O AMOR NA POLÍTICA - HANNAH-AGOSTINHO

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    Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 46, p. 31-50, 2007. Editora UFPR

    O AMOR NA POLTICA: UM DILOGO ENTRE

    HANNAH ARENDT E SANTO AGOSTINHO Love in politics: a dialogue between Hannah Arendt

    and Saint Augustine

    Renato Augusto Carneiro Jr.*

    Amars, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu corao, e de toda a tua alma,e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas foras; este o

    primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, : Amars o teu prximo como a ti mesmo. No h outro

    mandamento maior do que estes.

    Evangelho S. Marcos, 12; 30-31

    RESUMO

    Hannah Arendt (1906-1975) faz diversas referncias a Santo Agostinho(354-430) ao longo de suas obras. As idias do filsofo foram trabalha-das mais profundamente em sua tese de doutoramento, de 1929,OConceito de Amor em Santo Agostinho . Dividida em trs partes distintas o amor como desejo, o amor na relao entre o homem e Deus e oamor ao prximo este livro deu a Hannah a oportunidade de analisara existncia humana e a importncia do amor na relao do homemcom o Criador e com a sociedade. Este tema, do amor, voltaria no livro

    Homens em Tempos Sombrios , onde analisou a histria de Joo XXIII,entre outros personagens do sculo XX. Em sua vasta produo, Arendtrevela sua forma de pensar poltica a partir dos termos do filsofo cristo:abandonar-se f nos homens e/ou em Deus lidar com coisas da

    polis de uma posio em que o outro no considerado um inimigo,mas um irmo. No cobiar as coisas terrenas, mas lidar na polticacom acharitas agostiniana, torna-nos abertos ao dilogo, conciliaoe aceitao de nossos oponentes. a poltica da no-violncia ativa,na linha de Gandhi, Luther King e Dom Hlder Cmara, arcebispo deRecife e Olinda, Brasil, nos anos de 1964 e 1985.Palavras-chave : Amor; Poltica; Joo XXIII; Santo Agostinho; No-violncia.

    * Professor na UniCuritiba e doutorando em Histria na UFPR.

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    ABSTRACT

    Hannah Arendt (1906-1975) made several references to Saint Augustin(354-430) along her academic literature. The philosopher ideas hadbeen analyzed in depth in her PHD thesis,The Concept of Love in Saint

    Augustin, in 1929 . This book is divided in three distinct parts love asdesire, love in the relation between man and God and love between manand the others giving Arendt the opportunity to analyze the humanexistence and the importance of love in the relationship among menand God and among men and the society. This theme, love, came backon the book Men in The Dark Times , where Hannah wrote about thePope John XXIII, besides some other twentieth century great characters.

    In her extensive literature, Arendt revealed the way of her thinking aboutpolitics from the Christian philosopher: abandoning oneself to the faith at the mankind and/or at God means to deal with the polis thingsfrom the position of the other is not considered an enemy, but a brother.Dont covet the terrestrial things, but deal with politics using theaugustiniancharitas make us opened to dialog, to conciliation and toacceptation of ours opponents. It is the politics of the active nonviolenceon the way of Gandhi, Luther King and Dom Hlder Cmara, archbishopof Recife and Olinda, Brazil, from 1964 to 1885.Keywords : Love; Politics; John XXIII; Saint Augustin; No-violence.

    Hannah Arendt sempre foi, ao longo de sua vida, uma estudiosa daexistncia humana. Poltica, liberdade, dio, preconceito, amizade e amorforam alguns dos aspectos sobre os quais refletiu para entender nossa traje-tria sobre a Terra. No toa, sua primeira obra de flego tratou do amor.Ainda muito jovem, aos vinte e dois anos, defendeu sua tese dedoutoramento, em novembro de 1928, com o ttuloO Conceito de Amor emSanto Agostinho. 1

    Mas por que uma judia alem estudaria Santo Agostinho em seudoutoramento? Nascida em 1906, em Hanover, Alemanha, numa famlia de judeus educados e assimilados pela cultura alem do seu tempo, comalguma inclinao esquerdista no que diz respeito poltica e certo afasta-

    1 ARENDT, H.O conceito de amor em Santo Agostinho . Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

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    mento no plano religioso, o que no impediu que a filha nica de Martha ePaul Arendt recebesse a devida educao religiosa em uma sinagoga. Suasindagaes que a levariam a escrever, na certa, seguiam a tendncia de seusprofessores e orientadores, Martim Heidegger e Karl Jaspers, principal-mente, de buscar nos filsofos cristos, como Agostinho, Pascal eKierkegaard, fontes para repensar o problema da existncia. Havia, po-ca, todo um entusiasmo em investigar as obras do bispo de Hipona nosmeios acadmicos e filosficos alemes, igualmente entre telogos catli-cos e protestantes.2

    Arendt, no entanto, encarou este seu trabalho da forma como uma

    pensadora ainda pouco madura o faria. Nas palavras de sua principal bi-grafa, ElizabethYoung-Bruehl: A tese de doutorado de Hannah Arendt, Der Liebesbegriff bei Augustin , impressa em caracteres gticos, recheadade citaes latinas e gregas no traduzidas e escrita em prosa heideggeriana,no uma obra fcil de entender.3 Depois da publicao, em 1929, pelaeditora Springer, de Berlim, esta obra permaneceu guardada, para quandoHannah tivesse tempo para providenciar sua reviso e apenas nos anos 1960,mais de duas dcadas aps sua chegada aos Estados Unidos, que foi reto-mada, numa traduo que no chegou a satisfazer a autora.

