O artista-pesquisador: morte e possibilidades de pintura · determinado conjunto de...

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O artista-pesquisador: morte e possibilidades de pintura Pedro Meyer Barreto PPGAV-EBA/UFRJ Princípio Todo artista é um pesquisador. Por seu caráter universal, esta sentença parece estabelecer uma generalização perigosa na produção de arte contemporânea, que privilegia a pluralidade e na qual experimentamos grande liberdade de linguagens e meios. Evitamos qualquer ontologia essencial do que necessariamente é ou pode adquirir caráter artístico. Contudo, a idéia primeva de pesquisa é diversa, disponível e inclui singularidades. Antes de tudo, significa aquele empenho investigativo a partir do que se apresenta como curioso ou necessário, incluindo assim inquirições infinitas, relativas aos aspectos mais variados da existência: materiais, simbólicos, objetivos, subjetivos, etc. A conseqüência da presente noção é podermos percorrer uma vasta linha do tempo encontrando similaridades. Os pintores rupestres pesquisaram cinzas e terras coloridas para executar as imagens que ainda hoje podemos ver em grutas em cavernas. Certamente essa diligência incluía aspectos mágicos e ritualísticos, porém não exclui seu aspecto de pesquisa. De maneira semelhante, a grandeza e estabilidade das manifestações egípcias são perquiridas dos materiais, das novas tecnologias inventadas e da organização religiosa. O Renascimento marca um novo momento investigativo, o poder e pensamento humano ocupam posição central em detrimento dos mandamentos perenes eclesiásticos, inicia-se o processo de secularização e a possibilidade livre de questionar tudo, inclusive Deus. Na pintura, a perspectiva manifesta espetacularmente essa nova visão do mundo; o universo encontra-se submetido, mediado e medido na ilusão de profundidade, uma janela aberta e controlada por um novo homem, senhor de si e de suas narrativas. A pesquisa desse novo espaço plástico é intensificada e re- trabalhada nos séculos seguintes, com uso de variados artifícios conceituais e óticos. Arte e o aspecto mimético das representações parecem ser contíguos e necessários, e somente com a industrialização moderna encontramos uma profunda crise nesses parâmetros. Em Duchamp a pesquisa extrapola os limites da forma clássica ou moderna. Além da forma ou existência concreta do existente, a dúvida recai sobre o que pode ser arte. A pergunta duchampiana, filosófica e artística é retumbante e sua sonoridade afeta nossos ouvidos na atualidade, inclusive a evidente comunicação. Interessante lembrar a “coincidência cronológica” percebida por Argan entre o trabalho de Duchamp e a pesquisa científica de Einstein sobre a relatividade dos movimentos i . O dado substancial é a incorporação de outras instâncias na investigação criativa, arte e vida estão contaminadas e estimulam-se mutuamente. Jogar xadrez faz parte da obra de Duchamp. Contingências

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O artista-pesquisador: morte e possibilidades de pintura

Pedro Meyer Barreto PPGAV-EBA/UFRJ

Princípio

Todo artista é um pesquisador. Por seu caráter universal, esta sentença parece estabelecer uma generalização perigosa na produção de arte contemporânea, que privilegia a pluralidade e na qual experimentamos grande liberdade de linguagens e meios. Evitamos qualquer ontologia essencial do que necessariamente é ou pode adquirir caráter artístico.

Contudo, a idéia primeva de pesquisa é diversa, disponível e inclui singularidades. Antes de tudo, significa aquele empenho investigativo a partir do que se apresenta como curioso ou necessário, incluindo assim inquirições infinitas, relativas aos aspectos mais variados da existência: materiais, simbólicos, objetivos, subjetivos, etc. A conseqüência da presente noção é podermos percorrer uma vasta linha do tempo encontrando similaridades.

Os pintores rupestres pesquisaram cinzas e terras coloridas para executar as imagens que ainda hoje podemos ver em grutas em cavernas. Certamente essa diligência incluía aspectos mágicos e ritualísticos, porém não exclui seu aspecto de pesquisa. De maneira semelhante, a grandeza e estabilidade das manifestações egípcias são perquiridas dos materiais, das novas tecnologias inventadas e da organização religiosa.

