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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O AMOR E A VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES ÍNTIMAS: OS SIGNIFICADOS
CONSTRUÍDOS EM TORNO DO GÊNERO
Iara Maria de Araújo1
Resumo: A violência esboçada no interior das relações íntimas e de afeto envolve uma teia complexa de significados
produzidos social e culturalmente, independente de raça, idade, classe, entre outros marcadores sociais. Reflexo de
reações diversas que se imbricam, envolvendo relações de poder, desigualdade, amores, desencantamentos e os
significados construídos em torno do gênero. A violência conjugal é entendida como expressão radical da relação
hierárquica entre os sexos. O objetivo é refletir sobre a presença da violência nas relações conjugais destacando suas
formas de manifestação, resistências e enfrentamentos. Realizou-se um estudo a partir dos inquéritos instaurados na
DEAM - Crato-CE entre os anos de 2003 a 2012 e entrevistas realizadas com quinze mulheres em situação de violência.
Pudemos observar, no interior dos conflitos interpessoais, que culminaram em violência, disputas relacionadas ao
poder, autoridade relacionadas ao papel esperado e desempenhado por cada sexo. O “amor romântico” tem sido
tradicionalmente associado à feminilidade, e a promoção deste como uma tarefa das mulheres. Os discursos
genderizados sobre o amor implicou em relações legitimadoras de um sistema de dominação masculina, por comportar
concepções de poder assimétricas.
Palavras- chave: Violência conjugal. Agressões. Afetos. Poder.
Introdução
A violência esboçada no interior das relações íntimas e de afeto envolve uma teia complexa
de significados produzidos social e culturalmente. Essa problemática, desde muito tempo, vem
fazendo parte da vida de casais independente de raça, idade, situação econômica entre outros
marcadores sociais. Apesar de ser um fenômeno antigo é também uma temática atual, sendo
reflexo de reações diversas que se imbricam, envolvendo relações de poder, desigualdade,
afetividade, sexualidade, amores, desencantamentos e os significados construídos em torno do
gênero, categoria estruturante das relações conjugais, envolvendo papeis e idealizações em torno de
obrigações, deveres conjugais e familiares e concepções de amor.No contexto atual há uma
tendência a se considerar queos critérios amorosos são os elementos fundantes nas escolhas
conjugais, não desconsiderando a presença de outros fatores, sejam institucionais, parentais ou
materiais (Giddens, 1993).
O “amor romântico” tem sido tradicionalmente associado à feminilidade, e a promoção deste
como uma tarefa das mulheres. Os discursos genderizados sobre o amor (Neves,2007) implicou em
relações legitimadoras de um sistema patriarcal, por comportar concepções de poder assimétricas.
A violência conjugal é uma das modalidades da violência de gênero, foi entendida pelo
feminismo como expressão radical da relação hierárquica entre os sexos no núcleo familiar. Nessa
1Professora associada da Universidade Regional do Cariri, Crato- CE - Brasil
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relação, o homem ocupa a posição de mando, podendo fazer valer a sua autoridade para punir,
exigir e por vezes, agredir os outros componentes da família, principalmente a mulher (GREGORI,
1993).
Muitas mulheres que sofreram violência de seus cônjuges e companheiros e permanecem
dentro dessa relação abusiva, não denunciam ou não desejam a punição do agressor, justificam suas
atitudes e escolhas recorrendo ao sentimento que envolve a relação, ou seja o amor. A preservação
da família também é usada para justificar tais posições.
O objetivo do texto é refletir sobre a presença da violência nas relações conjugais, suas
formas de manifestação, resistências e enfrentamentos.A intenção é compreender, a partir das
vivências e experiências de mulheres em situação de violência, no âmbito da conjugalidade quais os
significados atribuídos a essas práticas abusivas e violentas nas relações de afeto e quais as
posturas assumidas diante de tais conflitos.
Como estratégia metodológica desenvolveu-se um estudo exploratório, de caráter qualitativo
a partir dos inquéritos registrados na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher da cidade
de Crato-CE, Brasil entre os anos de 2003 a 2012. A partir desses dados foram selecionados casos
de violência que se encontram dentro de um quadro de violência conjugal, dentre os quais foram
realizadas 15 entrevistas semi -estruturadas com mulheres na faixa etária entre 19 e 63 anos de
idade.
