O ANTIPROIBICIONISMO INSTITUCIONAL NA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA DOS USOS DA AYAHUASCA

20
IV SEMINÁRIO DE ESTUDOS CULTURAIS, IDENTIDADES E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GT 5 - MEDIAÇÕES CULTURAIS: IDENTIDADES E PODER O ATIVISMO CIENTÍFICO E A ANTROPOLOGIA ANTIPROIBICIONISTA DOS USOS DA AYAHUASCA FELIPE SILVA ARAUJO

description

A dicotomia proibicionismo/antiproibicionismo tem pautado posicionamentos ético-políticos de diversos pesquisadores da relação entre uso de drogas e sociedade, principalmente a partir do final do século XX. Através de uma investigação sobre a produção de discursos em um expressivo grupo de pesquisadores antiproibicionistas brasileiros - o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos - evidenciou-se a presença marcante da antropologia e de argumentos relacionados ao uso do chá psicoativo amazônico ayahuasca neste processo. O presente texto traz uma síntese desta observação, salientando as implicações de uma antropologia ayahuasqueira antiproibicionista na redefinição de abordagens e posturas científicas sobre a relação entre usos de psicoativos e políticas públicas, principalmente a partir da reivindicação no NEIP de um papel de destaque para as pesquisas de ciências humanas no debate político.

Transcript of O ANTIPROIBICIONISMO INSTITUCIONAL NA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA DOS USOS DA AYAHUASCA

IV SEMINRIO DE ESTUDOS CULTURAIS, IDENTIDADESE RELAES INTERTNICAS GT 5 - MEDIAES CULTURAIS: IDENTIDADES E PODER O ATIVISMO CIENTFICO E A ANTROPOLOGIA ANTIPROIBICIONISTADOS USOS DA AYAHUASCA FELIPE SILVA ARAUJO1 O ATIVISMO CIENTFICO E A ANTROPOLOGIA ANTIPROIBICIONISTA DOS USOS DA AYAHUASCA Felipe Silva Araujo (UFS) [email protected] Resumo: A dicotomia proibicionismo/antiproibicionismo tem pautado posicionamentos tico-polticosdediversospesquisadoresdarelaoentreusodedrogasesociedade, principalmenteapartirdofinaldosculoXX.Atravsdeumainvestigaosobrea produodediscursosemumexpressivogrupodepesquisadoresantiproibicionistas brasileiros - o Ncleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos - evidenciou-se a presenamarcantedaantropologiaedeargumentosrelacionadosaousodoch psicoativo amaznico ayahuasca neste processo. O presente texto traz uma sntese desta observao,salientandoasimplicaesdeumaantropologiaayahuasqueira antiproibicionistanaredefiniodeabordagenseposturascientficassobrearelao entreusosdepsicoativosepolticaspblicas,principalmenteapartirdareivindicao noNEIPdeumpapeldedestaqueparaaspesquisasdecinciashumanasnodebate poltico. Palavras-chave: Antropologia brasileira. Ayahuasca. Discurso. NEIP. Inicialmente este projeto se baseava na aplicao de um mtodo etnogrfico em determinadosespaosreligiososqueutilizamaayahuasca1noEstadodeSergipe,para apontar configuraes internas aosgrupos, bem como seus modelos compartilhados de funcionamentosimblicoeritual.Dificuldadesemconciliarobservaoparticipante juntoaumacertadescrioderepresentaoculturalfizeramcomqueumasriede limitaes se impusessem entre meu interesse e os grupos pesquisados2. Comoestapesquisaserelaciona,porfim,comumgruposocialcaracterstico, nonecessariamentereligioso,antescientfico,unidoporlaosdiversos,perguntei inevitavelmentepeloslimitesdestereivindicadocampoetnogrficobrasileiro, fazendousodeferramentasdeanlisedodiscursodebatidasporMichelFoucaultna obra que o lana em um debate terico: A Arqueologia do Saber. Trabalhei ento em um 1 Ayahuasca uma palavra de origem quchua e significa liana dos espritos ou ainda cip da alma, dos mortos. (LUNA, 1986). O termo um dos mais utilizados para designar uma bebida psicoativa preparada geralmentecomduasplantas(podehaveralgumasvariaes):alianaoucippropriamentedito,cujo nome cientfico Banisteriopsis caapi, e as folhas do arbusto Psychotria viridis. (LABATE; ARAJO, 2002, p. 19).2Exploroestarelaopessoalcomalgunsgrupos,demaneirapoucodocumental,apenaschamandoa ateno para um processo inicial de configurao em Araujo, 2010.2 certodomniodeenunciaoparaanalisarcomodadaAntropologialidacomcertos desafios epistemolgicos contemporneos. O problema desta pesquisa diz respeito produo contempornea de discursos sobreousodepsicoativosnoBrasil.Oscontrapontospolticosecientficosdetaluso estosendoproduzidosempesquisasnasquaisestopresentesdeterminadasposturas antropolgicas.Umdosgruposbrasileirosmaisativosnaproduodeestudosneste campo o Ncleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos - NEIP. ONEIPumaredeon-linedecompartilhamentodepesquisasnareade humanas marcada pelo imperativo poltico do fim da guerra s drogas, ou no termo de usocorrente,peloidealcomumdoantiproibicionismo.Fundadoem2001porsete pesquisadores,econstitudonopresentepormaisdeoitenta,ogruposedefine discursivamenteapartirdeprincpiosdeexclusoquecolocamemevidnciauma marcadacaractersticadediversidade3.ONEIPenfatizaesteponto,quepoderia representarmuitobemumacaractersticadefragilidade,transformando-onuma ferramentaimportanteparajustificarargumentosinstitucionais,cientficosepolticos emrelaoaosusospsicoativosnacontemporaneidade.Nadiversidadeinstitucional politicamente unificada a partir da qual o Ncleo reivindica a prpria constituio, surge uma srie de conceitos compartilhados sobre o Estado, o corpo e o antiproibicionismo. ONEIP,contudo,foidesdesuaorigem,umgrupoheterogneo.Almda diversidadetemtica,disciplinaregeogrficadeseusmembros,operfil desejado para suas atividades nem sempre foi consensual. De qualquer forma, eleseconstituiusobreduasvertentesdeatuao:abuscapelaconsolidao deumeixotemticoduradouronascinciashumanas,fincandoopnum campodepesquisabastanteinexploradoou,infelizmente,muitasvezesmal explorado;eainserodiretaatravsdeumaposturamaisativa,quase