O Renascimento marca um novo momento investigativo, o poder e pensamento humano ocupam posição central em detrimento dos mandamentos perenes eclesiásticos, inicia-se o processo de secularização e a possibilidade livre de questionar tudo, inclusive Deus. Na pintura, a perspectiva manifesta espetacularmente essa nova visão do mundo; o universo encontra-se submetido, mediado e medido na ilusão de profundidade, uma janela aberta e controlada por um novo homem, senhor de si e de suas narrativas. A pesquisa desse novo espaço plástico é intensificada e re-trabalhada nos séculos seguintes, com uso de variados artifícios conceituais e óticos. Arte e o aspecto mimético das representações parecem ser contíguos e necessários, e somente com a industrialização moderna encontramos uma profunda crise nesses parâmetros.

Em Duchamp a pesquisa extrapola os limites da forma clássica ou moderna. Além da forma ou existência concreta do existente, a dúvida recai sobre o que pode ser arte. A pergunta duchampiana, filosófica e artística é retumbante e sua sonoridade afeta nossos ouvidos na atualidade, inclusive a evidente comunicação. Interessante lembrar a “coincidência cronológica” percebida por Argan entre o trabalho de Duchamp e a pesquisa científica de Einstein sobre a relatividade dos movimentosi. O dado substancial é a incorporação de outras instâncias na investigação criativa, arte e vida estão contaminadas e estimulam-se mutuamente. Jogar xadrez faz parte da obra de Duchamp.

Contingências

Apresentei considerações amplas e breves sobre o que pode ser a pesquisa artística apoiando-me em diferentes épocas. Agora quero tratar do artista-pesquisador em um sítio específico: na academia contemporânea. As razões para isso são muito claras. Em primeiro lugar, a consciência do próprio meio onde exalo o presente. Em segundo lugar, porque tenho trabalhado na academia como artista, pesquisador e professor, e nessa constância, esse debate é fundamental. Em terceiro lugar, pretendo apresentar alguns dos resultados da pesquisa.

O principal desafio da pesquisa artística acadêmica é evitar uma estrutura dogmática fechada. A metodologia científica que orienta o desenvolvimento do saber nas universidades é originada em áreas específicas, a pesquisa teórica geralmente é inspirada em métodos científicos sociais e a pesquisa prática mais assentada encontra-se balizada na pesquisa dos laboratórios tecnológicos. Não defendo uma incompatibilidade necessária entre as diversas faculdades do conhecimento, isso seria um equívoco, considerando inclusive a posição multidisciplinar da arte contemporânea. O problema reside em adaptações forçadas que rejeitam aspectos particulares da pesquisa artística.

O pesquisador-artista lida com o não-lugar de seu objeto. Ocorre uma suspensão dos valores e categorias investigativas, pois esse pode ser justamente o seu xeque-mate. A organização metodológica pode não prestar, dado que o método da arte é livre e contagiado. Se seguirmos Beuys, e considerarmos que todos são artistas, então qualquer pessoa, independente da sua titulação, estará plenamente apta e poderá manifestar-se a respeito do resultado da pesquisa artística acadêmica. Isso pode aparentar uma fragilidade, mas, por outro lado, essa transparência pode ser um trunfo.

A legitimidade das mais variadas avaliações públicas da pesquisa artística acadêmica (ou não acadêmica) direciona-se em sentido positivo a uma das funções precípuas da universidade: a extensão. Extensão é justamente esse movimento interativo que o meio acadêmico deve fazer em direção à comunidade, constituindo pontes entre os diversos setores sociais, percebendo onde se insere, buscando uma troca de conhecimentos e retroalimentação. Assim, a arte na academia ocuparia um lugar exemplar para a sua expansão.

Partidas de época: a morte da pintura

A principal consideração no entendimento das idéias que promovem a morte da pintura é reconhecer que elas são contingentes, formuladas dentro de determinada época e cultura. A morte da pintura é fruto da ruptura de vários princípios artísticos europeus, estabelecidos principalmente a partir do Renascimento. Durante o período moderno, a sociedade ocidental criticou seus parâmetros mais profundos. No processo de questionamento de Duchamp e dos dadaístas, valores como a autonomia da obra de arte, autoria e natureza-essência artística foram revistos ciclicamente, determinados e desconstruídos.