Amor e conjugalidade
Os estudos culturais e feministas, ancorados no construcionismo social reconhecem a
interligação entre amor e violência, termos tomados como objeto de estudo, até então, de forma
separada.
As concepções teóricas sobre o amor traduzemuma polêmica envolvendo as questões
biológicas e socialmenteconstruídas e os aspectos universais e contextuais. Destaca-se dois campos
distintos: os estudos de orientação positivista e pós positivista, que abordam o tema numa
perspectiva essencialista, destacando os aspectos de natureza física ou psicológicas tais como traços
pulsões ou mecanismos, que regulam e determinam as relações de amor e de intimidade, e os
estudos estruturalistas/ funcionalistas que percebem o amor como resultado das estruturas sociais.
(Torres, 2004).
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Dentro das análises biológicas e evolucionistas o amor e a atração interpessoais são
compreendidos como fenômenos naturais, movidos por impulsos fisiológicos, neuronais e
hormonais, efeito de ajustes cognitivos, emocionais e comportamentais com vistas a sobrevivência,
reprodução, e perpetuação da espécie (DIAS & MACHADO, 2011).
As autoras enfocam a ausência da relação amor violência, nessa perspectiva, de forma
direta. No entanto, ao citarem a abordagem de Buss (2000), que destaca a funcionalidade
reprodutiva do amor, este aparece como elemento que se adapta para firmar compromisso, e o
ciúme teria a função de proteger a relação de intromissões. O ciúme é pensado como prova de amor,
e qualquer ameaça aos vínculos afetivos ele pode ser acionado dentro de comportamentos que
perpassam o controle, assedio, agressões e até homicídio, especialmente por parte de homens, que
segundo o autor apresentam características que os levam a querer manter a mulher amada. Para
Dias& Machado (2011) a violência amorosa com origens adaptativas esboçada por Buss,
“naturaliza as diferenças de gênero que sustentam a violência e a assimetria nas relações,
nomeadamente, a maior propensão do homem para fazer uso da agressão quando é rejeitado ou não
correspondido e a restrição da sexualidade feminina a uma relação de amor e de longo prazo” (p.
497).
Não são poucos os que teceram críticas as abordagens biológicas/evolucionistas, pela
naturalização das diferenças entre homens e mulheres e a forma como representam e vivenciam o
amor e pelo caráter universal e inato deste. Seguindo essa linha de pensamento, Buss (2000), apud
Dias & Machado (2011) acredita que é característica natural da mulher a busca por relações
duradouras, destacando a afetividade desta e o homem propenso à atividade e a assumir atitudes
abusivas quando percebe ameaça na relação. Tanto a amor e a violência são pensados de forma
essencializada e individualizada, pois a violência teria efeitos sobre objetivos impelidos pelas
necessidades biológicas ou psicológicas, sendo uma atitude radical. Para o autor há uma
predisposição do agressor “amar de forma mais intensa”. Dentre as limitações observadas, destaca-
se a não consideração das múltiplas e distintas formas de experienciar o amor, dentro de contextos e
situações também diversos,que não tenha a função de assegurar a reprodução e ou compromisso e
exclusividade, seja dentro de relaçõeshomoafetivas, seja com diferenças reprodutivas, ou o amor na
terceira idade, bem como as experiências de poliamor que não pregam exclusividade (DIAS &
MACHADO, 2011).
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Dentro das abordagens estruturalistas o amor é parte da ação social, e a sua compreensão se
faz a partir das estruturas e sistemas sociais que ordenam a sociedade e os indivíduos. Para Goode
(1970) o amor é expressão da afetividade, e esta,uma das dimensões das relações sociais.
Amor, inspiração de poetas e romancistas, sentimento que leva ao encantamento, também é
apresentado como perturbador das relações pessoais, podendo gerar propensão às opções radicais e
aos sacrifícios, características do amor apaixonado, destaca Giddens (1993). “O amor apaixonado é
marcado por uma urgência que coloca (o indivíduo) à parte das rotinas da vida cotidiana. Por essa
razão, encarado sob o ponto de vista da ordem e do dever sociais, ele é perigoso (GIDDENS, 1993,
p. 48).
