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LUANA ALMEIDA MAGALHÃES O ATENDIMENTO FONOAUDIOLÓGICO NAS DISFAGIAS: DO CORPO-OBJETO AO CORPO DOS AFETOS Mestrado em Fonoaudiologia PUC-SP 2007

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  • LUANA ALMEIDA MAGALHES

    O ATENDIMENTO FONOAUDIOLGICO NAS DISFAGIAS: DO CORPO-OBJETO AO CORPO DOS AFETOS

    Mestrado em Fonoaudiologia

    PUC-SP

    2007

  • Livros Grtis

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  • LUANA ALMEIDA MAGALHES

    O ATENDIMENTO FONOAUDIOLGICO NAS DISFAGIAS: DO CORPO-OBJETO AO CORPO DOS AFETOS

    Dissertao de Mestrado apresentada

    Banca Examinadora da Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo, como

    exigncia parcial para obteno do Ttulo de

    Mestre em Fonoaudiologia, sob a orientao

    do Prof. Dr. Luiz Augusto de Paula Souza.

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    2007

    i

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM FONOAUDIOLOGIA

    Banca Examinadora

    ii

  • Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou

    parcial desta dissertao por processos de fotocopiadoras ou eletrnicos.

    Assinatura: ________________________ Local e Data: ___________________

  • Para minha famlia,

    sempre presente na minha caminhada.

    iii

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Tuto, pela oportunidade de poder ter um orientador to presente,

    mesmo quando na ausncia, que acompanhou e respeitou meu processo de

    construo da pesquisa, com interlocues sempre marcantes.

    Aos professores Rogrio Lerner, Ruth Palladino e Zelita Guedes, pelos

    importantes apontamentos e contribuies no exame de qualificao.

    A professora Claudia Cunha, pelas discusses nas aulas que, em muito,

    movimentaram a minha escrita da dissertao

    A professora Suzana Maia, sempre atenta, paciente e cuidadosa nas

    orientaes da disciplina de Seminrios de Dissertao, de onde germinou o

    projeto de pesquisa do mestrado.

    A Carolina Parisi, pela discusso sobre o caso clnico na pr-qualificao.

    Aos professores do Programa de Estudos Ps-Graduados em

    Fonoaudiologia, especialmente aqueles com os quais pude me relacionar nas

    disciplinas, por participarem da minha formao de pesquisadora clnica.

    Aos professores Marcos Massetto e Suely Rolnik, pela possibilidade de

    experimentar aulas to especiais em ambientes permeados por diferenas.

    A Dona Laura (minha paciente, cujo nome fictcio) e a sua famlia, por

    terem dado a oportunidade de me debruar sobre uma experincia de caso clnico

    to intensa e marcante na minha vida.

    Aos profissionais da equipe do Home Care, pelo trabalho conjunto e pela

    possibilidade de realizao da pesquisa.

    A Capes, por financiar a realizao deste projeto.

    iv

  • As minhas amigas especiais da turma de Seminrios de Dissertao:

    Fernanda Machado, Aline Garrido, Karin Genaro, Cristiane Silva, Renata Ensinas,

    Mirella Guilhen, alm dos vibrteis Daniella Zorzi, Lus Jardim e Fernanda

    Rocco, que participaram das discusses e estiveram bem prximos, cada qual ao

    seu modo, em momentos importantes da escrita desta pesquisa.

    Aos amigos do Aprimoramento em Sade Coletiva, pelas profcuas

    discusses e supervises clnicas, que trouxeram reflexes importantes para a

    realizao do mestrado.

    A Vera Mendes, que acompanha de perto, h algum tempo, minhas

    inquietudes, desassossegos e crescimentos na Fonoaudiologia, com quem venho

    compartilhando a descoberta de novos caminhos a trilhar.

    As grandes amigas Slvia Guedes, Dani Zorzi e Mari Campos, e porque

    no dizer tambm a caula Flvia Cardoso, por dividirem comigo a experincia de

    constituir um grupo to singular e heterogneo.

    Aos meus pais, pelo incentivo e confiana constantes, por suportarem as

    minhas ausncias e pelo amor incondicional.

