o Atelier Libre

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1 O ATELIER ENQUANTO LUGAR E PROCESSO DE CRIAçãO ARTíSTICA Dissertação de Mestrado Francisco Cardoso Lima 2007 Universidade de Aveiro Departamento de Comunicação e Arte Mestrado em Criação Artística Contemporânea Orientador de Mestrado Professor Doutor João Mota Disponível para download (formato PDF) em <http://ua.clinik.net/dissertacao/> @ 21.7.2007

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Transcript of o Atelier Libre

  • 1O Atelier enquAntO lugAr e PrOcessO de criAO ArtsticA

    Dissertao de Mestrado Francisco cardoso lima

    2007

    Universidade de Aveiro

    Departamento de Comunicao e Arte

    Mestrado em Criao Artstica Contempornea

    Orientador de Mestrado Professor doutor Joo Mota

    Disponvel para download (formato PDF) em @ 21.7.2007

  • 2universidAde de AveirO 2007

    Departamento de Comunicao e Arte

    FrAnciscO Miguel seixAs riObOM de cArdOsO liMA

    O Atelier enquAntO lugAr e PrOcessO de criAO ArtsticA

    Dissertao apresentada Universidade de Aveiro para cumprimento dos requi-

    sitos necessrios obteno do grau de Mestre em Criao Artstica Contempornea, re-

    alizada sob a orientao cientica do Dr. Joo Mota, Professor Auxiliar do Departamento

    de Comunicao e Arte da Universidade de Aveiro.

  • 3Dedico este trabalho minha me Isabel e minha ilha Francisca.

  • 4O Jri

    Presidente

    Prof. Doutor Fernando Manuel dos Santos Ramos

    Professor Catedrtico da Universidade de Aveiro

    Arguente

    Prof. Doutora Gabriela Vasconcelos Pinheiro

    Professora Auxiliar da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

    Coordenador do Mestrado

    Prof. Doutor Paulo Bernardino das Neves Bastos

    Professor Auxiliar da Universidade de Aveiro

    Orientador do Mestrado

    Prof. Doutor Joo Antnio de Almeida Mota

    Professor Auxiliar da Universidade de Aveiro

  • 5AgrAdeciMentOs

    Entre todas as pessoas que colaboraram e me ajudaram durante a elaborao

    deste trabalho, e sem as quais ele no teria sido possvel, quero agradecer particular-

    mente ao Prof. Doutor Joo Mota, meu orientador de mestrado, por ter aceite partilhar

    comigo este complexo desaio e a Nuno Barros, amigo de sempre, pela sua total e impres-

    cindvel disponibilidade e ajuda.

    Quero tambm agradecer a Andr Rangel, Bruno Baldaia, Carlos Brtolo, Henri-

    que Figueiredo, Ins Mendes, Joana Pimentel, Prof. Doutora Rosa Oliveira, Tiago Restivo,

    pelos preciosos contributos prestados durante todo este processo.

    Gostava ainda de agradecer a Edgar Silva, Joo Leo, Jos Costa, Prof. Doutor

    Jos Lus Azevedo, Pedro Oliveira, por toda a ajuda prestada durante todo este processo.

    Agradeo por im a Cladia Ribau e a toda a minha famlia pelo amor e pela ami-

    zade sempre demonstrados.

  • 6PAlAvrAs-chAve

    Artes Plsticas, Artes Visuais, Artista, Atelier, Francisco Cardoso Lima,

    Helena Almeida, Objecto Artstico, Processo Criativo.

    resuMO

    Esta dissertao levanta um conjunto de questes que se prendem com o artis-

    ta, com o processo criativo e com o objecto artstico. Dando particular ateno ao atelier

    como lugar de criao, este estudo conclui que esse espao , no seu essencial, o espao

    da arte, um territrio de fronteiras permeveis, um lugar amoral. Ainda, este estudo con-

    duziu realizao de uma pintura: The Artists Studio(2007, acrlico s/ tela, 280x120cm).

    Esta pintura foi apresentada no Auditrio do Departamento de Comunicao e Arte da

    Universidade de Aveiro em 20 de Julho de 2007.

  • 7KeywOrds

    Art Object, Art Studio, Artist, Creative Process, Helena Almeida,

    Fine Arts, Francisco Cardoso Lima, Visual Art.

    AbstrAct

    This dissertation raises a set of questions related to the artist, the creative pro-

    cess and the art object. Focusing on the artists sudio as the place of creation, this study

    concludes that the studio is, in its essentials, the site of the art, a territory without boun-

    daries, an amoral place. Moreover, this study made possible the production of a painting:

    The Artists Studio(2007, acrylic on canvas, 280x120cm). A painting exhibited at the Au-

    ditorium of the Departamento de Comunicao e Arte at Universidade de Aveiro on July

    the 20th, 2007.

  • 8

  • 9ndice

    APresentAO 11

    ObJectivOs 13

    MetOdOlOgiA 14

    1 elA (mapas, obras e discursos sobre Helena Almeida) 21

    A obra de Helena Almeida (mapa de momentos) 23

    ~1967 ~1979 26

    ~1980 ~1993 29

    ~1994 ~2006 31

    Discursos crticos 34

    O Objecto Desconstrudo 35

    O Objecto Habitado 35

    O Espao Habitado 37

    O Atelier Habitado 38

    Famlia 39

    Ruptura com as disciplinas tradicionais 39

    Fotograia 41

    Fotgrafo 42

    Local, Lugar, Espao, Territrio 43

    Corpo 45

    Processo 47

    Dualidade 49

    Zero 50

    Atelier 52

    Helena Almeida por outros e por mim (sntese de ELA) 55

  • 10

    2 eles (os ateliers e as obras) 63

    O Atelier de Helena + O Atelier de Francisco 65

    O rasgo de Lucio Fontana 67

    O mundo de Alice 72

    O covil de Franz Kafka 74

    O Red Room de David Lynch 77

    O irreal, o surreal e o meta-real alm do rasgo de Fontana

    (sntese de ELES) 81

    3 ele (o atelier e a obra) 83

    A Obra 85

    Esses (ela, eles, ele, eu e o outro) 87

    texto de autor

    O Atelier (sntese de ELE e cOnclusO) 93

    bibliOgrAFiA 97

    listA de iMAgens 99

    AnexO 103

    This Is My Studio (ou o atelier como lugar de criao) 103

    texto crtico por Nuno Barros

  • 11

    APresentAO

    Esta dissertao de mestrado resulta dos estudos efectuados no mbito do Mes-

    trado em Criao Artstica Contempornea (DeCA, UA)1. Este mestrado em Criao Arts-

    tica Contempornea visa contribuir para o avano do conhecimento e inovao no do-

    mnio da investigao artstica e composto de forma a possibilitar uma estreita ligao

    entre as dimenses relexiva e prtica.

    Existe um conjunto de assuntos abordados nesta dissertao de mestrado que

    so resultado de pesquisas feitas no mbito do primeiro ano curricular. Das abordagens

    e pesquisas de carcter experimental feitas no contexto do primeiro ano de estudo, sa-

    lienta-se o caso de Serial B2 (robtica), de Tua Frente3 (ultra-som, electrnica, progra-

    mao de microprocessador) e da fotograia O Gmeo4 (motivo para o posterior vdeo

    1 Departamento de Comunicao e Arte da Universidade de Aveiro.

    2 Francisco Cardoso Lima, Serial B, 2005, robtica (protocolo de comunicao Max/MSP),

    Departamento de Comunicao e Arte da Universidade de Aveiro e Instituto de Engenharia Electrnica e Telemtica da Universidade de Aveiro.

    3 Francisco Cardoso Lima, Tua Frente - site speciic (com Tiago Restivo), 2005/2006, espe-

    lho, metal, sensor ultra-som e micro-processador, 80x60x4cm, Departamento de Comunicao e Arte da Universidade de Aveiro.

    4 Francisco Cardoso Lima, O Gmeo, 2005, impresso s/ papel, 140x280cm, Fbrica da Cin-

    cia Viva, Aveiro.

  • 12

    O Gmeo5). Em Laboratrio de Experimentao e Criao Artstica, disciplina iminen-

    temente prtica, tida como aglutinadora de todo o percurso relexivo/prtico, o ltimo

    trabalho apresentado, The Artists Place (ig. 1), surge como uma declarao dos campos

    de interesse para este estudo, ancorada no tanto em airmaes ou concluses, antes

    apresentando um conjunto de inquietaes: Que lugar esse onde tudo se passa? esse

    o lugar da criao? O espao da arte?

    1 F. Cardoso Lima, The Artists Place, 2006

    Simultaneamente, The Artists Place (ig. 1) fecha um ano de estudos e posicio-

    na-se como primeira grande interrogao, como alavanca inicial para as pesquisas desta

    dissertao.

    A escolha do Atelier como elemento central deste estudo e a escolha do trabalho

    da artista Helena Almeida, particularmente da obra Eu Estou Aqui (ig. 2), so o ponto de

    partida para a relexo e prtica artstica sobre um espao, um lugar.

    5 Francisco Cardoso Lima, O Gmeo (fotograma), 2005, vdeo, 7:55 @152x320 px, Departa-

    mento de Comunicao e Arte da Universidade de Aveiro

  • 13

    2 H. Almeida, Eu Estou Aqui, 2005

    No se pretende encontrar uma deinio de atelier6. Nem se pretende este, o de

    Helena Almeida, ou outro atelier. De outra forma, pretende-se relectir a partir do atelier

    entendido como um espao que remete para outros territrios que ultrapassam as quatro

    paredes da sua construo. O atelier enquanto lugar e processo de criao artstica no diz

    respeito sua isicalidade. Antes, parece referir-se desconstruo desse lugar comum.

    justamente procura desse outro sentido que esta escolha se reveste de pri-

    mordial importncia. No pelo que j conhecido da autora e do trabalho escolhido mas

    pelo halo que o atelier parece revelar na vida e na obra da artista.

    ObJectivOs

    A prtica artstica pretende constituir-se como matria central de estudo desta

    dissertao de mestrado, levantando um conjunto de questes que se prendem com o

    artista, com o processo criativo e com o objecto artstico.

    6 Atelier - B. ART. Oicina para restauro de obras de arte ou onde trabalham os artistas plsti-cos. Pode ser individual, para escultor ou pintor, ou conjuntamente de vrios artistas formados ou jovens artistas estudantes. Quando assim, ter a orientao de um ou vrios mestres e tomar o nome de aula. O conjunto de aulas agrupadas forma uma academia ou escola. Antnio-Lino in Enciclopdia Luso-Brasileira de Cultura, 2 volume, (Lisboa: Verbo, 1992), coluna 1720.

  • 14

    No est em causa neste estudo, pelo menos directamente, a deinio de arte

    nem sequer a deinio de artista ou de obra de arte. Antes, a relexo sobre os meca-

    nismos subjacentes ao acto criativo. Trata-se aqui dos factores internos, de vria ordem,

    ligados ao sujeito (e sua condio de artista), ligados ao processo de criao artstica

    (e ao atelier como metfora desse lugar de criao) e ligados ao objecto artstico ( sua

    materialidade/isicalidade e sua aura).

    A pergunta essencial deste estudo :

    Entender qual o lugar onde o criador exerce a possibilidade de ultrapassar os

    limites da realidade.

    MetOdOlOgiA

    Num trabalho de investigao as questes metodolgicas revestem-se de gran-

    de importncia. So informaes estratgicas que o investigador deve procurar cuidar

    partida para, desde o momento inicial (e fundamentalmente nesse momento) dirigir o

    seu trabalho de forma consciente, sem, contudo, deixar que se tornem num protocolo

    claustrofbico e inibidor da prpria investigao.