Para o autor a idealização temporária do outro (típica do amor apaixonado) se associou a um
envolvimento mais permanente na perspectiva do amorromântico. No final do século XVIII os
deveres conjugais e cuidados com os filhos, foram definidos de forma mais demarcada. O
surgimento do amor romântico nesse período, insere o eu e o outro em uma vida compartilhada e
individualizada, numa perspectiva de relação duradoura. Giddens (1993) acredita que o amor
romântico no século XIX, “tanto expressou quanto contribuiu para as mudanças seculares, afetando
a vida social como um todo” (p. 51). Se refere à relação entre o amor romântico e a posição social
ocupada pela mulher, e os ideais de mulher pura, esposa e mãe, sustentados pelo amor romântico,
daí afirmar que esse amor é feminilizado. Para Giddens (1993, p.54) “as ideias sobre o amor
romântico estavam claramente associadas à subordinação da mulher ao lar e ao seu relativo
isolamento ao mundo exterior” pois acaba enclausurando-as dentro de um ideal de realização
pessoal e felicidade, envolvendo entrega total e incondicional aos parceiros, aspectos que poderão
contribuir para a perda de liberdade e autonomia pessoal e convivência dentro de práticas violentas.
Giddens (1993) fala do poder reflexivo que as experiências vivenciadas pelas mulheres na
família, no trabalho e no casamento, acabaram permitindo uma reorganização da vida íntima para as
gerações futuras. Nesse contexto o autor se refere aos relacionamentos puros que se ancoram na
confiança, compromisso e intimidade, e vai além da possibilidade de união heterossexual. Rompe
com a perspectiva da condição natural e eterna do casamento para abrigar possibilidades de um
amor ativo e real, com foco na relação e não nas identificações projetivas e fantasias de completude,
é o autor chama de amor confluente. Nesse amor as relações entre os parceiros são igualitárias,
envolvendo as trocas afetivas na intimidade, e a arte erótica, incluída na relação, torna-se um fator
fundamental dentro da relação. “O amor confluente pela primeira vez introduz a arte erótica no
cerne do relacionamento conjugal e transforma a realização do prazer sexual reciproco em um
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elemento chave na manutenção ou dissolução do relacionamento (GIDDENS, 1993, p.73). O que
torna o amor confluente puro, ressalta o autor, é a transparência envolvida na relação, a autonomia
pessoal e o reconhecimento da diferença e a negociação da sexualidade.
Ao se debruçar sobre os múltiplos sentidos que envolvem a conjugalidade, Torres (2004) a
apresenta situando-a em cinco dimensões. Num primeiro momento argumenta quepensar sobre a
conjugalidade é situa-la a partir de relações e trajetórias sociais e de gênero. As trajetórias, pessoais,
sociais, culturais e ideológicas, marcam diferentemente o momento de inscrição na conjugabilidade
e sua dinâmica em termos de responsabilidades, exigências e papeis sociais. Nessa perspectiva é
destacada a articulação entre estatuto social, casamento e sexo e capitais, permeados pela concepção
de gênero. Aqui a autora cita Kellerhals(1982), Singly(1987) Kaufmann(1992) e Bozon(1990).
No contexto da conjugalidade a produção de sentido e a identidade é a segunda dimensão
destacada. No plano existencial, a conjugalidade atua em duas linhas de produção de sentidos, seja
através da relação com um outro significativo, momento que se obtém gratificação e recompensa,
atuando na construção de identidades e de pertença ao grupo, interferindo assim nas identidades
sociais (Giddens, 1993),seja por meio de outros investimentos existenciais ligados à maternidade e
paternidade.
A terceira dimensão destacada por Torres(2004)se refere à afetividade com destaque para o
sentimento amoroso e a sexualidade. Cita o relativo distanciamento da Sociologia da família desses
temas argumentando que “não se deu importância ao fato de o bem estar afetivo e relacional
assumir crescentemente, não de forma isolada mas sempre associado a outras dimensões sociais e
de gênero, um papel de relevo na razão de escolha, fundação, manutenção ou ruptura das relações
conjugais.” (p.410).Giddens (1993) reconhece que nas sociedades de modernidade tardia as
imposições sociais, cede espaço para o amor confluente ou relação auto referenciada, é no plano
amoroso que segundas oportunidades conjugais são viabilizadas.