    Em sua obra, Julia Kristeva divulga o relatrio reservado doorientador Karl Jaspers, acerca do trabalho de sua orientanda. Segundo ele, poca, parecia-lhe que sua aluna,

    [...] est apta a sublinhar o essencial, mas que ela, simplesmente,no reuniu tudo o que Agostinho disse sobre o amor. [...] Algunserros surgem nas citaes. [...] O mtodo exerce algumaviolncia sobre o texto. [...] A autora quer, atravs de umtrabalho filosfico de idias, justificar sua liberdade com relaos possibilidades crists, que, no entanto, a atraem. [...] Nomerece, infelizmente, a mais alta meno [cum laude].Efetivamente, Arendt parece privilegiar, em Agostinho, ofilsofo, em detrimento do telogo.4

    2 SOUSA, J. P. de. A presena de Santo Agostinho na obra de Hannah Arendt. Estudos,Lisboa, n. 2, p. 243-267, 2004.

    3 YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt : por amor ao mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1997. p. 427.

    4 KRISTEVA, Julia.O gnio feminino : a vida, a loucura e as palavras. Rio de Janeiro: Rocco,

    2002. p. 41.

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    Para Hannah Arendt no importava o Agostinho religioso, impor-tava-lhe o filsofo que discorreu sobre o amor, hierarquizando-o. Dele,Arendt se utilizar principalmente do conceito deamor mundi , o amor nomundo, que por fim permearia o conjunto da obra da autora, at seu ltimolivro, postumamente publicado, A Vida do Esprito . To forte seria isto navida de Hannah, ela mesma profundamente influenciada pelo amor, comodiria nesta ltima obra, referindo-se mais uma vez a Santo Agostinho: Oamor o peso da alma, sua lei da gravidade, aquilo que leva o movimentoda alma ao repouso.5 Young-Bruehl, usaria o conceito deamor mundi nottulo de sua biografia sobre Hannah, reconhecendo ser este o conceito mais

    central na obra de Arendt. preciso que se note tambm que nesta fase da vida de HannahArendt a poltica ainda no era uma preocupao da filsofa que ela busca-va ser. Aos vinte e poucos anos, no perodo entre-guerras, apaixonada porum de seus professores, ainda no se antevia a autora vigorosa na dennciado totalitarismo, da violncia e do dio. Mas o amor que, ento, analisavaem Santo Agostinho, seria o fio condutor de sua vida pessoal e intelectual,voltando a ele at seus ltimos escritos.

    Santo Agostinho considerado um dos maiores filsofos da Igre- ja, tendo escrito mais de 400 sermes, 270 tratados doutrinrios, sob a for-ma de cartas, e 150 livros. Nasceu em Tagaste, na Numdia, hoje Arglia, napoca provncia romana ao norte da frica, em 13 de novembro de 354; erao primognito do pago Patrcio e da crist fervorosa Mnica, mais tardereconhecida como santa pela Igreja. Entre todos os seus escritos, duas desuas obras so consideradas fundamentais para o desenvolvimento do cris-tianismo:Confisses e A Cidade de Deus . Nenhum outro telogo tem sidomais influente no Ocidente como Santo Agostinho. Ele assinalou o cami-

    nho espiritual-teolgico para a Igreja at aos tempos modernos.6

    A elecaberia a introduo do conceito do amor na Igreja, como fundamento paraa religio crist, mais ainda que o respeito s tradies: Amai a Deus efazei o que quiserdes, segundo uma famosa frase de Agostinho, mostra a

    5 ARENDT, H. A vida do esprito . Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1993. p. 256. A frase deAgostinho era: Meu peso meu amor, ele que me leva onde quer que eu v.

    6 LINDBERG, C. Histria do cristianismo . Lisboa: Teorema, 2007. p. 53.

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    dimenso que o amor teria em suas obras.7 Mas a que tipo de amor o filso-fo se referia? Ou, ainda, existiria mais de um tipo de amor? Numerosostermos declinam o conceito de amor em Agostinho: amor, desejo (com suasduas variantes,appetitus e libido), caridade, concupiscncia, formando umaverdadeira constelao do amor (...).8

    Hannah Arendt buscou compreender, pois, o significado da pala-vra amor, a partir do legado de Santo Agostinho. Ela partiu do princpio queo amor resulta da posio do cristo frente a Deus, ao prximo e a si mes-mo. Mais que cristo, no entanto, amor foi um conceito desenvolvido porSo Paulo, que aproximou a nascente religio dos gentios, isto , aos de-

    mais povos e culturas do Oriente Mdio, mas principalmente aos gregos,contrariando a posio inicial das comunidades crists de que a revelaoda Boa Nova era destinada aos judeus que se convertessem mensagem deJesus, o novo Messias h tanto tempo esperado por eles.

    O que havia de mais forte na mensagem crist, de verdadeiramenterevolucionrio, era a noo de libertao das antigas leis, do temor a umDeus poderoso e por vezes vingativo do Antigo Testamento, centrando noamor a base da religio que se espalharia pelo mundo a partir dosensinamentos de Cristo, mas que ao longo dos tempos seriam transforma-dos pela Igreja num instrumento de poder da instituio sobre seus fiis.