    A minha irm, por existir e estar presente de forma to especial na histria

    da minha vida.

    Ao Adriano, querido amor e companheiro, que divide a experincia intensa

    do viver ao meu lado.

    v

  • Mas graas a Deus que h imperfeio no mundo

    Porque a imperfeio uma cousa,

    E haver gente que erra original,

    E haver gente doente torna o mundo maior.

    Se no houvesse imperfeio, havia uma cousa a menos,

    E deve haver muita cousa

    Para termos muito que ouvir

    (Enquanto os olhos e ouvidos se no fecham)...

    Fernando Pessoa

    vi

  • RESUMO

    A dissertao trata da descrio de um caso clnico de paciente disfgica

    atendida em domiclio.

    O objetivo foi demonstrar a relevncia dos aspectos psquicos na

    reabilitao fonoaudiolgica dos transtornos de deglutio, buscando entender

    por que os sintomas disfgicos se tornaram recorrentes mesmo que, do ponto de

    vista orgnico-funcional, a paciente no mais possusse alterao alimentar.

    Trata-se de uma pesquisa descritiva, realizada a partir do mtodo clnico-

    qualitativo, por meio de estudo de caso clnico nico, exemplar ou emblemtico. O

    caso clnico relatado nesta pesquisa de uma paciente de 82 anos (nomeada

    como Dona Laura), que foi acometida por um Acidente Vascular Enceflico

    Isqumico e apresentava quadro de disfagia e de parestesia e paresia facial

    esquerda, alm de alterao na expresso da linguagem e disartrofonia. Os

    dados para reflexo foram coletados no perodo de junho de 2004 a dezembro de

    2005, e o material clnico constituiu-se da anlise das memrias dos atendimentos

    e dos registros semanais, escritos em forma de narrativa aps os atendimentos

    realizados.

    O advento do AVE fragilizou subjetivamente a paciente e isso dificultou

    tanto as relaes familiares quanto suas rotinas. A abertura da escuta da

    terapeuta para as angstias advindas desta situao permitiu que a paciente

    pudesse se deslocar a partir da reabilitao orgnica em direo uma

    ressubjetivao, ou seja, construo de um novo perfil subjetivo, mais

    satisfatrio em relao s condies atuais de vida e relacionais da paciente.

    A pesquisa demonstrou a relevncia de se considerar o corpo na

    reabilitao fonoaudiolgica das disfagias, no apenas por sua face orgnica,

    mas nas esferas simblica e afetiva.

    Descritores: Fonoaudiologia, Disfagia, Relaes bio-psquicas, Teraputica

    fonoaudiolgica, Transtornos de deglutio.

    vii

  • ABSTRACT

    This study deals with the description of a home care dysphagic patient case

    study. The aim was to demonstrate the relevance of the psychic aspects in the

    swallowing disorders treatment, searching to understand why the dysphagic

    symptoms became recurrent since in the organic-functionary point of view, the

    patient had no more disorders.

    This is a descriptive research done through clinic-qualitative method, by a

    unique, exemplary or emblematic clinical case study of an 82 years old patient

    (named as Dona Laura) with stroke that caused dysphagia, paresthesia and

    paresis of the left facial side, beyond language expression disorder and dysarthria.

    The data had been collected between June 2004 and December 2005, and the

    clinical material consisted of the therapies memories analysis, made by weekly

    registers, written in a narrative form.

    The stroke brought fragility to the patient subjectivity and made it difficult to

    her support the familiar relations, as well as her routines. The opening of the

    therapist listening to this suffering situation allowed the patient to be dislocated

    from the organic rehabilitation into the direction of a ressubjectivation, meaning a

    construction of a new subjective profile, more satisfactory in the current relationary

    conditions of patients life.

    The research demonstrated the relevance of considering the body in the

    dysphagia treatment, not only on its organic face, but also on its symbolical and

    affective spheres.