Na quarta dimensãoa autora enfoca a dimensão da produção de realidade, esta entendida no
sentido das condições materiais, envolvendo comunhão de bens e criação de uma nova realidade
com a chegada de filhos, o que permite à conjugalidade assumir uma dinâmica própria. “É que a
realidade nova que é criada –vida em conjunto, relações familiares, filhos- não só interpela os atores
no sentido identitário, como cria um sistema específico de possibilidades e limites de ação (Torres,
2004).
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A conjugalidade na quinta dimensão é pensada como social e historicamente determinada,
tendo em vista a dinâmica que a interpela às mudanças, envolvendo os domínios sexuais e
familiares. A autora cita como, nas últimas décadas, ocorreram mudanças no quadro valorativo e
normativo que envolvem a conjugalidade, tanto envolvendo as questões de gênero, (flexibilidade
nas questões da maternidade, e trabalho remunerado para as mulheres) como em outras dimensões
como é o caso das dissoluções do casamento, passando o divórcio ser uma realidade frequente e
usual, passando a afetar práticas e representações sobre o tema.
Agressões e afetos
Na experiência das 15 mulheres entrevistadas muitos conflitos conjugais foram permeados
por meio de atos violentos tais como, surras, tapas, chutes, xingamentos, humilhações e privações.
Mesmo compreendendo que esses atos não são unilaterais, a sua maior incidência, nos casos
pesquisados, ocorreu por parte dos homens, que imbuídos de uma visão patriarcal exercem posição
de superioridade sobre as mulheres. Se utilizam desse suporte para assumirem o sentimento de
mando e posse, se utilizando corriqueiramente da violência para demarcar essa posição.
A violência ocorrida no contexto das relações de conjugabilidade, por ser um fenômeno
presente no cotidiano de muitas mulheres, por muito tempo, acabou ganhando legitimação social,
ou seja, foi e em muitos casos ainda é considerado comum e banal no dia-a-dia e no espaço privado
do lar, apesar das políticas para coibir tal fenômeno, permanecendo ainda usual a expressão “em
briga de marido e mulher não se mete a colher” e na fala de uma entrevistada quando indagada
sobre a violência sofrida afirma “ briga normal de marido e mulher”. A briga normal revelada por
ela envolvia agressões físicas, como tapas empurrões e agressões verbais tais como, xingamentos e
humilhações.
A família é entendida como uma instituição social marcada por laços afetivos e
consanguíneos, simbolicamente um espaço de companheirismo, amor, cuidado e proteção, (Sarti,
2004), no entanto, o que pode ser observado é que esse espaço também tem se caracterizado como
um lugar que abriga diversas práticas violentas, desmistificando assim a visão da família como um
lugar de harmonia.
É comum presenciar em seu interior disputas relacionadas ao poder e autoridade
correlacionadas ao papel desempenhado por cada sexo. A violência de gênero, cada dia mais, se faz
presente na experiência diária de muitas mulheres que vivenciam, agressões semelhantes, mas que
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agem e reagem de diferentes maneiras e que se diferenciam uma das outras pelas estratégias
utilizadas e pelo contexto a qual estão inseridas.
Ao longo das entrevistas realizadas com mulheres em situação de violência, histórias de
poder, submissão, humilhações, resistências, enfrentamentos, silenciamentos, ressentimentos,
desilusões e expectativas de dias melhores são relatadas, ora de forma eufórica, altiva, ora
demonstrando tristeza vergonha, indignação. O tom das suas falas, seus gestos, e o choro, são as
marcas desses sentimentos expressados ao reviverem as cenas da violência a qual vivenciaram, e
algumas, ainda vivenciam, pelo fato de conviverem com o mesmo problema que a fizeram realizar
uma denúncia.
De acordo com o estudo realizado, a violência no ambiente familiar vai se tornando
repetitivo e acaba se tornando parte da rotina do casal, agravando-se em frequência e intensidade.
De tão repetitivo, muitas mulheres relataram que já se preparavam em certas circunstâncias, pois já
previam os conflitos.
Os casos de violência envolvem, ameaças, coerção, desqualificação, cerceamento da
liberdade, humilhações, agressões físicas, patrimoniais e sexuais. Os relatos dos conflitos
vivenciados pelas mulheres, demonstram a complexidade da violência nas relações interpessoais.
O cotidiano, por motivos diversos, vai se transformado em um dia-a-dia conturbado, com
discussões e agressões, tornando a violência uma das formas de comunicação. Comunicação
expressa no exercício do poder e nas diversas formas de resistências.