    Eles no compreenderam [...] que o no faas aos outros oque no queres que te faam a ti no era de forma algumasuscetvel de interpretaes diversas em funo da sua pertenaa tal ou a tal nao. Com efeito, se se aplica este princpio aoamor de Deus, ento o fim de toda a ao vergonhosa; sendoaplicado ao prximo, o fim de todo o crime.9

    Mas, analisando em si a obra em questo,O Conceito de Amor emSanto Agostinho , v-se que ela se divide em trs partes distintas: o amorcomo desejo (appetitus ); o amor na relao entre o homem e o Deus criador

    7 LINDBERG, C. Histria do cristianismo . Lisboa: Teorema, 2007. p. 62.8 KRISTEVA, Julia.O gnio feminino : a vida, a loucura e as palavras. Rio de Janeiro: Rocco,

    2002. p. 42.9. ARENDT, H.O conceito de amor em Santo Agostinho . Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p.

    9.

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    (creature et creator ) e o amor ao prximo, ou a vida em sociedade (vitasocialis ). Hannah identificaria que o amor como desejo e cupidez seriamconcepes pr-teolgicas, ou pr-converso, enquanto que o amor comovizinhana ou como relao ao prximo estaria mais ligado aos temposcristos.

    Na primeira parte de sua tese, a do amor como desejo, Hannahanalisa a concepo agostiniana da existncia humana e de seu fim ltimo,que a felicidade. Ele percebe que a vida no desejada pelo indivduo, medida que ele a tem, mas que, como a possibilidade de perd-la no futuro real, o indivduo passa a ver a vida como objeto de desejo, enquanto o

    medo da morte ou o medo de perder a vida torna-se uma forma deexpressar o amor pela vida. Da mesma maneira, seu pensamento se desen-volve pelo mecanismo que faz os homens desejarem alguma coisa. Ao que-rer algo que est fora de si, o homem investe seus esforos para possuir oque seu apetite lhe indica. Conquistando-o para si, cessaria o desejo destacoisa, a no ser que a possibilidade de sua perda seja real. Assim, o amor-apetite transforma-se em medo e o medo, sendo o mal do amor, j no oamor que motivou a conquista.

    Os bens temporais (presentes no tempo) nascem e morrem inde-pendentemente do homem, que a eles est ligado pelo desejo.10 Todo opresente determinado, no apenas pelo futuro (o no-ainda) como tal, mastambm por acontecimentos precisos, temidos ou esperados no futuro. Dessaforma, o presente perde toda a quietude, toda a possibilidade de prazer e,na mesma medida, sua significao original.

    No se pode pr a felicidade nos bens materiais, deste mundo, poistodos so finitos em si e mesmo que tivessem permanncia, a prpria vidahumana tambm finita. Da mesma forma, colocar o bem supremo, a feli-

    cidade, na existncia do outro, numa pessoa qualquer, por mais cara queseja, pela transitoriedade da vida, uma aposta sem sentido, pois se tem acerteza de sua no permanncia no futuro. No se possui nada, nem nin-gum, nem a prpria existncia, que no esteja destinada morte. Este pen-samento afasta toda a paz de esprito, toda a possibilidade de felicidade.Segundo Agostinho, este amor, este apego ao terreno, ao material, um

    10 ARENDT, H.O conceito de amor em Santo Agostinho . Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p.18.

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    falso amor, por se prender ao mundo. Ele o chamava cobia (cupiditas ). Aoamor puro, que aspira eternidade e felicidade eterna, ele chamava decaridade (charitas ).

    Caridade e cobia diferenciam-se pelo objeto que visam e nopelo como do prprio visar. Descrevem desde logo a pertenaa qualquer coisa e no atitude, o habitus. O homem aquiloque se esfora por atingir. O amor a mediao entre o queama e aquilo que ama; o que ama nunca est isolado daquiloque ama, isso lhe pertence. O desejo daquilo que a ordem domundo mundano, pertence ao mundo. O que cobia decidiuele prprio, atravs da sua cobia, a sua corruptibilidade,enquanto a caridade, visto que tende para a eternidade, torna-se ela prpria eterna. Se verdade que todo o homem particularvive isolado, ele tenta no entanto ultrapassar sempre esteisolamento atravs do amor; mas tambm no menos verdadeque a cobia faa dele um habitante deste mundo ou que acaridade o obrigue a viver num futuro absoluto, mundo que elehabitar.11

    A beatitude, ou felicidade, seria, pois, no apenas a posse do bem,mas tambm a possibilidade de sua no-perda. A vida constantementeameaada pela morte no vida, uma vez que nunca deixa de correr o riscode perder o que ; aquilo que at sabe que tem que perder um dia. A vidaque eterna e feliz a Vida propriamente dita.12 A vida que no pode serperdida, ou que no se importa de ser perdida, a nica vida feliz.

    A vida terrestre uma morte vivente ou uma vida morredoura, umavida posta determinao da morte. Mas se se tem medo de ver pr termo sade e vida, isso j no , nem nunca mais ser a vida. Pois j no mais viver sem cessar, mas temer sem cessar. No h nada mais a amar doque a ausncia de medo, e esta s existe na perfeita quietude, de que ne-nhum acontecimento que o futuro reservasse conseguiria abalar. a eterni-dade que harmoniza o corao humano.

    11 ARENDT, H.O conceito de amor em Santo Agostinho . Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p.25.

    12 Ibid. , p. 19.

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    Um engano comum, depois de Agostinho, era imaginar o mundo ea libido, ou o desejo do mundo, como maus em si. O que prejudica o ho-mem no o que est fora dele, mas sua dependncia a estas coisas transi-trias, que se transforma no medo de perd-las, que o aprisiona ao futuro dano-posse. A cobia no corao pode fazer do homem escravo de seus de-sejos, mas a caridade desprendida o liberta, justamente porque no temmedo do futuro, mas a ele aspira.

