Arachnéen et autres textes, p. 60. 13Le normal et le pathologique (Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique –

1943), Paris, PUF, 1966, p.77.

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017 126

anterior à linguagem: “Nada é tão difícil quanto deixar a natureza se fazer”, afirma

Deligny. E ele sabe bem o quanto a valorização do natural, do inato é vista como

suspeita pelos contemporâneos. O discurso de toda política, da constituição, ou melhor,

da construção da realidade humana através das relações sociais, rejeita a ideia de uma

natureza à qual seria preciso retornar, à qual seria preciso reencontrar como uma

verdade. Para Deligny, contudo, a “natureza”, o “inato” são maneiras de dizer a

capacidade agente do ser a-consciente, pré-logico ou pré-linguístico. Assim, ele admite

em muitas ocasiões que é incapaz de marcar uma fronteira entre animalidade e

humanidade, e que se interessa pela atividade animal para pensar este agir no lugar e no

posto do espírito: no Aracniano, é a aranha [araignée], a aragne como chama Deligny,

que serve de modelo, ou de analogia, para apreender esta atividade sem finalidade nem

intencionalidade.

O aracniano é o que permite apreender a grande distinção deligniana entre o

fazer e o agir: o “fazer” designa uma atividade transitiva e finalizada; faz-se algo; o

fazer implica um objeto no qual ele se acaba, um objeto que é ao mesmo tempo seu

objetivo, seu fim no duplo sentido do termo: seu objetivo e seu acabamento. Quanto ao

agir, este é intransitivo: age-se, e é tudo; age-se para nada, em uma atividade não-

significante, que pode parecer absurda aos olhos daquele que se atém a “semelhantizar”

e busca, a todo custo, a quê tudo isso pode levar. O que eles têm na cabeça?, é o que se

perguntam quando sobrepõem o fazer ao agir, quando querem “razões para agir” e

interpretam a ação segundo as ferramentas do espírito ordinário (a intenção, a

finalidade, a razão). “Quando vejo as crianças autistas, sempre prontas a agirem para

nada, é aí que me encontro.”, responde Deligny14.

A distinção entre “agir” e “fazer” não encobre, portanto, a antiga distinção entre

“práxis” e “poiesis”: mesmo a práxis, que tem seu fim em si e visa a um certo

aperfeiçoamento de si, culminando em Aristóteles na atividade teorética, remeteria

ainda, para Deligny, a um fazer que toma a si mesmo como objeto. O agir, ao qual é

necessário estar sensível, caso se queira ver isto que realmente se trama, é um agir

anterior ao pensamento, um agir aracniano, se compreendemos por isso tudo o que se

trama de maneira a-significante, todas as formas de relação não simbólicas, desprovidas

de sentido, de direção, isto é, desprovidas de objetivo e, por isso mesmo, de subjetivo.

Este agir inato, então, substitui o espírito e é trazido à tona logo que falta aquilo

14 CC, p. 1098.

127 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017

que de ordinário constitui o espírito, a saber, a consciência e a vontade. O que falta deve

ser então compreendido como revelador de uma positividade habitualmente mascarada,

e doravante revelada:

Tudo que posso dizer é que, quando a consciência é eclipsada, o que aparece surpreende

e merece ser olhado, um pouco à maneira dos eclipses solares – e é preciso correr aos

quatro cantos do mundo, pois cada eclipse se vê apenas de certo ponto – que nos

ensinam, a cada vez, sobre esse Sol que acreditamos ver, quando o que vemos é

praticamente só a nossa cegueira.15

O sol é melhor percebido eclipsado; o mesmo se dá para a consciência, que

costuma nos cegar, nos ofuscar, como instância originária da luz. E o que deixa

transparecer o eclipse da consciência é a própria natureza, o inato do ser a-consciente

que é um inato ativo, uma natureza ao infinitivo, uma natureza naturante e cujo modo de

ser é ser em múltiplas conexões com a exterioridade: ser em “rede”, nas palavras de

Deligny. O eclipse da consciência deixa ver o que a consciência recobre: a atividade

inata de fazer rede, de agir como “potência do comum” sem projeto pensado, sem

finalidade. “A aranha [aragne] não tem necessidade alguma de pensar no inseto que é

pego em sua teia”16. Desenrolando assim a analogia com a aranha, Deligny, no início de

L’arachnéen, topa com a analogia da pintura:

Falar de teia17 faz pensar em pintura. Onde está o quadro antes de ser feito? Muitos

pintores, e dos mais gloriosos, podem até ter dito que o quadro está na tela e que,

quando se pinta, o difícil é conseguir livrá-lo do branco aparente da tela sem danificá-lo,

sem nada esquecer e sem acrescentar nada.

Mas essas palavras são tomadas como um paradoxo, quase como um chiste. Qualquer

um sabe muito bem onde se encontra o projeto do quadro: na cabeça, na alma ou no

coração do pintor.

Comete-se um grande erro ao não ouvir os que sabem do que estão falando.

[...]

Direi o mesmo sobre esse modo de ser em rede que constitui, talvez, a própria natureza

do ser humano, e, no caso, o “espírito” só intervém como excedente: sua obra é mais

essa sobrecarga do que a estrutura da rede.

O pintor está muito certo ao dizer que, pelo fato de o quadro estar na tela, o grande

risco, quando se quer extirpá-lo de lá, é acrescentar, isto é, servir-se do aracniano como

de uma rede de contenção de bagagens, na qual o artista se desestorvaria dos seus

sentimentos, suas fantasias, suas ideias e sei lá eu mais o quê daquilo que o estorva.18

Desestorvar a tela do espírito, em vez de reconhecê-la como o lugar de uma

interioridade, de afetos pessoais, de ideias ou projetos de si, é acessar a dinâmica do

15 L’Arachnéen et autres textes, p. 81 16 Idem, p.31 17 [Nota dos tradutores: Em francês, a mesma palavra toile quer dizer teia (de aranha) e tela (de pintura).] 18 Idem, p.19

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017 128

quadro, isso que se faz como campo de força, rede em tensão de linhas e cores: perceber

a tela\teia como a-significante é o que o eclipse da consciência ou do espírito permite,

ele que habitualmente “remete” a ela, isto é, acrescenta uma camada de sentido e

sobrecarrega a rede ao invés de deixá-la afirmar-se. Singulière ethnie, publicada em

1980, diz isto de maneira condensada, mas bem exata: “A consciência de ser do ser

consciente de ser eclipsa aquilo que nele é ser, do mesmo modo que a consciência de ser

e de ser em vida eclipsa aquilo que nele pode ser viver – ao infinitivo”19.

