O 18 Brumário de Luís Bonaparte

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ESTE LIVRO FOI DISTRIBUÍDO POR: http://biblinde.110mb.com O 18 Brumário de Luis Bonaparte Karl Marx Capítulo I Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário! Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E

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O 18 de brumário de Luís Bonaparte traz a célebre análise de Karl Marx sobre o processo que levou da Revolução de 1848 para o golpe de Estado de 1851 na França. Escrito no calor dos fatos, entre dezembro de 1851 e fevereiro de 1852, teve sua primeira publicação em maio de 1852, com o título Der 18te Brumaire des Louis Napoleon, na estreia da revista alemã Die Revolution. A tradução brasileira tem por base a segunda edição, revisada por Marx em 1869, em Hamburgo.Nesse texto fundamental, o filósofo desenvolve o estudo do papel da luta de classes como força motriz da história e aprofunda a teoria do Estado, sobretudo demonstrando que todas as revoluções burguesas apenas aperfeiçoaram a máquina estatal para oprimir as classes. Embasado por essa observação, Marx propõe, pela primeira vez, a tese de que o proletariado não deve assumir o aparato existente, mas desmanchá-lo.

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    http://biblinde.110mb.com

    O 18 Brumrio de Luis BonaparteKarl Marx

    Captulo I

    Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importncia na histria do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragdia, a segunda como farsa. Caussidire por Danton, Lus Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstncias que acompanham a segunda edio do Dezoito Brumrio! Os homens fazem sua prpria histria, mas no afazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradio de todas as geraes mortas oprime como um pesadelo o crebro dos vivos. E

  • justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e s coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses perodos de crise revolucionria, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espritos do passado, tomando-lhesemprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a mscara do apstolo Paulo, a Revoluo de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a repblica romana e como o imprio romano,e a Revoluo de 1848 no soube fazer nada melhor do que parodiarora 1789, ora a tradio revolucionria de 1793-1795. De maneira idntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua lngua natal; mas s quando puder manej-lo sem apelar para o passado e esquecer sua prpria lngua no emprego da nova, ter assimilado o esprito desta ltima epoder produzir livremente nela.O exame dessas conjuraes de mortos da histria do mundo revela de pronto uma diferena marcante. Camile Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleo, os heris, os partidos e as massas da velha Revoluo Francesa, desempenharam a tarefa de sua poca, a tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com frases romanas. Os primeiros reduziram a pedaos a base feudal e deceparam as cabeas feudais que sobre ela haviam crescido. Napoleo, por seu lado, criou na Frana as condies sem as quais no seria possvel desenvolver a livre concorrncia, explorar a propriedade territorial dividida e utilizar as forcas produtivas industriais da nao que tinham sido libertadas; alm das fronteiras da Frana ele varreu por toda parte as instituies feudais, na medida em que isto era necessrio para dar sociedade burguesa da Frana um ambiente adequado e atual no continente europeu. Uma vez estabelecida a nova formao social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publcolas, os tribunos. os senadores e o prprio Csar. A sociedade burguesa, com seu sbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intrpretese porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Coilards, Benjamm Constants e Guizots; seus verdadeiros chefes militares sentavam-seatrs das mesas de trabalho e o crebro de toucinho de Lus XVIII era a sua cabea poltica. Inteiramente absorta na produo de riqueza e na concorrncia pacfica, a sociedade burguesa no mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu bero. Mas, por menos herica que se mostre hoje esta

  • sociedade, foi no obstante necessrio herosmo, sacrifcio, terror, guerra civil e batalhas de povos para torn-la uma realidade. E nas tradies classicamente austeras da repblica romana, seu5 gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as iluses de que necessitavam para esconderem de si prprios as limitaes burguesas do contedo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nvel da grande tragdia histrica. Do mesmo modo, em outro estgio de desenvolvimento, um sculo antes, Cromwell e o povo ingls haviam tomado emprestado a linguagem, as paixes e as iluses do Velho Testamento para sua revoluo burguesa. Uma vez alcanado o objetivo real, uma vez realizada a transformao burguesa da sociedade inglesa, Locke suplantou Habacuc.A ressurreio dos mortos nessas revolues tinha, portanto, a finalidade de glorificar as novas lutas e no a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginao a tarefa a cumprir, e no de fugir de sua soluo na realidade; de encontrar novamente o esprito da revoluo e no de fazer o seu espectro caminhar outra vez.De 1848 a 1851 o fantasma da velha revoluo anda em todos os cantos: desde Marrast, o rpublicain en gants jaunes(1), que se disfara no velho Bailly, at o aventureiro de aspecto vulgar e repulsivo que se oculta sob a frrea mscara morturia de Napoleo. Todo um povo que pensava ter comunicado a si prprio um forte impulso para diante, por meio da revoluo, se encontra derepente trasladado a uma poca morta, e para que no possa haver sombra de dvida quanto ao retrocesso, surgem novamente as velhas datas, o velho calendrio, os velhos nomes, os velhos ditos que j se haviam tornado assunto de erudio de antiqurio, e os velhos esbirros da lei que h muito pareciam defeitos na poeira dos tempos. A nao se sente como aquele ingls louco de Bedlam vivendo na poca dos antigos faras e lamentando-se diariamente do trabalho pesado que deve executar como garimpeiro nas minas de ouro da Etipia, emparedado na priso subterrnea, uma lmpada de luz mortia presa testa, o feitor dos escravos atrs dele com um longo chicote, e nas sadas a massa confusa de mercenrios brbaros, que no compreendem nem aos forados das minas e nem se entendem entre si, pois no falam uma lngua comum. "E me impuseram tudo isto" - suspira o louco - "a mim, um cidado ingls livre, para que produza ouro para os faras!" "Para que pague as dvidas da famlia Bonaparte" - suspira a nao francesa. O ingls, enquanto esteve em seu juzo perfeito, no podia

  • livrar-se da idia fixa de conseguir ouro. Os franceses, enquanto estiveram empenhados em uma revoluo, no podiam livrar-se da memria de Napoleo, como provaram as eleies de 10 de dezembro. Diante dos perigos da revoluo, ansiavam por voltar abundncia do Egito; e o 2 de Dezembro de 1851 foi a resposta. No s fizeram a caricatura do velho Napoleo, como geraram o prprio velho Napoleo caricaturado, tal como deve aparecer necessariamente em meados do sculo XIX.A revoluo social do sculo XIX no pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. No pode iniciar sua tarefa enquanto no se despojar de toda venerao supersticiosa do passado. As revolues anteriores tiveram que lanar mo de recordaes da histria antiga para se iludirem quanto ao prprio contedo. A fim de alcanar seu prprio contedo, a revoluo do sculo XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes a frase ia alm do contedo; agora o contedo que vai alm da frase.A Revoluo de Fevereiro foi um ataque de surpresa, apanhando desprevenida a velha sociedade, e o povo proclamou esse golpe inesperado como um feito de importncia mundial que introduzia uma nova poca. A 2 de dezembro, a Revoluo de Fevereiro escamoteada pelo truque de um trapaceiro, e o que parece ter sido derrubado j no a monarquia e sim as concesses liberais que lhe foram arrancadas atravs de sculos de luta. Longe de ser a prpria sociedade que conquista para si mesma um novo contedo, o Estado que parece voltar sua forma mais antiga, ao domnio desavergonhadamente simples do sabre e da sotaina. Esta a resta que d ao coup de main(2) de fevereiro de 1848 o coup de tte(3) de dezembro de 1851. O que se ganha facilmente se entrega facilmente.O intervalo de tempo, porm, no passou sem proveito. Entre os anos de 1848 e 1851 a sociedade francesa supriu - e por um mtodo abreviado, por ser revolucionrio - estudos e conhecimentos que em um desenvolvimento regular, de lio em lio, por assim dizer, teriam tido que preceder a Revoluo de Fevereiro se esta devesse constituir mais do que um estremecimento da superfcie. A sociedade parece ter agora retrocedido para antes do seu ponto de partida; na realidade, somente hoje ela cria o seu ponto de partida revolucionrio, isto , a situao, as relaes, as condies sem as quais a revoluo moderna no adquire um carter srio.As revolues burguesas, como as do sculo XVIII, avanam rapidamente de sucesso em sucesso; seus efeitos dramticos

  • excedem uns aos outros; os homens e as coisas se destacam comogemas fulgurantes; o xtase o estado permanente da sociedade; mas estas revolues tm vida curta; logo atingem o auge, e uma longa modorra se apodera da sociedade antes que esta tenha aprendido a assimilar serenamente os resultados de seu perodo de lutas e embates. Por outro lado, as revolues proletrias, como as do sculo XIX, se criticam constantemente a si prprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recome-lo outra vez, escarnecem com impiedosa conscincia as deficincias, fraquezas e misrias de seus primeiros esforos, parecem derrubar seu adversrio apenas para que este possa retirar da terra novas foras e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus prprios objetivos at que se cria uma situao que toma impossvel qualquer retrocesso e na qual as prprias condies gritam:Hic Rhodus, hic salta!Aqui est Rodes, salta aqui!Quanto ao resto, qualquer observador medianamente competente, mesmo que no tivesse seguido passo a passo a marcha dos acontecimentos na Frana, deve ter pressentido que a revoluo estava fadada a um terrvel fiasco. Bastava ouvir os jactanciosos latidos de vitria com que os senhores democratas se congratulavam pelas conseqncias milagrosas que esperavam dosacontecimentos do segundo domingo de maio de 1852. O segundo domingo de maio de 1852 tornara-se em suas cabeas uma idia fixa, um dogma, como na cabea dos quiliastas o dia em que Cristo deveria ressurgir e que assinalaria o comeo da era milenar. Como sempre, a fraqueza se refugiara na crena nos milagres, imaginava o inimigo vencido, quando tinha sido afastada apenas em imaginao, e perdia toda compreenso do presente em uma glorificao passiva do que o futuro reservava e dos feitos que guardava in petto mas que no considerava oportuno revelar ainda. Os heris que procuram refutar sua comprovada incapacidade oferecendo-se apoio mtuo e reunindo-se em um bloco haviam amarrado suas trouxas, recolhido suas coroas de louros adquiridas a crdito e estavam nesse momento empenhados em descontar no mercado de letras de cambio as repblicas in partibus para as quaisj tinham, no silncio de suas almas modestas, previdentemente organizado o corpo governamental. O 2 de Dezembro os