    A realizao a beatitude, que no consiste em amar, mas emfruir daquilo que amado e desejado. Todo o amor tenso

    dirigida para esta fruio. No entanto, ningum feliz se nofruir do que ama. [...] Fruir estar perto do objeto desejado,firme e sem inquietude.13

    Ou seja, sem o medo da perda, sem medo do futuro e da morte.Onde se pode, ento, encontrar a quietude da no-cobia do que

    est no mundo? Fora do mundo, ou dentro de si, na busca de Deus em simesmo que o homem pode ser feliz. Ao voltar-se para seu interior, ohomem encontra a Deus. Encontrando Deus, o homem encontra o que lhefalta, o que o projeta ao futuro.

    Efetivamente, o que que se quer dizer com falar de si mesmoatravs de Ti, seno aprender a conhecer-se a si mesmo? E euprocuro-Te fora de mim, e no encontro o Deus do meu corao.Pois Ele estava dentro e eu fora. Em seguida, exortado a regressara mim mesmo, penetrei no meu prprio interior, sob Tuaconduo; e isso foi-me possvel por que Tu vieste ajudar-me.14

    Esse exerccio de introspeco, da busca de Deus dentro de si mes-mo, afastando-se das coisas terrenas, seria outra contribuio de Agostinho f crist, influenciando muitas geraes e presente at nos tempos atuais.

    Esta necessria ligao com o Criador ser mais detalhada na se-qncia da tese sobre Santo Agostinho. Na segunda parte do trabalho, Hannah

    13 ARENDT, H.O conceito de amor em Santo Agostinho . Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p.36.

    14 AGOSTINHO. Confisses. In: ARENDT,op. cit ., p. 29.

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    Arendt analisa o amor na relao entre homem e seu Criador, reconhecendoa dependncia da criatura pelo Criador. Ela explica, neste captulo, como af o conceito central da vida do indivduo, segundo Agostinho, retomandoem parte o que j analisara no captulo anterior.

    A busca pela felicidade remete ao Criador, ao momento da criao,portanto ao passado (o no-mais). possvel ser feliz rememorando a fonteda existncia. Esta fonte est no apenas na prpria histria pessoal, mas nade toda humanidade, pois na criao de Ado, reconhecemo-nos como ir-mos de um mesmo Pai. Em Ado, no entanto, ao aspirar s coisas materi-ais, terrenas, na cobia do fruto da rvore proibida, partilha-se com ele o

    medo da morte, da perda do objeto do desejo.A origem do homem, desta forma, mais serviria para lev-lo aopecado, a partir do pecado original. O amor de Deus, fazendo-se carne,humano em seu Filho, redime a todos deste mal e a todos recupera por suaGraa. No seria por mrito individual, mas pela Graa divina, que se po-deria atingir o destino ltimo na felicidade. O que pode impedir o homemneste trajeto eternidade seria sua prpria vontade, o livre-arbtrio.Rememorar a origem, principalmente a segunda origem, em Cristo, acei-tando assim a Graa divina, seria a nica possibilidade de alcanar a verda-deira felicidade.

    A vida feliz s pode ser alcanada a partir do regresso (redire) sua prpria origem. O regresso a si idntico ao regresso aoCriador. O homem ama-se a si prprio relacionado-se com Deusenquanto seu Criador. Tal como o desejo que aspira vida felizs adquire o seu sentido na memria que remonta para alm davida terrestre e mundana, tambm a criatura, no seu estado decriatura, s adquire o seu sentido atravs do Criador, que existiaantes de ter sido criada, enquanto a sua origem. Pois, na medidaem que o Criador anterior ao criado, a origem j est semprel; e como a criatura nada seria sem esta origem, a relao como anterior aquilo que em primeiro lugar a constitui como ente.[...] Ser criado significa que a criatura no tira o seu ser delaprpria, mas de Deus, entendido pura e simplesmente como oser, o ser supremo.15

    15 AGOSTINHO. Confisses. In: ARENDT, H.O conceito de amor em Santo Agostinho .

    Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 70.

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    A Graa divina d a possibilidade de escolher onde buscar a felici-dade. Cabe aos homens elegerem o objeto de seu amor, aquilo que pensaque os far felizes. Como j se viu, o mal no est no mundo ou nos objetosdo mundo, mas onde colocam seus coraes. No ajunteis tesouros naterra, onde a traa e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladres minam eroubam. Porque onde est teu tesouro, a tambm estar o teu corao(MATEUS, 6: 19-21).

    O amor s coisas presentes, de dentro do mundo, que Santo Agos-tinho chamava de falso-amor ou cobia, ope-se ao amor justo que aspira eternidade e ao futuro absoluto, chamado de caridade. A vida sem morte,

    portanto, s possvel no eterno, em Deus. No Deus da caridade.A caridade, portanto, faz a ligao entre o homem e Deus, enquan-to a cobia liga o homem ao mundo. O que a caridade? a opo pelamorte deste mundo, na imitao de Cristo, para a doao da vida aos de-mais. Quem achar a sua vida perd-la-; e quem perder a sua vida, poramor de mim, ach-la-a (MATEUS, 10: 39).