No início do texto “Pintura: A Tarefa do Luto”, Yve-Alain Bois cita algumas indagações de Derrida, que pergunta porque a cada época o homem se questiona a respeito do fim, e afirma:

[...] A prescrição de Derrida, a cada época, significa que a cada instância é preciso examinar o tom do discurso apocalíptico: ele clama por ser a pura revelação da verdade, e a última palavra sobre o fim.ii

Apesar dos discursos do fim enfatizarem verdades puras, estas serão conseqüentes apenas dentro do circuito programático onde funcionam, em

determinado conjunto de representações. Não podemos pensar a morte da pintura como um dado objetivo, genérico e global, inclusive porque o próprio óbito refere-se ao questionamento dos conceitos universais da arte.

Ao iniciar o discurso a respeito da destruição da aura da obra de arte, Walter Benjamim salienta o seu caráter histórico: “...O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente”iii.

Outro autor a enfatizar a relação entre as especificidades de época, o sujeito e o estilo de suas próprias representações é Arthur Danto. Ele desenvolve [...]“a teoria de que somos sistemas de representações, maneiras de ver o mundo, representações encarnadas.”iv Entre as múltiplas condições humanas e históricas existem similaridades:

Entendo por estilo esse modo de uma pessoa representar o que quer que ela represente. Se o homem é um sistema de representações, seu estilo é o estilo de suas representações[...] É evidente que também se pode falar em estilo de uma época. [...] v

Talvez o estilo de época da pintura contemporânea seja o que Bois considera “a difícil tarefa do luto” (BOIS, 1986), implicando em uma série de representações relacionadas à proposição luto e de trabalhar após a morte. Porém, talvez também possamos encontrar outras aberturas para este estilo, ou contingência histórica, algo que surpreenda a nós mesmos, criando outros sistemas de representações e formulando uma crítica ao luto. Bois reconhece essa possibilidade ao afirmar: “...prognósticos foram feitos para estarem errados.” (BOIS, 1986). Talvez a situação histórica da primeira década do século XXI seja bem diferente dos anos 80, e já não falamos mais de luto da pintura.

Certamente, a crítica e a formulação de alternativas ao estilo da época não são fáceis. É necessária uma compreensão ampla da situação presente e, em certa medida, uma alteridade, um deslocamento interno. Danto indica a grande complexidade envolvida no processo de auto-percepção das representações:

Sou um objeto para os outros mas não para mim mesmo, e quando sou objeto para mim mesmo já passei para além desse objeto; o que se tornou visível não é mais eu mesmo, pelo menos não como me vejo de dentro. [...] Suponho que é a complexidade dessa identificação que torna a psicanálise tão complexa do ponto de vista filosófico.vi

Sublinhei que entre época e seus sistemas representacionais (como a pintura) existe um trânsito direto e contingente. Mas será que tudo em determinado período é relativo e efêmero? O que é estabelecido e o que é modificado?

Yve-Alain Bois tenta responder à idéia da morte da pintura procurando dar uma solução à “cilada paralisante” (BOIS, 1986), que a concepção historicista da história linear e total formula (na qual é impossível pintar após Duchamp e a sociedade das mídias de massa). Para isto, Bois usa a teoria dos jogos de Damisch:

[...] Esta teoria de estratégia dissocia a idéia geral de jogo (como xadrez) do desempenho específico do jogo (Spassky x Fisher, por exemplo), que chamarei de partida. Suponhamos que Newman e Pollock são adversários no desenvolvimento do Expressionismo Abstrato. Como poderemos determinar o que, no seu embate, está na ordem da partida (o que é único, mas que pode ser repetido através da simulação) ou o que está na ordem do jogo (com regras definidas)? vii

Esta interpretação é estratégica e rigorosamente anti–historicista: com ela, a questão se torna localizar o ponto de vista.