Ao eclipse da consciência, que eclipsa aquilo que é realmente viver, deve-se

acrescentar, da mesma forma, a suspensão do querer, pela qual transparece o agir:

Depois de ter ouvido – e compreendido – que, no que tange a essas crianças aqui

presentes, querer não é de praxe, serão necessários anos para que essa certeza formulada

transpareça minimamente nas atitudes costumeiras [...]

Nenhuma necessidade de querer para agir. Muito pelo contrário: basta querer para que

desapareça a constelação que suscita o agir, um pouco da mesma maneira como a luz do

sol faz desaparecerem as estrelas.20

Mas Deligny tão logo acrescenta: “Dito isso, ser sem querer não acarreta que o

ser seja inerte”. Ao contrário, remova a consciência e a vontade e você encontrará a

natureza agente: a da aranha que tece sem fim e para a qual o que importa é, antes de

tudo, “tramar”. Uma trama que Deligny compara a gestos rituais, um tanto misteriosos,

ancestrais, e que ele encontra no comportamento da pequena A., que é evocada no

coração de L’arachnéen, em uma página que vale a pena ler inteira:

Se tal garotinha autista A. se obstina em depositar galhinhos sobre as cinzas escurecidas

de uma fogueira que não arde há dois anos, pouco lhe importa a finalidade do agir, se

era de um querer, nem que fosse de alimentar as chamas; e se alguém quer que o fogo

arda, é para se aquecer ou cozinhar sua comida. Os gestos de A., que, bem se vê, são

inoportunos e surpreendentes em sua obstinada abnegação, não nos parecem, ainda

assim, radicalmente estranhos; não é a primeira vez que vemos um gesto da mesma

natureza. Deixemo-nos levar um instante pelo voloir [é assim que Deligny nomeia a

vontade]21:

“O que A. quer é refazer um gesto que ela viu ser feito e é bem possível que, no

momento que ela estava a ponto de fazer como, alguém a tenha impedido por medo de

que ela se queimasse; razão a mais para refazê-lo agora que ninguém mais a impede, e

de refazê-lo à farta.”

Permaneçamos no lugar e contemplemos, então, este fazer no vazio, tão obstinadamente

reiterado que se torna ritual.

19 Fernand Deligny. Œuvres, p.1386 por Bertrand Ogilvie em “Au-delà du malaise dans la civilisation.

Une anthropologie de l’altérité infinie », op. cit., p.1574 20 L’Arachnéen et autres textes, pp.42-43. 21 [Nota da tradução: Ao invés de vouloir, forma atual em francês do verbo e do substantivo “querer”,

Deligny prefere uma forma antiga, voloir, que aproxima o querer do roubo\roubar e do voo\voar (vol,

voler para ambas).]

129 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017

E caímos num desses “mistérios”, dos quais nossa existência próxima da existência de

crianças autistas é constelada, a saber: que o agir aracniano tem todas as características

dos gestos rituais. O que dá a pensar que a mitologia não é tão avoada quanto se poderia

acreditar; não paira lá no alto, se não nos fiarmos apenas no que ela conta.

De fato, posso muito bem vir com a história de que A. é uma espécie de vestal cujo

próprio si-mesmo é sacrificado à manutenção e ao culto do fogo; posso vir com essa

história, se isso me arranja, se for preciso que eu me arranje com o querer, e a qualquer

custo; o gesto de A. vira então altamente e puramente simbólico, ao passo que no agir

não há nem uma gota de símbolo: o agir é de puro agir.

Por aí se vê que o simbólico depurado de todo fazer e o agir puro e sem fim se

encontram no mesmo gesto.

Quem se espantaria com isso, fora os defensores obstinados da superioridade do projeto

pensado?

Dito isso, se o aracniano do agir é imutável, como é possível que A. vá depositar os

galhinhos no rastro de um fogo desde há muito resfriado?

Se agir houver, ele data de uma época em que o ser humano não possuía a prática do

fogo.22

“O agir no lugar do espírito” significa, portanto, primeiramente isto:

desinteressar-se do projeto pensado, como a criança autista se desinteressa de qualquer

objeto, ou objetivo, em seu agir. Este “agir no lugar do espírito”, que nos propõe

Deligny, também nos faz irresistivelmente pensar em algumas páginas de Espinosa:

mencionemos aquela que permanece célebre por afirmar que não sabemos o que pode

um corpo. Nessa página da Ética, Espinosa convoca a figura do sonâmbulo. Noutra

parte, ocorre do sonâmbulo fazer sua aparição, mas nunca nominalmente: ele se esconde

atrás daqueles que “sonham de olhos abertos”, ou seja, que tomam suas imaginações

pela realidade e vivem num mundo de ficção. No escólio da proposição 2 da Ética III,

ao contrário, a questão mesma será da virtude do sonâmbulo: este não é mais uma

metáfora; ele é dotado de uma potência efetiva, tanto mais real quanto menos

consciência ele tem de seu agir. Como se a consciência fosse um impedimento, como se

a sobrecarga do espírito consciente do que está fazendo, fosse um peso que dificulta o

fazer: o suplemento da alma, que é o espírito consciente de si, seria portanto, em boa

parte das ocasiões, uma inibição da ação.

Com efeito, ninguém até aqui determinou o que o corpo pode, isto é, a ninguém até aqui

a experiência ensinou o que o corpo pode fazer só pelas leis da natureza enquanto

considerada apenas corpórea, e o que não pode fazer senão determinado pela mente.

Pois até aqui ninguém conheceu a estrutura do corpo tão acuradamente que pudesse

explicar todas as suas funções, para não mencionar o fato de que nos animais são

observadas muitas coisas que de longe superam a sagacidade humana, e que os

sonâmbulos fazem no sono muitíssimas coisas que não ousariam na vigília; o que

mostra suficientemente que o próprio corpo, só pelas leis de sua natureza, pode fazer

muitas coisas que deixam sua mente admirada.

22 Idem, p. 40.

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017 130

E mais à frente, Espinosa acrescenta:

Ora, dirão que só das leis da natureza enquanto considerada apenas corpórea não podem

ser deduzidas as causas dos edifícios, pinturas e outras coisas deste tipo, as quais se

fazem somente pela arte humana, e que o corpo humano, se não fosse determinado e

conduzido pela mente, não seria capaz de edificar um templo. Na verdade, já mostrei

que eles não sabem o que pode o corpo e o que pode ser deduzido da só contemplação

de sua natureza, e que experimentam ocorrer só pelas leis da natureza muitíssimas

coisas que jamais teriam acreditado poder ocorrer senão pela direção da mente, como

são aquelas que fazem os sonâmbulos durante o sono e que os deixam admirados na

vigília.23

É este, portanto, o espinosismo de Deligny: existe, mais fundamental que o

espírito consciente e falante, um automatismo físico, uma atividade corporal que não

tem necessidade, muito pelo contrário, do pensamento, de seus projetos, de suas

finalidades, para produzir seus efeitos. É deste modo que Deligny, no desvio de uma

observação em L’Arachnéen, e sem nem reparar, está resumindo uma das grandes

afirmações da filosofia espinosista:

[...] no extremo limite, e o acaso ajudando, poderia transparecer que a Natureza encerra

uma unidade profunda entre seus mistérios e que ela funciona de modo maquinal, quer

se trate de uma teia de aranha ou das linhas de erro24 de crianças “autistas”.25

O próprio da natureza, nos diz em suma Deligny, é “naturar”, um infinitivo que

ele não emprega, mas que convém perfeitamente ao seu pensamento, ele que se definia

como um escritor ao infinitivo: um infinitivo que diz a primazia radical, antropológica e

mesmo ontológica do agir, de um agir ao infinito, sem fim – nem termo nem objetivo. É

esta a máquina de agir que se descobre aquém do espírito, entendido como consciência

e vontade: um modo de ser maquinal, um automatismo no lugar do espírito.