militante,nodebatepblico,buscandoinfluenci-lo.Seosconflitosno foramplenamenteresolvidos,aomenosessesembatesdotaramoNEIPde duas caractersticas que permaneceram: um espao de reflexo, articulao e difusodepesquisasacadmicasqualificadase,deformaconcomitante,um atorpolticocomposicionamentobemdelineadodeoposioao proibicionismo. (LABATE; GOULART; FIORE, 2008, p. 24) Analisam-se aqui especialmente dois dentre trs pontos de concentrao no discursodoNEIPEstadoeantiproibicionismo,faltandonaanliseaprofundar-sena categoriacorpo,porqueesteeixotrpliceorageratensoeoraratificaaideiade diversidade que o grupo reivindica como aspecto central de sua existncia. Constata-se 3 A respeito do surgimento do NEIP ver Araujo, 2013a.3 nestasprticasderestrioqueirodefinirogrupoemsuasparticularidadesuma grande concentrao de pesquisadores associados na rea da Antropologia e debruados sobre usos rituais da bebida psicoativa amaznica ayahuasca4.Uma aplicao de cunho qualitativo que visa analisar um tipo de discursividade poltica,genericamenteautodefinidacomoantiproibicionismo,colocaduasquestes metodolgicas que precisam ser respondidas: com qual anlise do discurso trabalhar, ou seja,quecategoriadediscursopensar,equaisoslimitesqueconfiguramoespaode autoidentificao do gnero5 discursivo/textual antropolgico antiproibicionista.Procurofortalecer,emalgunsmomentos,essaflexibilizaoterica,aplicvel tantoAntropologiaquandoreadeanlisedodiscursonaqualesteestudoest situado,trabalhandoumdadodocumentoapartirdeseuscaracteresparticulares, buscandorecorrncias,obviedadeselacunas.Ametodologiaaplicadaconsideraa existnciadeumarelaoindissocivelentreaconfiguraodegrupossociaiseas estratgias discursivas atravs das quais constroem um posicionamento social, um valor de existncia: Ora, por uma mutao que no data de hoje, mas que, sem dvida, ainda no se concluiu, a histria mudou sua posio acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, no interpret-lo, no determinar se diz a verdade nem qual seu valor expressivo, mas sim trabalh-lo no interior e elabor-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em nveis, estabelece sries, distingueoquepertinentedoqueno,identificaelementos,define unidades, descreve relaes. (FOUCAULT, 1969, p. 7) Seguientonaanlisedocumentalesterastroderaciocnioparaentendera relaoentreoNEIP,aAntropologiaeocarterhistricodepolticasproibitivas relacionadasaousodedrogas.Retireiumapartedosantroplogosrelacionadosao surgimentodainstituiopesquisadaeselecioneiumdocumentoquerepresentauma extensofinita(pormenunciativamenteexaustiva)desuamaneiracoletivadeatuar como Ncleo de Estudos. 4 Para uma anlisemais aproximada da configurao institucional e das estratgias de atuao do NEIP, ver Araujo, 2013b. 5AprecionesteestudoanoodegnerocomodiscutidaporMaingueneau:Ognero,comotoda instituio, constri o tempo-espao de sua legitimao. (1997, p. 36) Trata-se de uma viso pragmtica que concebe os gneros do discurso sujeitos a restries e coeres que o instituem, como ocorre em um processo de institucionalizao organizacional. 4 Na Arqueologia do Saber (1969), Foucault prope a seguinte configurao para analisar o discurso: trabalha-se no nvel do enunciado6 e do arquivo7, em um domnio de regularidadesenunciativasepositividades.Omodeloadotadosebaseiaemtal concepo:estabelecimentodeumcorpusdocumentalcoerenteehomogneo; estabelecimentodeumprincpiodeescolha(agnesedeumantiproibicionismo relacionado com a Antropologia no NEIP); definio do nvel de anlise (enunciativo) e dos elementos pertinentes (o funcionamento de conceitualizaes sobre Estado, corpo e antiproibicionismo);especificaodeummtododeanlise(individualizaode formaesdiscursivasedeumnvelenunciativo);delimitaodeconjuntose subconjuntosquearticulamomaterialestudado;determinaodasrelaesque permitem caracterizar um conjunto (o antiproibicionismo antropolgico no NEIP).Embora A Arqueologia do Saber (1969) tenha se tornado um marco na produo de Foucault, ao sinalizar para um certo rompimento com o paradigma do estruturalismo, visto que ele procura com essa obra o meio de transformar em conceitos sua posio e, aomesmotempo,colocar-seaumacertadistnciadesuasposiesestruturalistasde ontem8,eemboraessemarcosalienteumaposioanteriordoautor,no necessariamenteantagnicamassimcomplementaraouniversoestruturalistaquese desenvolveunaFranasobainspiraotardiadalingusticadeSaussurre,permiti-me despersonalizaroautoredesestabilizaromodeloemfavordosignificante,navelha esteiradetodooparadigmaestruturalistaqueFoucaultnuncanegoureferencialmente (muitoemboraelepossat-lonegadodiscursivamente),edessamaneiraescolhoa arqueologia numa tentativa de apreender o fenmeno em uma perspectiva dada. Isto no significaqueosujeitoeahistrianoparticipamdocontextomaisamplonoqualo 6(...)umenunciadosempreumacontecimentoquenemalnguanemosentidopodemesgotar inteiramente.Trata-sedeumacontecimentoestranho,porcerto:inicialmenteporqueestligado,deum lado, a um gesto de escrita ou articulao de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma existncia remanescente no campo de uma memria, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquerformaderegistro;emseguida,porquenicocomotodoacontecimento,masestaberto repetio,transformao,reativao;finalmente,porqueestligadonoapenasasituaesqueo provocam,eaconseqnciasporeleocasionadas,mas,aomesmotempo,esegundoumamodalidade inteiramente diferente, a enunciados que o precedem e seguem. (FOUCAULT, 1969, p. 31-32).7Aoinvsdevermosalinharem-se,nograndelivromticodahistria,palavrasquetraduzem,em caracterespossveis,pensamentosconstitudosanteseemoutrolugar,temosnadensidadedasprticas discursivassistemasqueinstauramosenunciadoscomoacontecimentos(tendosuascondieseseu domniodeaparecimento)ecoisas(compreendendosuapossibilidadeeseucampodeutilizao).So todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos, de um lado, coisas, de outro) que proponho chamar de arquivo. (FOUCAULT, 1969, p. 146). 