    A importncia da metodologia na investigao artstica fundamental e pode

    determinar e dirigir rumos, sentidos, alinhamentos, no se constituindo essa orientao

    como uma programao do acto inal. Tratam-se de intenes expressas metodologica-

    mente, como direco (ou direces) e no necessariamente como meta (ou metas) em si,

    antes como um objectivo (ou objectivos) no necessariamente inal, capaz de no frustrar

    os propsitos do investigador, mas sim potenciar os campos investigativos. E nos estudos

    de arte, como tambm naturalmente na criao artstica, onde a realidade no apresenta

    uma conigurao claramente deinida, necessrio que a investigao (cientica ou arts-

    tica) no se centre na procura de constataes, mas tente a compreenso e o conhecimen-

    to dos objectos/acontecimentos/fenmenos atravs do sentido que eles veiculam.

    No momento primordial de qualquer investigao a cincia partilha com a arte

    um denominador comum particularmente caro para o artista: trata-se de adoptar uma

    opo, declarar uma posio, expressar uma vontade, manifestar um desejo no domnio

    do subjectivo, ntimo, pessoal e nem sempre racionalmente explicvel. A razo, a lgica,

    RafaelaHighlight

  • 15

    o nexo, nem sempre so o bastante para avanar. E nas artes plsticas, como na cincia,

    o rasgo est muitas vezes associado ao incompreensvel. A tarefa dos investigadores, ,

    tambm, construir a partir desse incerto. Priorizar as hipteses para seleccionar assumin-

    do esse risco inerente fragilidade do investigador.

    Aqui, no momento primordial, arte e cincia partilham a mesma realidade:

    A prtica cientica partilha com a arte a necessidade de escolha. O objecto de estudo resulta de uma opo, assim como a sua perspectiva de abordagem.

    Pela complexidade da arte e do espao artstico, pela sua prpria natureza inde-

    terminada, amplitude do seu campo de aco, pelo largo espectro de questes por ela

    levantadas, pelo territrio de fronteiras permeveis que se cruzam e sobrepem em dife-

    rentes momentos investigativos, por tudo isto, apresentam-se dois esquemas adaptados

    (ig. A e B) que contextualizam os recursos metodolgicos usados neste percurso:

    -Adaptao simpliicada do V Epistemolgico de Gowin8 que assenta na rela-

    o entre os domnios conceptual e factual centrando o foco da investigao no objecto

    de estudo, neste caso o atelier.

    Interaco

    Investigao

    Pensar Fazer

    Fig. A

    Objecto

    7 J. Eduardo Carvalho, Metodologia do Trabalho Cientico, (Lisboa: Escolar Editora, 2002), p. 77.8 Adaptao simpliicada do V Epistemolgico de Gowin, depois de O V do conhecimen-

    to in J. Eduardo Carvalho, Metodologia do Trabalho Cientico, (Lisboa: Escolar Editora, 2002), p. 102.

  • 16

    -Adaptao simpliicada do esquema Pensamento Divergente vs Pensamento

    Convergente9 que assenta na metfora do funil10 (enquanto pensamento convergente)

    ao qual lhe acrescentado um outro funil invertido (enquanto pensamento divergente).

    Pensamento Divergente

    Pensamento Convergente

    Fig. b

    Aquilo que Darrel Rhea prope acrescentar antes desse processo de reinamento

    e ordenao (tpico do pensamento convergente), um momento de maior diversidade

    e profundidade na anlise das vrias partes (tpico do pensamento divergente). Assim,

    quer aquilo que partida expectvel, quer, essencialmente, aquilo que partida pode

    parecer fazer parte de um quadro exterior investigao, esto, em ambos os casos, con-

    vocados para a deinio do grande quadro investigativo. E na criao artstica, como na

    investigao cientica, parece ser esse o rasgo para um pensamento mais consistente,

    origem para propostas mais signiicativas quer na determinao das questes essenciais

    quer na deinio dos percursos metodolgicos. E durante este processo particular, a in-

    9 Darrel Rhea in Brenda Laurel, Design Research-Methods and Perspectives, (Massachusetts: Massachusetts Institute of Technology, 2003), p. 148.

    10 ibid., p. 147. A metfora funil pode ser til para descrever o progressivo enfoque e rei-namento das ideias ao longo do processo, mas claramente inadquado para descrever um processo l-gicoos elementos que se encontram dentro do funil so demasiado aleatrios e o processo da escolha desses elementos obscuro. (traduo livre de F. Cardoso Lima).

    [The funnel metaphor] may be useful for describing the increasing focus and reinement that ideas go through, but it is clearly inadequate to describe a logical processthe elements that go into the funnel are too random and its inner working are obscure.

  • 17

    vestigao conteve em si a capacidade de surpreender e de revelar novas direces para

    o estudo, novos rumos para diferentes caminhos, muitas vezes surpreendentes por no

    estarem no horizonte no momento inicial. Na presente dissertao isso aconteceu por

    vrias vezes: aquilo que em determinado momento se assemelhava a um ponto inal,

    revelou-se, por vrias vezes, como outro ponto de partida.

    Tambm metodologicamente importante foi a interaco entre a prtica artsti-

    ca e o trabalho terico. Durante este processo todo o trabalho artstico do autor esteve

    em ligao prxima com o atelier, quer enquanto lugar da prtica, quer enquanto assun-

    to para pesquisa. A prtica artstica contagiou e foi contagiada pelo percurso relexivo e

    espelha-se em dois vectores que se relacionam e comunicam um com o outro.

    No momento inicial desta investigao, aquele em que arte e cincia partilham

    as mesmas incertezas na busca do primeiro avano, foi clara a prevalncia da prtica ar-

    tstica na escolha do tema. Muito particularmente, os trabalhos no primeiro ano curricular

    deste mestrado. E esses, tambm eles, so devedores do percurso artstico do autor.

    Embora tambm ela, a prtica, mas mais do que num momento nico, o per-

    curso artstico como um grande todo, como um grande quadro, que marca o arranque. E

    marca-o eventualmente antes ainda do incio desta investigao. Marca-o provavelmen-

    te na manifestao de vontade de investigar e no momento da escolha de um percurso

    investigativo (particularmente na escolha de este e no outro).

    Mas no s no momento inicial dos estudos se manifesta o contgio da com-

    ponente prtica sobre a componente escrita. Tambm aquando da escolha de uns e do

    detrimento de outros caminhos, o percurso criativo, esse todo, desempenhou um papel

    fundamental por ter, ele prprio, anteriormente, j resolvido um leque de questes.

    O contgio do campo terico sobre o campo prtico foi determinante na cons-

    truo do trabalho inal (ig. 60) que se constitui, efectivamente, como a grande sntese. E

    nesse sentido, apresenta-se com um duplo valor: enquanto resultado prtico claramente

    marcado pela relexo (veja-se, por exemplo, a aluso porta que Alice usou para entrar

    no jardim do pas das maravilhas -ig. 38) e enquanto grande contedo de todo o proces-

    so criativo do autor (veja-se por exemplo, o uso da palavra ou a estrutura modular).

    A interaco pensar/fazer (ig. A) manifestou-se ento a dois nveis. Num mo-

    mento, a prtica de atelier integrou-se na construo deste texto pelo seu espectro auto-

    relexivo (o objecto artstico enquanto pergunta e resposta simultnea) tanto ao nvel

    da obra particular como, e fundamentalmente, ao nvel do percurso artstico (encarado

  • 18

    como meta-obra singular). Noutro momento, foi a relexo terica que serviu a criao ar-

    tstica quer pela anlise, quer pela sntese, quer pelo percurso relexivo traado no decor-

    rer deste texto. Devedor do domnio relexivo, The Artists Studio (ig. 60) o ponto inal

    deste mestrado. E na dupla qualidade de ser, por um lado, objecto ltimo deste mestrado

    e, por outro lado, o objecto ltimo da prtica de atelier, The Artists Studio (ig. 60) ai-

    gura-se como matria prima para novas construes quer ao nvel prtico, quer ao nvel

    terico. Pela sua natureza de objecto artstico e pela sua natureza de trabalho-tese, esta

    obra arrastar consigo um vasto leque de interrogaes e inquietaes, prpris dos mo-

    tores-alavanca. Neste sentido, The Artists Sutio (ig. 60 -a obra sobre o atelier do artista)

    parece funcionar como agente motriz de forma to fulcral como funcionou The Artists

    Place (ig. 1 -a obra sobre o lugar do artista): princpio ou causa primeira para avanos.

    Interessa, agora, dividir esta investigao por momentos investigativos e corres-

    pondentes percursos metodolgicos.

    No incio, aquando da escolha do tema e do caso (do leitmotiv que sempre pon-

    tuou o estudo), aquando da escolha do atelier como grande tema aglutinador e da obra

    Eu Estou Aqui (ig. 2) como referncia de partida, usou-se uma abordagem metodolgi-

    ca essencialmente assente no pensamento divergente/convergente.

    Posteriormente, em ELA-A obra de Helena Almeida (mapa de momentos), (pp.

    21-32), partindo de uma leitura do conjunto da sua produo, e recorrendo fundamental-

    mente ao pensamento dedutivo, assinalam-se os principais momentos do seu percurso

    artstico.

    Ainda, no seguimento de uma leitura da obra de H. Almeida, naquilo que inti-

    tulado de ELA-Discursos crticos (pp. 33-54), durante as pesquisas elaboradas em docu-

    mentao de e sobre a artista, prevaleceu uma abordagem analtica.

    Posteriormente, no inal deste 1 captulo, em ELA-Helena Almeida por outros e

    por mim, (pp. 54-61), foi elaborado um trabalho de sntese.

    No incio do 2 captulo, em O Atelier de Helena + O Atelier de Francisco, (pp.

    65-81), numa atitude de ampliao do campo relexivo, so analisados por justaposio

    trs autores (e trs hipteses para trs espaos de criao)

    Tambm aqui, no inal do 2 captulo ELES-O irreal, o surreal e o meta-real alm

    do rasgo de Fontana (pp. 82, 83), como no inal do 1 momento (ELA), foi novamente

    elaborado um trabalho de sntese.

    No incio do 3 captulo apresentada a obra The Artists Studio, (ig. 60, p. 101),

  • 19

    enquanto acontecimento resultante da interaco dos campos tericos e prticos, en-

    quanto objecto de relexo, seguida de dois textos, outras duas relexes distintas.

    Primeiro, em This Is My Studio (ou o atelier como lugar de criao -pp. 89-94),

    texto de Nuno Barros, foi feita uma abordagem iminentemente indutiva, do trabalho par-

    ticular, observado em atelier, para o percurso do autor.

    Depois, em Esses (ela, eles, ele, eu e o outro -pp. 94-99) fez-se um exerccio cr-

    tico sobre o prprio percurso investigativo (com particular nfase no 2 captulo e conta-

    giado tambm pelo eixo prtico), novamente numa atitude primeiro divergente/aberta,

    (no elencar de um conjunto de tpicos) para, posteriormente, num trajecto convergente/

    sinttico, preparar o ltimo captulo deste trabalho.

    Finalmente, no texto ELE-O atelier, (pp. 100, 101), e numa perspectiva de snte-

    se, a dissertao concluda.