Mas aqui se descobre também outro sentido do “agir no lugar do espírito”: o agir

no lugar do espírito não significa, de maneira alguma, o puro e simples desaparecimento

do espírito, sua substituição por algo que, em tempos ordinários, esse espírito encobria

e, assim fazendo, mascarava, obliterava. Pois é bem possível que este agir para nada,

23 Spinoza, Ethique, trad. B. Pautrat, Seuil, Paris, 1988, p.209 et 211. [Nota da tradução: Utilizou-se a tr.

br. do Grupo de Estudos Espinosanos, São Paulo: Edusp, 2015.] 24 [Nota da tradução: O termo francês erre se diferencia de erreur que traz um sentido de falha, de

engano, de incorreção, o que costumamos traduzir por erro em português. No entanto, este termo

inusitado que Deligny apresenta tem um sentido de errar referente às navegações. Optamos traduzir

“linhas de erro” considerando a ideia de um deslocamento que se dá sem qualquer impulsão, sem motor,

sem intenção.] 25 L’Aracnhéen e autres textes, p.34.

131 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017

sem fins, possa também ser entendido como o verdadeiro lugar do espírito, mas de um

espírito compreendido em um sentido radical, isto é, como não intencional, a-

consciente. O agir é o lugar do espírito enquanto compreendido, para usar uma fórmula

de Deligny, como “aparelho psíquico”. O sonâmbulo, mostrava Espinosa, nos ensina do

que o corpo é capaz sem intervenção da vontade, da consciência, do espírito

significante; mas jamais foi negado por Espinosa que o sonâmbulo tivesse um espírito.

Aliás, um corpo sem espírito (sem correlato mental que lhe corresponda no

pensamento), não é concebível para Espinosa: o sonâmbulo é um autômato, mas não um

autômato desprovido de espírito, ele é “autômato espiritual”, segundo a fórmula do

Tratado da emenda do intelecto26. Da mesma maneira, Deligny não nega a vida e a

vivacidade espirituais do ser a-consciente. Só que esta vida, este agir que está no próprio

lugar do espírito, é a atividade das linhas de erro, que são como localizações de um

verdadeiro aparelho psíquico, de um espírito não significante, mas maquinal. Do que se

trata? As linhas de erro são as errâncias ou os trajetos das crianças numa área de

convivência, cujos traçados Deligny conserva. Linhas de erro e traçados: aí estão os

lugares do espírito – os lugares do agir no próprio lugar do espírito compreendido como

aparelho psíquico de rastrear.

Esses traçados de linhas de erro, esses mapas desenhados em nanquim por

alguns companheiros de Deligny, ou que ele convidava crianças para traçar, não podem

ser concebidos como representações de alguma coisa, sinalizando para outra coisa, nas

quais o espírito pudesse se reconhecer, se encontrar, obter uma identidade27. O traçado

não é um fazer intencional ou finalizado, ele é um agir que nada é além da expressão do

aparelho de rastrear que funciona “no vazio”. Assim, o traçado nada quer dizer: mais

uma vez, ele é uma expressão pura ou um agir sem sujeito nem objeto.

O espírito entendido como aparelho psíquico, se o apreendermos aquém de

qualquer atividade simbólica significante, é um aparelho de rastrear: o espírito é tão

somente uma máquina de localizar, de traçar seus próprios lugares, nos quais não há

nada a interpretar, nada a reconhecer. Ilustremos esta ideia no exemplo que Deligny

oferece em Le Croire et le Craindre:

Tomemos um fato bem frequente: uma criança nos é trazida por seus pais que vêm de

Paris, de Grenoble ou de Lyon. A criança passa aqui algumas semanas e depois seus

pais vêm buscá-la. Passam-se alguns meses. Decide-se que ela volte para cá. Os pais

26 Spinoza, Traité de l’amendement de l’intellect, trad. B. Pautrat, éditions Allia, Paris, 1999, p.133 (§85). 27 Ver o artigo de Béatrice Han Kia-Hi, “Deligny et les cartes”, em Multitudes nº24, primavera de 2006

(http://multitudes.samizdat.net/Deligny-et-les-cartes).

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017 132

pegam a estrada novamente. A criança bate a cabeça no vidro do carro ou se morde.

O que se pensa é dito como: “Ela não quer voltar pra lá”, e eis que chega ao seu auge a

mágoa latente.

Ora, o que aconteceu foi que o carro, por uma razão qualquer, não seguiu pela mesma

estrada que fizera da primeira vez, trajeto rastreado pela criança, portanto pré-visto, e

qualquer torção, qualquer “carência” deste pré-visto provoca atribulações cuja causa os

pais buscam no fundo da finalidade de suas intenções.

E quem jamais teria a consciência tranquila assim que se anuncia tal processo de auto-

inquisição?

Vão eles admitir que as coisas sejam tão simples? Isto viria ao detrimento de suas

próprias crenças; e o amar vai virar o quê, se basta respeitar um trajeto rastreado? E o

que isso quer dizer, ater-se a um ponto tal, naquele primeiro trajeto, que seria preciso

reiterá-lo? Eis aí a Desventura, que isso nada queira dizer, nadinha.

É assim que funciona o aparelho de rastrear quando falha o aparelho de linguagem. 28

O aparelho de linguagem, o aparelho de consciência de si, o aparelho de projeto,

isto tudo é apenas uma forma derivada, e talvez até mesmo degradada, deste aparelho

mais fundamental de rastrear, esta máquina de agir e de traçar. O aparelho de linguagem

é a história, e o aparelho de rastrear a natureza – uma natureza “imutável”, esclarece

Deligny, a natureza viva e vivaz de seu espírito, o inato de seu agir espiritual

maquinal29. Quanto a Janmari, Deligny afirma:

Que ele coloca em evidência que o aparelho psíquico é uma outra coisa que não um

aparelho de linguagem, pois verifica-se que ele funciona sem este material, prova, ao

menos, de que o inato invadido, submerso, recoberto, enterrado, renegado, vilipendiado,

ridicularizado, persiste em preludiar, intacto, como um joelho é desde sempre um

joelho, como os cinco dedos da mão.30

Ora, o produto deste aparelho psíquico que opera, principalmente, para rastrear e

constituir seu lugar, para traçar e tramar seu espaço, é o que Deligny chama de

costumeiro:

Trata-se do quê? De um pedregulho, de um toco de madeira, de um pedaço de corda...

cuja ausência provoca atribulações.