Tal questionamento tem a vantagem imediata de levantar dúvidas sobre certos truísmos. A “suposta regra da profundidade” – rejeitada pela arte pictórica deste século porque, de acordo com Greenberg, é desnecessária – é necessariamente da ordem da partida mais do que do jogo? Ou antes, deveríamos falar da modificação desta regra dentro do jogo? Sem tornar-se uma máquina teórica que produza a indiferença (já que é obrigatório tomar partido), esta aproximação estratégica decifra a pintura como um campo agonizante onde nada jamais termina, ou se resolve de uma vez por todas, e conduz a análise de volta a um tipo de historicidade que, sob pressão do mercado, foi negligenciada, aquela de longa duração. (BOIS, 1986)

Assim, concluímos que podemos vir a reconhecer mudanças gerais no jogo pintura, pontos novos, com maior pertinência para a produção atual; como também modificações específicas, transitórias e relativas apenas a mais uma partida dentro do jogo. Para Bois, a questão atualmente é intricada de maneira especial, pois a partida anterior foi a do fim da pintura, trabalhado [...]“de ponta a ponta” (BOIS, 1986). Nesse sentido, a obra de Robert Ryman seria exemplar.

Referindo-se diretamente à morte da pintura, Arthur Danto destaca a conexão da idéia com pensadores e conceitos determinados do período moderno e pós-moderno, chamando atenção também para um esgotamento da tese:

Minha impressão é de que a morte da pintura foi uma tese excessivamente postulada, tendo muito menos a ver com o estado da arte em torno de 1980 – lembrando que a volta da pintura era o assunto das manchetes naqueles anos – do que com uma pesada atmosfera da teoria pós-moderna. Isso incluía resíduos de injunções à purificação estética, como em Greenberg; injunções à purificação de classe e de privilégio, como no marxismo-leninismo; o tratamento satírico de certos mitos do gênio artístico, como em Barthes, Foucault, Derrida e Baudrillard.viii

Além da dimensão temporal ser determinante na morte da pintura, vale repetir que a ela é somada outra dimensão: a espacial. O local do óbito é o ocidente e talvez de maneira mais exata e derradeira: Nova Iorque. Isabelle Graw comenta: “Como crítica alemã radicada em Colônia na época, para mim, a discussão sobre o ‘fim da pintura’ estava acontecendo principalmente entre os intelectuais em Nova York.”ix (a época neste caso são os anos 80).

As raízes anteriores da morte da pintura encontram-se na Europa: no surgimento e desenvolvimento do capitalismo industrial; nos movimentos artísticos na França, que foi o centro das vanguardas históricas; e na arte revolucionária russa, com as exigências sociais da arte e sua recusa à mercadoria. Contudo, é na transposição do centro artístico de Paris para Nova Iorque que ocorre o desfecho final.

Pintura depois da morte da pinturax

A discussão acerca da morte da pintura leva à necessidade de apontar possibilidades de sua permanência. Apesar de localizarmos a sua morte dentro de um conjunto temporal e interpessoal, algo como um nó de uma grande rede histórica, ainda somos capazes de trançar, tramar o nosso nó estrutura parte da história significativa da pintura.Pensamos nas respostas de Ryman. Ao ser indagado se a pintura abstrata requer um sentimento de direção completamente histórico ou estético, ele diz achar que não:

[...] Existem problemas que você trabalha e existe uma consciência do que já foi feito; que os outros já trabalharam e como abordaram a pintura, e as soluções às quais

chegaram. Mas não é uma coisa histórica do tipo unilateral, na qual todos estão envolvidos. Acho que cada um tem de dar pequenas mordidas, tirar pedaços e trabalhar sobre eles.xi.

As “pequenas mordidas” de Ryman parecem com os “detalhes” de Marlene Dumas. A artista, ao responder Barbara Bloom sobre a morte da pintura, fala de algo não declarado sempre que essa pergunta é feita, talvez como insinuação de interesses ocultos:

A pessoa perguntando costumeiramente tem alguma outra razão para perguntar. Ele ou ela está frequentemente perguntando alguma outra coisa que não é falada. Isso me lembra uma das minhas linhas: ‘O único bom pintor é um pintor morto’, porque todo mundo sempre quer falar – e isso é tão chato – sobre a ‘morte da pintura’. E as questões são tão amplas, vagas, não específicas. É impossível dar respostas detalhadas para questões pouco claras. E, como eles dizem, Deus está nos detalhes.xii

Pequenas mordidas e detalhes são escolhas. As escolhas que fazemos não estão apenas restritas ao conjunto das representações históricas ou presentes. Eventualmente, podemos ultrapassá-las e provocar mudanças. As articulações específicas sobre as quais nos debruçamos e levamos adiante, são opções singulares. Elas não constróem uma grande narrativa e são as medidas do nosso possível.