Além do medo permanente, relatado pelas entrevistadas, a violência no âmbito familiar,
causa danos físicos, psicológicos e sociais. Casos de adoecimento psíquico, como depressão e fobia
social foram destacados, em decorrência da violência, afetando o desempenho no trabalho e em
outras atividades sociais tais como a relação com os vizinhos e ou mesmo com a família. Das
quinze mulheres entrevistadas oito afirmaram tomar medicamentos. Os problemas mais citados
foram hipertensão e depressão, problemas nervosos e insônia. Em alguns casos foi registrado
tentativa de suicídio.
Entre as muitas modificações trazidas pela lei 11340, lei Maria da penha, está a
responsabilidade do Estado no enfrentamento da violência doméstica, “uma nova forma de
administração legal dos conflitos interpessoais, em substituição à estrutura já existente” (MORAES
E SORJ, 2009, p. 57)”. Além de envolver a possibilidade do encarceramento do agressor, a
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classificação dos tipos de violência, a delimitação social onde ocorre a violência, a queixa como
uma ação pública incondicionada e principalmente o poder situacional que a lei possibilita à
mulher, a partir de sua eficácia jurídica e simbólica no momento da queixa-crime. No entanto, nem
sempre as mulheres se utilizam dos aparatos policiais tal qual a lei determina, ou utiliza de todos os
recursos de que dispõe. Alguns arranjos puderam ser constatados, especialmente nos casos de
violência conjugal, em relação as motivações que levam mulheres em situação de violência a
denunciarem as agressões mas não desejarem a criminalização do agressor, aspectos também
observados nos estudos de Moraes e Gomes (2009).
As expectativas e motivações que orientam as vítimas de violência conjugal a procurar às delegacias e
publicizar a situação de conflito (e/ou agressão dele decorrente) novamente remetem a uma discussão
sobre os possíveis impasses postos na criminalização. (...). Um desses aspectos revela que a mais
frequente motivação das mulheres em procurar a delegacia não consiste em criminalizar o parceiro
(...). (MORAES e GOMES 2009, p.101).
O que muitas mulheres procuram, diferente da eficácia jurídica, entendida nesse trabalho
como criminalização do agressor, é a eficácia simbólica possibilitada pela lei como, por exemplo, a
pacificação das relações, e a ressignificação do pacto conjugal e o efeito “sossega leão”.
Ele não encosta mais o dedo em mim. Às vezes, quando ele quer gritar, eu relembro a ele (da queixa).
Eu digo: você tá lembrado? Ai pronto, ele fica bem calmo. (C, 39 anos).
Outra entrevistada relata que a denúncia e a prisão servem como um paliativo. Nos
primeiros meses o companheiro fica calmo sem brigas, depois retorna, inicialmente com os
maltratos verbais até chegar às agressões físicas.
Não, ele não fica assim na hora que chega não, ele passa uma boa temporada {calmo} A última vez
que ele foi preso tá com uns oito meses. Faz uns dois meses, agora foi que ele começou a criar caso,
com a bebida as maltratações, assim de boca, com a família, com os de casa e com os de fora. (J M,
31 anos).
No relato a seguir deixa transparecer que certas violências são aceitáveis, é como se
houvesse um limite, que só com o rompimento deste é que merecesse uma denúncia e desejo de
punição. A entrevistada usa a expressão dar queixa de “cabeça erguida”, ou seja, com motivo justo
para tal ato. No seu caso, ela não considera algo grave, pois se enquadra dentro do tolerável, mesmo
sofrendo agressões acredita que a violência cometida contra ela é algo normal por ser de menor
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gravidade comparando com a violência cometida contra outras mulheres, uma ilustração de que
determinadas violências, quando cometidas por parceiros íntimos, são mais toleradas.
Eu acho errado a mulher apanhar e viver com ele de novo. Mas, na minha situação, eu acho que não
é só eu que acontece uma coisa dessa e volta. Pela minha visão, eu já vi muitas por aqui, tá
entendendo, que já aconteceu isso e já voltou e é pior do que eu, por que aqui ele não anda dando em
mim de murro que cai e bate com a cabeça na parede, que nem eu canso de ver. Os maridos dão
demais nas mulheres! Queria que tu visse bichinha! A violência é grande e tem mulher que não
reage! É pior, porque se ele desse um murro na minha cara e me largasse na parede sem eu fazer
nada e tivesse saindo sangue do meu nariz, na maior violência eu dava queixa de cabeça erguida!