Não se trata de objetos, mesmo que seja, aos nossos olhos, de um objeto – qualquer

unzinho – que pareça se tratar.

Trata-se de coisas, mas essas coisas miúdas não são o que elas são aos nossos olhos,

seja lá quais forem.

28 CC, p. 1179. 29 “Que essa ou aquela criança muda seja provida de uma singular vivacidade de espírito é um fato

inegável, e tudo fica mais claro quando esta vivacidade é deixada por conta do aparelho de rastrear, para o

qual a linguagem é alguma coisa; ora, qualquer coisa é boa de ser rastreada, donde esses agires, que

chamo de inacabados neste sentido em que o aparelho de linguagem, fora de uso, não deu os fins a esses

agires, ou seja, a resposta àquele “para quê”que é o oficio mesmo desse aparelho de linguagem que não

para de se extraviar nisso, e rejeita e recusa qualquer outro recurso, já que estaria então se tratando da

natureza do homem, coisa maldita ou caçoada, tudo depende das ideias de quem a vilipendia ou a recusa,

e isto na ignorância completa do que ela poderia ser.” CC, p. 1173. 30 CC, p. 1183.

133 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017

Trata-se de um “apego” da criança a essas coisas, apego que pode surpreender tamanha

sua intensidade, coisas “rastreadas”, tanto que a todo momento a criança “sabe” onde

elas estão. Ao reencontrá-las – a palavra não convém, já que a coisa não foi perdida –,

ao retomá-las – pois as coisas são manejáveis –, a criança parece fascinada,

perdidamente contente31.

E eis porque todo agir de iniciativa, toda a atividade do autista, mas, talvez mais

fundamentalmente, de qualquer aparelho psíquico, volta-se para esse costumeiro

rastreado, para esses trajetos traçados: para fazer o quê? “Para guarnecer-se contra o

fato de que o costumeiro poderia não ser respeitado”32. Guarnecer-se, é esta a atividade

do aparelho psíquico para que sejam conservadas suas próprias rastreagens, seus

traçados de lugares nos quais e pelos quais ele existe. Eis porque “guarnecer-se” é da

alçada de uma afetividade primária, de uma vigilância ou de um alerta interno, próprio

ao aparelho de rastrear: “guarnecer-se procede do temer”, diz Deligny. Tratar-se-ia aqui,

finalmente, de dar uma melhorada na angústia das crianças autistas? Haveria, então,

uma afetividade negativa como princípio do aparelho psíquico, pelo qual se

compreenderia fundamentalmente o próprio traçado dos lugares de sua existência: uma

tristeza, portanto, no princípio de nossa atividade?

Não, não é bem assim, pois o temer vem sempre acompanhado de uma alegria,

de um “exultar”, precisa Deligny:

O psicanalista, ontem passado, me perguntava se, dentro disso que eu pensava, o

“estado de natureza” não seria de temer. Entendendo-se que temer e exultar andam

juntos, embora alternativamente, eu diria: “É bem possível”33.

Temer, exultar, agir: se é preciso estabelecê-las, então aqui estão as dimensões

da afetividade primária, as determinações afetivas da humana natureza, segundo

Deligny.

E não se há de confundir esse temer fundamental com um medo. O temer,

efetivamente, está sem objeto: talvez seja aquele dos Gauleses, brinca Deligny, que

afinal tinham apenas um medo, que o céu lhes caísse na cabeça; é um jeito de inscrever

na eternidade o temer, ele que nasce da imaginação de uma necessidade que nos

ultrapassa (“disto contra o qual nada podemos”); um jeito também de se regozijar por

ele sempre se manter, lá no alto, o céu, sem jamais cair.

31 CC, p. 1145. 32 CC, p. 1116. 33 CC, p. 1134.

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017 134

Mas então, e é sobre esta ideia que se completa Le Croire et le Craindre, se o

agir remete a guarnecer-se, e se guarnecer-se procede de um temer primitivo que é a

própria atividade do aparelho de rastrear, não seríamos, in fine, justamente reconduzidos

a certa forma de finalidade? Não se estaria agindo pelo prazer, o prazer de respeitar o

costumeiro, o prazer, até mais fundamental, de conservar o aparelho psíquico de

rastrear, guarnecendo-se contra tudo que viria transtornar as rastreagens?

Talvez. Neste ponto, o próprio Deligny diz que é preferível se esquivar: basta

remeter-se à virtude do temer e àquilo que ele permite pensar, a saber, uma atividade

que se concebe apenas pela potência do comum, apenas através da potência de um

“tramar-se” em comum.

De modo que este temer comum às crianças que não fazem nem ideia de sua identidade

não tem, por assim dizer, do “quê” ser. Sujeito vacante, nenhum objeto para esse temer,

palavra que viria de um tremere [é a etimologia latina] que, lida a certa distância, faz

pensar em tramar, enquanto que se trata de tremer34.

E diante deste trecho, é preciso finalizar com outro, que retoma o sentido mesmo

do andamento de Deligny:

É preciso compreender de onde eu falo: deste espaço em que vivemos próximos a

crianças para as quais a identidade consciente/inconsciente está suspensa ou não adveio,

andamento particular que implica uma prática precisa. Trata-se de ir em busca, nem que

seja ao preço de longos desvios, daquilo que pode haver de comum entre elas e nós.

Tudo se passa como se houvesse outra identidade, outra “mesmidade” específica, e não

aquela que funciona no simbólico. Você perceberá que esta palavra “comum” é

primordial35.

E Deligny acrescenta: “quanto ao comum, a gente não sabe de modo algum o

que ele é, de modo algum, e é isto que suscita pavor: como aspirar a isso que se ignora?

[...]. Mas esta atração a-consciente em direção ao comum é sentida por cada um, já que

ela é específica.”

A cada espécie seu aparelho primordial de ver, de perceber, de rastrear, sua

“aptidão natural para ser afetado e afetar” (Espinosa), que é tanto quanto uma aptidão

para ser traçado e para traçar: a cada espécie seu aparelho comum de traçar e tramar

lugares, que faz nossa comunidade de corpos e espíritos.