  • surpreendeu como um raio em cu azul e os povos que, em perodos de depresso pusilnime, deixam de boa vontade sua apreenso anterior ser afogada pelos que gritam mais alto, tero talvez se convencido de que j se foi o tempo em que o grasnar dos gansos podia salvar o Capitlio.A Constituio, a Assemblia Nacional, os partidos dinsticos, os republicanos azuis e vermelhos, os heris da frica, o trovo vibrado da tribuna, a cortina de relmpagos da imprensa diria, todaa literatura, os polticos de renome e os intelectuais de prestgio, o cdigo civil e o cdigo penal, a liberte, galit, fraternit e o segundo domingo de maio de 1852 - tudo desaparecera como uma fantasmagoria diante da magia de um homem no qual nem seus inimigos reconhecem um mgico. O sufrgio universal parece ter sobrevivido apenas por um momento, a fim de fazer, de prprio punho, o seu ltimo testamento perante os olhos do mundo inteiro edeclarar em nome do prprio povo: Tudo o que existe merece perecer.No suficiente dizer, como fazem os franceses, que a nao fora tomada de surpresa. No se perdoa a uma nao ou a uma mulher omomento de descuido em que o primeiro aventureiro que se apresenta as pode violar. O enigma no solucionado por tais jogosde palavras; apenas formulado de maneira diferente. No se conseguiu explicar ainda como uma nao de 36 milhes de habitantes pde ser surpreendida e entregue sem resistncia ao cativeiro por trs cavalheiros de indstria.Recapitulemos em linhas gerais as fases que atravessou a revoluo francesa de 24 de fevereiro de 1848 a dezembro de 1851.Trs perodos principais se destacam: o perodo de fevereiro; de 4 de maio de 1848 a 28 de maio de 1849, o perodo da Constituio da Repblica, ou da Assemblia Nacional Constituinte; de 28 de maio de 1849 a 2 de dezembro de 1851, o perodo da Repblica Constitucional ou da Assemblia Nacional Legislativa.O primeiro perodo, de 24 de fevereiro - data da queda de Lus Filipe - at 4 de maio de 1848 - data da instalao da Assemblia Constituinte ou seja, o perodo de fevereiro propriamente dito, pode ser chamado o prlogo da revoluo. Seu carter foi oficialmente expressado pelo fato de que o governo por ele improvisado apresentou-se como um governo provisrio e, assim como o governo, tudo que era proposto, tentado ou enunciado durante esseperodo era proclamado apenas provisrio. Nada e ningum se

  • atrevia a reclamar para si o direito de existncia ou de ao real. Todos os elementos que haviam preparado ou feito a revoluo - a oposio dinstica, a burguesia republicana, a pequena burguesia democrtico-republicana e os trabalhadores social-democratas - encontram provisoriamente seu lugar no governo de fevereiro.No podia ser de outra maneira. O objetivo inicial das jornadas de fevereiro era uma reforma eleitoral, pela qual seria alargado o crculo dos elementos politicamente privilegiados da prpria classe possuidora e derrubado o domnio exclusivo da aristocracia financeira. Quando estalou o conflito de verdade, porm, quando o povo levantou as barricadas, a Guarda Nacional manteve uma atitude passiva, o exrcito no ofereceu nenhuma resistncia sria ea monarquia fugiu, a repblica pareceu ser a seqncia lgica. Cadapartido a interpretava a seu modo. Tendo-a conquistado de armas na mo, o proletariado imprimiu-lhe sua chancela e proclamou-a uma repblica social. Indicava-se, assim, o contedo geral da revoluo moderna, contedo esse que estava na mais singular contradio com tudo que, com o material disponvel, com o grau deeducao atingido pelas massas, dadas as circunstncias e condies existentes, podia ser imediatamente realizado na prtica. Por outro lado, as pretenses de todos os demais elementos que haviam colaborado na Revoluo de Fevereiro foram reconhecidas na parte de leo que obtiveram no governo. Em nenhum perodo, portanto, encontramos uma mistura mais confusa de frases altissonantes e efetiva incerteza e impercia, aspiraes mais entusiastas de inovao e um domnio mais arraigado da velha rotina, maior harmonia aparente em toda a sociedade e mais profunda discordncia entre seus elementos. Enquanto o proletariado de Paris deleitava-se ainda ante a viso das amplas perspectivas que se abriam diante de si e se entregava a discussessrias sobre os problemas sociais, as velhas foras da sociedade sehaviam agrupado, reunido, concertado e encontrado o apoio inesperado da massa da nao: os camponeses e a pequena burguesia, que se precipitaram de golpe sobre a cena poltica depois que as barreiras da monarquia de julho caram por terra.O segundo perodo, de 4 de maio de 1848 at fins de maio de 1849, o perodo da constituio, da fundao da repblica burguesa. Imediatamente aps as jornadas de fevereiro no s viu-se a oposio dinstica surpreendida pelos republicanos, e estes pelos socialistas, como toda a Frana foi surpreendida por Paris. A Assemblia Nacional, que se reunira a 4 de maio de 1848, sendo o

  • resultado de eleies nacionais, representava a nao. Era um protesto vivo contra as presunosas pretenses das jornadas de fevereiro e devia reduzir os resultados da revoluo escala burguesa. O proletariado de Paris, que compreendeu imediatamenteo carter dessa Assemblia Nacional, tentou em vo, a 15 de maio, poucos dias depois de sua instalao, anular pela fora a sua existncia, dissolv-la, desintegrar novamente em suas partes componentes, o organismo por meio do qual o ameaava o esprito reacionrio da nao. Como se sabe, o 15 de Maio no teve outro resultado seno o de afastar Bianqui e seus camaradas, isto , os verdadeiros dirigentes do partido proletrio da cena pblica durantetodo o ciclo que estamos considerando. monarquia burguesa de Lus Filipe s pode suceder uma repblica burguesa, ou seja, enquanto um setor limitado da burguesia governou em nome do rei, toda a burguesia governar agora em nome do povo. As reivindicaes do proletariado de Paris so devaneios utpicos, a que se deve por um paradeiro. A essa declarao da Assemblia Nacional Constituinte o proletariado de Paris respondeu com a Insurreio de junho, o acontecimento de maior envergadura na histria das guerras civis da Europa. A repblica burguesa triunfou. A seu lado alinhavam-se a aristocracia financeira, a burguesia industrial, a classe mdia, a pequena burguesia, o exrcito, o lmpen proletariado organizado em Guarda Mvel, os intelectuais de prestgio, o clero e a populao rural. Do lado do proletariado de Paris no havia seno ele prprio. Mais de trs mil insurretos foram massacrados depois da vitria e quinze milforam deportados sem julgamento. Com essa derrota o proletariado passa para o fundo da cena revolucionria. Tenta readquirir o terreno perdido em todas as oportunidades que se apresentam, sempre que o movimento parece ganhar novo impulso, mas com uma energia cada vez menor e com resultados sempre menores. Sempre que uma das camadas sociais superiores entra em efervescncia revolucionria o proletariado alia-se a ela e, consequentemente, participa de todas as derrotas sofridas pelos diversos partidos, umas depois das outras. Mas esses golpes sucessivos perdem sua intensidade medida que aumenta a superfcie da sociedade sobre a qual so distribudos. Os dirigentesmais importantes do proletariado na Assemblia e na imprensa caem sucessivamente, vtima dos tribunais, e figuras cada vez mais equvocas assumem a sua direo. Lana-se em parte a experincias doutrinrias, bancos de intercmbio e associaes

  • operrias, ou seja, a um movimento no qual renuncia a revolucionar o velho mundo com ajuda dos grandes recursos que lhe so prprios, e tenta, pelo contrrio, alcanar sua redeno independentemente da sociedade, de maneira privada, dentro de suas condies limitadas de existncia, e, portanto, tem por fora que fracassar. Parece incapaz de descobrir novamente em si a grandeza revolucionria ou de retirar novas energias no vnculos que criou, at que todas as classes contra as quais lutou em junho esto, elas prprias, prostradas ao seu lado. Mas pelo menos sucumbe com as honras de uma grande luta histrico-universal; no s a Frana mas toda a Europa treme diante do terremoto de junho, ao passo que as sucessivas derrotas das classes mais altas custam to pouco que s o exagero descarado do partido vitorioso pode faz-las passar por acontecimentos, e so tanto mais ignominiosas quanto mais longe do proletariado est o partido derrotado.A derrota dos insurretos de junho preparara e aplainara, indubitavelmente, o terreno sobre a qual a repblica burguesa podiaser fundada e edificada, mas demonstrara ao mesmo tempo que na Europa as questes em foco no eram apenas de "repblica ou monarquia". Revelara que aqui repblica burguesa significava o despotismo ilimitado de uma classe sobre as outras. Provara que em pases de velha civilizao, com uma estrutura de classes desenvolvida, com condies modernas de produo, e com uma conscincia intelectual na qual todas as idias tradicionais se dissolveram pelo trabalho de sculos - a repblica significava geralmente apenas a forma poltica da revoluo da sociedade burguesa e no sua forma conservadora de vida, como por exemplonos Estados Unidos da Amrica, onde, embora j existam classes, estas ainda no se fixaram, trocando ou permutando continuamenteos elementos que as constituem em um fluxo contnuo, onde os modernos meios de produo, em vez de coincidir com uma superpopulao crnica, compensam, pelo contrrio, a relativa escassez de cabeas e de braos, e onde, finalmente, o febril movimento juvenil da produo material, que tem um novo mundo para conquistar, no deixou nem tempo nem oportunidade de abolir a velha ordem de coisas.Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se haviamcongregado no partido da ordem, contra a classe proletria, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo. Tinham "salvo" a sociedade dos "inimigos da

  • sociedade". Tinham dado como senhas a seu exrcitos as palavras de ordem da velha sociedade - "propriedade, famlia, religio, ordem- e proclamado aos cruzados da contra-revoluo: "Sob este signo Vencers" A partir desse instante, to logo um dos numerosos partidos que se haviam congregado sob esse signo contra os insurretos de junho tenta assenhorear-se do campo de batalha revolucionrio em seu prprio interesse de classe, sucumbe ante o grito: "Propriedade, famlia religio, ordem." A sociedade salva tantas vezes quantas se contrai o crculo de seus dominadores e uminteresse mais exclusivo se impe ao mais amplo. Toda reivindicao ainda que da mais elementar reforma financeira burguesa, do liberalismo mais corriqueiro, do republicanismo mais formal, da democracia mais superficial, simultaneamente castigada como um "atentado sociedade" e estigmatizada como "socialismo". E, finalmente, os prprios pontfices da "religio e da ordem" so derrubados a pontaps de seus trpodes pticos, arrancados de seus leitos na calada da noite, atirados em carros celulares, lanados em masmorras ou mandados para o exlio; seu templo totalmente arrasado, suas bocas tranadas, suas penas quebradas, sua lei reduzida a frangalhos em nome da religio, da propriedade, da famlia e da ordem. Os burgueses fanticos pela ordem so mortos a tiros nas sacadas de suas janelas por bandos de soldados embriagados, a santidade dos seu lares profanada, e suas casas so bombardeadas como diverso em nome da propriedade, da famlia, da religio e da ordem. Finalmente, a ral dasociedade burguesa constitui a sagrada falange da ordem e o heri Crapulinski se instala nas Tulherias como o "salvador da sociedade".