  • 20

  • 21

    1 1 elA (mapas, obras e discursos sobre Helena Almeida)

    A Obra de Helena Almeida (mapa de momentos) 23

    ~1967 ~1979 26

    ~1980 ~1993 29

    ~1994 ~2006 31

    Discursos crticos 34

    O Objecto Desconstrudo 35

    O Objecto Habitado 35

    O Espao Habitado 37

    O Atelier Habitado 38

    Famlia 39

    Ruptura com as disciplinas tradicionais 39

    Fotograia 41

    Fotgrafo 42

    Local, Lugar, Espao, Territrio 43

    Corpo 45

    Processo 47

    Dualidade 49

    Zero 50

    Atelier 52

    Helena Almeida por outros e por mim (sntese de ELA) 55

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  • 23

    A ObrA de helenA AlMeidA MAPA DE MOMENTOS

    Para procurar a relevncia do atelier na criao artstica procurou-se estabelecer um

    conjunto de relaes entre o atelier e o percurso artstico de Helena Almeida. A composio

    de um grande mapa explorando o trajecto das obras da artista apresentado como sistema-

    tizao de um conjunto de elementos que se apresentam estruturantes na sua produo:

    a famlia, o desenho, a pintura e a fotograia, o corpo e o espao, a casa e o atelier, o processo.

    Como apresentado na obra Eu Estou Aqui (ig. 2), tida como alavanca desta pes-

    quisa, ou como apresentado noutros momentos, de formas diversas e a diferentes nveis,

    o atelier em H. Almeida no apenas um elemento estruturante como tambm se aigura

    parte essencial na construo do seu grande quadro pictoral de uma forma transversal e

    primordial.

    Pela natureza operacional do seu desenho informtico, e enquanto organizador

    de ideias, a ferramenta utilizada11 para criar este grande mapa produziu um conjunto de

    documentos iminentemente gricos que serviram de grande auxiliar para a diviso do per-

    curso da artista em trs momentos.

    Helena Almeida ilha do escultor Leopoldo de Almeida, me da artista plstica

    Joana Rosa e casada com o arquitecto Artur Rosa (tambm seu fotgrafo). Nasceu em

    1934, em Lisboa, onde actualmente vive e trabalha. Em 1955, com vinte e um anos, termi-

    nou o Curso de Pintura da Escola de Belas-Artes de Lisboa. Posteriormente saiu para Paris.

    Mais do que para fazer, saiu para ver, para ver tudo, para ver de tudo (I. Carlos 1998, 48).

    H. Almeida faz um conjunto de exposies colectivas12 naquilo que se pode

    chamar de primeirssimo momento, desde os incios dos anos 60 at 1967/68, altura da

    11 Omnigrale: @ 27.2.2006. A di-viso do percurso artstico de H. Almeida , por tanto, devedora do desenho grico obtido atravs deste instrumento de trabalho. O carcter grico, aberto e a forma em rede, de multiplas ligaes, apresentam semelhanas no modo de construir contedos com a forma com que o artista constri sentidos. A no necessidade de um conjunto de regras rgidas que regem a procura e a no existncia de um programa ba-lizado do qual o investigador se pode tornar refm, precipita a pesquisa para outros entendimentos, outros juzos no protocolados. Desta forma, aquilo que o investigador procura no se torna partida num im, antes um motivo para uma inteno no claramente deinida no momento de arranque da pesquisa. Desta mesma forma, embora de modo no vinculativo, tambm o artista tem essa possibilidade de descoberta, inscrita na natureza do acto criativo.

    12 1961 II Exposio de Artes Plsticas, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa; 1962 Salo de Maio, SNBA, Lisboa; 1965 Salo de Desenho, SNBA, Lisboa; 1966 Salo de Maio, SNBA, Lisboa; 1966 Salo de Desenho, SNBA, Lisboa; 1967 Novo Desenho, Galeria Quadrante, Lisboa; 1967 II Exposio de Arte Moderna do Funchal, Funchal; 1967 Salo de Belas-Artes,

    Coimbra.

  • 24

    sua primeira exposio individual na Galeria Buchholz (Lisboa). Essa exposio marca o

    arranque daquilo que Ernesto de Sousa intitula de primeiros anos de amadurecimento,

    coincidindo com aquilo que aqui chamamos de 1 momento do percurso artstico de H.

    Almeida.

    A obra de Helena Almeida pode ser dividida, agrupada, distribuda, abordada

    de diversas formas, segundo vrias perspectivas. Aquilo que a seguir se apresenta uma

    possibilidade de leitura quer do processo de criao quer do conjunto de obras da artista.

    Outras hipteses existem. Esta, contudo, adquire fundamental importncia pelo desta-

    que que o atelier obtm, decorrente da abordagem quer crtica quer artstica da totalida-

    de da sua produo e do seu percurso artstico.

    Aquilo que parece ser o primeiro grande momento do corpo de trabalho de He-

    lena Almeida (ig. C) balizado entre os inais da dcada de sessenta e os inais da dcada

    de setenta. Cerca de doze anos que tem incio com as primeiras exposies na Galeria

    Buchholz (Lisboa, Portugal) e se prolonga at s primeiras exposies individuais fora de

    Portugal (Berna, Sua, Frana, Blgica). Em 1977 participa na exposio colectiva Alter-

    nativa Zero (Lisboa, Portugal)

    Fig. c

    O Outro

    1979 1980

    Ruptura

    Antes da fotograa como suporte Fotograa como suporte19551934 1967 1973 1974

    2: A Herana

    198019791967

  • 25

    O segundo grande momento do corpo de trabalho de Helena Almeida (ig. D)

    situa-se entre os incios da dcada de oitenta e os primeiros anos da dcada de noventa.

    Nestes cerca de treze anos as exposies individuais e colectivas sucedem-se, dentro e

    fora de Portugal. Expe na Fundao Calouste Gulbenkian em 1983 e 1987. So duas ex-

    posies marcantes no percurso da artista. Ainda, em 1982, representa Portugal na Bienal

    de Veneza, comissariada por Ernesto de Sousa.

    Fig. d

    Pigmento/Atelier Artista/Atelier Presena/Atelier1979 1980 19941993

    Ruptura Ruptura

    Negro

    1: Helena Almeida

    O Eu

    19941980 19931979

    Aquele que at agora o ltimo grande momento do corpo de trabalho de

    Helena Almeida (ig. E) inicia-se a meio da dcada de noventa e prolonga-se at hoje.

    Cerca de treze anos com exposies marcantes na Fundao de Serralves (1995, Porto,

    Portugal), Centro Galego de Arte Contempornea (2000, Santiago de Compostela, Espa-

    nha), MEIAC-Museu Ibero-Americano (2000, Badajoz, Espanha), Centro Cultural de Belm

    (2004, Lisboa, Portugal). Ainda, a representao de Portugal da Bienal de Veneza com a

    exposio individual INtus (2005, Veneza, Itlia).

    Fig. e

    2002 200319941993

    Ruptura

    Artista/Atelier19981997 2006

    0: O Legado

    O Atelier

    2007

    1994 20061993

  • 26

    MAPA de MOMentOs 1 MOMENTO (~1967 ~1979) O ObJectO

    Fig. F

    1971 1972 1973197019551934 1968 1969

    LisboaCurso de Pintura

    Escola de Belas-Artes de Lisboa

    1967

    Pintura

    Pintura Acrlica

    Sem Ttulo

    Tela Rosa Para Vestir

    Ambiente

    Primavera

    Mixed Media

    Mixed Media

    Mixed Media

    1975 1976 1977 1978 19791974

    Desenho Habitado

    Pintura Habitada

    Retrato de Famlia

    Tela Habitada

    Estudo Para Dois Espaos

    Estudo Para Um Enriquecimento Interior

    Ouve-me

    Sente-me

    Tela Habitada

    Pintura Habitada

    Os discursos crticos sobre a obra de Helena Almeida parecem tornar claro a exis-

    tncia de um primeiro momento que decorre at aos inais da dcada de 60, como a pr-

    pria artista airmou em entrevista a Mara do Corral: os anos sessenta so os do comeo

    do meu trabalho. (H. Almeida 2000, 19). Ernesto de Sousa considera os anos de 1969/70

    como o momento da passagem da obra da artista para a modernidade. Considera que a

    partir de 1971 a problemtica passa a ser distinta daquilo que desta forma se pode consi-

    derar como trabalhos de uma primeira fase inicial, de um Primeiro Momento.

    Existe uma libertao formal, uma procura de outros meios/mtodos de dizer

    que ultrapassam a forma bi-dimensional enquanto suporte fsico.

  • 27

    Ernesto de Sousa divide este nosso 1 momento em duas partes; uma at aos

    inais dos anos 60:

    [A] modernidade dos quadros de Helena Almeida produzidos at aos anos 69/0, os tais a que a autora se refere: olhando um dia para os meus qua-dros.13

    e outra at aos incios dos anos 80:

    uma operadora esttica que j no produz obras de arte propriamente ditas, mas antes documentos [...] sobre uma actividade prpria14

    Este momento pode ser dividido em duas fases distintas pela utilizao privile-

    giada de dois diferentes tipos de media. Por um lado a pintura, em suporte plano e a es-

    cultura mixed media tridimensional. Por outro lado a fotograia como documento, como

    registo de uma aco.

    Estes dois momentos que E. de Sousa assinala como distintos parecem unir-se

    num nico momento, o momento em que o objecto o centro das suas preocupaes.

    Desde as primeiras exposies at entrada no negro, Helena Almeida declara o objecto

    como motivo, centrando a sua ateno em torno de um conjunto de questes exteriores

    a si enquanto criadora: os problemas da representao e particularmente os limites da

    representao plstica encontraram no objecto artstico um campo de experimentao

    prtica e relexiva. Estas questes, de resto, continuam a preocupar os artistas, sinal da

    prevalncia de um mesmo problema em constante mutao e aparentemente insolvel.

    Deinir os limites da representao artstica seria deinir o prprio do objecto artstico

    deinindo tambm o conceito de arte.

    Esse outro que no o eu, exterior ao artista, parece manifestar-se reactivamente,

    numa posio dualista, [como] um sonho com duas direces (H. Almeida 1978, s/p).

    Contra a herana do objecto, contra o objecto artstico, ou contra a herana que

    a histria e a histria de arte deixou para si (e deixa para todos), H. Almeida percorre neste

    1 momento cerca de vinte anos questionando a obra de arte sem nunca a negar. O ate-

    lier de Leopoldo de Almeida tambm este objecto: o centro das suas preocupaes, das

    suas motivaes, o centro do seu assunto.

    No gostava que o meu pai tivesse que responder quelas encomendas todas. [...] Talvez por isso eu tenha sido to radical na minha obra, como se ti-

    13 E. de Sousa in Helena Almeida, (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,1982), s/p.14 ibid

  • 28

    vesse medo de cair na armadilha das encomendas.15

    [E]ra uma espcie de destruio [...] Se calhar isto acontece com todos os pintores, mas eu levei a cabo literalmente.16

    A herana do atelier mais que a herana do local de trabalho. Durante o 1

    momento de trabalhos de Helena Almeida a herana do atelier acomoda em si o prprio

    motivo, o prprio assunto, reunindo e organizando dentro desse lugar os problemas es-

    senciais com os quais a artista se debate. E neste sentido, as dcadas de 60 e de 70 so

    um e um nico momento de luto para com o outro, num movimento de oposio, de

    reaco.

    O objecto artstico a coisa e o atelier a casa da coisa.

    15 H. Almeida (entrevista de I. Carlos) in Helena Almeida, (Milo: Electa, 1998), p. 46.16 H. Almeida (entrevista de M. de Corral) in Helena Almeida, (Santiago de Compostela: Cen-

    tro Galego Arte Contempornea, 2000), p. 19.