    Key words: Speech therapy, Dysphagia, Bio-psychic relations, Speech language

    pathology therapeutical, Swallowing disorders.

    viii

  • SUMRIO

    Introduo 10

    Captulo 1 Manifestao da disfagia no organismo 19

    Captulo 2 O corpo dos afetos 31

    Captulo 3 Percurso metodolgico: apresentao do caso clnico 50

    3.1 O primeiro encontro com Dona Laura 54

    3.2 Incio do atendimento clnico: o setting teraputico 57

    3.3 Lidando com o imprevisvel 60

    3.4 Revivendo o sintoma: o retorno das ocorrncias de engasgo 63

    3.5 Outro modo de atuar com o sintoma 64

    3.6 Mudana de olhar: possibilidades de novas relaes 67

    3.7 Dos efeitos subjetivos produzidos no encontro teraputico 71

    Captulo 4 Anlise do processo teraputico: reflexes sobre corpo e afetos 73

    Referncias Bibliogrficas 79

    Anexos 84

    ix

  • INTRODUO

    Ah, os nossos sentidos, os doentes que vem e ouvem! Fossemos ns como deveramos ser

    E no haveria em ns necessidade de iluso... Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida

    E nem reparamos para que h sentidos... (Fernando Pessoa)

    A escolha em tratar certos aspectos da disfagia deriva do meu

    envolvimento com o assunto desde a graduao. Naquela poca, j me

    interessava por transitar em espaos de discusso sobre o tema, participando de

    palestras, mesas-redondas, oficinas e disciplinas eletivas.

    Foi pela via dos atendimentos clnicos que me iniciei na teraputica voltada

    ao paciente com disfagia, que est impossibilitado de se alimentar pela via oral.

    Minha atuao profissional est relacionada ao cuidado de pacientes disfgicos

    na esfera domiciliar e hospitalar.

    Na prtica clnica, interessa-me, e relevante, o fato de poder intervir por

    meio da terapia de reabilitao, permitindo aos pacientes retomar condies de

    alimentao que haviam sido perdidas. Muitas vezes, so os prprios pacientes

    e/ou seus familiares que notam dificuldades de deglutio e procuram o

    atendimento, aps a ocorrncia ou o acometimento de alguma patologia. Mas,

    geralmente, so os mdicos que os encaminham ao atendimento, para iniciar

    rapidamente o processo de reabilitao no ambiente hospitalar, a fim de

    possibilitar uma evoluo mais rpida.

    A formao terica promoveu o manejo de conceitos que sustentam o

    atendimento clnico. Encontrei estudos como os de Marchesan (1999) e Tubero

    (2003), que definem a disfagia como qualquer dificuldade no percurso do

  • alimento, da boca at o estmago, que leve o paciente a riscos de desnutrio,

    desidratao e infeces pulmonares. Problemas orgnicos impedem ou

    dificultam o processo de alimentao e comprometem a condio nutricional do

    paciente, trazendo riscos para sua sade, uma vez que causam srias

    complicaes respiratrias pela aspirao de alimento em vias areas superiores.

    Para as autoras, a disfagia no considerada uma doena, mas a

    conseqncia de uma sndrome ou doena de base, decorrente de problemas

    congnitos ou adquiridos, e classificada como disfagia neurognica, mecnica,

    miognica e psicognica. As desordens mais freqentes nas disfagias

    neurognicas so aquelas advindas de disfunes neurolgicas, resultantes de

    Acidente Vascular Enceflico (hemorrgico ou isqumico), traumatismos crnio-

    enceflicos, tumores cerebrais, doenas degenerativas (Esclerose Lateral

    Amiotrfica, Doena de Alzheimer, Doena de Parkinson, Demncias), Esclerose

    Mltipla e encefalopatia crnica infantil no evolutiva.

    As disfagias mecnicas, muitas vezes decorrentes de tumores de cabea e

    pescoo, que necessitam de cirurgias de retirada de rgos e de tratamentos

    agressivos, como a radioterapia, alm do uso de medicamentos que podem

    modificar a produo de saliva (sialorria ou xerostomia) e alterar a sensibilidade

    ou tonicidade muscular, tambm ocorrem nos casos de pacientes submetidos a

    intubao orotraqueal e traqueostomia, uma vez que causam comprometimentos

    na dinmica da deglutio. Com relao s disfagias miognicas, alguns dos

    distrbios musculares mais freqentes so as miopatias, a miastenia gravis e as

    distrofias musculares progressivas. Por fim, tm-se as disfagias psicognicas,

    advindas de distrbios psquicos como a depresso, o autismo, a histeria, a

    esquizofrenia, entre outros.