34 CC, p. 1184. 35 CC, pp. 1122-1123.

135 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 118-135, 2017

Tradução:

Adriana Barin de Azevedo

Guilherme Ivo

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_______, Traité de l’amendement de l’intellect, tr. B. Pautrat, éditions Allia, Paris,

1999.

Recebido em: 31/07/2017

Aprovado em: 24/09/2017

136 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, 2017

Resenha

137 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 137-145, 2017

VINCIGUERRA, Lorenzo. La semiotica di Spinoza. Pisa: Edizioni ETX, 2012. 204 p.

Pablo Azevedo

A semiótica de Spinoza

Dentre todos os temas vinculados à filosofia de Spinoza, a doutrina da imaginação é,

certamente, um dos menos explorados pelos comentadores. Se considerarmos a longa história

de estudos consagrados à obra do filósofo, a raridade daqueles dedicados a analisar o tópico

da imaginação é surpreendente. A partir desse quadro, o interesse pelo denominado “primeiro

gênero de conhecimento” parece ser algo extremamente recente. Apenas a partir dos anos

1980 é que tal tema parece ter começado a atrair a atenção dos pesquisadores, destacando-se o

Ars imaginandi de Filippo Mignini e Imagination et Religion chez Spinoza de Henri Laux1.

Ainda assim, é possível dizer que o tema da imaginação continua, ainda hoje, a ser um filão

pouco explorado no pensamento de Spinoza.

Diante desse contexto, têm-se destacado nos últimos anos os trabalhos de Lorenzo

Vinciguerra, comentador italiano que atrai tanto pela profundidade de sua abordagem como

também pela originalidade com que tem se debruçado sobre a questão da imaginação. Já em

sua primeira obra publicada sobre o tema, Spinoza et le signe: la gènese de l’imagination2, a

sua leitura focada na concepção ontológica dos processos imaginativos nos conduz a perceber

a centralidade da física spinozana e das afecções na estruturação da doutrina da imaginação. O

resgate que efetiva acerca da importância da teoria das afecções na compreensão da dinâmica

da imaginação nos leva a uma leitura diferenciada da parte da Ética conhecida pelos

comentadores como o Pequeno Tratado de Física: nesse texto, Vinciguerra salienta a

importância que a dinâmica dos corpos, tal como ali configurada, traz ao compreender as

afecções entre os corpos por meio das noções de marca, traços ou vestigia.

Esse foco de análise permite ao comentador italiano introduzir na metafísica spinozana

uma temática que, para muitos, pode parecer estranha: o problema do signo em Spinoza3.

Doutor e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em História pela

Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: [email protected] 1 MIGNINI, Filippo. Ars Imaginandi: apparenza e rappresentazione in Spinoza. Napoli: Edizioni Scientifiche

Italiane, 1981. LAUX, Henri. Imagination et religion chez Spinoza: la potentia dans l’histoire. Paris: Vrin, 1993. 2VINCIGUERRA, Lorenzo. Spinoza et le signe: la gènese de l’imagination. Paris: Vrin, 2005. 3 A aproximação entre a filosofia de Spinoza e o tema dos signos é uma questão, que nunca foi abordada com

grande fôlego pelos comentadores da obra do filósofo. Contudo, é importante frisar para o leitor que essa relação

entre a filosofia de Spinoza e o problema do signo foi colocada por Deleuze em seus cursos e obra. Um de seus

textos onde isso é colocado diretamente é o texto Espinosa e as três Éticas (Para uma leitura deste texto ver:

DELEUZE, Gilles. “Espinosa e as três Éticas”. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 156-170).

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 137-145, 2017 138

Explorando a própria concepção do filósofo judeu de que a imaginação se constitui como

“cognitio ex signis” (conhecimento por signos), o autor elabora uma análise da relação entre

coisa e signo na imaginação: “na imaginação a coisa é signo; nos outros gêneros de

conhecimento ela é causa”4. Tal compreensão da imaginação, como ligada necessariamente à

dimensão do signo, abre um espaço para conceber o “primeiro gênero de conhecimento”

como um processo inter-relacionado diretamente ao âmbito da interpretação, o que nos

conduz a uma proximidade entre a teoria da imaginação spinozana com o campo da semiótica

enquanto disciplina.

É justamente seguindo essa vereda que La semiotica di Spinoza amplia e aprofunda

questões e análises que já haviam sido abordadas previamente em Spinoza et le signe, mas

que mantinham-se um tanto restritas em sua abordagem inicial, talvez, por esse último se

tratar de uma tese de doutorado. O escopo sobre o qual a doutrina da imaginação passa a ser

trabalhado e analisado é bem mais amplo e aprofundado que o da obra precedente: aqui a

imaginação passa a ser vinculada à física, a ontologia e à própria cosmologia spinozana. A

título de apresentação, faremos um breve comentário acerca das principais teses levantadas

nesta obra.

Primeiramente, falar de semiótica em Spinoza é algo que pode parecer desconcertante

num primeiro momento. A palavra, propriamente dita, não está presente em sua obra, e só é

introduzida na história da filosofia, alguns poucos anos após a sua morte, pela pena de John

Locke. Contudo, é importante notarmos que a obra de Spinoza não deixa de fazer importantes

reflexões acerca dos signos e de sua natureza: por um lado, é tributária de uma profunda

meditação acerca da natureza dos signos a separação que o filósofo judeu erige entre a

teologia e a filosofia, por outro lado, é no interior da construção de sua doutrina da

imaginação que esta é definida como cognitio ex signis (conhecimento por signos). É

explorando esse espaço de reflexão acerca do signo, de sua natureza e de sua profunda relação

com a temática da imaginação na obra de Spinoza que Vinciguerra irá nos propor a leitura de

“uma teoria semiótica” no interior da ontologia spinozana: Semiotica de Spinoza nos conduz a

uma leitura bastante diferenciada da doutrina da imaginação tal como formulada na obra do

filósofo judeu.

Tradicionalmente, a imaginação em Spinoza foi lida de uma maneira extremamente

negativa: a mesma é considerada como a forma de conhecer o mundo marcada pela

4 VINCIGUERRA, Lorenzo. Spinoza et le signe: la gênese de l’imagination. Paris: Vrin, 2005. p. 20. (tradução

nossa).

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inadequação, e ao mesmo tempo, lugar da superstição e do delírio. Associada a uma

faculdade inferior da mente humana (a sensação), a uma forma de consciência menor ou

falseada que deve ser necessariamente corrigida pela intervenção de outras faculdades

humanas (como a razão), a doutrina da imaginação parece ter sido interpretada durante muito

tempo com as lentes da tradição do pensamento ocidental e com alguma influência da

doutrina da alma tripartite. Desviando-se desta perspectiva interpretativa e demasiado

antropocêntrica, influenciada e dependente da doutrina das faculdades humanas, Vinciguerra

amplia o horizonte de compreensão da teoria da imaginação pelo triplo vinculo que estabelece

desta para com a ontologia, a física e a cosmologia spinozana.