(F.J 32 anos).
As mulheres agredidas, muitas vezes, sofrem caladas. Para elas é difícil dar um basta
naquela situação. Por isso acabam convivendo com a violência por muito tempo. O amor,
sentimento que faz com que elas iniciem o relacionamento e por vezes permaneçam nessa situação
acaba se transformando em dor e sofrimento. Muitas ainda sentem vergonha por depender
emocionalmente ou financeiramente do agressor; outras acham que “foi só daquela vez” ou que, no
fundo, são elas as verdadeiras culpadas pela violência.
Eu sofro, ele me humilha, me esculhamba, mas eu sempre gosto dele. Não sei como é isso não! (F.M,
32 anos).
As relações de poder e hierarquias que existem dentro do núcleo familiar, reforçadas e
legitimadas socialmente, tendem a serem vistas como normais e, mesmo causando danos físicos e
psicológicos aos envolvidos, são reproduzidas e suportadas. Essa noção pesa mais ainda sobre as
mulheres, que mesmo com as mudanças que vem acontecendo nos valores culturais a respeito do
casamento e consequentemente sobre a preservação do casamento, ainda existem preconceitos com
mulheres separadas e, principalmente, quando existem filhos, como podemos perceber nos
depoimentos abaixo:
Por causa dos meninos assim, por que eu não queria eles separados e outra, por que ele não tinha
onde ficar e nem eu tinha onde ficar (F, 32 anos).
Eu gosto dele e sei lá eu não queria ficar solteira e com os filhos assim sem o pai (F.M, 32 anos).
Aqui e acolá ele ainda me empurrava e só não me batia devido essa menina que tava aqui e os dois
meninos. Eu não queria que os meninos se metessem porque eu não queria que os meninos, queria
não, não quero que os meninos trisquem nele nem com uma unha, que não leva vantagem, porque ele
é pai, mesmo ruim, mesmo se fosse o cão, mas é pai, foi o que eu escolhi pra eles, não foi? Não posso
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dizer: vá ser contra o seu pai, pra eu passar por boa, Não! É que nem eu disse lá na justiça mesmo.
(M.N, 63 anos).
No caso acima, a entrevistada delimita a interferência dos filhos, que em muitos casos,
impediram dela sofrer agressões, no entanto, ela sempre interferiu para os filhos não agredirem o
pai para defendê-la, justificando sempre que ele é o pai, neste caso a autoridade do pai é evocada e
deve ser mantida.
O medo também é uma constante na vida dessas mulheres que, em meio a inúmeras ameaças
de integridade física e até de morte, preferem não reagir às agressões. Esse é um importante fator
que faz com que muitas mulheres permaneçam anos de suas vidas em um relacionamento
conturbado e também representa uma das causas que faz com que muitas retornem a delegacia para
retirar a queixa.
Ele sempre bate, quando a gente se desentende, ele não é de acordo com a separação, é do tipo do
homem que para se separar a mulher tem que morrer tem que... Não pode continuar vivendo não! (J,
31 anos).
Uma das entrevistadas fala da sua tolerância em excesso que a faz hesitar, hesitação alias
que envolve a sua fala quando revela que tem uma convivência por acaso, pois não tem o mesmo
sentimento de antes e que não está obrigada a permanecer com o marido, mas logo depois diz “é
como se tivesse obrigada” porque não se sente capaz de partir para uma separação quando envolve
quatro filhos. No entanto, procura a justiça para mediar uma separação amigável.
Apoio da justiça, pra ver se a gente entrava num acordo, separação amigável, já que de boca ele
não aceita, a gente só pedir, só falar só conversar! (J. M., 31 anos).
Essa transformação de sentimentos também é uma das motivações que impulsiona às
denúncias e a procura pelas DEAMs principal política pública voltada para a mulher em situação de
violência. A criação dessa instituição foi o marco decisivo para que essa problemática saísse da
intimidade do lar e ingressasse na esfera pública.