8 DOSSE, F. Histria do Estruturalismo V. 2, EDUSC, 2007, p. 291. 5 objetodesteestudoestenvolvido(umaleituraprecipitadadareferidaobrapode apontarparaumaausnciadesujeitosehistriasemfavordeprocedimentosanti-humanistas);espero,antes,indicarquepossvelconsiderarbrevementesujeitoe histrianumaabordagemarqueolgicadodiscursoantiproibicionistasemme comprometer com ferramentas propriamente genealgicas ou epistemolgicas: [Naanlisedocampodiscursivo]trata-sedecompreenderoenunciadona estreiteza e singularidade de sua situao; de determinar as condies de sua existncia,defixarseuslimitesdaformamaisjusta,deestabelecersuas correlaes com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciao excluir. (FOUCAULT, 1969, p. 31) Neste espao de produo marcadamente antropolgico, observa-se que alm da recorrnciadeestudoscominteressenasconsequnciassociaisdarelaoentreas polticassobrepsicoativoseofuturolegaldasprticasemtornodaayahuasca, persistemapontamentosacercadefazeresetnogrficos.Paracontinuarporestes caminhos de restrio em torno de uma dada Antropologia, que se constitui por sua vez atravs de estudos etnogrficos interessados no futuro social de grupos ayahuasqueiros, interroga-seaconstituiodiscursivadeumdocumentoespecfico,otextoBrazilian ayahuascareligionsinperspective,deautoriadosantroplogosmembrosnoNEIP Edward MacRae, Beatriz Labate e Sandra Goulart. OreferidotextoaparececomointroduodolivroAyahuasca,Ritualand ReligioninBrazil(LABATE;MACRAE,2010),umacoletneadetextossobreouso religiosobrasileirocontemporneodaayahuasca.Aobservaoanalticadaestrutura discursiva de sua introduo permite aprofundar a observao da atuao discursiva do NEIPemrelaoAntropologia,bemcomodelinearcertaconceposobreaprtica etnogrfica, a partir do NEIP, em estudos da ayahuasca.Otextoanalisadoconcebe,demaneiracrtica,diversasprticasantropolgicas, representadas pela reflexo sobre artigos presentes no livro e organizadas numa relao entreusosdaayahuascaeetnografia.Estasprticasnoapontamparamodelos absolutosdecomooNEIPfunciona,masindicamorientaesque,emsuarelaode continuidadejuntoaumdadoidealdeantiproibicionismo,podemforneceruma perspectivaantropolgicaepolticaqueatravessa,emcertamedida,aatividademais geral de atuao do Ncleo. 6 Observa-se no texto a descrio de espaos de atuao, formas de apresentao e seleodetemasquerelacionamoNEIPaumdadolugarnocenrioantropolgico brasileiro.AAntropologiadedicadaayahuasca,noNcleo,remeteasituaes discursivastericas,conceituaisemetodolgicasdeterminadasporcritrios reproduzidosnodocumentoanalisadoeexterioresaeste,namedidaemqueso compartilhadas por diferentes formas de expresso institucional atravs do eixo comum de ideal antiproibicionista.NoNEIPestoconcentradosdezenasdepesquisadoreseobras.Antesde individualizaruminteressemetodolgicoemtornodeAyahuasca,RitualandReligion inBrazil,oudesuaintroduo,procura-serealizarumlevantamentodaAntropologia que se relaciona com o ideal do antiproibicionismo de maneira localizada, indo alm do textoselecionadonumadireocompartilhadadepensamentoe,posteriormente, retornando ao documento em anlise atravs de lacunas e descontinuidades.Brazilian ayahuascareligionsinperspectiveaborda,dentreoutrosassuntos,asfragilidadesnas configuraesantropolgicaseetnogrficasbrasileirasdeumcampodeestudos,em processodeinternacionalizao,envolvidodiretaeindiretamentecomabebida psicoativa amaznica9. ENUNCIADOS SNTESE DESCRITIVA 002DefineosgruposdoSantoDaime,UDVeBarquinhacomoreligies ayahuasqueiras brasileiras em escritos antropolgicos. 003Aponta a escassez de produes em ingls no gnero sobre os rituais brasileiros da ayahuasca. 004Define o papel da coleo de artigos que constituem o prprio livro como destinada a suprir esta ausncia de produes em ingls sobre o uso ritual da ayahuasca. 005A coleo procura por manifestaes antropolgicas representativas no gnero. 006O livro oferece uma viso histrica da constituio deste campo de interesses no Brasil, nas Cincias Humanas, especialmente em relao Antropologia. 011Deseja-sequeolivrotorneevidentearelaoentrereligiesdaayahuascae questes clssicas e contemporneas na Antropologia. 012Olivroestabeleceasorigenshistricaseculturaisdofenmenodasreligiesda ayahuasca, realizando uma configurao etnogrfica inicial. 013O livro serve como base para futuros estudos sobre estas religies, tanto no Brasil como internacionalmente. 054MonteirodaSilva(1983),LaRocqueCouto(1989),exemplosdosprimeiros estudossobreoassunto,referem-sesreligiesdaayahuascautilizandootermo 9Apartirdaquiosnumeraiscomtrsdgitos,tantoemtabelascomonocorpotextual,representam enunciados na ordem de composio do prprio documento analisado. 7 linhasparadiferenci-las,respeitandoasconfiguraesinternasdosprprios grupos que fazem uso da bebida10. 055Goulart(2004)tentadetectaroscontrastes,continuidadeseprocessosde fragmentao das trs linhas religiosas11. Tabela1Quadrodeenunciadosexemplificativosdacomposiocrticadeantropologia ayahuasqueira pelos autores em Brazilian ayahuasca religions in perspective (grifos nossos). A partir desta linha de viso especfica, desenvolvida no documento, percebe-se queosautoresestabelecembasesantropolgicasgeraisparaosestudossobreusos brasileiros e religiosos da ayahuasca, necessariamente em um dado patamar etnogrfico. Temosumareafirmaodaliberdadetericaparaosestudosdesteobjeto,oque,no entanto,nodeixadeimplicaremdadoinstantenoestabelecimentodeumadireo conceitual. Esta direo justamente uma das caractersticas mais marcantes da prtica antiproibicionistaemquesto:numacertadimensodeanlise,oantiproibicionismo contmaeestcontidopelaAntropologia.Istotambmsedcomtodasasreasde pesquisa envolvidas no NEIP. A metade dos associados ao NEIP com titulao na rea deAntropologiapossuialgumestudocientficoenvolvendousosrituaisdaayahuasca. Observa-se forte incidncia, na Tabela 2, logo abaixo, de estudos relacionados ao que o documento analisado reafirma como religies ayahuasqueiras brasileiras. 