    Captulo IIRetomemos o fio dos acontecimentos.A histria da Assemblia Nacional Constituinte a partir das jornadasde junho a histria do domnio e da desagregao da frao republicana da burguesia, da frao conhecida pelos nomes de republicanos tricolores, republicanos puros, republicanos polticos, republicanos formalistas etc.Sob a monarquia burguesa de Lus Filipe essa frao formara a oposio republicana oficial e era, consequentemente, parte integrante reconhecida do mundo poltico de ento. Tinha seus representantes nas Cmaras e uma considervel esfera de ao na imprensa. Seu rgo parisiense, o National, era considerado to

  • respeitvel, em seu gnero, como o Journal des Dbats. Seu cartercorrespondia posio que ocupava sob a monarquia constitucional. No era uma frao da burguesia unida por grandes interesses comuns e destacadas das outras por condies especficas de produo. Era um grupo de burgueses de idias republicanas - escritores, advogados, oficiais e funcionrios de categoria que deviam sua influncia s antipatias pessoais do pas contra Lus Filipe, memria da velha repblica, f republicana deum grupo de entusiastas, e sobretudo ao nacionalismo francs, cujodio aos acordos de Viena e aliana com a Inglaterra eles atiavam constantemente. Grande parte dos partidrios com que contava o National durante o governo de Lus Filipe eram devidos a esse imperialismo camuflado, que pde consequentemente enfrent-lo mais tarde, durante a repblica, como um inimigo mortal na pessoa de Lus Bonaparte. Combatia a aristocracia financeira da mesma forma que todo o resto da oposio burguesa. As polmicascontra o oramento, que estavam, na Frana, estreitamente ligadas luta contra a aristocracia financeira, proporcionavam uma popularidade demasiado barata e material para editoriais puritanos demasiado abundante para no ser explorado. A burguesia industrial estava-lhe agradecida por sua servil defesa do sistema protecionista francs, que ele aceitava, porm, mais por razes nacionais do que no interesse da economia nacional; a burguesia, como um todo, estava-lhe agradecida por suas torpes denncias contra o comunismo e o socialismo. Quanto ao mais, o partido do National era puramente republicano, ou seja, exigia que a dominao burguesa adotasse formas republicanas ao invs de monrquicas e, principalmente, exigia a parte do leo nesse domnio. Relativamente s condies dessa transformao no tinha um plano claro de ao. O que, pelo contrrio, parecia-lhe claro como a luz do dia e era publicamente admitido nos banquetes reformistas dos ltimos tempos do reinado de Lus Filipe era a sua impopularidade entre os democratas pequenos burgueses e, em particular, perante o proletariado revolucionrio. Esses republicanos puros - os republicanos puros so assim - estavam j a ponto de se contentar no momento com a regncia da duquesa de Orlans, quando irrompeu a Revoluo de Fevereiro e seus representantes mais conhecidos foram apontados para postos no Governo Provisrio. Desde o incio contavam, naturalmente, com o apoio da burguesia e com a maioria na Assemblia Nacional Constituinte, elementos socialistas do Governo Provisrio foram

  • imediatamente excludos da Comisso Executiva formada pela Assemblia Nacional por ocasio de sua instalao, e o partido do National aproveitou a deflagrao da insurreio de junho para dissolver tambm a Comisso Executiva, e livrar-se assim de seus rivais mais prximos, os republicanos pequenos burgueses ou republicanos democratas (Ledru-Rollin etc.). Cavaignac o general dopartido republicano burgus que comandara a batalha de junho, tomou o lugar da Comisso Executiva, com poderes quase ditatoriais. Marrast, ex-redator-chefe do National, tornou-se o presidente perptuo da Assemblia Nacional Constituinte, e os ministrios, bem como todos os demais postos importantes, caram em mos dos republicanos puros.A frao republicano-burguesa, que h muito se considerava a herdeira legtima da monarquia de julho, viu assim excedidas suas mais caras esperanas; alcanou o poder, no, porm, como sonhara, sob o governo de Lus Filipe, atravs de uma revolta liberalda burguesia contra o trono, e sim atravs de um levante do proletariado contra o capital, levante esse que foi sufocado a tiros de canho. O que imaginara como o acontecimento mais contra-revolucionrio. O fruto caiu-lhe nas mos, mas cado da rvore do conhecimento e no da rvore da vida.O domnio exclusivo dos republicanos burgueses durou apenas de 24 de junho a 10 de dezembro de 1848. Resumiu-se na elaborao da Constituio republicana e na proclamao do estado de stio emParis.A nova Constituio era, no fundo, apenas a reedio, em forma republicana, da Carta constitucional de 1830. O limitado cadastro eleitoral da monarquia de julho, que exclua do domnio poltico mesmo uma grande parte da burguesia, era incompatvel com a existncia da repblica burguesa. Em vez dessas restries, a Revoluo de Fevereiro proclamara imediatamente o sufrgio universal e direto. Os republicanos burgueses no puderam desfazer esse ato. Tiveram que contentar-se com acrescentar uma clusula instituindo a obrigatoriedade de pelo menos seis meses de residncia no distrito eleitoral. A velha organizao da administrao, do sistema municipal, do sistema jurdico, militar etc., permaneceu intacta ou, onde foi modificada pela Constituio, a modificao atingia o rtulo, no o contedo, o nome, no a coisa em si.

  • O inevitvel estado-maior das liberdades de 1848, a liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de palavra, de associao de reunio, de educao, de religio etc., receberam um uniforme constitucional que as fez invulnerveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades proclamada como direito absoluto do cidado francs, mas sempre acompanhada da restrio margem, no sentido de que ilimitada desde que no esteja limitada pelos "direitos iguais dos outros e pela segurana pblica" ou por "leis" destinadas a restabelecer precisamente essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurana pblica. Por exemplo: "Os cidados gozam do direito de associao, de reunir-se pacificamente e desarmados, de formular peties e de expressar suas opinies, quer pela imprensa ou por qualquer outro modo. O gozo desses direitos no sofre qualquer restrio, salvo as impostas pelos direitos iguais dos outros e pela segurana pblica. (Captulo II, 8, da Constituio Francesa.) "O ensino livre. A liberdade de ensino ser exercida dentro das condies estabelecidas pela lei e sob o supremo controle do Estado." (Ibidem, 9.) "O domiclio de todos os cidados inviolvel, exceto nas condies prescritas na lei." (Captulo II, 3.) Etc. etc. A Constituio, por conseguinte, refere-se constantemente a futuras leis orgnicas que devero pr em prtica aquelas restries e regular o gozo dessas liberdades irrestritas de maneira que no colidam nem entre si nem com a segurana pblica. E mais tarde essas leis orgnicas foram promulgadas pelos amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram regulamentadas de tal maneira que a burguesia no gozo delas, se encontra livre de interferncia por parte dos direitos iguais das outras classes. Onde so vedadas inteiramente essas liberdades "aos outros" ou permitido o seu gozosob condies que no passam de armadilhas policiais, isto feito sempre apenas no interesse da "segurana pblica", isto , da segurana da burguesia, como prescreve a Constituio. Como resultado, ambos os lados invocam devidamente, e com pleno direito, a Constituio: os amigos da ordem, que ab-rogam todas essas liberdades, e os democratas, que as reivindicam. Pois cada pargrafo da Constituio encerra sua prpria anttese, sua prpria Cmara Alta e Cmara Baixa, isto , liberdade na frase geral, ab-rogao da liberdade na nota margem. Assim, desde que o nome da liberdade seja respeitado c impedida apenas a sua realizao efetiva - de acordo com a lei, naturalmente - a existncia

  • constitucional da liberdade permanece intacta, inviolada, por mais mortais que sejam os golpes assestados contra sua existncia na vida real.Esta Constituio, tornada inviolvel de maneira to engenhosa, era,contudo, como Aquiles, vulnervel em uni ponto; no no calcanhar, mas na cabea, ou por outra, nas duas cabeas em que se constituiu: de um lado, a Assemblia Legislativa, de outro, o Presidente. Um exame da Constituio revelar que s os pargrafos onde definida a relao do Presidente com a Assemblia Legislativa so absolutos, positivos, no contraditrios,e sem tergiversao possvel. Pois os republicanos burgueses tratavam, aqui, de garantir sua posio. Os pargrafos 45 a 70 da Constituio acham-se redigidos de tal maneira que a Assemblia Nacional tem poderes constitucionais para afastar o Presidente, ao passo que este s inconstitucionalmente pode dissolver a Assemblia Nacional, suprimindo a prpria Constituio. Ela mesmaprovoca, portanto, a sua violenta destruio. No s consagra a diviso dos poderes, tal como a Carta de 1830, como a amplia a ponto de transform-la em uma contradio insustentvel. O jogo dos poderes constitucionais, como Guizot denominava as contendas parlamentares entre o Poder Legislativo e o Executivo, ,na Constituio de 1848, constantemente jogado va-banquenot4. De um lado esto 750 representantes do povo, eleitos por sufrgio universal e reelegveis; constituem uma Assemblia Nacional incontrolvel, indissolvel, indivisvel, uma Assemblia Nacional que desfruta de onipotncia legislativa, decide em ltima instncia sobre as questes de guerra, de paz e tratados comerciais, possui, s ela, o direito de anistia e, por seu carter permanente, ocupa perpetuamente o proscnio. Do outro lado est o Presidente, com todos os atributos do poder real, com autoridade para nomear e exonerar seus ministros independentemente da Assemblia Nacional, com todos os recursos do Poder Executivo em suas mos, distribuindo todos os postos e dispondo, assim, na Frana, da existncia de pelo menos um milho e meio de pessoas, pois tantos so os que dependem das 500 mil autoridades e funcionriosde todas as categorias. Tem atrs de si todo o poder das foras armadas. Goza do privilgio de conceder indulto individual aos criminosos, suspender a Guarda Nacional, destruir, com o beneplcito do Conselho de Estado, os conselhos gerais, cantonais e municipais eleitos pelos prprios cidados. A iniciativa e a direode todos os tratados com pases estrangeiros so faculdades

  • reservadas a ele. Enquanto a Assemblia permanece constantemente em cena exposta s crticas da opinio pblica, o Presidente leva uma vida oculta nos Campos Elseos, com o Artigo 45 da Constituio diante dos olhos e gravado no corao, a gritar-lhe diariamente: Frre, il faut mourir!(5) Teu poder cessa no segundo domingo do lindo ms de maio, no quarto ano aps a tua eleio! Tua glria terminar ento, a pea no representada duas vezes, e se tens dvidas, cuida a tempo de sald-las com os 600 mil francos que a Constituio te concede, a menos que prefiras ser recolhido a Clichy na segunda-feira seguinte ao segundo domingo do lindo ms de maio! - Assim, enquanto a Constituio outorga poderes efetivos ao Presidente, procura garantir para a Assemblia Nacional o poder moral. parte o fato de que impossvel criar um poder moral mediante os pargrafos de uma lei, a Constituio maisuma vez se anula ao dispor que o Presidente seja eleito por todos os franceses, atravs do sufrgio direto. Enquanto os votos da Frana so divididos entre os 750 membros da Assemblia Nacional, so aqui, pelo contrrio, concentrados em um nico indivduo. Enquanto cada representante do povo representa apenas este ou aquele partido, esta ou aquela cidade esta ou aquela cabeade ponte, ou at mesmo a mera necessidade de eleger algum dos 750 candidatos, sem levar na devida considerao nem a causa nemo homem, ele o eleito da nao e o ato de sua eleio o trunfo que o povo soberano lana uma vez em cada quatro anos. A Assemblia Nacional eleita est em relao metafsica com a Nao ao passo que o Presidente eleito est em relao pessoal com ela. AAssemblia Nacional exibe realmente, em seus representantes individuais, os mltiplos aspectos do esprito nacional, enquanto noPresidente esse esprito nacional encontra a sua encarnao. Em comparao com a Assemblia ele possui uma espcie de direito divino; Presidente pela graa do povo.Ttis, a deusa do mar, profetizara a Aquiles que ele morreria na flor da juventude. A Constituio que, como Aquiles, tinha seu ponto fraco, tinha tambm como Aquiles o pressentimento de que morreria cedo. Bastava que os republicanos puros empenhados na elaborao da Constituio baixassem o olhar do paraso de sua repblica ideal e olhassem este mundo profano, para perceberem como a arrogncia dos monarquistas, dos bonapartistas, dos democratas, dos comunistas, bem como seu prprio descrdito, cresciam diariamente medida que sua grande obra de arte legislativa chegava ao trmino, sem que para isso Ttis tivesse que