    A morte, que s ela, excetuando Deus, tem o poder de subtrairo homem ao mundo, reenvia eleio no seio do mundo. Teme-se a morte porque se ama o mundo (amor mundi); a morteaniquila no s qualquer posse do mundo, mas tambm todo odesejo de amar qualquer coisa por vir que se espera do mundo.A morte destri a relao natural no mundo da qual o amormundi a expresso. Por isso, a morte de modo puramentenegativo, de tal maneira poderosa, separando-nos do mundo,como o amor de que se apodera em Deus o prprio ser. Esseamor constitui precisamente a nossa morte no sculo e a nossavida em Deus. Com efeito, se se trata de uma morte logo quandoa alma deixa o corpo, como que no se trataria de uma mortena qual ns renunciamos nossa afeio ao mundo? O amortem, pois, a fora da morte.16

    S no amor tem-se a possibilidade de se fazer abdicar da vontadeprpria, desfazendo-se do orgulho de si e justamente esta renncia que

    16 ARENDT, H.O conceito de amor em Santo Agostinho . Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p.

    95. A citao de Arendt, dentro desta citao, remete-nos s epstolas de So Joo.

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    permite alcanar a Graa divina. Na renncia a si que a criatura abando-na-se no Criador, deixando de lado o livre-arbtrio que lhe permitiria prati-car ou permitir o mal. Assim, quando ama, o amor do e ao Criador que nosfaz amar e no apenas nossa vontade para com o prximo.

    Esta renncia a si exprime-se no comportamento face ao mundo.O mundo amado enquanto criado; amando no mundo, acriatura ama o mundo como Deus. Esta a a realizao darenncia a si que volta a dar a cada um no mundo, e tambm asi prprio, o seu sentido verdadeiro proveniente de Deus. Estarealizao o amor ao prximo.17

    O amor ao prximo o que liga o homem de fato ao mundo doCriador, pois nele que se exprime o amor a Deus. Ser, pois, no amorverdadeiro, na caridade, que se pode refazer a ligao com o mundo deacordo com a vontade do Criador, amando a todos os homens sem distin-o, pois a renncia ao mundo faz perceb-lo como um deserto, onde noh como diferenciar entre este e aquele, onde no prevalece a cobia, ainveja e o desejo de posse. O amor ao prximo no se d pelo fato dele estarno mundo, mas pelo fato de ter sido criado, como todos, pelo mesmo Cria-dor, tendo no amor de Deus a mesma origem.

    A morte deixa de ter significado, pois como o amor ao prximono se d pelo que ele , mas como se percebe nele o que eterno. Para oamor, a morte no tm importncia, porque todo o ser s uma razo paraamar a Deus. [...] Neste amor ao prximo, no exatamente o prximo que amado, mas o prprio amor.18

    A terceira parte da tese de Arendt que trata, com mais detalhes,

    da vida em sociedade, do amor em relao aos outros. Se o homem se isolado mundo na relao criatura-Criador, no relacionamento criatura-criatu-ra, mediado pelo exemplo de Cristo, criador que se fez criatura, que o ho-mem rompe seu isolamento e torna possvel a vida em sociedade. O captu-lo Vita Socialis trata, portanto, que na direo do outro, do prximo, que

    17 ARENDT, H.O conceito de amor em Santo Agostinho . Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p.112.

    18 Ibid., p. 117.

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    o homem pode superar o pecado e a morte, como vimos, uma vez que estagraa s pode ser alcanada na imitao de Cristo.

    Eles viram, ns no, e, no entanto pertencemos a uma mesmacomunidade, pois temos uma f comum. A verdadeirasociedade est fundada sobre o fato da f comum. [...] fundadasobre qualquer coisa que por princpio no o mundo, destemodo comunidade com o outro no porque ele esteja a realmente no mundo, mas devido a uma possibilidadeespecfica; depois, como esta possibilidade a mais radical doser do homem, esta comunidade da f comum que se realiza noamor mtuo, exige o homem por inteiro [...] tal como Deus oexige.19

    Ao nascer, o homem se liga, em primeiro momento, comunidadehumana mais ampla, aquela fundada em Ado, apartada de Deus pelo peca-do original, na desobedincia do Criador. Depende, assim, dos outros ho-mens, atravs das diversas geraes, numa sucesso de sociedadesaliceradas sobre os mortos e com os mortos. Isto coloca a sociedade como

    histrica. O resgate desta natureza pecadora, pela graa do Criador, queconcedeu seu Filho para a remisso deste pecado de afastamento de Deus,traz o homem a uma outra realidade. Todos so chamados ao amor peloFilho que nasceu entre os homens, livre do pecado original, por sua duplaorigem, indissociavelmente humana e divina.

    Todo o nascimento traz, desta forma, a possibilidade do novo.Hannah voltaria a este tema em vrios momentos do conjunto de sua obra,em especial no livro A Condio Humana . Para ela, esta foi realmente aboa nova trazida pelos evangelhos: Nasceu uma criana entre ns!20 Nonascimento de novos homens d-se o milagre da esperana de salvaodeste mundo da runa a que se destina, da morte, pois podem trazer em si aao de que so capazes pelo fato de terem nascido. A esperana no ,pois, a ltima iluso entre os males da caixa de Pandora, como acreditavamos gregos, mas a possibilidade real de mudana.

    19 ARENDT, H.O conceito de amor em Santo Agostinho . Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p.152. A citao da autora refere-se s epstolas de So Joo.

    20 ARENDT, H. A condio humana . Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004. p. 259.

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    Para Arendt, a temporalidade, longe de precisar ser superadapara que o homem seja, a fonte de sua possibilidade de ao,na qual o seu ser intensificado. como se citasse paraAgostinho (e Heidegger) um dos trechos que mais apreciavaem Pndaro: Torna-te o que s isto , reconhece com gratidoo que o fato de ter nascido te proporciona.21

    O mundo pode ser salvo, sem que o mrito possa recair sobre esteou aquele grupo humano. A salvao s possvel por Cristo e esta Graa dada por igual, sem distino de raa, gnero e crena. Cristo , pois, ofundador da Cidade Celeste, como Ado foi da Cidade Terrena. Resta se-guir seu amor, na renncia de ns mesmos e na aceitao do outro, no pelooutro, mas pelo amor de Deus que nele se manifesta. A vida nova fundadaem Cristo determinada pelo amor mtuo, quando o prximo passa a serum irmo. A caridade, dever do cristo, fundamenta-se na fraternidade.