10 MONTEIRO DA SILVA, C. O Palcio Juramidam Santo Daime: um ritual de transcendncia e despoluio.DissertaodeMestradoemAntropologiaCultural.UFPE,1983.LAROCQUECOUTO, F. Santos e Xams. Dissertao de Mestrado. UnB, 1989. 11GOULART,S.L.Contrastesecontinuidadesemumatradioamaznica:asreligiesda ayahuasca. Tese de Doutorado. Unicamp, 2004. 12Otermoneoayahuasqueiro,comoodefineLabate(2004),indica:...osnovosgruposqueestose constituindo nos centros urbanos, desvinculados das religies ayahuasqueiras tradicionais (p. 94). OS TEMAS ENVOLVENDO A AYAHUASCA PESQUISADOS POR ANTROPLOGOS DO NEIP 01Beatriz Caiuby Labate Religies da ayahuasca, Neoayahuasqueiros12

02Edward John Baptista das Neves MacRaeSanto Daime, o Estado e as leis 03Sandra Lucia GoulartSanto Daime, UDV 04Anthony Richard HenmanUDV 05Arneide Bandeira CeminSanto Daime 06Gabriela Santos RicciardiUDV 07Henrique Fernandes AntunesSanto Daime 08Isabel Santana de RoseSanto Daime 09Lucas Kastrup Fonseca RehenSanto Daime 10Marcelo Simo MercanteBarquinha 11Maria Clara Rebel ArajoSanto Daime, teoecologia 12Matthew David Scott MeyerSanto Daime 13Santiago Lpez-PavillardSanto Daime na Espanha 14Srgio Mauricio Souza VidalSanto Daime 15Wagner Lins LiraUDV 8 Tabela 2 Quadro de temas de usos da ayahuasca estudados por antroplogos no NEIP. Oprocessodeinternacionalizaodabebida,especialmenteapartirdosusos religiososbrasileiros,temacionadomecanismosdecontroleemdiversospasesque cobem as prticas por associao a trfico internacional de entorpecentes, introduo de substncianocivasadepblicaouformaodequadrilha,emotivam,nestes desencontrosentreumaAntropologiaquecaracterizacomoculturaeumEstadoque caracterizacomocrime,diversospesquisadoresatuaoempesquisascomposturas polticas. Reafirma-se desta maneira um terreno especfico de tenso social que motiva o debate sobre drogas a partir de novos ngulos: no punitivos, inclusivos, cientficos, democrticos. O NEIP e sua proposta de antiproibicionismo transitam e ganham forma atravs destas e outras tendncias afins. Nocasoespecficodosusosdaayahuasca,ocampoantropolgicoe antiproibicionista demonstra necessidade de estabelecer parmetros que contenham, por suavez,fortecausalidade,aomenosemnvelterico,entreusosreligiososeno religiososdepsicoativos,oqueserefletecomoumespaoamplodelegitimidade compartilhada entre todos os usos independente de seu carter ritual ou apenas ldico erecreativo.Estatensoentreantiproibicionismo(comapropostadeumanova significao)eoEstado(umasignificaoanteriorempermanenteestadode conservao) no se daria pelo estabelecimento de um novo modelo de Estado, mas pela soberania de conceitos que movimentem novas polticas direcionadas ao tema. OdocumentoBrazilianayahuascareligionsinperspectiveajudaa compreender,maispropriamente,umadentreasmaneirasatravsdaquaisoNEIP representaestarelaodeforasentreEstadoantigoeapropostadenovas significaes:oNcleoapontaocorpo/indivduocomoumextremo,lugarondeas polticas so mais perceptveis enquanto ao. Segundo este raciocnio, ou o indivduo livre para utilizar psicoativos, protegido por garantias legais de individualidade, ou deve submeter-se a certas condies na vida social que se justificariam pelo bem estar de uma maioriainstituda.OantiproibicionismonoNEIPclamaassimpelofimdaregulao punitiva e pela reviso de valores, numa migrao de conhecimento que se desprenda do 16Wladimyr Sena ArajoBarquinha 17Christian FrenopouloBarquinha 18Slvia Aguiar Carneiro MartinsUso indgena 19Jssica GreganichSanto Daime, Umbanda 9 senso comum e siga at um espao de validao cientfica que teria o poder necessrio para legitimar, como aconteceu com a ayahuasca, diversos outros usos13. Estamigraoenvolveumprocessodecriaodenovassignificaessociaise cientficas para grupos e prticas. No caso dos usos rituais da ayahuasca, por exemplo, temos a importncia de uma redefinio crtica para religio, ritual, bem cultural, tradio,emrelaoaumprocessoderessignificaoque,partindodoEstadoede cinciascomoaAntropologia,denunciaumadiscriminaohistricadesprovidade carter cientfico contemporneo que lhe oferea suporte.Como citado em 092 (De um modo geral, a regulao do uso da ayahuasca no Brasil, embora no totalmente imune s influncias restritivas da medicina cientfica, excepcionalnahistriadalegislaoglobaldedrogasnamedidaemquecombinou conhecimentobiomdicocomodiscursodoscientistassociaisedavozde representantesdasreligiesayahuasqueiras),eem145(Reservastmsidomuitas vezesexpressasemtermosmdicos,referindo-seasupostasameaasparaasade mentalcolocadaspelostransesdepossessooupelanaturezapsicoativada ayahuasca),odiscursomdicoestevehistoricamenteempenhadonoprocessode regulaodepsicoativosfrenteaoEstado,masparaoantiproibicionismoaprtica mdicateriasedistanciadodasrealidadesdosusosemfavordorecrudescimentode opinies morais, mais danosas do que propriamente teraputicas.Adiscussogiraemtornodepontosaparentementeopostoscomosea negociaosocialemtornodaliberdadeparausospsicoativosilcitosnasociedade contempornea estivesse compreendida unicamente nesta luta de ideias e polticas. As decisesfavorveisaoidealdoNEIPseriamentoconquistasnesteprocessosocial polmico.Enquantoocupantedeuniversospolticos,compreensvelqueodebate tericoeprticosobreoantiproibicionismoserevistadocalordasnegociaese envolva o futuro de coletividades a partir de uma espcie de confronto entre pontos de vistahistoricamentedistintossobreusospsicoativos.Masocampocientfico antropolgicoayahuasqueirobrasileiro,fortementeorganizadoemtornodoNEIPede instituiesafins,seposicionaafavordogradualreconhecimentodasparticularidades que cada caso psicoativo isoladamente coloca. 