  • 29

    MAPA de MOMentOs 2 MOMENTO (~1980 ~1993) A ArtistA

    Fig. g

    1980 1981 1988198719861985198419831982 1989 1990 1991 19931992

    O Perdo

    Espao Espesso

    Retrato de Famlia

    Ouve-me

    Sente-me

    Negro Agudo

    Negro Exterior

    Negro Espesso

    Ponto de Fuga

    Dias Quasi Tranquilos

    Corte Secreto

    A Casa Canto da Casa

    Negro Agudo

    O Atelier

    Frisos

    Durante os anos 80 e incios dos anos 90, Helena Almeida percorre o 2 momen-

    to do seu percurso artstico. Sem a dualidade que atravessou todo o 1 momento, agora

    perante ela prpria que a artista se reivindica, reivindicando tambm uma nova ordem

    para as coisas. Os trabalhos, as obras, os objectos artsticos, a questo da representao e

  • 30

    dos seus limites fsicos deixam de estar no centro dos interesses da artista.

    Senti-me obrigada a endurecer a minha posio, a resistir, a defender o meu projecto [...]1

    A necessidade de radicalizar o seu discurso foi fundamental para uma nova abor-

    dagem processual: uma nova crise para uma nova etapa. Em vez de pintar passou a habi-

    tar (B. Vanderlinden 1998, p.36) e a ser ela prpria elemento estrutural da sua obra. Cen-

    trou-se sobre si, num movimento de interioridade, intra-trabalho, ntimo (e nesse sentido

    intenso e entranhado em si prpria), na procura do essencial, da coisa. Ela passou a ser

    o tema dos objectos que criou, exposta virada do avesso num espao iccional. O negro,

    esse avesso da pessoa, tambm essa dentrioridade, essa intimidade, essa unidade.

    Viver o negro foi ainda uma experincia de expanso num espao incon-trolvel e vivo. Foi como se o meu interior fugisse para as extremidades do meu corpo e sem mais refgio, sasse, ramiicando-se e espalhando-se para um ex-terior indeterminado.18

    Abandonou os problemas das disciplinas tradicionais da pintura e do desenho.

    Abandonou essa dualidade exterior a si, para, s e silenciosamente, abandonar o outro,

    o objecto, e entregar-se pessoal e intimamente, na sua solido, artista. Este parece ser o

    processo da artista ser, ela prpria, no seu lugar.

    Desapareceu a noo de im e de princpio [...] saber interpretar os nossos papis19

    17 ibid., p. 27.18 H. Almeida (em 1982), Helena Almeida, (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,1982), s/p.19 H. Almeida (em 1987), Helena Almeida - Dramatis Persona: Variaes e fuga sobre um corpo,

    (Porto: Fundao de Serralves, 1995), p. 76.

  • 31

    MAPA de MOMentOs 3 MOMENTO (~1994 ~2006) O Atelier

    Fig. h

    1997199619951994

    Sem Ttulo

    Sada Negra

    Entrada Negra

    Sem Ttulo

    Dentro de Mim Dentro de Mim

    20021998 1999 2000 2001

    Dentro de Mim

    Desenho

    Rodap

    A Experincia do Lugar

    Voar

    Seduzir

    Dentro de Mim

    2003 2004 2005 2007

    Sem Ttulo

    A Experincia do Lugar II

    Eu Estou AquiEu Estou Aqui

    2006

    No 3 momento do corpo de trabalhos de H. Almeida, dos meados dos anos 90

    at aos dias de hoje, o atelier tem vindo a reforar o papel fundamental, estruturante,

    passando de fundo a forma, fundindo-se com a artista, uniicando criador e espao de

    criao (este, mas poderia ser outro) num nico corpo: a obra.

    Penso que o atelier na obra de Helena Almeida o prprio mundo dela.20

    O atelier como se fosse uma segunda casa21

    20 I. Carlos in A Segunda Casa, documentrio de scar Faria, 2005.21 ibid.

  • 32

    Neste 3 momento o atelier reveste-se de grande importncia. Quer o espao f-

    sico (enquanto o espao de trabalho), quer o lugar metafsico (enquanto o lugar do acon-

    tecimento).

    Particularmente nas ltimas obras (2003, 2004, 2005) a relao artista/atelier ga-

    nha uma dimenso fusional extraordinria. Aqui, o atelier parece conquistar um papel

    estruturante no processo de criao e na prpria obra de arte. O atelier parece ser si-

    multaneamente o objecto artstico e o acontecimento fundamental da obra. A sua obra

    parece ser o seu atelier.

    O artista e o atelier (ou o artista no atelier) deixam de ser duas entidades distintas.

    Passam a ser uma s entidade, no divisvel: esse processo de abandono de si enquanto en-

    tidade individual para conquista de outra coisa, eventualmente para a conquista do artista

    enquanto igura abstracta.

    Em Sem Ttulo (2003, ig. 24), H. Almeida apresenta-se como parte compositiva.

    A artista est no seu atelier no precisando j de estar. O que se v, mais que a artista, a

    mancha da sua presena.

    Em Eu Estou Aqui (2005, ig. 79-81), H. Almeida abandona-se, despida, despo-

    jada, absoluta, essencial, no seu atelier. O que se v a intensidade desse corpo todo (e

    nenhum), artista/atelier, amoral.

    Depois do abandono dos valores, abandono da moral, a importncia do amoral

    como estratgia para chegar ao absoluto, ao zero (Peggy Phelan 2005, 82).

    Quis experimentar [...] essa zona vazia [...]. Numa espcie de penltima expresso.22

    Que zona vazia esta? Poder ser este o lugar da criao? Poder ser o atelier de

    H. Almeida entendido como metfora da criao?

    Depois da dualidade moral registada no 1 momento; depois da artista enquan-

    to unidade, unidade essencial, registada no 2 momento; ser este vazio, este zero abso-

    luto, amoral, a grande questo levantada pela artista no 3 (e at agora ltimo) momento

    do seu percurso artstico?

    A importncia do atelier na prtica artstica de H. Almeida e a marca deixada

    por esse lugar na sua obra parece ser aquela que Delim Sardo reclama para a sua ltima

    exposio Atlas (2007) na Galeria Filomena Soares: (...) abrir as portas do atelier, escan-

    carar o pensamento..

    Expor-se totalmente expondo o atelier parece ser o objecto artstico mais trans-

    22 H. Almeida (em 1994) in Helena Almeida - Dramatis Persona: Variaes e fuga sobre um cor-po, (Porto: Fundao de Serralves, 1995), p. 84.

  • 33

    parente de H. Almeida e, simultaneamente, mais intenso e mais desconcertante, justa-

    mente pela simplicidade da sua transparncia.

    Eu estou aqui. Aceitem a minha intensidade.23

    Eu Estou Aqui (2005), ttulo da obra constituda como ponto de partida para

    esta dissertao, foi traduzido para ingls como I Am Here. Esta traduo particular-

    mente feliz pela clara abertura causada pela ampliao do estar em ser. Eu Estou Aqui

    ou I Am Here pode ser lido como Eu Sou Aqui: este o meu lugar. O atelier o lugar

    do artista.

    E o que os une? Parece ser to relevante o Eu do autor como o Aqui do lugar.

    Autor/lugar, artista/atelier, parecem combinar-se numa s coisa. Parece ser este o traba-

    lho da artista: transformar o Eu Aqui numa terceira coisa, numa outra coisa. Aquilo que

    os une a presena de um no outro.

    E quem o qu? Poder o atelier ser a grande forma e a artista ser o seu fundo?

    Poder a artista ser o veculo do atelier enquanto objecto artstico, do atelier enquanto A

    grande construo?

    23 H. Almeida in A Segunda Casa, documentrio de scar Faria, 2005.

  • 34

    discursOs crticOs

    Pensar a arte e particularmente pensar o objecto artstico diz directamente res-

    peito aos discursos crticos. E foram vrios24 os crticos de arte que at agora se debruaram

    sobre a obra de Helena Almeida. De todos eles, Ernesto de Sousa25 tem um papel singu-

    lar por um conjunto diverso de razes. Ernesto de Sousa (como Carlos Vidal) um crtico/

    criador que desde muito cedo se deixou envolver de forma particular pela obra da artista

    acompanhando-a at 1988, data do seu falecimento. Os seus textos relectem um profundo

    conhecimento/intimidade quer com a obra quer com a artista quer com o meio artstico

    nacional e internacional. Acompanhou, documentou, relectiu e promoveu a obra de He-

    lena Almeida em textos e exposies marcantes quer para a artista quer para o panorama

    nacional da arte nos anos 60/70. Exposies como Alternativa Zero (Galeria Nacional de

    Arte Moderna, Lisboa, 1977), ou a escolha de Helena Almeida para representar Portugal na

    Bienal de Veneza (1982), ou ainda a exposio de Helena Almeida na Fundao Calouste

    Gulbenkian (1982), so algumas das iniciativas com as quais Ernesto de Sousa esteve direc-

    tamente relacionado e que representaram um forte contributo para o desenvolvimento e

    visibilidade da obra da artista.

    Sem acompanhar aquilo a que chamamos de 3 grande momento da obra de

    Helena Almeida (de meados de 1990 at hoje), os seus textos crticos recaem sobre o 1

    (at 1980) e 2 (entre 1980 e 1990) grandes momentos da obra de Helena Almeida. Tam-

    bm ele, de outra forma, parece dividir em trs o percurso da artista.

    24 Alexandre Melo, Barbara Vanderlinden, Carlos Vidal, Delim Sardo, Ernesto de Sousa, Fer-nando Pernes, Helena Vasconcelos, Isabel Carlos, Joo Fernandes, Jos Augusto Frana, Jos Sousa Macha-do, Mara do Corral, Maria Filomena Mnica, Miguel von Hafe Perez, Miguel Wandschneider, scar Faria, Peggy Phelan, Rui Mrio Gonalves. (ver Bibliograia para referncia completa)

    25 Ernesto de Sousa (Lisboa, 1921-Lisboa, 1988) dedicou-se a um vasto leque de actividades no campo das artes. A sua postura de esprito aberto, interventivo, polmico, pioneiro, tornou-o um marco relevante na introduo das vanguardas em Portugal, encontrando no ps-modernismo a reairmao da liberdade de criao.

    De forma multi-disciplinar, Ernesto de Sousa colocou as questes artsticas no centro dos seus interesses: cinema, vdeo-arte, fotograia, teatro, performance, happening, artes visuais, arte popular, r-dio, crtica, ensaio. Envolveu-se tambm com diversos jornais e revistas: Plano Focal, Imagem, Seara Nova, Vrtice, Mundo Literrio. Na Colquio Artes (n 31, Fevereiro de 1977) publica o texto Helena Almeida e o Vazio Habitado sobre a obra da artista. Em 1982 escreve um longo texto sobre a artista para o catlogo da exposio de Helena Almeida realizada na Fundao Calouste Gulbenkian.

  • 35

    O ObJectO descOnstrudO

    Para E. de Sousa existe um primeiro corpo de trabalhos onde o objecto esttico

    tido como novo, enquanto nova a abordagem ao anterior, vinculada ao precedente e

    funcionando dentro das regras do acadmico, como uma releitura do clssico.

    Negar uma coisa tambm airm-la, e de certo modo conirm-la.26

    3 H. Almeida, Retrato de Famlia, 1979

    Num primeiro momento o foco do seu trabalho centrava-se nos objectos artsti-

    cos. As suas preocupaes eram exteriores a si. H. Almeida questionou o objecto na sua

    forma, na sua isicalidade, apresentando uma encenao dos limites da pintura.

    O ObJectO hAbitAdO

    A passagem da dcada de 60 para a dcada de 70 cria tambm ela uma viragem

    na obra de Helena Almeida, arrastando consigo, na sua opinio, outro objecto, um objecto

    diferente. Diferente enquanto instvel, enquanto ruptura com o precedente. No como uma

    outra (nova) abordagem mas como uma outra (diferente) coisa: um objecto fora das regras.