Por muitas vezes, dado o peso que a tradição filosófica exerce sobre nós, separamos a

teoria do conhecimento de Spinoza de sua ontologia, esquecendo que entre ambas há um

vínculo demasiado profundo. A grande tese spinozana de que só há uma única substância, e

que, portanto, na natureza só existem modos e atributos, por muitas vezes não é interpretada

em sua máxima radicalidade. Se só há uma substância, isso incide em dizer, que certas

“propriedades” ou “qualidades” que são atribuídas a nossos corpos e mentes humanos, como a

“capacidade de pensar” ou as “propriedades físicas” não são “propriedades” (no sentido

estrito da palavra) ligadas a essência particular de um sujeito ou de um corpo determinado.

Antes disso, estas são “inerentes” aos atributos respectivos, pensamento e extensão, que

expressam a potência absoluta da substância única. Nesse sentido, se levamos a ontologia

spinozana a sério, não podemos considerar que o pensamento, por exemplo, pertence a um

sujeito, ou que os sujeitos têm ideias – como cartesianamente se compreende – mas sim, que

as ideias, ou os “pensamentos” se dão em nós, ou que estamos no “pensamento”5. Desta

maneira, toda ideia não é uma ideia que surge em nós, mas que se dá como uma ideia-afecção,

ou seja, esta emerge em nós a partir dos nossos encontros com outras coisas, das afecções que

experimentamos imersos na extensão e no pensamento.

Ampliando esta perspectiva interpretativa, é possível compreender a lógica das

afecções tal como delineada na ontologia spinozana como designando uma dupla relação: por

um lado, a noção de affectio designa a própria realidade das coisas na natureza enquanto

modos – ou seja, modificações – da substância; por outro lado, a mesma noção de affectio,

5 De maneira mais precisa, citamos Vinciguerra: “Assim como o homem não pode ser dito sujeito (subjectum) do

pensamento, mas ao invés disso, sujeito à pensamentos, modificação do pensamento, tanto menos pode ser

considerado autor (auctor) daquilo que nele, com ele se imagina”. VINCIGUERRA, Lorenzo. La semiótica di

Spinoza. Pisa: Edizioni ETS, 2012. p.18.

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 137-145, 2017 140

designa, simultaneamente, as afecções que se incidem em nossos corpos e mentes6. Mas

como se dão estas afecções, no segundo sentido que a noção carrega no interior da ontologia

de Spinoza? Ora, é nesse ponto que a interpretação de Vinciguerra começa a desenvolver um

de seus pontos mais originais: a partir de uma rigorosa interpretação dos postulados e axiomas

que constituem o interlúdio entre as proposições 13 e 14 do De Natura et origines Mentis, o

comentador italiano destrincha a lógica das afecções em uma teoria da traçabilidade

diretamente derivada da física de Spinoza. De uma maneira geral, podemos dizer que as

ideias de individuum-figurae-vestigia passam a constituir os elementos ontogenéticos para a

constituição da noção de imagines que suporta a doutrina spinozana da imaginação. Ou seja, é

compreendendo as afecções como traços ou vestígios de outros corpos com os nossos e,

simultaneamente, de afecções-ideias em nossas mentes que temos o quadro ontológico

necessário para compreendermos como as imagens das coisas são traçadas em nós.

Mas estas imagens podem ser compreendidas, analogamente, a representações que se

dão na consciência de um sujeito? Se levarmos em conta a elaboração da doutrina da

imaginação na segunda parte da Ética temos um panorama bastante distinto desta questão –

afinal, “as ideias que temos dos corpos exteriores indicam mais o estado de nosso corpo do

que a natureza dos corpos exteriores”7. Essas ideias-afecção que temos dos corpos exteriores,

que simultaneamente envolvem a natureza do corpo “afectante” e do corpo “afectado” e que

indicam mais a natureza do nosso corpo do que a do corpo exterior, demonstram tanto a

presença deste último como, também, o efeito que este produziu no corpo afectado. E essas

ideias-afecção são produtos das afecções de corpos exteriores deixados em nossos corpos,

sendo, portanto, as afecções que experimentamos o alicerce de nossa imaginação: “A mente

imagina um corpo qualquer porque o corpo humano é afetado e arranjado pelos traços

(vestigiis) de um corpo exterior da mesma maneira pela qual ele foi afetado quando algumas

de suas partes foram impelidas por esse mesmo corpo exterior”8. De maneira sintética,

poderíamos dizer que as afecções no corpo, seguindo a física spinozana, nos conduzem a

noção secundária de traço (vestigia) causado pelos encontros entre os corpos.

Tal leitura permite, por conseguinte, toda uma abordagem diferenciada com relação à

doutrina spinozana da imaginação: sua ligação com as práticas, hábitos, memórias – e o

quanto estas determinam as associações produzidas pela imaginação. Ou seja, o quanto todos

6 Idem. p.21-22. 7 Ética II, Prop 16, Cor.II. In: SPINOZA, Baruch. Ética. Tradução de Thomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica,

2007. p.107. Para todas as citações aqui presentes usaremos esta edição. 8 Ética II, Prop. 18, Dem. p.111.

141 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 137-145, 2017

estes elementos são determinantes na maneira como associamos as imagens e, por

consequência, interpretamos as ideias-afecções que são tracejadas em nossos corpos –

fundamentando, portanto, a possibilidade de uma compreensão de uma “semiótica em

Spinoza”.

Qual seria, assim, a relação entre imaginar, associar e interpretar? Tal questão está

diretamente ligada à maneira como Spinoza exemplifica o funcionamento da imaginação:

imaginar é produzir encadeamentos de imagens que seguem as afecções do corpo.

Compreendamos as imagens enquanto afecções, ou seja, tudo aquilo que afecta nosso corpo –

sons, imagens, palavras, etc. Mas não só isso, também aquilo que, de uma maneira mais

próxima da semiótica contemporânea, poderíamos chamar de signos: signos linguísticos,

signos imagéticos, etc. Para ilustrar esse processo, ficamos apenas com estes dois exemplos

para nos mantermos próximos àqueles dados por Spinoza:

Um romano passará imediatamente da palavra pomum para o pensamento de uma fruta, a qual

não tem nenhuma semelhança com o som assim articulado, nem qualquer coisa em comum

com ele a não ser que o corpo desse homem foi, muitas vezes, afetado por essas duas coisas,

isto é, esse homem ouviu, muitas vezes, afetado por essas duas coisas, isto é, esse homem

ouviu, muitas vezes, a palavra pomum, ao mesmo tempo que via essa fruta. E, assim, cada um

passará de um pensamento ao outro, dependendo de como o hábito tiver ordenado, em seu

corpo, as imagens das coisas. Com efeito, um soldado, por exemplo, ao ver os rastros de

cavalo sobre a areia, passará imediatamente do pensamento do cavalo, para o do cavaleiro e,

depois, para o pensamento da guerra, etc. Já um agricultor passará do pensamento do cavalo

para o pensamento do arado, do campo, etc. E, assim, cada um, dependendo de como se

habituou a unir e a concatenar as imagens das coisas, passará de um certo pensamento a

este ou àquele outro9.