13 Sobre o processo de regulao nacional e internacional da ayahuasca, realizo algumas reflexes em Araujo, 2011. 10 Este campo novo mantido aberto, pela sua recente configurao, s intempries da produo do conhecimento, mas este reconhecimento de fragilidade soa at modesto emfacedasdcadasdeproduobrasileiraespecializadasobrerituaiscomayahuasca. Osautoreschamamaatenoparaconceitosdestecampo,acusandouniversalismos precocesnaspesquisaserejeitandoposturasqueconsideramimplausveis.Como contrapartedarepresentaodaregulaoestritadeumEstado,segundoosautores, internacionalmentepreconceituosoemedicalizado,surgeanooamplamente exploradanoNEIPdegruposminoritrios.Ousoritualereligiosodaayahuascano Brasilconfigurariaumdestesgruposoferecendoummodelosobreaimportnciada perspectiva socioantropolgica, ao lado da viso mdica, no trato do tema. Define-se assim, a partir da antropologia e da etnografia,certo fenmenocomo religiosoebrasileiro.Indoalm,sustenta-seque,paraleloaosusosreligiososda ayahuasca,vm-sedesenvolvendoumcampoantropolgicointernacionalmente constitudo.Oantiproibicionismo,graasinclusiveaocrescimentodosusosbrasileiros da ayahuasca, vem materializando uma expanso institucional nas ltimas dcadas que se reflete na sua visibilidade crescente em debates pblicos sobre usos psicoativos. Este aumentoemimportnciadoantiproibicionismoantropolgicoayahuasqueiroutiliza-se do Estado, no lado oposto do indivduo, para reivindicar polticas de transformao.Porestarazo,arelaodeforasentreoNEIPeoEstadocontmcerta complementaridade.Arenovaoantiproibicionistaprincipalmentepoltica,eoseu avanodependedograudeproximidadecomoEstadoqueprocuratransformar. sensatotransporatentadoracoernciadasdicotomias,poisascoisasnososimples quandoseobservamuniversospolitizados:enquantoospapissobemdefinidos,as estratgiaspermanecemexcessivamentepluraiseimplcitas.Noobstantetodasas dificuldadesimplicadasnoexamedeestratgiasdebasequesearticulamapartirde discursos,aobservaodepontosdeconcentraocientficaetemticanoNEIP permiteinfernciasdiretas,extradasdasmaneirascomooprpriogrupoinstitui atividades oficiais.Surgeassim uma ordenao discursiva regular, cujas salincias, criteriosamente induzidas, oferecem possibilidades de demonstrao de atuaes, alianas institucionais, espaosexploradosparapublicaoeapresentaodetrabalhos.Conclui-se,desta forma,queaAntropologiadedicadaayahuascanoNEIPrepresentaumaparcela 11 importantedaprticacontemporneadoantiproibicionismo,oquedecertaforma reafirmaovalordosestudossobreabebidapsicoativa,edeseurecenteprocesso brasileiroderegulamentao,comoumfiointegradordoNcleo:omovimentodas atividades de reivindicao da liberdade ampliada para todas as prticas psicoativas. Identificam-sequatroestratgiasnapropostadoNEIPapartirdodocumento analisado:ainternacionalizaodocamporecm-definido,comooprpriotextoem ingls discute; a universalizao do direito sobre o corpo em detrimento de prticas de universalizaomdicadosusos,oqueimplicamedidaspblicascadavezmais especializadas,emconformidadecomoprocessodeespecializaocientficaqueo prprioNEIPrepresenta;aoficialidade(deumdiscursodirigidoparaoEstado,para instituiesouparaomeiocientfico);e,finalmente,ainstitucionalizaopessoal (produoacadmica)ecoletiva(reuniodediversasprodues)deumaproposta cientfica que ao mesmo tempo poltica. Oenunciado015(oBrasilonicopasondeocorreaformalizaodouso ritualdaayahuascaemtornodeigrejas)exemplificativodamaneiracomoas estratgiasatravessamquaseimperceptivelmenteasuperfciedaargumentao.Ofato de o Brasil ser nico em relao presena de manifestaes declaradamente religiosas com ayahuasca, e de ser tambm excepcional no histrico internacional de regulao de psicoativos,comoapontadoem092(portercombinadooconhecimentobiomdico,o discurso dos cientistas sociais e a voz de representantes das religies ayahuasqueiras), oferececarterdeineditismoparaaspesquisasrealizadasnopasjuntoaosgrupos. Existe um valor bastante explorado estrategicamente no discurso antiproibicionista, que oNEIPcultivanofatodeoBrasilpossuirpesquisadoresnareadepsicoativos, especialmente do uso ritual da ayahuasca.Observamos desta maneira uma grande proximidade entre a cincia, a poltica e a religio, instncias do discurso que no esto contidas e so geradas dentro doNEIP, mas atravs das quais o grupo movimenta seus interesses, sempre em favor da coerncia que em tese unifica as diversas propostas e que busca derrubar a poltica homognea de proibio.Sendoassim,oNcleoserevestedepodereseselanaemdiversosmeios, denunciando um Estado de controle de psicoativos abusivo ao ponto de gerar danos ou constranger direitos individuais. 12 Emcertomomento,ostrsautoresdeBrazilianayahuascareligionsin perspectivereconhecemafragilidadedoprocessodeconstruodoconhecimento sobreosusosrituaisdaayahuasca.Umafragilidadedeconceitospertencentea universos polticos que funcionam segundo propsitos especficos de cada grupo que, entretanto,noseriacapazdeapagaraslinhasdepesquisajtraadas.Navisodos autoresprecisoentosedimentarconceitosantropologicamenteamadurecidosnos estudos, por um lado, e aparar arestas pouco esclarecidas, por outro. Assim,otextoservecomoumaapresentaoinicialdasorigenshistricase culturaisdastrsreligiesayahuasqueirasbrasileiras,segundodeterminada concepoantropolgicabemcomoumacrticadaformacomoesteprocessose desenvolveentreosgrupos,naacademiaenasinstnciasdepoderlegislativo.Otexto tambmpropeumavarreduradaquiloquefoimelhoretnograficamentedesenvolvido noBrasilsobreayahuascaedepontosqueaindacausamdesentendimentos, especialmenteemtrsmodalidadesdeatuao:adeptos,pesquisadores,polticassobre drogas. O fato que