  • sair do mar e vir comunicar-lhes o seu segredo. Tentaram fugir ao destino por meio de um dispositivo constitucional, atravs do 111,segundo o qual toda moo visando reviso da Constituio tinha que ser apoiada pelo menos por trs quartos dos votantes, em trs debates sucessivos, entre os quais devia haver sempre um ms de intervalo, e que exigia ademais, que pelos menos 500 membros da Assemblia Nacional participassem da votao. Com isto fizeram apenas a tentativa desesperada de exercer, como minoria a que profeticamente j se viam reduzidos - um poder que naquele momento, quando dispunham de maioria parlamentar e de todos os recursos da autoridade governamental, escapava-lhes dia a dia das mos.Finalmente a Constituio, em um pargrafo melodramtico, se confia " vigilncia e ao patriotismo de todo o povo francs e de cada cidado francs", depois de ter anteriormente confiado os "vigilantes" e "patriotas", em um outro pargrafo, aos cuidados mais ternos e dedicados da Alta Corte de justia, a Haute Court, expressamente criada para isso.Esta era a Constituio de 1848, que a 2 de dezembro de 1851 no foi derrubada por uma cabea, mas caiu por terra ao contato de um simples chapu; esse chapu, evidentemente, era um tricrnio napolenico.Enquanto os republicanos burgueses se entrelinham, na Assemblia, em criar, discutir e votar essa Constituio, fora da Assemblia Cavaignac mantinha o estado de stio em Paris. O estado de stio foi a parteira da Assemblia Constituinte em seus trabalhos de criao republicana. Se a Constituio foi subseqentemente liquidada por meio de baionetas, preciso no esquecer que foi tambm por baionetas, e estas voltadas contra o povo, que teve de ser protegida no ventre materno e trazida ao mundo. Os precursores dos "respeitveis republicanos" haviam mandado seu smbolo, a bandeira tricolor, em uma excurso pela Europa. Eles prprios, por sua vez, produziram um invento que percorreu todo o Continente mas que retornava Frana com amor sempre renovado, at que agora adquirira carta de cidadania na metade de seus departamentos - o estado de stio. Um invento esplndido, empregado periodicamente em todas as crises ocorridas durante a Revoluo Francesa. O quartel e o bivaque, porm, que eram assim postos periodicamente sobre a cabea da sociedade francesa a fim de comprimir-lhe o crebro e reduzi-la

  • passividade; o sabre e o mosqueto, aos quais era periodicamente permitido desempenhar o papel de juizes e administradores, de tutores e censores, brincar de polcia e servir de guarda-noturno; o bigode e o uniforme, periodicamente proclamados como sendo a mais alta expresso da sabedoria da sociedade e como seus guardies - no deviam acabar forosamente o quartel e o bivaque, o sabre e o mosqueto, o bigode e o uniforme, tendo a idia de salvar a sociedade de uma vez para sempre, proclamando seu prprio regime como a mais alta forma de governo e libertando completamente a sociedade civil do trabalho de governar a si mesma? O quartel e o bivaque, o sabre e o mosqueto, o bigode e o uniforme tinham forosamente que acabar tendo essa idia, com tanto mais razo quanto poderiam ento esperar tambm melhor recompensa por esses servios mais importantes, ao passo que atravs de um mero estado de stio peridico e de passageiros salvamentos da sociedade a pedido desta ou daquela frao burguesa, conseguiam pouca coisa de slido, exceto alguns mortose feridos e algumas caretas amigveis por parte dos burgueses. Nodeveriam finalmente os militares jogar um dia o estado de Stio em seu prprio interesse e em seu prprio benefcio, sitiando ao mesmo tempo as bolsas burguesas? Alm disso, seja dito de passagem, preciso no esquecer que o Coronel Bernard, o mesmopresidente da comisso militar que, sob Cavaignac, ajudara a deportar sem julgamento 15 mil insurretos, estava novamente frente das comisses militares que atuavam em Paris.Se, com o estado de stio na capital francesa, os respeitveis e puros republicanos plantaram o viveiro em que haviam de crescer os pretorianos do 2 de dezembro de 1851, so, por outro lado, dignos de louvor porque, em vez de exagerarem o sentimento nacional, como foi o caso de Lus Filipe, agora que dispunham do poder nacional, rastejavam diante dos pases estrangeiros e, em vezde libertar a Itlia, deixaram que fosse reconquistada pelos austracos e napolitanos. A eleio de Lus Bonaparte como presidente, em 10 de dezembro de 1848, ps fim ditadura de Cavaignac e Assemblia Constituinte.O 44 da Constituio declara: "O Presidente da Repblica Francesa no dever ter perdido nunca sua cidadania francesa." O primeiro presidente da Repblica Francesa, L.N. Bonaparte, tinha no s perdido sua cidadania francesa, no s fora um agente especial dos ingleses, mas era at naturalizado suo.

  • Tratei em outra passagem do significado da eleio de 10 de dezembro. No voltarei ao assunto aqui. Ser suficiente observar que foi uma reao dos camponeses, que tinham tido que pagar as custas da Revoluo de Fevereiro, contra as demais classes da nao, uma reao do campo contra a cidade. Esta reao encontrou grande apoio no exrcito, ao qual os republicanos do National no haviam dado nem glria nem remunerao adicional, entre a alta burguesia, que saudou Bonaparte como uma ponte para a monarquia, entre os proletrios e pequenos burgueses, que o saudaram como um flagelo para Cavaignac. Terei oportunidade maisadiante de examinar mais detalhadamente a relao dos camponeses com a Revoluo Francesa.O perodo compreendido de 20 de dezembro de 1848 dissoluo da Assemblia Constituinte em maio de 1849, abrange a histria do ocaso dos republicanos burgueses. Aps terem fundado uma repblica para a burguesia, expulsado do campo de luta o proletariado revolucionrio e reduzido momentaneamente ao silncio a pequena burguesia democrtica, so eles mesmos postosde lado pela massa da burguesia, que com justa razo reclama essa repblica como sua propriedade. Essa massa era, porm, monrquica. Parte dela, latifundirios, dominara durante a Restaurao e era, portanto, legitimista. A outra parte, os aristocratas da finana e os grandes industriais, havia dominado durante a monarquia de julho e era, consequentemente, orleanista. Os altos dignitrios do exrcito, da universidade, da igreja, da justia, da academia e da imprensa podiam ser encontrados dos dois lados, embora em propores vrias. Aqui, na repblica burguesa, que no ostentava nem o nome de Bourbon nem o nome de Orlans, e sim o nome de Capital, haviam encontrado a forma de governo na qual podiam governar conjuntamente. A insurreio de junho j os unira no "partido da ordem". Era agora necessrio, em primeiro lugar, afastar o ncleo de republicanos burgueses que ocupavam ainda as cadeiras da Assemblia Nacional. Na mesma proporo em que esses republicamos puros haviam sido brutais em seu emprego da fora fsica contra o povo, eram agora covardes, dissimulados, desanimados e incapazes, de lutar na hora da retirada, quando se tratava de assegurar seu republicanismo e seus direitos legislativos contra o Poder Executivo e os monarquistas. No preciso relatar aqui a histria ignominiosa de sua dissoluo. No sucumbiram; desapareceram. Sua histria terminou para sempre, e tanto dentro como fora da Assemblia,

  • figuram no perodo seguinte apenas como recordaes, recordaes que parecem reviver sempre que o mero nome repblica est novamente em causa e sempre que o conflito revolucionrio ameaa descer ao nvel mais baixo. Posso observar de passagem que o jornal que deu seu nome a esse partido, o National, foi convertido ao socialismo no perodo seguinte.Antes de terminarmos com este perodo precisamos ainda lanar um olhar retrospectivo aos dois poderes, um dos quais aniquilou o outro a 2 de dezembro de 1848 at a dissoluo da Assemblia Constituinte. Referimo-nos a Lus Bonaparte, de um lado, e ao partido dos monarquistas coligados, o partido da ordem, da alta burguesia, do outro. Ao ascender presidncia Bonaparte formou imediatamente um ministrio com base no partido da ordem, frente do qual colocou Odilon Barrot, o velho dirigente, nota bene, da frao mais liberal da burguesia parlamentar. O Sr. Barrot havia finalmente conseguido a pasta ministerial cujo espectro o perseguiadesde 1930 e, melhor ainda, a chefia do ministrio; no, todavia, como imaginara sob Lus Filipe, como o dirigente mais avanado da oposio parlamentar, mas sim com a tarefa de liquidar um Parlamento e como aliado dos seus piores inimigos, os jesutas e oslegitimistas. Trouxe finalmente a noiva para casa, mas s depois de prostituda. O prprio Bonaparte parecia ter-se apagado completamente. Esse partido agia por ele.Logo na primeira reunio do conselho de ministros foi resolvida a expedio a Roma que, concordou-se, seria feita revelia da Assemblia Nacional, da qual seriam arrancadas as verbas necessrias sob falsos pretextos. Assim, comearam burlando a Assemblia Nacional e conspirando secretamente com os poderes absolutistas do estrangeiro contra a repblica romana revolucionria. Foi do mesmo modo e por meio das mesmas manobras que Bonaparte preparou o seu golpe do 2 de Dezembro contra o Legislativo realista e sua repblica Constitucional. preciso no esquecer que o mesmo partido que formou o ministrio de Bonaparte a 20 de dezembro de 1848 constitua a maioria da Assemblia Nacional Legislativa a 2 de dezembro de 1851.Em agosto a Assemblia Constituinte decidira s dissolver-se depois de ter elaborado e promulgado toda uma srie de leis orgnicas que deveriam complementar a Constituio. A 6 de janeiro de 1849 o partido da ordem fez com que um deputado de nome Rateau apresentasse moo propondo que a Assemblia