    26 E. de Sousa in Helena Almeida, (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,1982), s/p.

  • 36

    uma operadora esttica que j no produz obras-de-arte propriamen-te ditas, mas sim, documentos (fotogricos, ilmogricos, gricos) sobre uma actividade-prpria [...]27

    Questionou o objecto, questionou a pintura e o desenho, questionando tambm

    as suas disciplinas, desconstruindo-os, a partir do processo da sua criao.

    4 H. Almeida, Estudo para Dois Espaos (pormenor), 1977

    Aquilo que E. de Sousa considera como passagem para a modernidade parece

    ter na sua base um outro discurso artstico, assente num outro objecto artstico. Depois

    de um primeiro conjunto de trabalhos, Helena Almeida tratava agora de habitar o objec-

    to artstico (a tela, a pintura, o papel, o desenho). Essa passagem de um para outro foque

    de ateno, passagem de um novo objecto para um diferente acontecimento, a alavan-

    ca que faz E. de Sousa considerar este como um outro momento.

    Esta pea28 data de 190, ano em que o olhar da artista relectira o passado, e descobrira bruscamente que a dialctica do dentro e do fora podia corresponder a duas formas equivalentes de inrcia. Poderia dizer-se ainda, fulanizando um pouco, que a pintora tinha descoberto que a destruio do quadro pictural tradi-cional poderia s por si corresponder (e isso acontecia certamente j, em 190) a uma operao intil, ultrapassada, inerte. O que interessaria ento era destruir o quadro familiar, ou melhor; destruir os termos em que se aborda o familiar.29

    27 ibid., s/p.28 H. Almeida, A Famlia, 1970 (obra apresentada na exposio Do vazio Pr-Vocao,

    AICA-SNBA, 1972).29 E. de Sousa in Helena Almeida, (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,1982), s/p.

  • 37

    O esPAO hAbitAdO

    A morte do pai, entendendo este pai como metfora do precedente, e que E. de

    Sousa apontou para os inais da dcada de 60, parece ter acontecido mais tarde, nos inais

    dos anos 70. Como a prpria referiu: Esses caminhos no os esgotei, abandonei-os com

    muito boa conscincia (...) (H. Almeida 1982, s/p). Para E. de Sousa, trata-se do caminho

    da arte moderna, trata-se da passagem do objecto ao processo:

    [...] ser o centro do mundoe estar em tudo o que do mundooufazer coincidir a criatividade individual ea criatividade do mundo

    este o itinerrio principalda chamada arte modernado objecto ao processo [...]30

    5 H. Almeida, Negro Agudo, 1981

    Desde a entrada no negro que os interesses da artista parecem outros: o foque

    do seu trabalho desloca-se do Objecto Esttico, morto, para o Processo Esttico. Do ex-

    terior para o centro, do outro para si, do objecto para o artista. O negro, (que pode ser

    entendido como o luto pela morte da herana cultural em que H. Almeida se empenhou)

    afasta deinitivamente o objecto das preocupaes da artista. A partir dos anos 80 Helena

    Almeida debate-se consigo prpria.

    [N]o estando j face Face de Deus, eu j estou s e irremediavelmente face-a-minha-face.31

    Este parece ser o acontecimento mais marcante desta fase de trabalho da artista:

    a re-descoberta (ou a re-inveno) de si prpria a partir do negro (ou do luto).

    Ser que os anti-quadros (E. de Sousa 1982, s/p) de 1969/70, fora do centro,

    30 E. de Sousa (em 1976) in Helena Almeida, (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,1982), s/p.31 ibid., s/p.

  • 38

    estariam tambm fora das questes do grande quadro pictural tradicional, do grande

    quadro familiar? Ou, como E. de Sousa antecipou dez anos antes, ser que nos anos 80

    que o objecto deixa efectivamente o centro dos interesses da artista, passando, antes, ela

    prpria, a matria de relexo.

    Passados cerca de 40 anos sobre os primeiros trabalhos apresentados pela ar-

    tista, parece ter havido um perodo mais longo nessa aco de desconstruir o quadro

    tradicional. At aos anos 80, Helena Almeida parece ter-se empenhado em desmontar

    um conjunto de linguagens e de processos associados s artes plsticas (principalmente

    ao desenho e pintura) na sua tradio acadmica. Esta herana cultural e familiar foi o

    ponto de partida para aquilo a que chamamos de 1 grande momento, estendendo-se

    no tempo at ao incio dos anos 80 (2 grande momento), onde deixa de ser importante

    reagir perante o objecto e passa a ser importante agir perante si.

    O Atelier hAbitAdO

    J depois do falecimento de Ernesto de Sousa, a partir dos primeiros anos da d-

    cada de 90 at hoje, Helena Almeida introduziu um outro elemento nos seus trabalhos. A

    revelao do atelier nas suas obras marca a entrada naquele que at agora o 3 grande

    momento do seu corpo de trabalhos.

    6 H. Almeida, Rodap, 1999

    A par desta abordagem global sobre o percurso de Helena Almeida, particular-

    mente sediada na releitura dos textos de Ernesto de Sousa, existe um conjunto de outros

  • 39

    aspectos estruturantes quer sobre a obra plstica quer sobre a prpria artista, objecto de

    relexo recorrente por parte da crtica de arte:

    -a famlia (o seu marido e particularmente o seu pai, Leopoldo de Almeida32);

    -a moral, a dualidade, os opostos;

    -os suportes (o papel, a tela, o suporte fotogrico e videgrico, a gravao udio,

    etc...) e os meios de expresso (o desenho, a pintura, a fotograia, o vdeo, o udio, a perfor-

    mance, etc...);

    -o corpo, o espao, e a relao entre ambos;

    -o processo e o zero, numa leitura de conjunto e posteriori.

    FAMliA

    De diferentes formas, a famlia marca o percurso de H. Almeida. Quer enquanto

    entidade abstracta (como legado cultural), quer enquanto vivncia individual (como he-

    rana pessoal).

    A sua relao com o seu pai Leopoldo de Almeida, tida pela prpria como boa, e

    particularmente com o atelier dele, agora seu, constituiu uma forte marca na relao da

    artista com o espao de trabalho. Habitar o atelier e habitar os objectos pertencentes ao

    atelier foi aprendido desde muito cedo. Os primeiros trabalhos da artista mostram essa

    forte ligao que se mantm at hoje.

    Comecei por uma linguagem familiar, tinha que partir de alguma coisa familiar [...]33

    ruPturA cOM As disciPlinAs trAdiciOnAis

    Em meados dos anos 60, Helena Almeida sentia-se insatisfeita com os suportes

    32 Leopoldo de Almeida (Lisboa,1898-Lisboa, 1975). Pai de Helena Almeida.33 H. Almeida (entrevista de M. de Corral) in Helena Almeida, (Santiago de Compostela: Cen-

    tro Galego Arte Contempornea, 2000), p. 19.

  • 40

    tradicionais. A pintura entendida nos seus moldes acadmicos tornou-se menos interes-

    sante. No documentrio de Joana Asceno (Pintura Habitada, 2006) considera que no

    incio dos anos 70 estava muito, muito farta da pintura, mas no abandonou essas disci-

    plinas. Partiu da desconstruo dos esquemas clssicos atribudos s disciplinas do dese-

    nho e da pintura, questionando os mecanismo internos e especicos da representao,

    (e assim as prprias disciplinas). Enfrentou essa tarefa de relexo no por desconiana

    pela pintura mas pelo interesse pelo seu limite ou pelo limite da representao enquanto

    verosimilhana. No se afastou da pintura nem do desenho. Usou-os para os questionar,

    aceitou-os para os negar.

    Creio estar perto da verdade se disser que pinto a pintura e desenho o desenho.34

    7 H. Almeida, Desenho Habitado (pormenor), 1975

    contra a obra-de-arte-que-encontra-justiicao-em-si-prpria-rival-de-Deus

    (E. de Sousa 1982, s/p) que a artista se manifesta. Nos trabalhos apresentados nas suas

    primeiras exposies encontra-se essa tenso: o intuito de construir um quadro e o anseio

    de desconstruir o familiar. A partir do legado cultural herdado, a partir do grande quadro

    familiar, a artista levou a cabo a tarefa de questionamento e transgresso da funo dos

    elementos plsticos. Essas obras constituram um exerccio crtico sobre a pintura.

    Em suma: vemos todos os elementos da linguagem pictrica tomados como objectos, e vemos objectos reais tomarem as funes dos elementos pu-ramente pictricos.35

    A Helena Almeida vai ento, nos inais dos anos 60, pr em questo o es-pao da pintura. Seja o espao da pintura no sentido fsico, seja o espao da

    34 H. Almeida (em 1976) in Helena Almeida, (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,1982), s/p.35 R. M. Gonalves in Helena Almeida, (Lisboa: Mdulo-Centro Difusor de Arte, 1978), s/p.

  • 41

    pintura como espao de representao.36

    Era uma espcie de destruio, uma necessidade de acabar com a pintu-ra [...]. Era uma negociao sobre o im da pintura [...]. Se calhar isto acontece com todos os pintores, mas eu levei a cabo literalmente.3

    Depois do novo, enquadrado nos limites do anterior, surge o diferente, como

    outra coisa, fora dos limites do precedente.

    FOtOgrAFiA

    A representao da realidade sempre um desvio realidade. A fotograia fun-

    ciona como esse falso da realidade. Helena Almeida soube aproximar esse carcter iccio-

    nal da fotograia capacidade de absurdo da linguagem da pintura. A manipulao da

    escala, a introduo das sries de fotograias, o pendor narrativo/iccional so estratgias

    do domnio do pictrico. Se nas primeiras fotograias apresentadas por H. Almeida, ha-

    bitados, o registo fotogrico pode ser entendido como documental, registando aces

    performativas, nas fotograias apresentadas do 2 e 3 grandes momentos, negros e

    atelier, a fotograia parece no espelhar o mundo fsico. Antes, parece indiciar, ela pr-

    pria, um territrio do domnio potico.

    [S]er que o importante o gesto, a atitude, a performance que as ima-gens registam e estas no so mais do que documentao, ou, pelo contrrio, no plano da fotograia que se passa a intensidade da sua proposta? Ou a foto-graia surge como um avatar, um duplo da pintura e do desenho [...]?38

    Se anteriormente a autora airmava a pintura como veculo privilegiado de mediao ou constatao de que a realidade no mais que uma simples sombra, agora -lio apreendida desde cedo- qualquer destas imagens fotogr-icas j a preigurao dum mundo onde no existem interior e exterior [...]39

    36 M. Wandschneider in A Segunda Casa, documentrio de scar Fria, 200537 H. Almeida (entrevista de M. de Corral) in Helena Almeida, (Santiago de Compostela: Cen-

    tro Galego Arte Contempornea, 2000), p. 19.38 D. Sardo, Helena Almeida - Ps no cho, cabea no cu, (Lisboa: Centro Cultural de Belm,

    2004), p. 15.39 C. Vidal, Helena Almeida, (Santigo de Compostela: Centro Galego Arte Contempornea,

    2000), p. 63.

  • 42

    FOtgrAFO

    J antes da introduo da fotograia na obra plstica da artista, Artur Rosa, ma-

    rido de H. Almeida, intervinha na realizao dos seus trabalhos. Mas com a fotograia

    e com a introduo do papel do fotgrafo que A. Rosa se torna mais presente nas seus

    obras, intervindo, mediando, interferindo. ele quem se coloca atras da mquina foto-

    grica. Nas palavras de ambos, o exerccio do fotgrafo outro que no o de criador.