todos esto mergulhados em estratgias conscientes e inconscientes paraexerceremseuspapissociaisediscursivos.Anovasignificaoparadiversos conceitos relacionados a polticas de Estado voltadas para usurios de psicoativos, bem comoosenvolvimentospessoaisdospesquisadoresdoNEIPcomsuaspesquisas, suscitamdiferenasdecrenaevisodemundoqueseexcluemmutuamente.Os autoresdosegundodocumentocolocamdestaformaumconceitomaisamplode religio,quetantomotivatransformaesdeEstadocomooferecedireoparaa soluo de eventuais conflitos de sentido.Quando revelado um campo de estudos que funciona em torno de tais preceitos de religio e ritual com usos psicoativos, percebemos que as etnografias, os grupos pesquisados,aspolticas,representamosaspectosmaisacessveisparavislumbrara prticadeatuaodeumantiproibicionismoquenoescondeareivindicaodemais espao para o conhecimento cientfico nas polticas de Estado direcionadas para grupos que se utilizam de psicoativos. bastante instrutivo observar um fenmeno a partir de seuslimites conceituais e estratgiasdeatuaodiscursiva,aquelespontosnamanutenodoarcabouo conceitualqueparecemmenosresistentes,beirandoaobviedade,quandoafirmezado 13 edifcioseencontravulnervelsintempriesdoespaodiscursivo.Estesmomentos raros,quasesempredesprezadosedispersospelojogodaenunciao,ensinamem nossocorpussobreaforaeasutilezadereasdashumanidades.Atravsdestes percebemosovalordeumentendimentopolticocaractersticoatribudoaosusosda ayahuasca,definidocomoreligiosonocorpusequestionadocriticamentepelos limites que esta concepo apresenta.UmdospontosdetensodizrespeitopresenadentrodoprprioNEIPsobre diferentes concepes acerca da relao entre subjetividade, cincia e militncia poltica na rea de estudos de psicoativos. Exploramos com mais ateno no texto estes aspectos polticos,quecontribuemparaadefiniodoNEIPcomoumcampoantropolgico brasileiro ayahuasqueiro antiproibicionista. ENUNCIADOS SNTESE DESCRITIVA 007Associao da seleo da coletnea a um pr-campo comum de produo. 074Intensificaododebatesobrealegitimidadejurdicaesocialdoconsumoda ayahuasca a partir da expanso do uso da bebida. 075Em1985,aDI MEDprobe ocipBanisteriopsiscaapi,matriaprimada ayahuasca. 076Envolvimento no processo do antigo Conselho Federal de Entorpecentes. 077Domingos Bernardo de S o chefe da equipe do CONFEN. 078Em 1987 a DI MED retira o cip da lista proibitiva. 079Em 1988 e 1992 questiona-se novamente a legalidade da ayahuasca. 080O uso de maconha associado ao da ayahuasca por alguns grupos. 084Em2004,aagnciasubstitutadoCONFEN,oCONAD(ConselhoNacional Antidrogas) reafirma a legalidade da ayahuasca. 086OCONADinstituiumGrupoMultidisciplinardeTrabalho(GMT)sobrea Ayahuasca. 088Domingos Bernardo de S e Edward MacRae so indicados para compor o GMT. 091OusoritualdaayahuascaaparentementeestbemaceitonoBrasil,masainda enfrenta resistncia em certos setores conservadores, como alguns grupos religiosos ou polticos.177Necessidades polticas especficaspodemterhomogeneizadoemcertosinstantesa diversidade dos grupos, principalmente no tocante ao processo de legalizao. 191Emumcontextoinstveldeexistncia,importanteoreconhecimentode religioso para certos grupos por parte do Estado. 193Os Estados Unidos aceitam a Unio do Vegetal como religio. 236O status legal dos grupos ayahuasqueiros varia de pas para pas. 241Disputafarmacolgico-jurdico-polticaenvolvendoaayahuascanaFranadura cinco anos. 243Processos jurdicos envolvendo a ayahuasca ainda esto em andamento no Canad, Austrlia, Alemanha, Itlia, e outros pases. Tabela 3 Quadro de enunciados exemplificativos de caracteres polticos envolvidos nos usos rituais da ayahuasca (grifos nossos).

Aetnografiadasreligiesayahuasqueiras,paraosautoresdodocumento, realizadadentrodeumcontextomarcadamentepoltico,principalmenteemrazoda 14 exterioridade legal que gravita de maneira diferenciada no mundo inteiro em torno dos usos.Antesderepresentarumempecilho,acondiopoltica,queenvolvena contemporaneidadeopesquisador,osgrupospesquisadoseoEstadoemumprocesso comumdepolitizaodosdiscursos,teriareveladooutrasconexesdeumprocesso maisamplodehierarquizaodossignificadossobre,porexemplo,prticas verdadeiras, puras e prticas ilegtimas de uso da ayahuasca.Existeumatendnciadearegulaodosusosdabebidasertidacomouma conquistapeloantiproibicionismoepelaAntropologia,mesmoqueasopiniesde pesquisadoresegruposreligiosossobredrogasesobresagradopermaneam distintas:...oestigmadeusodedrogaoudedrogadoextremamentetemido,ao mesmotempoemquerecusado,portodososgruposdasreligiesayahuasqueiras (GOULART, 2003, p. 9).Aetnografiaumpontodeencontro,raroemcertascondies,ondea Antropologiadedicadaayahuascaprocuragerenciarumadiferenciaodecategorias quemantenhacertaspropriedadescomoavisonativa,ouavisodopesquisador, quandotantoumcomoooutrojadquiriramimplicitamenteacapacidadedecruzar estes limites pela eventual identificao com o uso da ayahuasca. OantroplogoJamesClifford,aopesquisararelaoentreetnografia, Antropologiaeasautoridadesquepodemestarinvestidasnoprocessodeproduodo conhecimento cientfico, reflete: [sobre]aformaoeadesintegraodaautoridadeetnogrficana antropologia social do sculo XX. No uma explicao completa, nem est baseadanumateoriaplenamentedesenvolvidadainterpretaoeda textualidadeetnogrfica.Oscontornosdetaisteoriassoproblemticos, umavezqueaprticaderepresentaointerculturalesthojemaisdoque nuncaemxeque.Odilemaatualestassociadodesintegraoe redistribuiodopodercolonialnasdcadasposterioresa1950,es repercussesdasteoriasculturaisradicaisdosanos1960e1970. (CLIFFORD, 2008, p. 18) OqueestudoscomoosdeCliffordmostramquedurantemuitasdcadasas etnografiasbuscaramtransmitirsociedadescoerentesefuncionais.Talestratgiade produo esteve condicionada a contextos polticos especficos. Entrar em contato com