    A passividade pode levar a aceitar a morte, como descendncia deAdo. A possibilidade de salvao, da vida eterna, est colocada, pois, naGraa, no amor que nunca cessa, na caridade. Ao se afastar dela, pelo livre-arbtrio, o homem coloca-se em risco no apenas da morte, mas da morte

    eterna, por se afastar igualmente da origem primeira, que est no Criador.Isso quer dizer que a caridade exige ao, a opo de um ato volitivo deatuar em favor de Deus e de suas criaturas. Mais adiante, veremos na prti-ca da poltica o que pode significar essa opo.

    Ao se entender que o estudo deO Conceito de Amor em Santo Agostinho pertence a uma fase bem determinada da juventude de HannahArendt, que a ela voltaria ao longo de toda a sua existncia, entende-setambm como algumas das referncias carregadas pela autora em seu nti-mo pensar tiveram a marca deste tempo. O pensamento de Hannah no sedistancia do que viveu ela prpria, judia na Alemanha nas dcadas anterio-res Segunda Guerra, aptrida e, mais tarde, cidad americana.

    Terminado este trabalho, em 1928, Hannah Arendt pretendeu ca-pacitar-se para lecionar numa universidade alem. Sua inteno pareceu-lhe prxima quando ganhou uma bolsa, por indicao de seus professores,

    21 YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt : por amor ao mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1997. p. 431.

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    para elaborar uma nova tese, Rahel Varnhagem: a vida de uma judia . Agra-vava-se, no entanto, a situao da Repblica de Weimar e a ascenso doPartido Nacional-Socialista na Alemanha acabou por levar Hannah a bus-car, mais tarde, o exlio. Este seu texto s seria publicado muitos anos maistarde, quando ela j morava nos Estados Unidos.

    Tendo se casado com o filsofo judeu Gnther Stern, Hannah semudaria para Frankfurt, onde tomaria contato com as idias de Marx, Lenine,Trotski e Rosa de Luxemburgo. A partir de 1933, quando da chegada dosnazistas ao poder, Hannah Arendt viveria 18 anos como aptrida, depois defugir de Berlim, passando por Praga, Genova, Paris e Portugal, alcanando,

    por fim, a Amrica.Em Paris, travou contato com organizaes sionistas e passou atrabalhar com a Juventude Aliyah , entidade criada para preparar jovens aemigrarem e se estabelecerem na Palestina. Em 1936, ela conheceu HeinrichBlcher, ativista operrio, que se tornaria seu segundo marido. Ele foi oresponsvel pela guinada de Hannah para o ativismo poltico, para almdas questes judaicas e sionistas.

    Em maio de 1940, pela colaborao francesa com os nazistas,Hannah e Blcher foram internados em um campo de refugiados no sul daFrana. De l conseguiram alcanar os Pirineus onde ficaram aguardando ovisto para Hannah entrar em Portugal. Esperariam ainda trs meses em ter-ras lusas, antes de embarcarem para Nova Iorque, em maio de 1941.

    Em 1942, o casal tomaria conhecimento dos campos de concentra-o e extermnio alemes. Tornando-se cidad americana em 1951, Hannahviveu naquele pas at o fim de sua vida, em 1975, trabalhando at entocomo professora de diversas universidades americanas. Neste perodo, de-senvolveu As Origens do Totalitarismo ; Entre o Passado e o Futuro ;

    Eichmann em Jerusalm: sobre a banalidade do mal ; Sobre a Violncia ; ACondio Humana ; Sobre a Revoluo ; Crises da Repblica e Homens emTempos Sombrios , alm de diversos ensaios, artigos e de ter proferido de-zenas de palestras.

    No livro Homens em Tempos Sombrios , Hannah traou o perfil dealguns homens ilustres do sculo XX. Entre eles, ngelo Roncalli, o papaJoo XXIII. Ao descrev-lo, a autora exprime sua dvida, fazendo eco auma senhora romana: como a Igreja havia permitido a um verdadeiro cris-to sentar-se no Trono de Pedro? Neste texto, Arendt revela algumas carac-

    tersticas do papa e de sua forma de pensar, a partir dos termos de Santo

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    Agostinho, mesmo que lhe parecesse estranho o cristianismo frente a umaIgreja comprometida com os poderes deste mundo.

    No Conclave de 1958, convocado aps a morte de Pio XII papaque governou a Igreja no duro perodo da Segunda Guerra e a quem se faziainmeras crticas sobre sua atuao, na pouca resistncia ao nazismo ocor-reu um impasse. O Vaticano precisava mudar sua imagem frente ao mundo,sem perder o controle das mudanas, mas os cardeais ali reunidos no en-contravam um nome confivel para conduzir esta nova fase da Igreja. n-gelo Roncalli, patriarca de Veneza, aos 76 anos, no constava das relaesdos papabile sequer os alfaiates da Cria Romana tinham vestes apropri-

    adas para ele e sua eleio pareceu poca um compromisso de provis-ria transio, pois seu pontificado anunciava-se curto, devido a sua idadeavanada para o cargo. No entanto, promoveu, nos cinco anos em que este-ve no Trono de Pedro, a maior revoluo que a Igreja Catlica conheceupor sculos.