As escolhas também não precisam estar certas, pois o desejo absoluto de dar respostas políticas e teóricas corretas massacra e leva ao esgotamento. Esse ponto crítico é levantado por Thomas Lawson através da discussão do trabalho de Sherrie Levine:[...] Sherrie Levine decidiu simplesmente representar a idéia de criatividade, re-apresentando o trabalho de outra pessoa como seu em um esforço de sabotar um sistema que coloca valor sobre a produção privilegiada do talento individual... Ela articula a realização de que, dados certos constrangimentos, aqueles impostos por um entendimento da situação atual tanto quanto aqueles impostos por um desejo de aparecer “correto” em um sentido teórico e político, não há mais nada para ser feito, aquela atividade criativa é interpretada impossível. E assim, como uma vítima despojada ela simplesmente rouba o que precisa.xiii

O texto de Lawson é do início da década de 80 e procura lidar com a produção pictórica emergente, suas relações com o legado conceitual e moderno. O autor salienta uma grande confusão geral na arte e, ao mesmo tempo, uma polaridade binária entre uma elite anti-intelectual que celebra a superioridade expressiva do autor e uma elite intelectual anti-estética que condena, com superioridade moral, a arte pictórica pós-minimal/conceitual.

Além de levantar dicotomias e possíveis caminhos na situação que lhe era contemporânea, o texto de Lawson é profícuo em trazer apontamentos pertinentes para atualidade. Lawson irá enfrentar uma série de aspectos conceituais relativos não só à pintura, mas também às outras mídias, como a fotografia e os objetos apropriados. Ele não irá debater o meio pictórico isoladamente, e sim, sua amplitude como discurso consubstanciado, campo de relações ampliadas. Na arte, os diversos meios se tocam, convergindo e divergindo em um fenômeno complexo.

Considerando a idéia da pintura como um jogo de várias partidas, quais seriam as eventuais “proposições/regras” da disputa atual? Certamente encontraremos algumas respostas no diálogo da pintura com outras mídias, na verificação das soluções dadas às interações de um meio com outros, nas trocas características do universo plural da arte. No passado, por exemplo, houve o embate entre pintura e

escultura (Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo), ou ainda, entre desenho e cor (Florença e Veneza):

Arthur Danto indica a procura por um novo padrão entre disciplinas artísticas. A pintura poderia encontrar novos parâmetros contemporâneos na relação com a arte conceitual:

[...] É surpreendente que ninguém tenha tentado escrever um ‘paragone’: uma comparação entre a pintura e a arte conceitual, do mesmo modo em que comparavam a pintura e a escultura. As observações negativas que Duchamp fez sobre a pintura têm um pouco da qualidade de um paragone.xiv

Qual seria o modelo de excelência a ser seguido pelos diversos suportes? Antes as opções estavam entre a pintura e a escultura. Se a arte é intelectual, qual a expressão artística mais próxima do universo intelectual e das mediações teóricas?

Uma resposta comum é a fluidez e a diluição de fronteiras: a pintura recebe influências, da mesma maneira que se expande e contamina outros meios. Essa solução, apesar de genérica, pode ser salutar, pois propõe grande abertura e conceitos expandidos de pintura.

Para Giancarlo Politi e Helena Kontova, curadores-chefes, da segunda Prague Biennale, a preocupação da pintura hoje, diferente da moderna, que teria investigado a natureza pictórica, é saber como pode ser feita, quais suas possibilidades. Para os curadores, a prática e a teoria de arte contemporânea demonstram ser falsa a observação de que a pintura tem agenda própria e ocupa posição marginal no circuito da arte. O meio pictórico é capaz de absorver, mediar e transformar impulsos de outras disciplinas e, não sendo apenas receptivo, pode levar outros ares para novas mídias.