odocumentoemanlisenoscolocaquestessobrelimitesentreoautoreocampo sendotranspostossutilmentedentrodediscursospolitizados,institucionais.Os antroplogosdoNEIPoperamumatransfernciadaautoridadeetnogrfica,queno maisseconcentranoautor,antesremeteaumainstituio,oudiversasinstituies, 15 materializando-seemumaideiapolticaecientificamenteunificadaporumaproposta de interdisciplinaridade. O documento,ao negligenciar umareflexo sobre as autoridades implicadas no fazer etnogrfico em espaos religiosos, relegando a relao entre autores e campo a um terrenodesilncio,noisentaotextodeumpapelpoltico.Pelocontrrio,oqueest emjogonoseopesquisadorpodecompartilhardeumacondionativaoudeuma simpatiacomosnativos,nemcomotraduzirrealidadesculturaisemocionalmente interpeladas;osautoresmanifestamespecialmentepreocupaopoltica,comoseos rumostericosemetodolgicosdasprticascientficasselecionadasnolivro introduzidoporBrazilianayahuascareligionsinperspective,prticasestas consideradasetnogrficas,estivessemimplcitosnumareflexomaisgeralsobrea autoridadeantropolgicaquetranspsoslimitesentrepesquisador,pesquisadose processos de subjetivao presentes nas anlises.Aautoridadenomaisrepousaemumamploaparelhoterico-metodolgico literariamenteornado,masemvalorespolticos,trajetriasacadmicas,referenciaes institucionais,articulaesinternacionais.Aetnografiacontinuaprescindindodo contato, da descrio, do envolvimento intenso com os pesquisados, mas a condio do autor no implica necessariamente nos resultados finais. O trabalho etnogrfico ajuda a compor,aoladodeoutros,objetivosmaisamplosdoqueasferramentascientficas realizam.Istonoimplicaemumdesmerecimentodopapelreflexivodaautoridade etnograficamenteconstituda,mascindeaAntropologiaentreocientificamente realizado e o politicamente pretendido. De certa forma, no estamos muito distantes de consequncias da desintegrao da autoridade etnogrfica (CLIFFORD, 2008, p. 18), masatcertopontoestaautoridadedivideespaoemcomumacordocomnovas maneiras de orientar o texto rumo exterioridade de finalidades pr-determinadas.AAntropologiadedicadaayahuascanoNEIP,reivindicadaemenunciao como marcadamente etnogrfica, em sua posio antiproibicionista mobiliza estratgias quenosopropriamenteliterrias,nemprocuramrepresentarsociedadeseprticas essencialmentecoerentes,masqueemseuintentopolticodenoproibioenvolvem umasriedecondicionantesqueminimizamaimportnciareflexivadarelao pesquisador/pesquisados.Afragmentaodaautoridaderepercutiunosdomniosdo autor,masabriuumasriedenovaspossibilidadesemoutrasesferas.Antesde 16 enfraqueceropropsitoantropolgicodaetnografia,resolveuumpontodelicado, deixandoabertoocenrioparanovasabordagens,apropriaesereflexes definitivamente libertas do crivo totalizante de um sujeito exterior e neutro. NoBrasil,aspesquisassobreayahuascaestotambmmarcadasporum engajamentopoltico.Agrandemaioriaprocurafornecer,maisoumenos explicitamente, um discurso que d suporte cientfico para o uso da bebida oupelomenostm,comointerlocutoroculto,umdeterminadotipode discurso proibicionista. (LABATE, 2004, p. 45-46) Osargumentosdocorpussobreosusosdefinidosantropologicamentecomo religiososdaayahuasca,especialmentenosegundodocumento,sodesenhadosem umcenrioreconhecidamentepoltico,processualmenteetnogrficoemarcadamente internacionalizado. Estes argumentos envolvem a apresentao da trajetria dos grupos religiososedeumpanoramalegaldelicado,brasileiroeinternacional,noqualesto implicados.AAntropologia,porsuaparte,defineumcorpodeconceitualizaes, reconhecidamenteabertoeemconstruogradual,queoraseaproximadavisodos adeptos, quando coloca a questo de legalidade como cultural, ora se distancia, quando defendeumaigualdadededireitosparaalmdospressupostosrituaisereligiosos definidos nos trabalhos cientficos. ENUNCIADOS SNTESE DESCRITIVA 155Aponta a necessidade de refletir sobre certos conceitos que aparecem no livro. 156Por exemplo, religies ayahuasqueiras. 157Afirma que no se deve naturalizar esta expresso. 158Algunspesquisadoresutilizamotermoseitaparasereferiraosgrupos ayahuasqueiros. 159Aliteraturaespecializadaantropolgicatemsubstitudoseuuso,considerado pejorativo, pelo de religies. 160ParaLabateetal(2009),aexpressosurgepelaprimeiraveznolivroOUso Ritual da Ayahuasca (Labate e Arajo, 2002). 163Como a experincia religiosa no se reduz aos aspectos farmacolgicos do ch, o termo religies ayahuasqueiras pode ser questionado neste aspecto. 170Embora reconhecendo suas limitaes, afirma-se a pertinncia do termo. 173Tanto a realidade emprica como a representao intelectual do fenmeno apontam sua essencialidade para os grupos. 177Especialmente durante o processo de legalizao, estes gruposforam aproximados em suas caractersticas movidos por necessidades polticas. 178Afirma a necessidade dereconhecer um campo de pesquisa em torno das religies ayahuasqueiras. 181Otermoreligiesayahuasqueirastambmmereceatenosobreanoode religio. 182Deveramos classificar os grupos como religiosos? 183O termo seitas, no obstante sua ausncia crescente da literatura antropolgica, aparece recorrentemente na mdia, na opinio pblica e mesmo dentro dos prprios 17 grupos. 184Nasociedadedesensocomum,asseitasestariamseparadasdasreligiesem decorrnciadeumnmeromenordeseguidoresedeumainstitucionalizao incipiente. 