As formas geralmente toleradas de agressão estão relacionadas à punição seja física ou não,
como forma de castigar um comportamento visto como reprovável ou inadequado. As agressões
percebidas como, sem motivos ou gratuitas não são aceitas, gerando revolta e indignação, mas,
dependendo da situação que provocou a agressão pode resultar na justificativa do comportamento
agressivo, tornando-se ainda usada a expressão "um homem pode bater em sua mulher para ensiná-
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la, ou como enfoca Simião (2006, p.136) " As agressões do marido são pensadas como instituídas
no campo de uma expectativa social de que o bater na mulher pelo homem é um bater disciplinar” ,
aspectos evidenciados na fala de uma entrevistada ao explicar porque o marido a maltratava.
Ele não gostava que eu bebesse, eu teimava e ele me batia.” E depois relata a naturalização com que
percebia o ato, “Briga normal de marido e mulher” (M. S 40 anos).
Machado (2002) relata que há um desejo masculino de deixar uma marca no corpo como
uma prova de mostrar a hierarquia entre os gêneros, marca essa que deve ser vista por qualquer um.
É uma forma de inibir a liberdade ou mesmo o poder de sedução de uma mulher, ou como diz
Foucault (2009) as marcas inscritas nos corpos é uma forma de instaurar docilidade.
A não reação de muitas entrevistadas, pode ser atribuída à força simbólica da compreensão
de que esses atos violentos acontecem ancorados em valores que atribuem a centralidade
masculina na hierarquia familiar. Uma violência tecida a partir de uma construção social de gênero.
As mulheres em situação de violência reagem às agressões sofridas, de formas variadas,
mesmo aquelas que continuam vivendo maritalmente com o agressor. Das quinze mulheres
entrevistadas oito permanecem no relacionamento conjugal, uma ficou viúva e outra afirma que foi
o companheiro que saiu de casa. As demais também afirmaram que a separação só veio a acontecer
depois de anos de convivência com o agressor. Entretanto, isso não significa que essas mulheres
não reagiam aos conflitos. Todas relataram que as situações de violência causavam sentimento de
indignação, vergonha e revolta.É importante perceber que as agressões que essas mulheres sofriam,
principalmente quanto à violência psicológica, as deixavam cada vez mais fragilizadas, fazendo
aumentar sua insegurança e diminuir sua autoestima, tornando-a cada vez menos capazes de
enfrentar as agressões sofridas. Mesmo assim, o desrespeito e as magoas constantes levaram
algumas a romper o silêncio e reagir aos conflitos buscando outros caminhos.
Pode-se perceber que a violência conjugal deixou de ser concebida como um problema “do
casal” e que se transformou em um problema público a partir da publicização dos conflitos. É certo
que os caminhos percorridos por essas mulheres ao tornarem pública a violência não se reduz a um
único motivo, pois o que foi percebido é que a expectativa primeira delas, na maioria dos casos, se
trata de recompor os vínculos de integração coletiva e familiar.Apesar da Lei Maria da Penha ter
inovado ao entregar ao Estado a responsabilidade na resolução dos conflitos conjugais, os relatos
mostraram que essa prática de resolução não é exclusivamente consolidada pelo Estado, mas que as
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mulheres procuram interferir de diferentes maneiras, mostrando a especificidade de cada situação, o
que torna essa problemática plural e complexa.
Referências ARAUJO, Iara Maria. M., BORSOI, I. C. LIMA, J. C. Operárias no Cariri cearense: Fábrica,
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Love and violence in intimate relationships: meanings built around gender
Abstract: The violence sketched within intimate relationships and affect involves a complex web
of socially and culturally produced meanings, regardless of race, age, class, and other social
markers. Reflection of diverse reactions that are interwoven, involving relations of power,
inequality, loves, disenchantments and the meanings built around the genre. Conjugal violence is
understood as a radical expression of the hierarchical relationship between the sexes. The objective
is to reflect on the presence of violence in marital relations highlighting their forms of
manifestation, resistance and confrontation. A study was carried out based on the investigations
carried out in DEAM - Crato-CE between 2003 and 2012 and interviews with 15 women in
situations of violence. Within interpersonal conflicts we could observe that they culminated in
violence, disputes related to power, authority related to the role expected and played by each sex.
"Romantic love" has traditionally been associated with femininity, and promoting it as a task for
women. The gendered discourses on love implied legitimizing relations of a system of masculine
domination, because it entailed asymmetrical conceptions of power.
Keywords: Conjugal violence, aggressions, affections, power.