Interpretação e concatenação: ainda que o significado indeterminado da coisa se

efetive de um modo específico e determinado, como é que a palavra pomum se concatena com

outra imagem para que signifiquemos a “afecção-linguística” pomum com alguma outra

imagem? Se permanecemos apenas nesse estágio de compreensão, não nos é inteligível o

sentido da concatenação mesma e nem sequer “a lei que governa” esse “mecanismo

associativo”. Ora, o ponto determinante de concatenação nesse caso não é algo que se

compreende a partir do sujeito da interpretação – no caso, o ouvinte romano da palavra

pomum – mas por algo que é externo ao próprio sujeito: ou seja, depende do modo como este

“se habituou a unir e a concatenar as imagens das coisas”. Nesse sentido, nós, não-falantes

e nem sequer habituados a escutar muitas vezes uma língua morta, tal como o latim, não

9 Ética II, p.18.esc. p. 113. (Negrito nosso).

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passamos da audição ou, da afecção sonoro-linguística, da palavra pomum imediatamente à

representação imediata de alguma outra imagem em nossa mente. Afinal, não fomos afetados

pela imagem e signo linguístico variadas vezes, ao ponto disso se tornar um traço em nós que

imediatamente reenvia o som de pomum – que nada, para nós, tem a ver com uma maçã – à

imagem da maçã. Esse hábito, que une e concatena estas duas imagens, não foi tracejado em

nós – mas, certamente, o era, pelo hábito, em um homo romanus. Nesse sentido, “seria,

portanto, impróprio, pensar que as imagens e, portanto, os signos, preexistam ao próprio ato

interpretativo (...) este último, ao contrário, consiste em concatenar imagens que não possuem

nada em comum”10.

Nos três exemplos (o romano, o cavaleiro e o agricultor), não é o sujeito da

interpretação e nem sequer o signo que são os polos determinantes do sentido de

concatenação de uma imagem com outra. O que ocorre nesta interligação que conjuga

imaginação/interpretação/concatenação se faz, antes disso, de forma tal que o interpretante

não é o sujeito da interpretação, mas parte de um processo que lhe é “externo” e –

simultaneamente – constitutivo deste mesmo sujeito pelas afecções que produziram seu

hábito-memória. Tal compreensão do processo imaginativo, ao destituir o sujeito enquanto

polo central da interpretação, desarticula um entendimento antropocêntrico do processo de

semiose: realocando o indivíduo como parte do mesmo. Ao mesmo tempo, destitui o signo

como portador de um significado em si – mas também colocando a relação signo-significado

como constituída neste processo. Essa “desantropomorfização” do processo imaginativo, tal

como analisada por Vinciguerra, nos conduz a uma compreensão onde “a interpretação não é

uma prerrogativa exclusiva dos seres humanos (...) ainda que o seja, o intérprete é uma

categoria semiótica de um processo natural, do qual todo indivíduo, enquanto afecção, é

atravessado e constituído”11.

10 VINCIGUERRA, Lorenzo. Spinoza et le signe: la gênese de l’imagination. Paris: Vrin, 2005. p. 104.

(Tradução nossa). 11 VINCIGUERRA, Lorenzo. Spinoza et le signe: la gênese de l’imagination. Paris: Vrin, 2005. p. 104. Aquilo

que poderíamos chamar de “a capacidade de afectar e ser afectado”, e que está relacionada ao “habitus” de um

individuo não é, deveras, uma prerrogativa humana. Para exemplificar isso, faço aqui uma apropriação de um

exemplo de Deleuze (com um grau de liberdade que, talvez, exceda aquele que pode ser tomado em uma

resenha). Tal exemplo é elaborado em outro contexto pelo filósofo francês.

Imaginemos a capacidade de afectar e ser afectado no comportamento de um animal como um carrapato.

Orientando-se apenas pela luz, pelo calor e pelo odor dos mamíferos, ele se movimenta pelo mundo

direcionando-se em função dessas afecções..

Da mesma maneira, o girassol com a luz solar, como ilustra Vinciguerra para exemplificar que a orientação por

signos não é exclusiva do homem. Deste modo, várias coisas na Natureza se comportam como “intérpretes de

signos” - se considerarmos as afecções nestas coisas enquanto traços/signos. Esse processo semiofísico, portanto,

não seria exclusividade dos homens: nos exemplos de Vinciguerra, de homens à girassóis, várias coisas na

natureza podem ser categorizadas como intérpretes – ou, como “autômatos semióticos”. VINCIGUERRA,

143 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 137-145, 2017

Ora, se nem o signo e nem o intérprete são os polos determinantes do processo que nos

conduz a concatenar uma imagem a outra, então qual seria exatamente a relação que o

orientaria? De uma maneira sintética, poderíamos dizer que há uma relação triádica (que

excede os binarismos representante/representado e/ou significante/significado) a caracterizar e

fazer circular o processo que liga e conduz o sentido de uma imagem a outra:

A relação triádica que a caracteriza (a imaginação), consiste em fazer circular o processo do

sentido de uma imagem a outra. Esta vem, assim, a corrigir e integrar aqueles dois termos

representados pela antiga fórmula medieval aliquid quod stat pro aliquo (algo que está por

algo) sobre a qual se podia, ainda, reger a definição do traço. Esta última, de fato, se abstinha

de tomar em consideração a natureza interpretativa da imaginação. Convém agora,

passarmos de um paradigma de dois termos a um paradigma de três termos, para dizer que a

imagem ou o signo – que ainda não haviam sido devidamente distinguidos – é alguma coisa

que está no lugar de alguma outra relativamente a alguém ou a algum outro. Podemos

aproximar esta definição triádica do signo àquela que dois séculos mais tarde dará Peirce:

“something which stands to somebody for someone in some respect or capacity 12-13.

Tal ruptura com uma relação binária de interpretação dos signos, em um diálogo mais

profundo, requereria uma explicação dos limites, demasiado humanos, da própria teoria da

linguagem. Contudo, o que nos interessa aqui, dado o caráter sintético desta resenha que

pretende, tão somente, apresentar os aspectos centrais da leitura de Vinciguerra, é o quanto tal

operação – passagem de um paradigma binário para um ternário, que coloca em jogo a

natureza propriamente interpretativa da imaginação – abre o campo de compreensão do

nominado “primeiro gênero de conhecimento”. Pela perspectiva de Vinciguerra, coloca-se o

problema de inteligir como funcionamento da imaginação em seu aspecto conectivo-

associativo-interpretativo.