  • interrompesse a discusso das leis orgnicas e decidisse sobre suaprpria dissoluo. No s o ministrio, chefiado por Odilon Barrot, mas todos os membros monarquistas da Assemblia Nacional, indicaram nesse momento, em termos imperiosos, que a dissoluoera necessria para a restaurao do crdito, para a consolidao da ordem, para pr fim aos indefinidos arranjos provisrios e estabelecer uma situao definitiva; que a Assemblia impedia a atuao do novo governo e procurava prolongar sua existncia apenas com intuitos malvolos; que o pas estava farto dela. Bonaparte tomou nota de todas essas invectivas contra o Poder Legislativo, a 2 de dezembro de 1851 demonstrou aos parlamentares que havia aproveitado a lio. Voltou contra eles seus prprios argumentos.O ministrio Barrot e o partido da ordem foram mais longe. Fizeram com que de toda a Frana fossem dirigidas peties Assemblia Nacional, nas quais se requeria amavelmente que levantasse acampamento. Levaram, assim, as massas desorganizadas do povo luta contra a Assemblia Nacional, expresso constitucionalmenteorganizada do povo. Ensinaram Bonaparte a apelar para o povo contra as assemblias parlamentares. Finalmente, a 29 de janeiro de1849, chegou o dia no qual a Assemblia Constituinte deveria decidir sua prpria dissoluo. Encontrou o edifcio em que se realizavam suas sesses ocupado pelos militares; Changarnier, o general do partido da ordem, em cujas mos se concentrava o comando supremo da Guarda Nacional e das tropas de linha, realizou em Paris uma grande revista de tropas, como se uma batalha estivesse iminente, e os monarquistas coligados declararamameaadoramente Assemblia Constituinte que seria empregada aforca caso ela se mostrasse pouco dcil. A Assemblia mostrou-se dcil e ganhou apenas o brevssimo perodo adicional de vida que negociara. Que foi o 29 de janeiro seno o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851, realizado desta vez pelos monarquistas juntamente com Bonaparte contra a Assemblia Nacional republicana? Esses senhores no perceberam, ou no quiseram perceber, que Bonaparte se valeu do 29 de janeiro de 1849 para fazer com que uma parte das tropas desfilasse diante dele nas Tulherias e aproveitou avidamente essa primeira convocao do poder militar contra o poder parlamentar para evocar Calgula. Eles, naturalmente, viam apenas o seu Changarnier.Um dos motivos que levaram especialmente o partido da ordem a encurtar pela fora a durao da vida da Assemblia Constituinte

  • foram as leis orgnicas suplementares Constituio, tais como a lei do ensino, a lei sobre o culto religioso etc. Para os monarquistas coligados era da maior importncia que eles prprios elaborassem essas leis, evitando que fossem feitas pelos republicanos que j se mostravam desconfiados. Entre essas leis orgnicas, entretanto, havia tambm uma lei regulamentando as responsabilidades do presidente da Repblica. Em 1851 a Assemblia Legislativa ocupava-se precisamente da redao dessa lei quando Bonaparte impediu esse golpe com o golpe de 2 de dezembro. Que no teriam dado os monarquistas coligados em sua campanha parlamentar de inverno de 1851 para terem mo j pronta esta Lei Sobre a Responsabilidade Presidencial e elaborada, ademais, por uma Assemblia republicana desconfiada e hostil!Depois que a Assemblia Constituinte havia ela prpria desmantelado sua ltima arma a 29 de janeiro de 1849, o ministrio Barrot e os amigos da ordem perseguiram-na at a morte, no deixaram por fazer nada que pudesse humilh-la e arrancaram de sua desesperada debilidade leis que custaram o derradeiro resqucio de respeito aos olhos do pblico. Bonaparte, ocupado com sua idia fixa napolenica, foi suficientemente atrevido para explorar publicamente essa degradao do poder parlamentar. Pois quando a 8 de maio de 1849 a Assemblia Nacional aprovou um voto de censura do ministrio em vista da ocupao de Civitavecchia por Oudinot e ordenou-lhe que reduzisse a expedio romana ao objetivo proposto, Bonaparte na mesma noite publicou no Moniteur uma carta a Oudinot, na qual se congratulava com ele por suas proezas hericas e, em contraste com os escribas parlamentares, assumiu j a posse de generoso protetor do exrcito. Isto provocou sorrisos dos monarquistas que o consideravam apenas como enganado por eles. Finalmente, quandoMarrast, o presidente da Assemblia Constituinte, acreditou por um momento que a segurana da Assemblia Nacional estava em perigo e, confiando na Constituio, requisitou um coronel com seu regimento, o coronel negou-se a atender, invocou a disciplina e recomendou que Marrast apelasse para Changarnier; este repeliu com desprezo o pedido, observando que no gostava de baionetas inteligentes. Em novembro de 1851 quando os monarquistas coligados quiseram iniciar a luta decisiva contra Bonaparte, tentaram introduzir por meio de seu clebre Projeto dos Questores oprincpio da requisio direta de tropas pelo presidente da Assemblia Nacional. Um de seus generais, Lefl, subscrevera o

  • projeto. Em vo Changarnier votou a favor da proposta e Thiers rendeu homenagem previdncia da antiga Assemblia Constituinte. O ministro da Guerra, Saint-Arnaud, respondeu-lhe como Changarnier respondera a Marrast - o que lhe valeu a aclamao d Montanha!Foi assim que o prprio partido da ordem, quando no constitua ainda a Assemblia Nacional, quando era ainda apenas o ministrio,estigmatizou o regime parlamentar. E brada aos cus quando o 2 de Dezembro de 1851 baniu esse regime da Frana!

    Captulo IIIA Assemblia Legislativa Nacional reuniu-se a 28 de maio de 1849. A2 de dezembro de 1851 foi dissolvida. Esse perodo cobre a vida efmera da repblica constitucional ou repblica parlamentar.Na primeira Revoluo Francesa o domnio dos constitucionalistas seguido do domnio dos girondinos e o domnio dos girondinos pelo dos jacobinos. Cada um desses partidos se apoia no mais avanado. Assim que impulsiona a revoluo o suficiente para se tornar incapaz de lev-la mais alm, e muito menos de marchar sua frente, posto de lado pelo aliado mais audaz que vem atrs e mandado guilhotina. A revoluo move-se, assim, ao longo de uma linha ascensional.Com a Revoluo de 1848 d-se o inverso. O partido proletrio aparece como um apndice do partido pequeno-burgus democrtico. trado e abandonado por esse a 16 de abril, a 15 de maio e nas jornadas de junho. O partido democrata, por sua vez, se apoia no partido republicano burgus. Assim que consideram firmada a sua posio os republicanos burgueses desvencilham-se do companheiro inoportuno e apoiam-se sobre os ombros do partido da ordem. O partido da ordem ergue os ombros fazendo cair aos trambolhes os republicanos burgueses e atira-se, por sua vez, nos ombros das foras armadas. Imagina manter-se ainda sobre estes ombros militares, quando, um belo dia, percebe que se transformaram em baionetas. Cada partido ataca par trs aquele queprocura empurr-lo para a frente e apoia pela frente naquele que o empurra para trs. No de admirar que nessa postura ridcula perca o equilbrio e, feitas as inevitveis caretas, caia por terra em estranhas cabriolas. A revoluo move-se, assim, em linha descendente. Encontra-se nesse estado de movimento regressivo antes mesmo de ser derrubada a ltima barricada de fevereiro e constitudo o primeiro rgo revolucionrio.

  • O perodo que temos diante de ns abrange a mais heterognea mistura de contradies clamorosas: constitucionalistas que conspiram abertamente contra a constituio; revolucionrios declaradamente constitucionalistas; uma Assemblia Nacional que quer ser onipotente e permanece sempre parlamentar; uma Montanha que encontra sua vocao na pacincia e se consola de suas derrotas atuais com profecias de vitrias futuras; realistas que so patres conscripti(6) da repblica e que so forados pela situao a manter no estrangeiro as casas reais hostis, de que so partidrios, e a manter na Frana a repblica que odeiam; um Poder Executivo que encontra sua fora em sua prpria debilidade e sua respeitabilidade no desprezo que inspira; uma repblica que nada mais do que a infmia combinada de duas monarquias, a Restaurao e a monarquia de julho, com rtulo imperialista; alianas cuja primeira clusula a separao; lutas cuja primeira lei a indeciso; agitao desenfreada e desprovida de sentido em nome da tranqilidade, os mais solenes sermes sobre a tranqilidade em nome da revoluo; paixes sem verdade, verdades sem paixes, heris sem feitos hericos, histria sem acontecimentos; desenvolvimento cuja nica fora propulsora parece ser o calendrio, fatigante pela constante repetio das mesmas tenses e relaxamentos; antagonismos que parecem evoluir periodicamente para um clmax, unicamente para se embotarem e desaparecer sem chegar a resolver-se; esforos pretensiosamente ostentados e terror filisteu ante o perigo de o mundo acabar-se, e ao mesmo tempo as intrigas mais mesquinhas ecomdias palacianas representadas pelos salvadores do mundo que, em seu laisser aller(7) recordam mais do que o dia do juzo finalos tempo da Fronda - o gnio coletivo oficial da Frana reduzido a zero pela estupidez astuciosa de um nico indivduo; a vontade coletiva da nao, sempre que se manifesta por meio do sufrgio universal, buscando sua expresso adequada nos inveterados inimigos dos interesses das massas, at que finalmente a encontra na obstinao de um flibusteiro. Se existe na histria do mundo um perodo sem nenhuma relevncia, este. Os homens e os acontecimentos aparecem como Schlemihls invertidos, como sombras que perderam seus corpos. A revoluo paralisa seus prprios portadores, e dota apenas os adversrios de uma fora apaixonada. Quando o "espectro vermelho", continuamente conjurado e exorcizado pelos contra-revolucionrios, finalmente

  • aparece, no traz cabea o barrete frgio da anarquia, mas envergao uniforme da ordem, os culotes vermelhos.Vimos que o ministrio nomeado por Bonaparte, no dia de sua ascenso, 20 de dezembro de 1848, era um ministrio do partido da ordem, da coligao legimitista e orleanista. Esse ministrio Barrot-Falloux sobrevivera Assemblia Constituinte republicana, cujo termo de vida cortara de um modo mais ou menos violento, e encontrava-se ainda ao leme. Changarnier, o general dos monarquistas coligados, continuou a reunir em sua pessoa o comando geral da Primeira Diviso do Exrcito e da Guarda Nacional de Paris. Finalmente, as eleies gerais haviam assegurado ao partido da ordem uma ampla maioria na Assemblia Nacional. Os deputados e pares de Lus Filipe defrontaram-se aqui com uma hoste sagrada de legitimistas, para os quais muitos dos votos da nao haviam-se transformado em cartes de ingresso para o teatro poltico. A representao bonapartista era por demais escassa para poder formar um partido parlamentar independente. Apareciam apenas como mauvaise queue(8) do partido da ordem. O partido da ordem encontrava-se, assim, de posse do poder governamental, do exrcito e do Poder Legislativo, em suma, de todo o poder estatal; fora moralmente fortalecido pelas eleies gerais, que fizeram aparecer o seu domnio como sendo a expresso da vontade do povo, e pelo simultneo triunfo da contra-revoluo em todo o continente europeu.Nunca um partido iniciou sua campanha com tantos recursos ou sob auspcios to favorveis.Os republicanos puros naufragados verificaram que estavam reduzidos a um grupo de cerca de 50 homens na Assemblia Legislativa Nacional, chefiados pelos generais africanos Cavaignac, Lamoricire e Bedeau. O grande partido da oposio, entretanto, eraconstitudo pela Montanha, o partido social-deomocrata adotara no Parlamento este nome de batismo. Comandava mais de 200 dos 750 votos da Assemblia Nacional e era, por conseguinte, pelo menos to poderoso quanto qualquer das trs fraes partido da ordem tomadas isoladamente. Sua inferioridade numrica em comparao com toda a coligao monarquista parecia estar compensada por circunstncias especiais. No s as eleies departamentais demonstraram que ele havia conquistado um nmero considervel de partidrios entre a populao rural como contava em suas fileiras com quase todos os deputados eleitos por Paris; o exrcito