    Aigura-se como um tcnico. Contudo, o papel do fotgrafo e a prpria autonomia da

    fotograia enquanto media no clara nas vrias leituras crticas.

    Em Helena Almeida - Ps no cho, cabea no cu, catlogo da exposio efectua-

    da no Centro Cultural de Belm em 2004, Delim Sardo considera A. Rosa como o especta-

    dor, como o outro (D. Sardo 2004, 25), enquanto airma que H. Almeida identiica A. Rosa

    como autor das fotograias (D. Sardo 2004, 25).

    Em Helena Almeida - Dramatis Persona: Variaes e fuga sobre um corpo, catlo-

    go da exposio na Fundao de Serralves em 1995, Maria Filomena Mnica considera que

    A. Rosa no participa na concepo das obras, porm obedecendo ao que [H. Almeida]

    imaginou, ele vai acertar qualquer coisa que no icou no lugar exacto (M. F. Mnica 1995,

    24). Coloca A. Rosa como testemunha, como aquele que aceita ver aquilo que H. Almeida

    quer que ele veja.

    Em Pintura Habitada, documentrio de Joana Ascenso (2006), Helena Almeida

    corre, sem sair do stio, virada para a parede, contra a parede. Nas suas costas, Artur Rosa

    segura a cmara de vdeo trocando indicaes e testando enquadramentos. Artur Rosa co-

    nhece bem o trabalho de H. Almeida. Partilhando o atelier, partilhando o mais ntimo, o

    mais familiar de todos os lugares da sua obra, parece conhec-la por fora e por dentro.

    Aquilo que um procura parece ser aquilo que o outro procura.

    Em Helena Almeida, catlogo da exposio no Centro Galego Arte Contempor-

    nea em 2000, Mara de Corral acredita que nas fotograias da artista no vemos o olhar do

    fotgrafo. Vemos o prprio olhar de H. Almeida.

    Em A Segunda Casa, documentrio de scar Faria (2005), num breve excerto de

    oito segundos parece perceber-se, por um lado, a diiculdade em verbalizar o exacto papel do

    fotgrafo icando, por outro lado, a imagem de uma profunda cumplicidade entre o casal.

    A. Rosa Eu sei o que ela quer...H. Almeida Eu sei o que tu sabes...A. Rosa: Eu sei o que ela quer que eu veja...A. Rosa: Eu sei que ela quer ver qualquer coisa atravs do espelho do

    atelier dela.40

    40 H. Almeida e A. Rosa in A Segunda Casa, documentrio de scar Fria, 2005

  • 43

    8 H. Almeida, Desenho Habitado, 1975

    Ainda assim uma pergunta permanece. Qual o suporte? a fotograia o supor-

    te? Ou a artista o suporte? E onde est a obra? No acto teatralizado, performativo, numa

    actividade-prpria (E. de Sousa 1982, s/p), ou na fotograia, na pintura... no registo, no

    documento, no que sobra desse acto?

    lOcAl, lugAr, esPAO, territriO

    Na obra de H. Almeida, o espao apresenta grande relevncia como local onde

    acontece a aco ou como o lugar onde algo se passa. Quer o espao fsico, a habitabilida-

    de, a casa, o atelier, quer o espao metafsico, o lado de c, o lado de l, o outro territrio.

    Primeiro abstracto e progressivamente mais concreto, o espao est cada vez mais

    presente (I. Carlos 1998, 56) nas suas obras. A importncia do espao parece no s ser

    maior nas ltimas obras como parece conquistar cada vez maior relevo. Na relao forma/

    fundo, cara s artes plsticas, a forma aigura-se agora completamente combinada, inter-

    ligada ao fundo, como um modelo no seu molde: a artista no atelier como um corpo no seu

    espao. Pensei que o meu atelier era o meu molde, um molde escultrico(...) (H. Almeida

    2000, 33).

  • 44

    9 H. Almeida, Espao Espesso, 1982

    Embora cada vez mais concreto, cada vez mais um local, tambm cada vez mais

    importante o lugar para o qual este espao nos remete. O espao fsico cada vez mais

    metfora de um territrio metafsico.

    Para o espao H. Almeida resgatou o lugar do atelier, que, de resto, na sua forma

    ou no seu contedo, nunca esteve afastado da sua obra. Mas o corpo... que corpo esse

    que, tambm ele, sempre habitou os seus trabalhos?

  • 45

    10 H. Almeida, Dentro de Mim (pormenor), 1998

    cOrPO

    O corpo de Helena, da artista, ou o corpo do espectador, do sujeito. O corpo

    como presena, como lugar ou o corpo como atelier. O corpo como auto-retrato ou como

    auto-representao. O Corpo como suporte, imagem, elemento da linguagem plstica. O

    corpo como valor pictrico.

    A artista decidiu formular uma pintura em torno de si mesma e expressou esta

    nova direco usando como matria o seu corpo. (B. Vanderlinden 1998, 34). Ou como

    actor e autor, como actriz e artista. Ou como performer. Ou ainda como alter: o corpo do

    artista enquanto objecto artstico sempre o corpo do outro, a representao de um

    corpo sobretudo a representao de outro corpo (C. Vidal 2000, 87).

    No encenado nem teatralizado, o corpo como motor, (...)tudo se passa atravs

    do corpo de Helena Almeida. (A. Melo 2001, s/p). O corpo como uma possibilidade pre-

    cria de um ns (P. Phelan 2005, 69).

    Ou o corpo no como mscara, nem como personagem, nem como auto-retrato.

    O corpo como representao pictrica de si mesma. O corpo como presena de si mesma

    (I. Carlos 2005, 13).

    Que corpo nos mostra a artista nas suas obras?

    A imagem do meu corpo no a minha imagem. No estou a fazer um

  • 46

    espectculo, estou a fazer um quadro 41

    O que ns somos convidados a ver , portanto, o movimento de um corpo que se faz mundo ao mesmo tempo que deixa que o mundo se lhe faa corpo.42

    Quem que metade-corpo, metade-coisa, passageiro sem isionomia, um

    todo sem forma, que se d a conhecer por intermdio do corpo de Helena Almeida? Esta

    coisa s tu? (H. Almeida, 1981, passim). Ser o corpo uma entidade, vrias entidades?

    Poder ser objecto e sujeito, signiicante e signiicado? O seu corpo parece ser por si apre-

    sentado na dupla qualidade de artista e objecto artstico, de criador e de coisa criada (P.

    Phelan, 2005, p.70 e 72).

    Vejo sempre a minha igura como um objecto; ao retratar-me, passo de su-jeito a objecto.43

    11 H. Almeida, Sem Ttulo (pormenor), 1995

    Diferente de Narciso, para Helena Almeida o prprio corpo diicilmente coincide

    com o corpo-prprio e dar o corpo, mas o corpo-prprio, dar-se inteiramente (E. de

    Sousa 1982, passim). Ser o corpo esse todo? O centro, uno?

    O meu mundo o meu corpo, no sei como explicar isto melhor... qual o meu mundo... difcil explicar com palavras. O meu mundo o meu corpo, e o meu corpo dentro do meu atelier, e o meu corpo e o meu atelier so os meus objectos de trabalho.44

    41 H Almeida (entrevista de J. S. Machado) in Artes e Leiles, n 37, Fevereiro de 1996, p. 10.42 A. Melo in Helena Almeida, Retrato de artista em pleno voo, (Lisboa, Galeria Filomena Soares,

    2001), s/p.43 H. Almeida (entrevista de J. S. Machado) in Artes e Leiles, n 37, Fevereiro de 1996, p. 12.44 H. Almeida (entrevista de M. de Corral) in Helena Almeida, (Santiago de Compostela: Cen-

    tro Galego Arte Contempornea, 2000), p. 31.

  • 47

    12 H. Almeida, Voar (pormenor), 2001

    Nas narrativas, ou na grande narrativa de H. Almeida, o corpo surge como um

    extenso elemento iccional, um vasto campo de experincia. O corpo, esse tal elemento,

    procura o seu sentido no atelier, esse tal espao performativo.

    PrOcessO

    Aquilo que E. de Sousa arrisca sobre a arte contempornea, (...) do objecto ao

    processo (...) (E. de Sousa 1982, s/p), aplica-se ao percurso de Helena Almeida. Foi este o

    sentido percorrido.

    Muitos dos textos crticos referem essa metodologia processual como um ele-

    mento chave para compreenso da sua obra. O processo de trabalho um princpio ele-

    mentar na construo dos seus objectos artsticos, intrinsecamente associado praxis.

    Trata-se mais da experincia da coisa do que da representao dessa coisa.

    Muitas vezes as fotograias mostram-me coisas que eu no estava es-pera, revelam intenes inesperadas [...]45

    O trabalho de atelier e a prtica artstica so a origem de um processo que varia-

    dssimas vezes se torna diicilmente verbalizvel, constituindo-se como a narrativa ntima e

    muitas vezes intransmissvel do acto criativo, acto esse, origem do objecto.

    [o processo como] a revelao dos paradoxos que constituem a histria in-terna, secreta, do acto pictrico.46

    45 H. Almeida in inTUS Helena Almeida, (Lisboa: Livraria Civilizao Editora, 2005), p. 60.46 M. F. Mnica in Helena Almeida - Dramatis Persona: Variaes e fuga sobre um corpo, (Porto:

    Fundao de Serralves, 1995), p. 22.

  • 48

    Particularmente desde os inais dos anos 70, o objecto artstico na sua isicalida-

    de apresentava-se cada vez mais afastado das preocupaes e motivaes de H. Almeida.

    A artista fez coincidir o objecto de trabalho com ela prpria, ela prpria num lugar. A ten-

    so, o caso, sempre procurados nos seus trabalhos, passou a ser a relao da artista (esse

    corpo todo, vago, inexacto, de contornos indeterminados) com esse lugar (esse outro

    plano, meio casa, meio atelier, meio espao abstracto, o territrio da pintura).

    [O] trabalho de Helena Almeida resulta de um longo processo que desagua nas imagens a que temos acesso, mas que so o momento inal de um percurso que , frequentemente, mais sobre a metodologia processual, do que sobre o re-sultado.4

    13 H. Almeida, Sada Negra (pormenor), 1995

    No mais empenhada em destruir uma realidade exterior a si, grata e aliviada

    (H. Almeida 1982, s/p), a artista passa a construir a realidade a questionar, resultado do

    acto de habitar, do processo de ser l.

    E ser essa habitabilidade encontrada nas obras dos anos 80 a mesma que resi-

    de, hoje e desde meados dos anos 90, no conjunto de trabalhos onde a relao artista/

    atelier se impe?

    Ser que o processo de H. Almeida passar de l para c?

    47 D. Sardo in Helena Almeida - Ps no cho, cabea no cu, (Lisboa: Centro Cultural de Belm, 2004), p. 43.

  • 49

    duAlidAde

    Os opostos, a dualidade (e a unidade) so uma constante durante o 1 grande

    momento de trabalhos de H. Almeida. So, eventualmente, a grande marca que distin-

    gue a passagem de uma para uma outra unidade temtica, do 1 para o 2 momento de

    trabalho.