Por conseguinte, esta leitura produz uma questão de grande importância no que se

refere à concatenação das ideias na imaginação e à concatenação das causas na ordem da

Natureza. Apesar de, por vezes, Spinoza nos dar a entender que a imaginação pode nos levar a

delirar, nem por isso ela é o lugar do erro, da ignorância ou da falsidade. Poderíamos dizer

que a imaginação erra não pelas ideias não concordarem com seu ideado, mas pela ordem e

conexão das causas na Natureza (“paralelas” nos atributos pensamento e extensão) não serem

Lorenzo. Cap. V. Senso e significato: “L,uomo, il girassole, la formica”. In: La semiótica di Spinoza. Pisa:

Edizioni ETS, 2012. p.113-15. Para consultar o exemplo de Deleuze, em seu devido contexto, ver: DELEUZE,

Gilles. Espinosa: Filosofia Prática. 12VINCIGUERRA, Lorenzo. La semiótica di Spinoza. Pisa: Edizioni ETS, 2012. p.105-6. 13 Assim como Vinciguerra em seu texto, mantivemos a citação de Peirce tal como no original inglês.

Reproduzimos aqui a fonte citada: PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers (Vol.2). Cambridge: Harvard

University Press, 1931-1958. p. 228

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 137-145, 2017 144

equivalentes às concatenações produzidas pela imaginação: cujo campo de interpretação

segue a ordem e concatenação dos traços, ou vestigii, que “foram tracejados” (nas práticas e

hábitos) enquanto afecções nos corpos dos indivíduos.

Assim, pode-se dizer que, na cosmologia spinozana, o que prefigura a assertiva do

filósofo em denunciar uma compreensão antropocêntrica da Natureza como asilo da

ignorância é o quanto nossa maneira de “interpretarmos” as afecções inverte a ordem das

causas ao projetar finalidade na ausência de compreensão da ordem e conexão causal dos

acontecimentos de toda a Natureza. A imaginação não alcança tal conexão causal, e nesse

vazio, o argumento teológico infunde um Deus-Criador como causa: pois, afinal, as

concatenações da imaginação não conseguem, “virtualmente”, proceder ao infinito. Isso não

quer dizer, como bem coloca Vinciguerra, que essa questão, tal como desenvolvida na

ontologia de Spinoza, destitui o mundo de qualquer sentido: “denunciar o finalismo, como fez

Spinoza, não equivale a decretar o fim do sentido”14. A questão pode ser colocada de maneira

inversa:

O significado do signo, reenvia, em última instância a uma prática. De maneira mais geral, o

corpo é representável e existe como representado apenas se esse se encontra revestido de uma

prática imaginativa, que encarna e ativa ao seu modo um inteiro mundo de sentido15.

Ora, esse núcleo que é “revestido” pela prática imaginativa como um “hábito” em um

corpo que encarna práticas e que ativa ao seu modo um mundo inteiro de sentido coloca em

cena o conatus-cupiditas (esforço-desejo) que constitui a própria essência do homem na

ontologia spinozana. Contudo, esse par conceitual, de grande relevância para a compreensão

da Ética e que se prefigura como um conceito que é definido no intermezzo da Ética, não é o

fio condutor da leitura de Vinciguerra: este emerge apenas depois de se percorrer todo um

caminho, que se inicia na configuração de uma “teoria da traçabilidade” e que propõe, em

uma reinterpretação bem rigorosa, a própria doutrina spinozana da imaginação...

Esgotar a exposição de La semiotica di Spinoza em uma resenha é uma tarefa

impossível: nos reservamos aqui a percorrer – por sínteses e saltos – as linhas gerais da leitura

que Vinciguerra constrói da doutrina da imaginação16. O percurso da análise de Vinciguerra é

14 VINCIGUERRA, Lorenzo. La semiótica di Spinoza. Pisa: Edizioni ETS, 2012. p.118. 15 Idem. p.108. 16Ainda não há uma tradução em português de La semiótica di Spinoza, e nem sequer de Spinoza et le signe.

Assim, deixo aqui aos leitores, algumas traduções de artigos de Lorenzo Vinciguerra: VINCIGUERRA,

Lorenzo. Marca, imagem e signo: uma abordagem semiótica de Espinoza. (Tradução: Rogério da Costa e André

145 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.10 nº 3, p. 137-145, 2017

bem mais abrangente do que aqui podemos expor, transita-se pela obra de Spinoza com maior

fôlego e profundidade, atravessa-se a história da filosofia, e encerra-se, com uma questão que

foge ao escopo do resenhista: a proposta de Vinciguerra ultrapassa a herança spinozista

tradicional na medida em que relê a doutrina da imaginação lado a lado com a semiótica, de

modo a se enveredar pela senda aberta da arte. Afinal, La semiotica di Spinoza desemboca,

em seu último capítulo, em interrogações estéticas a partir da releitura da obra de um filósofo

que nunca delineou uma “doutrina estética” em senso estrito. Mas pensar a arte sem uma

doutrina estética é uma questão que encerra o livro. Abre-se uma rica discussão ali, que

podemos colocar apenas na forma de duas interrogações: é possível pensar a arte sem

estética? Ou pensar a estética como ética? Aesthetica sive ethica? Deixo aos críticos o juízo

sobre tal questão. Entretanto, levando em conta a raridade de comentadores que se

debruçaram sobre a doutrina da imaginação como problema central, podemos afirmar que La

semiótica di Spinoza é uma obra extremamente enriquecedora para o campo de discussão

entre os especialistas na obra do filósofo de Amsterdam.

Recebido em: 31/07/2017

Aprovado em: 24/09/2017

Fogliano). In: Galaxia (São Paulo, online), ISSN 1982-2553, n. 35, mai-ago., 2017, p. 05-20.

http://dx.doi.org/10.1590/1982-2554130815. VINCIGUERRA, Lorenzo. Arte como ética. Por uma estética da

produção. Breve reflexão spinozista. In: Viso. Cadernos de Estética Aplicada. Revista Eletrônica de Estética.

ISSN 1981-4062. Nº 8, jan-jun/2010. Disponível em:

http://www.revistaviso.com.br/pdf/Viso_8_LorenzoVinciguerra.pdf. Além disso, deixo também o artigo de

Rogério da Costa, onde a leitura de Vinciguerra se destaca como uma das referências que perpassa a reflexão:

COSTA, Rogério da. A noção de hábito em Spinoza e Peirce. In: Cognitio, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 221-236,

jul./dez. 2016. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/cognitiofilosofia/article/view/31232.