  • fizera profisso de f democrtica elegendo trs suboficiais, e o lder da Montanha, Ledru-Rollin, em contraste com todos os representantes do partido da ordem, fora elevado nobreza parlamentar por cinco departamentos, que haviam concentrado nelea sua votao. Em vista dos inevitveis choques entre os monarquistas e de todo o partido da ordem com Bonaparte, a 28 de maio de 1849 a Montanha parecia ter diante de si todos os elementos de xito. Quinze dias depois perdia tudo, inclusive a honra.Antes de prosseguirmos com a histria parlamentar desta poca tornam-se necessrias algumas observaes a fim de evitar as concepes errneas to comuns a respeito do carter geral da poca que temos diante de ns. Aos olhos dos democratas, o perodo da Assemblia Legislativa Nacional caracterizava-se pelo mesmo problema vivido durante a Assemblia Constituinte: a simples luta entre republicanos e monarquistas. Resumiam, entretanto, o movimento propriamente dito em uma s palavra: "reao" - noite em que todos os gatos so pardos e que lhes permite desfiar todos os seus lugares-comuns de guarda-noturno. E, certamente, primeira vista, o partido da ordem revela um emaranhado de diferentes faces monarquistas, que no s intrigam uma contra a outra, cada qual tentando elevar ao trono o seu prprio pretendente e excluir o da faco contrria, como se unem todas no dio comum e nas investidas comuns contra a "repblica". Em contraste com essa conspirao monarquista, a Montanha, por seu lado, aparece como representante da "repblica". O partido da ordem parece estar perpetuamente empenhado em uma "reao", dirigida contra a imprensa, o direito de associaes e coisas semelhantes, uma reao nem mais nem menos como a que sucedeu na Prssia, e que, com na Prssia, exercida na forma de brutal interferncia policial por parte da burocracia, da gendarmaria e dos tribunais. A Montanha, por sua vez, est igualmente ocupada em aparar esses golpes, defendendo assim os "eternos direitos do homem", como todos os partidos supostamente populares vm fazendo, mais ou menos, h um sculo e meio. Quando, porm, se examina mais de perto situaoe os partidos, desaparece essa aparncia superficial que dissimula a luta de classes e a fisionomia peculiar da poca.Os legitimistas e os orleanistas, como dissemos, formavam as duas grandes faces do partido da ordem. O que ligava estas faces aos seus pretendentes e as opunha uma outra seriam apenas as

  • flres-de-ls e a bandeira tricolor, a Casa dos Bourbons e a Casa de Orlans, diferentes matizes do monarquismo? Sob os Bourbons governara a grande propriedade territorial, com seus padres e lacaios; sob os Orlans, a alta finana, a grande indstria, o alto comrcio, ou seja, o capital, com seu squito de advogados, professores e oradores melfluos. A monarquia legitimista foi apenas a expresso poltica do domnio hereditrio dos senhores deterra, como a monarquia de julho fora apenas a expresso poltica do usurpado domnio dos burgueses arrivistas. O que separava as duas faces, portanto, no era nenhuma questo de princpios, eram suas condies materiais de existncia, duas diferentes espcies de propriedade, era o velho contraste entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e o latifndio. Que havia, ao mesmo tempo, velhas recordaes, inimizades pessoais, temores e esperanas, preconceitos e iluses, simpatias e antipatias, convices, questes de f e de princpio que as mantinham ligadasa uma ou a outra casa real - quem o nega? Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condies sociais, maneiras de pensar e concepes de vida distintas e peculiarmente constitudas.A classe inteira os cria e os forma sobre a base de suas condies materiais e das relaes sociais correspondentes. O indivduo isolado, que as adquire atravs da tradio e da educao, poder imaginar que constituem os motivos reais e o ponto de partida de sua conduta. Embora orleanistas e legitimistas, embora cada facose esforasse por convencer-se e convencer os outros de que o queas separava era sua lealdade s duas casa reais, os atos provaram mais tarde que o que impedia a unio de ambas era mais a divergncia de seus interesses. E assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente e faz, nas lutas histricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua formao real e de seusinteresses reais, o conceito que fazem de si do que so na realidade. Orleanistas e legitimistas encontram-se lado a lado na repblica, com pretenses idnticas. Se cada lado desejava levar a cabo a restaurao de sua prpria casa real, contra a outra, isto significava apenas que cada um dos dois grandes interesses em que se divide a burguesia - o latifndio e o capital - procurava restaurar sua prpria supremacia e suplantar o outro. Falamos em dois interesses da burguesia porque a grande propriedade territorial, apesar de suas tendncias feudais e de seu orgulho de raa, tornou-se completamente burguesa com o desenvolvimento da

  • sociedade moderna. Tambm os tories na Inglaterra imaginaram pormuito tempo entusiasmar-se pela monarquia, a igreja e as maravilhas da velha Constituio inglesa,. at que a hora do perigo arrancou-lhes a confisso de que se entusiasmam apenas pela renda territorial.Os monarquistas coligados intrigavam-se uns contra os outros pela imprensa, em Ems, em Claremont, fora do Parlamento. Atrs dos bastidores envergavam novamente suas velhas librs orleanistas e legitimistas e novamente se empenhavam nas velhas disputas. Mas diante do pblico, em suas grande representaes de Estado, como grande partido parlamentar, iludem suas respectivas casas reais com simples mesuras e adiam in infinitum a restaurao da monarquia. Exercem suas verdadeiras atividades como partido da ordem, ou seja, sob um rtulo social, e no sob um rtulo poltico; como representantes do regime burgus, e no como paladinos de princesas errantes; como classe-burguesa contra as outras classes e no como monarquistas contra republicanos. E como partido da ordem exerciam um poder mais amplo e severo sobre as demais classes da sociedade do que jamais haviam exercido sob a Restaurao ou sob a monarquia de julho, um poder que, de maneira geral, s era possvel sob a forma de repblica parlamentar,pois apenas sob esta forma podiam os dois grandes setores da burguesia francesa unir-se e, assim, pr na ordem do dia o domnio de sua classe, em vez do regime de uma faco privilegiada desta classe. Se, no obstante, como partido da ordem, insultavam tambm a repblica e manifestavam a repugnncia que sentiam por ela, isto no era devido apenas a recordaes monarquistas. O instinto ensinava-lhes que a repblica, bem verdade, torna completo seu domnio poltico, mas ao mesmo tempo solapa suas fundaes sociais, uma vez que tm agora de se defrontar com as classes subjugadas e lutar com elas sem qualquer mediao, sem poderem esconder-se atrs da coroa, sem poderem desviar o interesse da nao com as lutas secundrias que sustentavam entresi e contra a monarquia. Era um sentimento de fraqueza que os faziarecuar das condies puras do domnio de sua prpria classe e ansiar pelas antigas formas, mais incompletas, menos desenvolvidas e portanto menos perigosas, desse domnio. Por outro lado, cada vez que os monarquistas coligados entram em conflito com o pretendente que se lhes opunha, com Bonaparte, cada vez que julgam sua onipotncia parlamentar ameaada pelo Poder Executivo, cada vez, portanto, que tm que exibir o ttulo

  • poltico de seu domnio, apresentam-se como republicanos e no como monarquistas, desde o orleanista Thiers, que adverte a Assemblia Nacional de que a repblica o que menos os separa, at o legitimista Berryer que, a 2 de dezembro de 1851, cingindo uma faixa tricolor, arenga o povo reunido diante da prefeitura do dcimo distrito em nome da repblica. claro que um eco zombeteiro responde-lhe: Henrique V! Henrique V!Contra a burguesia coligada fora formada uma coalizo de pequenos burgueses e operrios, o chamado partido social democrata. A pequena burguesia percebeu que tinha sido mal recompensada depois das jornada e junho de 1848, que seus interesses materiais corriam perigo e que as garantias democrticasque deviam assegurar a efetivao desses interesses estavam sendo questionadas pela contra-revoluo. Em vista disto aliou-se aos operrios. Por outro lado, sua representao parlamentar, a Montanha, posta margem durante a ditadura dos republicanos burgueses, reconquistara na segunda metade do perodo da Assemblia Constituinte sua popularidade perdida com a luta contraBonaparte e os ministros monarquistas. Conclura uma aliana com os dirigentes socialistas. Em fevereiro de 1849 a reconciliao foi comemorada com banquetes. Foi elaborado um programa comum, organizados comits eleitorais comuns e lanados candidatos comuns. Quebrou-se o aspecto revolucionrio das reivindicaes sociais do proletariado e deu-se a elas uma feio democrtica; despiu-se a forma puramente poltica das reivindicaes democrticas da pequena burguesia e ressaltou-se seu aspecto socialista. Assim surgiu a social-democracia. A nova Montanha, resultado dessa combinao, continha, alm de alguns figurantes tirados da classe operria e de alguns socialistas sectrios, os mesmos elementos da velha Montanha, mas, mais fortes numericamente. Em verdade, ela se tinha modificado no curso do desenvolvimento, com a classe que representava. O carter peculiarda social-democracia resume-se no fato de exigir instituies democrtico-republicanas como meio no de acabar com dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e transform-lo em harmonia. Por mais diferentes que sejam as medidas propostas para alcanar esse objetivo, por mais que sejam enfeitadas com concepes mais ou menos revolucionrias, o contedo permanece o mesmo. Esse contedo a transformao da sociedade por um processo democrtico, pormuma transformao dentro dos limites da pequena burguesia. S

  • que no se deve formar a concepo estreita de que a pequena burguesia, por princpio, visa a impor um interesse de classe egosta. Ela acredita, pelo contrrio, que as condies especiais para sua emancipao so as condies gerais sem as quais a sociedade moderna no pode ser salva nem evitada a luta de classes. No se deve imaginar, tampouco, que os representantes democrticos sejam na realidade todos shopkeepers (lojistas) ou defensores entusiastas destes ltimos. Segundo sua formao e posio individual podem estar to longe deles como o cu da terra.O que os toma representantes da pequena burguesia o fato de quesua mentalidade no ultrapassa os limites que esta no ultrapassa na vida, de que so consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e solues para os quais o interesse material e a posio social impelem, na prtica, a pequena burguesia. Esta , em geral, a relao que existe entre os representantes polticos e literrios de uma classe e a classe que representam.Depois desta anlise, evidente que se a Montanha lutava continuamente contra o partido da ordem em prol da repblica e doschamados direitos do homem nem a repblica nem os direitos do homem constituam seu objetivo final, da mesma maneira por que um exrcito ao qual se quer despojar de suas armas e que resiste no entrou em luta, com o objetivo de conservar a posse de suas armas.Logo que se reuniu a Assemblia Nacional, o partido da ordem provocou a Montanha. A burguesia sentia agora a necessidade de acabar com a pequena burguesia democrtica, assim como um ano atrs compreendera a necessidade de ajustar contas com o proletariado revolucionrio. Apenas, a situao do adversrio era diferente. A fora do partido proletrio estava nas ruas, ao passo que a da pequena burguesia estava na prpria Assemblia Nacional.Tratava-se, pois de atra-los para fora da Assemblia Nacional, para as ruas, e fazer com que eles mesmos destroassem sua fora parlamentar antes que o tempo e as circunstncias pudessem consolid-la. A Montanha precipitou-se de corpo e alma na armadilha.O bombardeio de Roma pelas tropas francesas foi a isca que lhe atiraram. Violava o artigo 5 da Constituio, que proibia qualquer declarao de guerra por parte do Poder Executivo sem o assentimento da Assemblia Nacional, e em resoluo de 8 de maio