    14 H. Almeida, Estudo Para Um Enriquecimento Interior (pormenor), 1977-78

    A conquista da hiptese de se colocar a si prpria no centro do discurso deve-se

    em muito ao abandono da dualidade verdadeiro/falso, to prxima do modernismo que

    H. Almeida herdou e que to insistentemente quis destruir.

    At aos anos 80 Helena Almeida trabalhou sob uma forma marcadamente moral,

    assente numa posio dividida entre o bem (verdadeiro) e o mal (falso). Essa matria de

    trabalho continha em si prpria os seus limites. Helena Almeida explorou-os, explorando

    os limites fsicos da obra de arte. Circundou o objecto com um conjunto de questes: o

    lado de c e o lado de l (pintura habitada), o dentro e o fora (desenho habitado), a parte

    da frente e a parte de trs (tela habitada). Esgotado esse seu movimento, e confrontando-

    se com a inutilidade (ou no utilidade) dessa busca moral, Helena Almeida abandonou o

    confronto verdadeiro/falso. O lado de l ou o lado de c deixou de ser o fundamental. O

    objecto, at a centro dessa relexo, foi destitudo de interesse e, nesse novo foco funda-

    mental, no cabe o dentro e o fora, o interior e o exterior, o verdadeiro e o falso. Passou a

    ser a prpria autora o centro. Ela, agora no centro, -o. Uno.

  • 50

    Resolvida a questo moral do eu com os outros passou para a resoluo do pro-

    blema do eu, do eu para consigo. Nesse momento parecia resolvida a questo da he-

    rana. Afastado o objecto artstico do centro das suas motivaes, H. Almeida conquista

    espao para outras hipteses. Encontrara-se consigo no seu trabalho.

    Olhando um dia para os meus quadros nos quais esta dialctica do den-tro e do fora era mais viva essas duas foras apareceram-me bruscamente como duas formas equivalentes de inrcia.48

    ZerO

    Abandonado o objecto, abandonou-se com ele a pluralidade, a famlia, o ou-

    tro. Agora, neste 2 grande momento, no domnio do corpo, verdadeiro e falso parecem

    fundir-se num s espao, singular, o eu (ou o esse), sem simbologia moralizante, como

    absurdo. o abandono moral para depois ser outra coisa do domnio da arte e no do

    domnio do moral.

    Depois da dualidade moral clssica H. Almeida trabalha agora a possibilidade

    do uno. Estar a artista a resgatar o amoral para o seu trabalho, para si? Diferente do

    mltiplo, da totalidade, (diferente de trs), diferente do par, da unidade e do seu oposto

    (diferente de dois), diferente de uno (diferente de um), estar a artista a trabalhar o zero,

    o nada? To estruturante como o todo. Sero estes ltimos trabalhos (inTUS, 2005) uma

    possibilidade do todo: o zero como a totalidade. Zero igual a trs.

    Ou ser este zero semelhante a outros zeros, zero enquanto ruptura-avano nou-

    tro sentido, enquanto caos para outra ordem e, enquanto ordem, avano moral?

    48 H. Almeida in Helena Almeida, (Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1982), s/p.

  • 51

    15 H. Almeida,Sem Ttulo, 1994-95

    16 H. Almeida,Seduzir, 2002

    No incio dos anos 80, aquando da entrada no negro, a ideia de zero como re-

    descoberta de si prpria (E. de Sousa 1982 , s/p) parece ser o incio desse novo percurso. E

    com a introduo do seu espao de trabalho, do atelier, e particularmente a partir dos me-

    ados dos anos 90, com a conquista do atelier enquanto territrio de grau zero (P. Phelan

    2005, 82), estar agora H. Almeida perante no uma nova ordem, mas uma nova coisa.

    H uns anos atrs, eu ainda estava presa ao plano da tela, pintura: qual a natureza da pintura e todas essas questes conceptuais. Isso acabou; passei a estar sozinha no meio do meu atelier. Foi um salto noutra direco.49

    Ou esta procura efectuada pela artista durante o 3 grande momento de traba-

    lhos pode ser lida como A grande procura, no apenas da ltima dcada, mas de todo

    o seu percurso, na busca dessa neutralidade (C. Vidal 2000, 57). Pode ter sido sempre

    essa a busca, no sentido da moral ao amoral, num conjunto de crises/rupturas/caos para

    outras ordens. Ou pode H. Almeida estar agora perante uma outra coisa de um outro do-

    mnio, do domnio do absoluto, estritamente artstico.

    49 H. Almeida in inTUS Helena Almeida, (Lisboa: Livraria Civilizao Editora, 2005), p. 61.

  • 52

    Atelier

    Os discursos crticos consideram o atelier como um elemento importante nas

    obras da artista: enquanto elemento compositivo, como elemento processual, de forte

    importncia metodolgica, como o lugar da criao e/ou como o campo de trabalho. De

    modo abstracto, por vrias vezes, o atelier surge como metfora:

    O atelier na Obra de Helena Almeida muito mais que o espao de tra-balho. Muito mais do que o espao onde se tira as fotograias, onde se atende telefones, onde se organiza dossiers, onde se desenha, onde se pensa.50

    O atelier na obra de HA no o espao do trabalho da artista. Pelo con-trrio, o espao que ela representa para pr em causa o esteretipo do atelier, para pr em causa o esteretipo das linguagens artsticas que ela vai confron-tar a partir do momento em que abandona a pintura e passa a provocar a re-presentao da pintura atravs da interaco do corpo, atravs de momentos accionais, de aces, de eventos que ela organiza que pem em causa a nature-za da pintura enquanto resultado de um espao de atelier.51

    Todos ns estivemos, ento, no atelier de Helena Almeida, mesmo sem nunca l termos estado, porque todos somos, numa qualquer zona da nossa recndita memria, aquela cmara que recorta uma fatia de uma habitabili-dade.52

    Funcionar o atelier de Helena Almeida como padro, como modelo, como ori-

    gem, para o seu trabalho e para si:

    [A]brir as portas do ateli, escancarar o pensamento.53

    Tornar-me num desenho: o meu corpo ser um desenho; eu ser o meu tra-balho; eu ser o meu trabalho era o que eu perseguia.54

    50 I. Carlos in A Segunda Casa, documentrio de scar Faria, 2005.51 J. Fernandes, Op. Cit.52 D. Sardo in Helena Almeida - Ps no cho, cabea no cu, (Lisboa: Centro Cultural de Belm,

    2004), p. 35.53 D. Sardo in Atlas, Helena Almeida e o uso do desenho, (texto para catlogo, 2006), s/p.54 H. Almeida in Helena Almeida, (Milo: Electa, 1998), p. 50.

  • 53

    17 H. Almeida, Sem Ttulo (pormenor), 2003

    O que faz mover essa busca pelo absoluto no percurso de H. Almeida, do zero ao

    todo, parece ser o atelier.

    A materialidade da arquitectura do atelier torna-se numa espcie de ter-ritrio de grau zero, no qual a artista aprende a avaliar a sua viagem atravs dele e a partir dele.55

    Ser o atelier de Helena Almeida um espao para a irracionalidade, para incon-

    gruncias, contradies, no nexos? Ser o atelier o lugar da criao, na esfera do divino,

    do extraordinrio, do domnio da coisa, no explicvel, no tangvel?

    Eu no quero criar teorias sobre o meu trabalho56

    Podemos questionar o que estar Helena Almeida a fazer quando, no vdeo

    de inTUS, se mostra a passear de joelhos no cho do seu atelier com os objectos do

    seu atelier ao colo, numa imagem capaz de nos remeter para o caminho de Cristo para

    o calvrio com a cruz s costas. Estar a artista num exorcismo performativo, numa

    redeno moral? Ser essa a salvao, a sada? Existir sada? Ser um momento de res-

    gate, de si para consigo? Ou estar a artista, sem mais nem menos, apenas e s a fazer

    isso mesmo, a passear-se no atelier de joelhos no cho com os objectos do seu atelier

    ao colo? E o que quer a artista dizer quando, no documentrio A Segunda Casa (2005)

    airma: Aceitem-me assim, aceitem-me.

    No tenho mais nada. Eu tenho-me. No tenho mais nada e no vou fa-zer muito mais do que isto. Eu no quero fazer muito mais do que isto. Eu estou

    55 P. Phelan in inTUS Helena Almeida, (Lisboa: Livraria Civilizao Editora, 2005), p. 82.56 H. Almeida in Helena Almeida, (Milo: Electa, 1998) p. 56.

  • 54

    aqui. Aceitem a minha intensidade. Aceitem-me assim. Aceitem-me5

    Helena Almeida quer ser aceite. E depois de ser aceite? Ter Helena Almeida

    encontrado (ou conquistado) o absoluto, procura constante no seu trabalho? Isto um

    im?

    Em relao ao amplo nmero de questes que foram sendo colocadas e parti-

    cularmente em relao a esta ltima questo, assim como outros discursos que no o

    artstico, tambm o discurso crtico, motivo de relexo neste captulo, parece mostrar

    insuicincias na procura de respostas.

    [O]s discursos verbais sobre as poticas visuais tendem a caracterizar-se por confrangedora insuicincia epistemolgica, facto alis bem sabido por res-pectivos autores [...]58

    Neste caso, o atelier pode ser entendido como coisa re-criada, quer pela herana

    que recebeu, quer pelo legado que est a construir.

    Em Helena Almeida o atelier terreno frtil.

    57 H. Almeida in, A Segunda Casa, documentrio de scar Faria, 2005.58 F. Pernes in Helena Almeida - Dramatis Persona: Variaes e fuga sobre um corpo, (Porto:

    Fundao de Serralves, 1995), p. 13.

  • 55

    helenA AlMeidA POr OutrOs e POr MiM (sntese de ELA)

    A obra de Helena Almeida pode ser dividida em trs momentos distintos: o Ob-

    jecto, a Artista e o Atelier. Embora distintos, esses trs momentos no so estanques.

    Comunicam e partilham elementos comuns.

    18 H. Almeida, Tela Rosa para Vestir,1969 19 H. Almeida, Tela Habitada, 1976

    Tela Rosa Para Vestir (ig. 18) e Tela Habitada (ig. 19) esto separadas por

    sete anos de diferena e expem um conjunto de prticas recorrentes no seu 1 mo-

    mento de trabalho, marcando de forma clara o discurso da artista nos anos 60 e 70. A

    insatisfao para com os limites do campo pictrico herdado e o questionamento das

    disciplinas tradicionais, levaram a autora a revestir o objecto artstico com um conjunto

    de questes que colocaram em causa no apenas a isicalidade da obra de arte. A von-

    tade de desmontar o objecto artstico tambm a vontade de desmontar a arte. a

    vontade de desorganizar para recomear outra construo, para transformar. O desenho

    desconstrudo e habitado de H. Almeida a destruio do edifcio clssico e a conquista

    da liberdade de desenhar novas construes. Este um trao transversal em todo o seu

    percurso: o zero como motor para novas experincias, numa contnua procura do seu

    lugar.

  • 56

    Cerca de 40 anos depois do 1 momento do seu percurso artstico, tambm hoje

    H. Almeida expe a vontade de combinar/uniicar artista e objecto artstico. O desejo

    de ser tela, a vontade de ser suporte, suporte para si prpria, suporte e centro da sua

    linguagem.

    A Helena que veste a tela em 1969, a Helena que habita a tela em 1976, a mes-

    ma artista que em 2005 se passeia pelo seu atelier com os objectos do seu quotidiano

    artstico ao colo.

    Aqui, no 1 momento de trabalhos, como no 2 momento de trabalhos, e como

    hoje, no 3 momento do seu percurso artstico, artista e obra fundem-se num s corpo.

    H. Almeida parece combinar-se enquanto autora com os demais elementos que

    povoam as suas imagens, e seu imaginrio. Nas suas obras a artista ganha outro estatu-

    to que no o de autora: concorre consigo prpria para se transportar de criadora para

    criatura. Ultrapassa-se a si prpria no desejo de ser coisa autoral, no desejo de ser. E -o

    essa outra coisa do domnio do artstico.