Essa capacidade de renovação e abertura da pintura com outras mídias é uma hipótese importante de permanência da pintura. David Reed também supõe a diluição de fronteiras no campo artístico:[...] A pintura é a mais impura e rebaixada das formas de arte porque sua maior virtude consiste na facilidade de absorver influências externas. Ela manteve uma relação simbiótica com vários sistemas de crença, religiosos e políticos. Ora, ela pode ter uma relação igualmente rica com a tecnologia da reprodução mecânica como a fotografia e o cinema, bem como com os outros campos [...] performance, dança, arquitetura, escultura e instalação. [...]xv

Thierry de Duve segue sentidos semelhantes:

Quanto à questão do readymade, da pintura e da ameaça da fotografia sobre a pintura, eu diria duas coisas: (1) o que é uma fotografia se não uma pintura readymade? O readymade pode de fato ter sido um beijo do vampiro da fotografia que torna a pintura imortal, como disse David Reed; (2) embora Duchamp seja autor de muitos readymade (no plural), o readymade (no singular) é uma mensagem da qual Duchamp é meramente o mensageiro, um anúncio cujo conteúdo diz: agora é tecnicamente possível e institucionalmente legítimo fazer arte a partir de absolutamente qualquer coisa. Uma maneira de ler essa situação é dizer que o velho sistema das beaux-arts desmoronou, apenas para ser substituído por uma nova instituição de arte, a qual poderíamos chamar de ‘arte no sentido amplo’. Tanto os limites externos quanto os internos da ‘arte’ (os que separam a arte da não-arte e os que delineiam a pintura e a escultura, por exemplo) tornaram-se vagos e permeáveis.xvi

Porém, esta permeabilidade não deve simplesmente evitar o problema da construção de certas definições e posicionamentos históricos. Existe um longo caminho percorrido, muitos artistas já enfrentaram sérios desafios conceituais e constituíram obras esclarecedoras. A permeabilidade não transforma a seriedade dos

desafios anteriores em tolices superadas. Há sempre um legado que é incorporado, trabalhado e desenvolvido, não progressivamente, mas de maneira dialética.

i ARGAN, Giulio Carlo. “Arte Moderna”. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Pág. 306ii BOIS, Yve-Alain. “The Task of Mourning”; em: catálogo de exposição Endgame: Reference and Simulation in Recent Painting and Sculpture, 1986 (Massacchusetts Institute of Technology e Institute of contemporary Art, Boston). Texto apresentado em sala de aula por Prof. Dr. Carlos Zilio com tradução de Thaís Ribeiro.iii BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” em: “Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política”. São Paulo: Brasiliense, 1994. Pág. 169iv Conceito de Arthur Dando seguindo relativamente idéia de Schopenhauer. Em: DANTO, Arthur C. “A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte”. São Paulo: Cosac Naify, 2005. Tradução de Vera Pereira. Pág. 292v Idem. Pág. 293vi Idem. Pág. 295vii DAMISH, 1984 apud BOIS, Yve-Alain. “The Task of Mourning”; em: catálogo de exposição Endgame: Reference and Simulation in Recent Painting and Sculpture, 1986 (Massacchusetts Institute of Technology e Institute of contemporary Art, Boston). Texto apresentado em sala de aula por Prof. Dr. Carlos Zilio com tradução de Thaís Ribeiro.viii DANTO, Arthur C (org.). “The Mourning After”; em: Artforum, março 2003. Texto apresentado em sala de aula por Prof. Dr. Carlos Zilio com tradução de Célia Euvaldo, revisão de Isabel Lofgren e colaboração de Carlos Zílio.ix Idem.x O título do presente subcapítulo é inspirado no debate promovido por Danto. Danto, Artforum, 2003xi Ryman. Em: BOIS, Yve-Alain. “Robert Ryman – Novas Pinturas”, Revista Gávea no15. Pág. 716xii Bloom. Em: “Marlene Dumas”. New York: Phaidon Press, 1999. Pág. 26

xiii LAWSON, Thomas. “Last Exit: Painting”. Em: “Art After Modernism: Rethinking Representation”. USA: The New Museum of Contemporary Art, 1984. Pág. 161xiv Danto, Artforum, 2003xv Reed. Em: DANTO, Arthur C. “The Mourning After”; em: Artforum, março 2003xvi De Duve. Em: DANTO, Arthur C. “The Mourning After”; em: Artforum, março 2003