    Homem simples, de famlia camponesa de Brgamo, quarto de tre-ze irmos, o jovem ngelo descobriu cedo sua vocao para o sacerd-cio.22 Seu Dirio de uma Alma , onde relata sua prpria vida e suas observa-es sobre ela, publicado em 1965, , segundo Arendt,

    [...] um livro estranhamente decepcionante e estranhamentefascinante. Escrito, em sua maior parte, em perodos derecolhimento, compe-se, de forma extremamente repetitiva,de efuses e auto-exortaes piedosas, exames de conscinciae registros de progressos espirituais, com rarssimas alusesa acontecimentos reais, apresentando-se ao longo de pginas epginas, como um manual elementar sobre o modo de ser bome evitar o mal.23

    Apesar de pregar por cerca de dois mil anos a imitao de Cristo, aIgreja Catlica, principalmente aps o perodo da Contra Reforma, se com-portava como uma instituio qual mais interessa o atendimento aosdogmas que a simplicidade da f, pregada por Cristo. No se pode dizer

    22 Os dados biogrficos de Joo XXIII foram retirados dosite do Vaticano: .

    23 ARENDT, H. Homens em tempos sombrios . Lisboa: Relgio Dgua, 1991. p. 73.

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    que o abandonar-se f, presente em Agostinho, fosse o modelo seguidopelo Vaticano e pela Cria Romana em geral. No por recear consciente-mente os elementos anrquicos que um modo de vida genuinamente cristocomporta, mas simplesmente por pensar que sofrer e ser desprezado porCristo e com Cristo era m poltica.24

    Ainda assim, sendo em sua maneira humilde, contrrio prticavigente junto a seus pares, Roncalli inexplicavelmente subia na hierarquia.Tendo recebido a ordenao episcopal a maro de 1925, em Roma, ngeloRoncalli iniciou o seu ministrio na Bulgria, onde permaneceu at 1935,quando foi transferido e nomeado Delegado Apostlico na Turquia e Grcia.

    Ele se encontrava na Grcia quando irrompeu a Segunda Guerra Mundial,que ficou devastada pelos combates. Procurou dar notcias sobre os prisio-neiros de guerra e salvou muitos judeus com a permisso de trnsitofornecida pela Delegao Apostlica, conseguindo que o governo turco noenviasse cem crianas judias de volta Alemanha, de onde haviam fugido.Em 1944, Pio XII nomeou-o Nncio Apostlico em Paris. Anos depois, em1953, foi elevado a Cardeal e enviado a Veneza, como Patriarca da cidade.

    Desde o incio de seu pontificado, no Outono de 1958, era omundo inteiro, e no apenas os catlicos, que tinham os olhospostos nele, pelas razes que ele prprio enumera: primeiro,por ter aceitado com simplicidade a distino e o fardo, depoisde sempre ter tido o maior cuidado [...] em evitar tudo o quepudesse chamar as atenes sobre a minha pessoa. Segundo,por ter conseguido [...] pr imediatamente em prtica certasidias que eram [...] perfeitamente simples mas de grandealcance e cheias de implicaes para o futuro. Mas emborasegundo seu prprio testemunho, a idia de realizar em

    Conclio Ecumnico, um Snodo Diocesano, e a reviso doCdigo do Direito Cannico lhe tivessem ocorrido semqualquer espcie de premeditao, sendo at absolutamentecontrria a todas as [suas] anteriores convices [...] sobre oassunto, tal empreendimento surgiu aos olhos de todos quantoo observavam como manifestao quase lgica ou, pelo menos,natural, do homem e da sua extraordinria f.25

    24 Ibid., p. 74.25 ARENDT, H. Homens em tempos sombrios . Lisboa: Relgio Dgua, 1991. p. 75-76.

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    A convocao em 1959 do Conclio Vaticano II, que se completa-ria somente aps sua morte, sob o pontificado de Paulo VI, em 1965, trouxeo chamadoaggiornamento , ou seja, a atualizao da Igreja no sculo XX,fazendo-a, de certo modo, mais partcipe da modernidade, tornando-a maisaberta a uma maior participao dos leigos, na simplificao dos ritos e nabusca de um maior ecumenismo junto s demais religies, deixando delado a Igreja da Neocristandade26, triunfalista e descolada das necessidadescotidianas de seus fiis.

    A simplicidade de Roncalli ficava ainda mais aparente, segundoHannah, quando se conhecem as histrias que circulavam em Roma, no fim

    de seus dias, na agonia da morte, pela populao da cidade que o adorava,chamando-o de papa da bondade. Ela descreveu vrias histrias sobreJoo XXIII. Uma delas diz que, tendo ouvido um dos encanadores, quefaziam reparos na residncia papal, praguejar em nome de toda a SagradaFamlia, o papa foi at ele e perguntou-lhe com educao: Precisa falarassim? No pode dizermerda como todos ns?27 Outra, dando conta desua irreverncia frente sua prpria Cria, ao conversar com um jovem pa-dre estrangeiro, que se esforava por fazer boa figura s autoridadesvaticanas, teria o papa dito: Meu querido filho, pare de se preocupar tanto.Pode ter certeza de que no dia do juzo Jesus no lhe vai perguntar: E como que te deste com o Santo Ofcio?28Quando reclamou do fechamento dos jardins do Vaticano nos momentos em que fazia seu passeio dirio e rece-ber a resposta que no ficava bem sua dignidade expor-se aos olhares daspessoas comuns, teria perguntado: Porque que as pessoas no ho de mever? Eu no me porto mal, pois no?29

    26 Para entender o que significava poca Igreja da Neocristandade, tomamos o texto deGiacomo Martina:

    Pio XI julgava ainda possvel, em pleno sculo XX, a realizao de um Estado Catlico, ou, emoutros termos, pensava poder salvar ou reconstruir acristandade , h muito tempo desaparecida.Por seu temperamento autoritrio e por sua formao, que tinha amadurecido no final do sculoXIX, no perodo de Leo XIII, o Pontfice pensava que esse ideal fosse reconhecido e respeita-do, que no s se reconhecesse a liberdade da Igreja, mas que se atribusse a ela um poder e umregime de privilgio especial [...]. ( Histria da Igreja : de Lutero a nossos dias. So Paulo:Loyola, 1997. v. IV, p. 142).