    20 H. Almeida, Pintura Habitada, 1975

    A dualidade de ser uma coisa e outra, de estar em dois espaos, de viver um

    sonho em duas direces (H. Almeida 1978, s/p), encontra-se profundamente desenvol-

    vida no 1 momento do seu percurso, particularmente durante a dcada de 70. A habi-

    tabilidade da pintura, a habitabilidade do objecto artstico, contm esse duplo espao.

    Um lado e outro. O lado de c e o lado de l. Uma coisa e o seu oposto. O verdadeiro e

    o falso, moral, familiar, ntimo. A Pintura Habitada esse espao onde a artista vibra de

    lado para lado. O objecto a pelcula que divide os dois espaos. O objecto ainda o

    seu centro.

    J antes de 1970 os trabalhos de H. Almeida pareciam reclamar para si outro

    espao que no o rectngulo bidimensional da tela. A prpria tela parecia um espao

    exguo para as experincias da artista e, a partir dos anos 70, os seus trabalhos ganham

    um conjunto de ttulos que assinalam bem as suas preocupaes: Pintura Habitada,

    1974; Desenho Habitado, 1975; Tela Habitada, 1976. Aquilo que se tornou objecto de

  • 57

    relexo, aquilo que foi objecto de habitabilidade, foram os suportes tradicionais de re-

    presentao. Aquilo que essa habitabilidade experimentou foram os limites desses su-

    portes, enquanto suportes clssicos de representao.

    Se at aos anos 70 a artista parecia manifestar-se contra o quadro familiar, at

    aos anos 80 a artista parecia manifestar-se contra os limites da representao. Em am-

    bos os casos a atitude parece ser reactiva, dualista, pr-objecto.

    Durante a dcada de 80 deixa de ser importante destruir o suporte ou desmon-

    tar os seus mecanismos internos. Deixa de ser importante reagir perante o mdium. Pas-

    sa a ser importante agir perante si.

    O negro surge como luto para com o outro e como grande exorcismo para con-

    sigo prpria. Os trabalhos negros podem ser lidos como algo que alastra da artista vira-

    da ao contrrio, como representao do avesso de Helena Almeida, como o seu interior,

    ela mesma, a artista, agora sem dentro e sem fora. Sem dualidades, apenas negro.

    Elimina deinitivamente a cor, fotografa o corpo inteiro, muda o tamanho e a

    escala, modiicando assim o registo imagtico. Trata-se no de uma fotograia enquanto

    registo/documento da sua relao com o objecto. A relao agora com o espao e a

    fotograia/imagem reveste-se agora de fortssimo carcter plstico.

    Helena Almeida empenhou-se em destruir uma realidade exterior a si para, gra-

    ta e aliviada, passar ela prpria a construir a realidade a questionar. Depois do objecto

    habitado, H. Almeida usa o espao do seu corpo como o lugar da sua habitabilidade.

    Sem dentro e sem fora, sem o lado de c e o lado de l, sem verdadeiro e sem falso, sem

    dualidades e sem moralismos, a artista abandona o outro para se recolher nela prpria.

    Esses caminhos no os esgotei, abandonei-os com muito boa conscincia59

    Desapareceu a noo de im e de princpio60

    Nova ordem de coisas61

    O negro marca o incio de uma segunda etapa e o limite de um primeiro momen-

    to, uma passagem com um misto de gratitude e de alvio (H. Almeida 1982, s/p) para um

    momento de abandono e solido (H. Almeida 1982, s/p).

    [Na dcada de 80] senti-me obrigada a endurecer a minha posio, a re-sistir, a defender o meu projecto62

    59 Helena Almeida in Frisos, (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1987), s/p.60 ibid.61 ibid.62 Helena Almeida (entrevista de M. de Corral) in Helena Almeida, (Santiago de Compostela:

    Centro Galego Arte Contempornea, 2000), p. 27.

  • 58

    O sonhar e o morrer passam-se em solido63

    Ainda assim, esse momento de luto e de solido, esse caminho penoso, levou

    a artista a radicalizar o seu discurso artstico permitindo-lhe, tambm assim, uma maior

    liberdade.

    21 H. Almeida, Ponto de Fuga,1982

    Mais que uma desconstrutora de uma realidade exterior, H. Almeida passou a ser

    ela mesma a construtora da realidade a questionar. Passou a ser ela prpria quem estava

    em causa nos seus trabalhos: no o objecto, sim o autor, no a obra, sim a artista. Este mo-

    mento de crise pode ser lido como catalisador para outras vontades, para a vontade da

    artista enquanto grande motivo, para o seu re-posicionamento perante si prpria, para a

    vontade do absoluto, para si enquanto elemento absoluto, centro, uno.

    Depois deste perodo, lentamente, H. Almeida assume a imagem do seu atelier

    na sua obra quer como suporte (Entrada Negra, 1995; Sem Ttulo, 1996; ...), quer como

    fundo (Voar, 2001; Seduzir, 2002; ...), quer como forma (Rodap, 1999; Sem Ttulo,

    63 Fernando Pernes in Helena Almeida - Dramatis Persona: Variaes e fuga sobre um corpo, (Porto: Fundao de Serralves, 1995), p. 14.

  • 59

    2003; ...). O atelier, de diversas formas transversal no seu trabalho, ganhou agora um pa-

    pel no s estruturante, como se tornou uma presena perceptvel, visvel, clara. Parece

    ter passado a grande tema, a centro. O atelier, vista, tornou-se manifesto.

    Em Dentro de Mim, 2000 (ig. 22, 23) aquilo que se passa justamente o atelier

    e a artista. E passa-se concretamente pela superfcie do espelho, espelho como grande

    entrada para o mundo autoral. O atelier parece entrar por essa abertura para dentro da

    artista. A artista parece deixar passar o atelier para o seu interior.

    23 H. Almeida,Dentro de Mim, 2000

    22 H. Almeida,Dentro de Mim, 2000

    Nas suas primeiras exposies aquilo que a artista apresentava era uma encena-

    o dos limites da pintura. Nos ltimos trabalhos a construo que H. Almeida revela pare-

    ce coincidir com a prpria autora. A artista parece apresentar-se a si prpria, no espao do

    seu atelier, como a grande construo, sendo simultaneamente sujeito, artista e objecto.

    Helena Almeida, mais do que criar obras especiicamente para um lugar ou um stio, parece antes airmar que o lugar o atelier e o atelier o seu mundo.64

    Ela, obra e/ou motivo e o seu atelier motivo e/ou obra exibem-se como um gran-

    de edifcio, como um grande elemento plstico, como o seu novo/diferente grande qua-

    dro pictural. Depois do objecto, externo, dual; e depois de si prpria, dentrior, una; agora

    o atelier, nem mltiplo nem uno: o zero, o todo.

    64 I. Carlos in Helena Almeida, (Milo: Electa, 1998), p. 26.

  • 60

    24 H. Almeida, Sem Ttulo (pormenor), 2003

    Objecto-artista-atelier: guiada pelo processo, parece ter sido este o caminho de-

    senhado pela artista.

    O objecto: dualidade moral, moral enquanto um conjunto de regras conside-

    radas como universalmente vlidas, numa reaco contra o outro, dentro das regras do

    outro, exterior a si.

    A artista: unidade imoral, imoral no como desprovido de princpios de moral

    mas sim no sentido de forar e transgredir os princpios da moral vigente ao encontro da

    sua verdade ntima, da sua micro-realidade, da sua interioridade.

    O atelier: zero amoral, apartado, desinteressado e vazio da noo dos princpios

    da moral. Trata-se de outra coisa, no do domnio do bem ou do mal, mas do domnio

    da arte enquanto territrio vago, inconstante, incerto, indeterminado, no deinido nem

    preenchido. Do domnio da arte enquanto territrio no comprometido ou no ocupado.

    Zero como vago enquanto disponvel. Amoral como aberto enquanto livre.

    O artista ou o que queira chamar-lhe no tem nada que agradar, e muito menos reproduzir aquilo que esperam dele65

    Podia inventar uma quantidade ininita de teorias para justiicar isso. Mas sinto sempre que a estaria a enganar: as palavras so sempre paralelas, so sempre outra coisa.66

    Eu no quero elaborar teorias sobe o meu trabalho, no quero reduzi-lo a palavras67

    O processo da moral amoral leva Helena Almeida a transformar a herana num

    legado. O atelier antes herdado agora o atelier legado. O mesmo espao fsico foi re-

    construdo pela autora numa outra unidade temtica. Num outro lugar de criao?

    65 E. de Sousa in Helena Almeida, (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,1982), s/p.66 H. Almeida (entrevista de I. Carlos) in Helena Almeida, (Milo: Electa, 1998), p. 56.67 ibid.

  • 61

    Que atelier esse que resta do trabalho de Helena Almeida: um novo atelier

    enquanto nova a abordagem ao precedente (e dentro dessas regras, dentro das regras

    do anterior) ou um atelier diferente, diferente enquanto ruptura com o precedente,

    enquanto instvel.

    Ou ser que o atelier que resta do trabalho de Helena Almeida no nem um

    novo atelier, nem um atelier diferente, mas um outro atelier, um outro paradigma para o

    lugar da criao? Ser o atelier, o de Helena Almeida ou outro, esse espao informe, lugar

    do momento zero da criao, de onde nasce a primeira forma, o elemento construtivo

    primordial, estrutura do edifcio criativo, organismo essencial?

    Como em Serial B, trabalho terico/prtico realizado no mbito da disciplina de

    Arte Cincia e Tecnologia, no contexto do primeiro ano de estudos deste mestrado e motor

    para algumas das questes levantadas com o trabalho de investigao O Lugar da Cria-

    o68: Quem o artista, o que a obra e existe realmente um espectador? E qual o lugar

    da criao?69. Ainda, no mesmo trabalho de investigao, e sobre os novos objectos media

    interactivos, Roy Ascott considera que A arte, que esteve to preocupada com o produto i-

    nal, com uma inalidade esttica, [...] mostra-se agora preocupada com o processo de emer-

    gncia, de coming-into-being. [...]70 Ser esta a importncia do atelier a importncia de

    acto de emergir, do processo de originar-se, de tornar-se em ser-se? Os novos objectos

    media interactivos funcionam construindo-se. Vo sendo construdos com o artista, a obra

    e o espectador fundidos no interior dessa construo.71 Cumprir o atelier, qualquer que

    seja o atelier, o papel do lugar onde as coisas passam a ser do domnio da arte? A impor-

    tncia do objecto artstico parece ser a importncia da construo do objecto artstico.72

    Ser o atelier, qualquer que seja o atelier, de facto, o lugar da criao artstica?

    E a quem vai H. Almeida legar o seu atelier? Ou quem vai herdar o atelier de H.

    Almeida? Esse mesmo espao e esse outro lugar, esse outro territrio revestido de outros

    sentidos, prontos para outras negaes, para outras crises. Ou ser o atelier legado por

    Helena Almeida igual ao atelier herdado do seu pai, um mesmo territrio prprio para as

    mesmas crises?

    68 F. Cardoso Lima e R. Oliveira, O Lugar da Criao, (Aveiro: 4 SopCom/Universidade de Aveiro, 2005).

    69 ibid., p. 95.70 ibid. p. 102.71 ibid. p. 102.72 ibid. p. 102.

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  • 63

    2 2 eles (os ateliers e as obras)

    O Atelier de Helena + O Atelier de Francisco 65

    O rasgo de Lucio Fontana 67

    O mundo de Alice 72

    O covil de Franz Kafka 74

    O Red Room de David L