  • a Assemblia Constituinte expressara sua desaprovao expedio romana. Baseado nisso, a 11 de junho de 1849 Ledru-Rollin apresentou um projeto de impeachment contra Bonaparte e seus ministros. Exasperado pelas alfinetadas de Thiers,deixou-se na realidade arrastar ao ponto de ameaar defender a Constituio por todos os meios, inclusive de armas na mo. A Montanha levantou-se como um s homem e repetiu esse apelo s armas. A 12 de junho a Assemblia Nacional rejeitou o projeto de impeachment e a Montanha deixou o Parlamento. Os acontecimentos de 13 de junho so conhecidos: a proclamao lanada por uma ala da Montanha declarando Bonaparte e seus ministros "fora da Constituio!"; a passeata da Guarda Nacional democrtica que, desarmada como estava, dispersou-se ao defrontar as tropas de Changarnier etc. etc. Uma parte da Montanha fugiu para o estrangeiro; outra parte foi citada pelo Supremo Tribunal de Bourges, e uma resoluo parlamentar submeteu os restantes vigilncia de bedel do presidente da Assemblia Nacional. O estado de stio foi novamente declarado em Paris e a alademocrtica da Guarda Nacional dissolvida. Quebrou-se, assim, a influncia da Montanha no Parlamento e a fora da pequena burguesia em Paris.Lyon, onde o 13 de junho dera a senha para uma sangrenta insurreio operria foi, juntamente com os cinco departamentos adjacentes, declarada igualmente sob estado de stio, situao que perdura at o presente momento.A maior parte da Montanha abandonara sua vanguarda na hora difcil, recusando-se a assinar a proclamao. A imprensa desertara,apenas dois jornais ousando publicar o pronunciamento. A pequenaburguesia traiu seus representantes, pelo fato de a Guarda Nacional ou no aparecer ou, onde apareceu, impedir o levantamento de barricadas. Os representantes, por sua vez, ludibriaram a pequena burguesia, pelo fato de que os seus pretensos aliados do exrcito no apareceram em lugar nenhum. Finalmente, em vez de ganhar foras com o apoio do proletariado, o partido democrtico infetara oproletariado com sua prpria fraqueza e, como costuma acontecer com os grandes feitos dos democratas, os dirigentes tiveram a satisfao de poder acusar o "povo" de desero, e o povo a satisfao de poder acusar seus dirigentes de o terem iludido.Raramente fora uma ao anunciada to estrepitosamente como a iminente campanha da Montanha, raramente um acontecimento fora

  • alardeado com tanta segurana ou com tanta antecedncia como a vitria inevitvel da democracia. mais do que certo que os democratas acreditam nas trombetas diante de cujos toques ruram as muralhas de Jeric. E sempre que enfrentam as muralhas do despotismo procuram imitar o milagre. Se a Montanha queria vencerno Parlamento, no devia ter apelado para as armas. Se apelou para as armas no Parlamento, no devia ter-se comportado nas ruas de maneira parlamentar. Se a demonstrao pacfica tinha um carter srio, ento era loucura no prever que teria uma recepo belicosa.Se se pretendia realizar uma luta efetiva, ento era uma idia esquisita depor as armas com que teria que ser conduzida esta luta.Mas as ameaas revolucionrias da pequena burguesia e de seus representantes democrticos no passam de tentativas de intimidar o adversrio. E quando se vem em um beco sem sada, quando se comprometeram o suficiente para tornar necessrio levar a cabo suas ameaas, fazem-no ento de maneira ambgua, que evita principalmente os meios de alcanar o objetivo, e tenta encontrar pretextos para sucumbir. A estrepitosa abertura que anunciou a contenda perde-se em um murmrio pusilnime assim que a luta tem que comear; os atores deixam de se levar a srio e a pea murcha lamentavelmente, como um balo furado.Nenhum partido exagera mais os meios de que dispe, nenhum se ilude com tanta leviandade sobre a situao como o partido democrtico. Como uma ala do exrcito votara em seu favor, a Montanha estava agora convencida de que o exrcito se levantaria ao seu lado. E em que situao? Em uma situao que, do ponto de vista das tropas, no tinha outro significado seno o de que os revolucionrios haviam-se colocado ao lado dos soldados romanos,contra os soldados franceses. Por outro lado, as recordaes de junho de 1848 ainda estavam muito frescas para provocar outra coisa que no fosse a profunda averso do proletariado Guarda Nacional e a completa desconfiana dos chefes das sociedades secretas em relao aos dirigentes democrticos. Para superar essas diferenas era necessrio que grandes interesses comuns estivessem em jogo. A violao de um pargrafo abstrato da Constituio no poderia criar esses interesses. No fora a Constituio violada repetidas vezes, segundo afirmavam os prprios democratas? No haviam os peridicos mais populares estigmatizado essa Constituio como sendo obra desconchavada de contra-revolucionrios? Mas o democrata, por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transio na qual os

  • interesses de duas classes perdem simultaneamente suas arestas, imagina estar acima dos antagonismos de classes em geral. Os democratas admitem que se defrontam com uma classe privilegiadamas eles, com todo o resto da nao, constituem o povo. O que elesrepresentam o direito do povo; o que interessa a eles o interessedo povo. Por isso, quando um conflito est iminente, no precisam analisar os interesses e as posies das diferentes classes. No precisam pesar seus prprios recursos de maneira demasiado crtica. Tem apenas que dar o sinal e o povo, com todos os seus inexaurveis recursos, cair sobre os opressores. Mas se na prtica seus interesses mostram-se sem interesse e sua potncia, impotncia, ento ou a culpa cabe aos sofistas perniciosos, que dividem o povo indivisvel em diferentes campos hostis, ou o exrcito estava por demais embrutecido e cego para compreender que os puros objetivos da democracia so o que h de melhor para ele, ou tudo fracassou devido a um detalhe na execuo, ou ento um imprevisto estragou desta vez a partida. Haja o que houver, o democrata sai da derrota mais humilhante, to imaculado como era inocente quando entrou na questo, com a convico recm-adquirida de que ter forosamente que vencer, no porque ele e seu partido devero abandonar o antigo ponto de vista, mas, pelo contrrio, porque as condies tem que amadurecer para se porem de acordo com ele.No se deve imaginar, por conseguinte, que a Montanha, dizimada e destroada como estava, e humilhada pelo novo regulamento parlamentar, estivesse especialmente desconsolada. Se o 13 de Junho removera seus dirigentes, tinha, por outro lado, aberto vaga para homens de menor envergadura, que se sentiam desvanecidos com esta nova posio. Se sua impotncia no Parlamento j no deixava lugar a dvida, tinham agora o direito de limitar suas atividades a rasgos de indignao moral e ruidosa oratria. Se o partido da ordem simulava ver encarnados neles os ltimos representantes oficiais da revoluo e todos os horrores da anarquia, podiam mostrar-se na realidade ainda mais inspidos e modestos. Consolaram-se, entretanto, pelo 13 de junho, com esta sentena profunda: Mas se ousarem investir contra o sufrgio universal, bem, ento lhes mostraremos de que somos capazes! Nous verrons!(9)Quanto aos montagnards(10) que haviam fugido para o estrangeiro, basta observar aqui que Ledru-Rollin, em vista de ter conseguido arruinar irremediavelmente, em menos de 15 dias, o poderoso

  • partido que chefiava - via-se agora chamado a formar um governo francs in partibus, que medida que caa o nvel da revoluo e os maiorais oficiais da Frana oficial diminuam de tamanho, sua figura distancia, fora do campo de ao, parecia crescer em estatura; que podia figurar como pretendente republicano para 1852, e que dirigia circulares peridicas aos valquios e a outros povos, nas quais os dspotas do continente eram ameaados com as faanhas dele e de seus confederados. Estaria Proudhon inteiramente errado quando gritou a esses senhores: Vous n 'tes que des blagueurs?(11)A 13 de junho o partido da ordem no tinha apenas destroado a Montanha: tinha efetuado a subordinao da Constituio s decises majoritrias da Assemblia Nacional. E compreendia a repblica da seguinte maneira: que a burguesia governa aqui sob formas parlamentares, sem encontrar, como na monarquia, quaisquer barreiras tais como o veto do Poder Executivo ou o direito de dissolver o Parlamento. Esta era uma repblica parlamentar, como a cognominou Thiers. Mas se a burguesia assegurou a 13 de junho sua onipotncia dentro do Parlamento, notornara ao mesmo tempo o prprio Parlamento irremediavelmente fraco diante do Poder Executivo e do povo, expulsando a bancada mais popular? Entregando numerosos deputados, sem maiores formalidades, por intimao dos tribunais, ela aboliu suas prprias imunidades parlamentares. O regulamento humilhante a que submeteu a Montanha exaltava o presidente da Repblica na mesmamedida em que degradava os representantes do povo. Denunciandouma insurreio em defesa da carta constitucional como um ato de anarquia visando subverso do regime, vedou a si prpria a possibilidade de recorrer insurreio no caso de o Poder Executivo violar contra ela a Constituio. E, por ironia da histria, ogeneral que por ordem de Bonaparte bombardeou Roma e forneceu,assim, o motivo imediato da revolta constitucional de 13 de junho, aquele mesmo Oudinot, seria o homem que o partido da ordem, suplicante e inutilmente, apresentaria ao povo a 2 de dezembro de 1851 como o general que defendia a Constituio contra Bonaparte. Outro heri do 13 de junho, Vieyra, que fora elogiado da tribuna da Assemblia Nacional pelas brutalidades que cometera nas redaesde jornais democrticos frente de um bando da Guarda Nacional pertencente aos altos crculos financeiros - este mesmo Vieyra fora iniciado na conspirao de Bonaparte e contribuiu essencialmente