    27 ARENDT, H. Homens em tempos sombrios . Lisboa: Relgio Dgua, 1991. p. 77.28 Ibid., p. 79.29 Ibid., p. 80.

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    30 ARENDT, H. Homens em tempos sombrios . Lisboa: Relgio Dgua, 1991.

    Em ocasies mais formais, nem por isso Joo XXIII deixava deexpor seu lado mais sincero, sem esconder no fundo a sagacidade do cam-pons. Ao concluir uma extremamente polmica audincia dada a represen-tantes da Unio Sovitica, encabeada pela filha e o genro do presidenteNikita Krushchov, em maro de 1963, Joo XXIII disse: E agora, comvossa licena, chegou o momento para uma pequena bno. Afinal de con-tas, uma benozinha no faz mal a ningum. Aceitai-a como vos dada.

    Consta, tambm, que ao receber uma primeira delegao judaicadepois de muitos anos no papado, Joo XXIII teria dito: Eu sou vossoirmo Jos, mesmas palavras com que o bblico Jos, do Egito, se deu a

    conhecer aos seus irmos judeus. Sobre esta pequena histria existe outraverso, segundo Arendt, igualmente interessante, mas talvez menos grandi-osa, que teria se passado quando o papa recebeu pela primeira vez os carde-ais, depois de sua eleio.30Ambas do mostra de seu desprendimento e daenorme humildade que o fez aceitar o cargo, em ateno vontade de Deus.

    No foi, no entanto, perfeitamente tranqila esta aceitao. Roncallificou segundo Arendt, terrivelmente preocupado ao assumir as tremendasresponsabilidades das insgnias de Pedro. Contava aos seus interlocutoresmais chegados que passou vrias noites em claro, at que, em certa manh,disse para si mesmo: Giovanni [Joo], no te leves to a srio! Ficou-lheacertado, a partir de ento, que Deus providenciaria o que fosse necessrio misso que Ele prprio lhe designara, abandonando-se na f ao Criador,que o pusera naquela posio.

    Histrias como estas, verdadeiras ou no, ao serem contadas pelosfiis cristos, falam de um papa, o primeiro em muitos sculos, prximodeste povo, humilde e simples, de carne e osso, mostrando-lhes que, para asantidade, no h que se estar distante das criaturas de Deus, num plano

    mais elevado e impossvel de ser alcanado pelo comum dos mortais.No plano poltico, Joo XXIII fez mais pela Igreja que muitos deseus antecessores, mostrando um caminho a ser seguido pelos que cremcom sinceridade. A vaidade das comendas, dos ttulos e da riqueza terrenano tem outro sentido do que afastar a criatura do Criador.

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    Sempre se contentara com viver um dia de cada vez, e atuma hora de cada vez, como os lrios do campo e agorapostulava como regra fundamental de conduta do seu novoEstado no se preocupar com o futuro, no tomar quaisquerprovidncias humanas em relao a ele e ter o cuidado deno falar dele confiante e despreocupadamente a ningum.Foi a f e no a teoria, teolgica ou poltica, que o impediu depactuar, fosse de que forma fosse, com o mal, na esperana deassim poder ser til a algum.[...] o que lhe conferia uma talliberdade era o fato de poder dizer, sem qualquer espcie dereserva,mental ou emocional: Seja feita a Vossa vontade.31

    Abandonar-se f nos homens e/ou em Deus lidar com coisasda polis de uma posio em que o outro no considerado um inimigo,mas, quando muito, um adversrio, ou ainda mais apropriadamente, umirmo, pois todos temos uma mesma origem sobrenatural, de um passadoem Deus e na entrega de seu Filho por nossos pecados.

    No desejar as coisas terras (cobia), mas lidar na poltica com acaridade, torna-nos abertos ao dilogo, conciliao e converso de nos-sos oponentes e no tentativa de sua destruio. a poltica da no-vio-lncia ativa na linha de Gandhi, Luther King, Dom Hlder Cmara e outros.

    Hannah Arendt, mesmo na fase em que denunciava o totalitarismoe as barbaridades perpetradas pelo nazismo, no absurdo do dio que viti-mou tantos judeus e no-judeus, no perdeu a dimenso adquirida na ju-ventude quanto ao valor do amor no mundo. Seus escritos apontam para anecessidade de agir, de pensar, em direo ao entendimento destes fenme-nos, para que eles no voltassem a se repetir e que a humanidade pudessechegar a perceber sua origem e seu destino no Deus de amor, conforme

    ensinava Santo Agostinho.Desde a mais tenra idadeInicia teu filhono amoraos horizontes largos.

    31 ARENDT,op. cit., p. 81-82.

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    E ensina-lhea criaramplos horizontes interiores,preciosos, sobretudo,se a vida reduzi-losa uma nesga de cu.

    Dom Hlder Cmara

    Arcebispo de Recife e Olinda, Brasil, entre 1964 e 1985.