185Especialmente na Europa e nos EUA, o termo seita tem valor pejorativo. Tabela 4 Quadro de enunciados exemplificativos da crtica de caracteres religiosos (grifos nossos). Seoscontornosdadiscussoemtornodapermisso/proibiodousode substnciaspsicoativasseconfiguramcadavezmaiscomopolticos,tantointerna quanto externamente aos grupos de usurios e pesquisadores, a definio do que seriam experinciasreligiosasbrasileirastrouxeflegoparaodebateeacentuoualgumas diferenas neste cenrio de relao indireta entre grupos, pesquisadores e o Estado.Guiadospeloconhecimentodepesquisas,osassociadosaoNcleovo delineandogradativamenteestacontestaodovelhoparadigma,enquantotentam representarindividualmentecadainteresse,cadaesfera,semescorregarem generalidadesao denunciar um Estado que falhaquando tenta protegerapopulao de certosusosporempregaraviolncia.Estarenovao,iniciadacomoamadurecimento (e,emalgunscasos,institucionalizao)dasorganizaesantiproibicionistasnas ltimasdcadas,temumcarterreconhecidamentepolticoeenvolveapropostade recuodoEstadomedicalizado-quedeixadeserautnomoparadividirotratodo problema com uma ampla variedade de outras reas. OcasodaregulamentaodosusosreligiososdaayahuascanoBrasil,embora tenha implicaes marcantesnas novas polticas sobre psicoativos pelo seu ineditismo, permanecenumaposiobastantecaracterstica,poisimplicasobremaneiraocarter religioso,ritualoutradicionaldosusos(emdetrimentodeumuniversodeusosque escapamaestesparmetrosinevitavelmenteconsideradosmaisverdadeirosou puros por certos grupos de usurios). A tenso conceitual, inserida em um conflito de valoresqueatravessadesdeosgrupospesquisadosatosentendimentoscientficos, tornaapropostadoNEIPaindamaisdesafiadora,porqueelaseconstrijustamentea partirdesteslimites,procurandofugirdasessencialidadesqueporventuranasamde diferenciaesexternasaosgruposusuriosdepsicoativosesprticasreligiosas com ayahuasca. O novo Estado poltico de atuao em relao a usos e usurios de drogas que apropostaantiproibicionistadoNEIPdemandacontinuasendoderegulao.A diferenaeanovidadeestariamnumainversodemovimentoemrelaoatodosos 18 usospsicoativos:emvezdeexclusoeguerra,teramosumEstadodeincluso,de integrao, livre da tutela exclusiva da opinio mdica (o que traz por terra uma srie de medidasatualmentetidascomointegradorasporumavertentedepensamentomdico, porexemplo,ainternaocompulsriaparausuriosdecrack,fortementecombatida peloNcleo).Estainversoabruptadaspolticasenvolveriaumasriede transformaesestruturais, desdearenovao daplataforma de investimentos pblicos atanecessidadedeestabelecimentodenovosmeiosdeproduoedistribuiodas substncias para satisfazer sua demanda regular. nestepontoderupturaentreovelhoeonovoqueseencaixaapropostado antiproibicionismonoNEIP:nobastariaexcepcionarosusosreligiososde determinadassubstncias,oqueapenasforneceriaapossibilidadedeaprofundaras diferenasentreverdadesrituaiseprticasdesprovidasdelegitimidadeou tradio.SeriaprecisoumatransformaodedentroparaforadoEstadoque comportasseosgruposreligiososaoladodeoutrasprticaspsicoativassem considerar nenhum uso como essencial por si, mas como fruto do inter-relacionamento de diversas instncias e sujeitos a uma srie de implicaes. PormaisqueaAntropologiaeosestudossobreaayahuascaguardemna contemporaneidadeescassasrelaescomesteuniversoamploedivididodeestudos sobre drogas, em razo de um processo de especializao cientfica que aprofunda as ferramentasdeanlisedemaneiralocalizada,adependerdarea,acreditamosqueo retorno a este momentode origem dos estudos sociais sobre psicoativos no Brasil, no obstanteseucarterfortementehistrico,auxilianoentendimentodocampo antropolgico pleiteado no documento em anlise.Apesardasdiferenasentreasreas,quecolocampesquisadoressobretemas comunsemlugaresaparentementediferenciados,porvezesopostos,somoslevados, atravsdaobservaodeatuaoconjuntadoNEIP,aconsiderarquenesteespaode tenso(entrereas,setoressociais,intelectuais,polticos),deondesurgeaproduo cientficadognerotextual/discursivoantiproibicionista,hajaumcarterassociativo que no condiz com os conflitos alm das fronteiras do grupo.Internamente,oNEIPprocuraatuardemaneiraunificadaemdeterminadas situaes,enestesinstantesnosquaisasdiferenasentrereasdolugaraums objetivo,contestaraproibio,aslinhasdemarcadorasdocampoayahuasqueiroe 19 antropolgicobrasileirosustentamasespecificidadesdasdiferentesreas,mas,por outrolado,estaslinhastambmaparecemrelacionadaspoliticamenteaodesejode instaurar o fim da guerra s drogas e o incio de novas significaes sociais envolvidas no tema. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ARAUJO,F.S.SantoDaimeemAracaju:ConflitoeIdentidade.In:AnaisdoIV Frum Identidades e Alteridades: Educao e Relaes Etnicorraciais realizado no Campus da Universidade Federal de Sergipe em Itabaiana-SE, 10 e 12 de novembro de 2010. _____.Osusoslcitosdaayahuascanocontextointernacionaldepolticassobre drogas.In:AnaisdoIISeminriodeEstudosCulturais,IdentidadeseRelaes Intertnicas. So Cristvo, 2011. ______. Ativismo poltico, cincia e religio na Antropologia Brasileira: o surgimento do NEIP. Exampaku (Boa Vista), v. 6, 2013a. ______.Discursos,polticaecincianoNcleodeEstudosInterdisciplinaressobre Psicoativos.In:AnaisdoIIISeminriodeEstudosCulturais,Identidadese Relaes Intertnicas. So Cristvo, 2013b.

FOUCAULT,Michel.AArqueologiadoSaber[1969]RiodeJaneiro:Forense Universitria, 2009. GOULART,S.L.Aconstruodefronteirasreligiosasatravsdoconsumodeum psicoativo:asreligiesdaayahuascaeotemadasdrogas.Comunicaoapresentada em V Reunio de Antropologia do Mercosul (RAM). Florianpolis, 2003. LABATE,BeatrizCaiuby;ARAJO,WladimyrSena(orgs.).Ousoritualda ayahuasca. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2002. LABATE,Beatriz Caiuby.Areinveno do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas/SP: Mercado de Letras; Fapesp, 2004. LABATE, Beatriz; GOULART, Sandra; FIORE, Maurcio. Introduo. In: LABATE et al. Drogas e Cultura: Novas Perspectivas. Salvador: EdUFBA, 2008.LABATE,Beatriz;MACRAE,Edward(orgs.)Brazilianayahuascareligionsin perspective.In:Ayahuasca,RitualandReligioninBrazil.EquinoxPublishing, 2010. LUNA,LuisEduardo.Vegetalismo:shamanismamongthemestizopopulationof the Peruvian Amazon. Stockholm, Sweden, Almquist and Wiksell International, 1986.