  • para privar a Assemblia Nacional, na hora de sua morte, de qualquer proteo por parte da Guarda Nacional.O 13 de junho tem ainda outro significado. A Montanha havia querido forar o impeachment de Bonaparte. Sua derrota foi, portanto, uma vitria direta de Bonaparte, seu triunfo pessoal sobre seus inimigos democratas. O partido da ordem conquistou a vitria; Bonaparte tinha apenas que embols-la. Foi o que fez. A 14 de junhopodia ler-se nos muros de Paris uma proclamao em que o presidente, relutantemente, como que a contragosto, compelido pela simples fora dos acontecimentos, emerge de seu isolamento claustral e, afetando virtude ofendida, queixa-se das calnias de seus adversrios e, embora parea identificar sua pessoa com a causa da ordem, antes identifica a causa da ordem com sua pessoa.Alm disso, a Assemblia Nacional havia, bem verdade, aprovado subseqentemente a expedio contra Roma, mas Bonaparte assumira a iniciativa da questo. Depois de reinstalar o pontfice Samuel no Vaticano, podia esperar entrar nas Tulherias como novo rei David. Conquistara o apoio dos padres.A revolta de 13 de junho limitou-se, como vimos, a uma passeata pacfica. Lauris guerreiros no podiam, portanto, ser conquistados em sua represso. Contudo, em uma poca dessas, to pobre de heris e acontecimentos, o partido da ordem transformou esta batalha incruenta em uma segunda Austerlitz. Da tribuna e na imprensa elogiava-se o exrcito como o poder da ordem, em contraste com as massas populares, que representavam a impotncia da anarquia, e se exalava Changarnier como o "baluarte da sociedade", iluso em que ele prprio veio finalmente a acreditar.Subrepticiamente, porm, os corpos de tropa que pareciam duvidosos foram transferidos de Paris, os regimentos em que as eleies haviam produzido os resultados mais democrticos foram banidos da Frana para a Arglia, os espritos turbulentos existentes entre as tropas foram relegados a destacamentos penais e, por fim, o isolamento entre a imprensa e o quartel e entre o quartel e a sociedade burguesa foi efetuado de maneira sistemtica.Chegamos aqui ao ponto decisivo da histria da Guarda Nacional francesa. Em 1830 ela tivera ao decisiva na queda da Restaurao. Sob Lus Filipe abortaram todas as rebelies nas quais a Guarda Nacional colocou-se ao lado das tropas. Quando nasjornadas de fevereiro de 1848 ela manteve uma atitude passiva diante da insurreio e urna atitude equvoca para com Lus Filipe,

  • este considerou-se perdido e, efetivamente, estava perdido. Arraigou-se assim a convico de que a revoluo no poderia triunfar sem a Guarda Nacional nem o exrcito vencer contra ela. Era a superstio do exrcito sobre a onipotncia burguesa. As jornadas de junho de 1848, quando toda a Guarda Nacional, juntamente com as tropas de linha, sufocou a insurreio, haviam reforado essa superstio. Depois que Bonaparte assumiu o poder,a posio da Guarda Nacional foi, de certo modo, enfraquecida pela unio inconstitucional, na pessoa de Changarnier, do comando de suas foras com o comando da Primeira Diviso do Exrcito.Assim como o comando da Guarda Nacional aparecia aqui como atributo do comandante-geral do exrcito, a prpria Guarda Nacional parecia ser um mero apndice das tropas de linha. Finalmente, a 13 de junho seu poder foi quebrado, e no s por sua dissoluo parcial, que da por diante repetiu-se periodicamente portoda a Frana, at que dela restaram apenas meros fragmentos. A manifestao de 13 de junho fora, sobretudo, uma manifestao da Guarda Nacional democrtica. No tinham, . verdade, empunhado armas contra o exrcito, e sim envergado apenas sua farda; precisamente nessa farda, porm, estava o talism. O exrcito convenceu-se de que esse uniforme era um pedao de l como qualquer outro. Quebrou-se o encanto. Nas jornadas de junho de 1848 a burguesia e a pequena burguesia, na qualidade de Guarda Nacional, se tinham unido ao exrcito contra o proletariado; a 13 de junho de 1849 a burguesia fez dispersar a Guarda Nacional pequeno-burguesa pelo exrcito; a 2 de dezembro de 1851 desapareceu a prpria Guarda Nacional burguesa e Bonaparte limitou-se a registrar esse fato quando subseqentemente assinou odecreto de sua dissoluo. A burguesia destruiu assim sua derradeira arma contra o exrcito, mas teve de faz-lo em um momento no qual a pequena burguesia no mais a seguia como vassalo e sim levantava-se diante dela como rebelde, como de maneira geral teria forosamente que destruir com suas prprias mos todos os seus meios defesa contra o absolutismo, to logo se tornasse ela prpria absolutista.Enquanto isso, o partido da ordem celebrava a reconquista do poderque parecia ter-lhe escapado em 1848, apenas para voltar em 1849 sem limite algum, e celebrava-a por meio de invectivas contra a repblica e a Constituio, com maldies contra todas as revolues presentes, passadas e futuras, inclusive as organizadas por seu prprio dirigente e por meio de leis que amordaavam a

  • imprensa, destruam o direito de associao e faziam do estado de stio uma instituio regular, orgnica. A Assemblia Nacional suspendeu ento seus trabalhos desde meados de agosto at meados de outubro, depois de ter designado uma comisso permanente para represent-la durante o perodo de recesso. Durante esse recesso, os legitimistas conspiraram em Ems, os orleanistas em Claremont, Bonaparte por meio de excurses principescas, e os Conselhos Departamentais nas deliberaes sobre a reviso da Constituio - incidentes que geralmente ocorrem nos perodos de recesso da Assemblia Nacional e que s comentarei quando constiturem acontecimentos. Basta acrescentaraqui que a Assemblia Nacional agiu impoliticamente desaparecendo de cena durante longos intervalos e deixando que aparecesse frente da repblica uma nica e mesmo assim triste figura, a de Lus Bonaparte, enquanto para escndalo do pblico o partido da ordem fragmentava-se em seus componentes monarquistas e entregava-se s suas divergncias internas sobre a Restaurao monrquica. Tantas vezes emudecia durante esses recessos o barulho confuso do Parlamento e seus membros dissolviam-se pela nao, quantas se tornava indubitavelmente claro que s faltava uma coisa para completar o verdadeiro carter dessa repblica: tornar permanente o recesso e substituir a Libert, galit, Fraternit, pelas palavras inequvocas: Infantaria, Cavalaria, Artilharia!

    Captulo IVEm meados de outubro de 1849 a Assemblia Nacional reuniu-se uma vez mais. A lo. de novembro Bonaparte surpreendeu-a com uma mensagem em que anunciava a demisso do ministrio Barrot-Falloux e a formao de um novo ministrio. Jamais algum demitiu lacaios com tanta sem-cerimnia como Bonaparte a seus ministros. Os pontaps destinados Assemblia Nacional foram, nomomento, dados em Barrot e companhia.O ministrio Barrot, como vimos, fora composto de legitimistas e orleanistas, um ministrio do partido da ordem. Bonaparte necessitava dele para dissolver a Assemblia Constituinte republicana, para levar a cabo a expedio contra Roma e para destroar o partido democrtico. Eclipsara-se aparentemente detrs desse ministrio, entregara o poder governamental nas mos do partido da ordem e assumira o modesto disfarce que o editor-responsvel de um jornal usara sob Lus Filipe, a mscara de

  • homme de paille(12). Agora arremessava fora essa mscara que noconstitua mais o vu difano atrs do qual podia esconder sua fisionomia, e sim uma mscara de ferro que o impedia de exibir umafisionomia prpria. Nomeara o ministrio Barrot com o objetivo de quebrar a Assemblia Nacional em nome do partido da ordem; destituiu-o a fim de declarar-se independente da Assemblia Nacional do partido da ordem.No faltavam pretextos plausveis para essa destituio. O ministrio Barrot descuidava-se inclusive do decoro que teria permitido com que o presidente da Repblica aparecesse como um poder ao lado da Assemblia Nacional. Durante o recesso da Assemblia Nacional, Bonaparte publicou uma carta dirigida a Edgar Ney na qual parecia desaprovar a atitude liberal do Papa, da mesma forma que, quando se opusera Assemblia Constituinte, publicara uma carta na qual elogiava Oudinot pelo ataque contra a repblica romana. Quando a Assemblia Nacional votou os crditos para a expedio romana, Victor Hugo, por um pretenso liberalismo,levantou a questo da carta. O partido da ordem sufocou com clamores despicientemente incrdulos a idia de que os caprichos de Bonaparte pudessem ter qualquer importncia poltica. Nenhum dos ministros levantou a luva em favor dele. Em outra ocasio, Barrot, com sua conhecida retrica oca, deixou escapar da tribuna palavras de indignao sobre as "abominveis intrigas" que, segundo afirmava, se teciam nos crculos mais chegados ao presidente. Finalmente, embora o ministrio tivesse obtido da Assemblia Nacional uma penso de viuvez para a duquesa de Orlans, rejeitava toda e qualquer proposta que visasse a aumentar a Lista Civil do presidente. E em Bonaparte o pretendente imperial estava to intimamente ligado com o aventureiro em mar de pouca sorte que sua grande idia, a de que era chamado a restaurar o imprio, era sempre suplementada pela outra, de que o povo francstinha a misso de pagar suas dvidas.O ministrio Barrot-Falloux foi o primeiro e ltimo ministrio parlamentar criado por Bonaparte. Sua destituio assinala, por conseguinte, uma reviravolta decisiva. O partido da ordem perdeu assim, para nunca mais reconquistar, uma posio indispensvel para a manuteno do regime parlamentar, a alavanca do Poder Executivo. Torna-se imediatamente bvio que em um pas como a Frana, onde o Poder Executivo controla um exrcito de funcionrios que conta mais de meio milho de indivduos e portanto mantm uma imensa massa de interesses e de existncias

  • na mais absoluta dependncia; onde o Estado enfeixa, controla, regula, superintende e mantm sob tutela a sociedade civil, desde suas mais amplas manifestaes de vida at suas vibraes mais insignificantes, desde suas formas mais gerais de comportamento at a vida privada dos indivduos; onde atravs da mais extraordinria centralizao, esse corpo de parasitas adquire uma ubiqidade, uma oniscincia, uma capacidade de acelerada mobilidade e uma elasticidade que s encontra paralelo na dependncia desamparada, no carter caoticamente informe do prprio coro social - compreende-se que em semelhante pas a Assemblia Nacional perde toda a influncia real quando perde o controle das pastas ministeriais, se no simplifica ao mesmo tempo a administrao do Estado, reduz o corpo de oficiais do exrcito ao mnimo possvel e, finalmente, deixa a sociedade civil e a opinio pblica criarem rgos prprios, independentes do poder governamental. Mas precisamente com a manuteno dessa dispendiosa mquina estatal em suas numerosas ramificaes que os interesses materiais da burguesia francesa esto entrelaados da maneira mais ntima. Aqui encontra postos para sua populao excedente e compensa sob forma de vencimentos o que no pode embolsar sob a forma de lucros, juros, rendas honorrios. Por outrolado, seus interesses polticos foravam-na a aumentar diariamente as medidas de represso e, portanto, os recursos e o pessoal do poder estatal, enquanto tinha ao mesmo tempo que empenhar-se emuma guerra ininterrupta contra a opinio pblica e receosamente mutilar e paralisar os rgos independentes do movimento social, onde no conseguia amput-los completamente. A burguesia francesa viu-se assim competida por sua posio de classe a aniquilar, por um lado, as condies vitais de todo o poder parlamentar