    11

  • Nesta pesquisa, a disfagia entendida enquanto um transtorno alimentar,

    no sentido de um transtorno oral que se encontra na gama de acometimentos

    ocorridos na regio oral e que, portanto, so relativos tambm alimentao. Os

    transtornos orais denotam casos como os de alteraes de tonicidade e fora

    muscular com conseqentes imprecises articulatrias fonmicas strictu sensu

    e ceceios variados , questes respiratrias, de deglutio; quadros de deglutio

    atpica; transtornos na alimentao; alm de idiossincrasias nos rituais

    alimentares (PALLADINO, SOUZA e CUNHA, 2004).

    Para ser melhor compreendida, do ponto de vista funcional, a disfagia pode

    ser dividida em fases: preparatria oral, oral, farngea e esofgica (MARCHESAN,

    op. cit.). Apenas as duas primeiras so voluntrias, j as fases farngea e

    esofgica so involuntrias. Na maioria dos casos de disfagia neurognica, h

    alteraes nas fases oral e farngea, manifestadas por sintomas como desordem

    na mastigao, dificuldade de iniciar a deglutio e controlar o bolo na cavidade

    oral, regurgitao nasal e pela presena de tosse e engasgos durante a

    alimentao, que levam a problemas pulmonares como a pneumonia aspirativa,

    por exemplo, levando a quadros de desnutrio e desidratao (BUCHHOLZ,

    1994).

    Pela reabilitao fonoaudiolgica, possvel intervir nas fases oral e

    farngea da deglutio, por meio de estimulaes motoras, sensoriais e

    funcionais, que visam maximizar a tonicidade, a sensibilidade, a mobilidade e a

    coordenao dos rgos fonoarticulatrios. Alm disso, objetiva-se co-relacionar

    a estimulao orofacial com os outros processos relativos deglutio, como a

    fonao, a articulao da fala e a respirao.

    12

  • A partir da prtica clnica com pacientes que apresentavam disfagia

    neurognica, passei a questionar sobre a reabilitao fonoaudiolgica, tendo em

    vista que, geralmente, a proposta teraputica era baseada apenas no dficit

    orgnico observvel no corpo, ou seja, a interveno teraputica se dirigia

    correo de uma alterao orgnica observada. Nessa tica, as tcnicas de

    reabilitao alimentar, realizadas por meio de estimulaes sensrio-motoras

    miofuncionais, tm o intuito, exclusivamente, de resgatar funes comprometidas.

    Inicialmente, no me questionava, durante o processo teraputico, sobre a

    aplicao das tcnicas de reabilitao oral, pois os problemas de alimentao

    apresentados eram minimizados e o objetivo de restabelecer a alimentao do

    paciente por via oral era alcanado, na maior parte das vezes. No entanto, alguns

    casos passaram a me inquietar em razo de sua evoluo. Passei a observar que

    nem sempre bastava o uso adequado das tcnicas de reabilitao para aliviar o

    sofrimento de quem estava impossibilitado de se alimentar por via oral. Muitas

    vezes, o paciente apresentava, segundo uma perspectiva biolgica, um bom

    prognstico para a alimentao, mas a interveno proposta, baseada na

    aplicao das tcnicas de reabilitao oral no era capaz de promover a melhora

    do quadro. Comecei a observar que o organismo, enquanto locus da interveno

    reabilitadora, no podia ser compreendido como unidade fechada sobre si

    mesma, encerrando o distrbio antomo-fisiolgico.

    O caso de Dona Laura1, de 82 anos, foi emblemtico e permitiu refletir

    sobre a terapia de reabilitao. A paciente foi encaminhada para avaliao

    fonoaudiolgica pelo mdico, quando ainda estava hospitalizada. Havia sido

    acometida, em junho de 2004, por um Acidente Vascular Enceflico Isqumico

    1 Nome fictcio

    13

  • (leso cerebral em hemisfrio direito, localizada no lobo parietal, de acordo com o

    laudo do exame de tomografia computadorizada) e apresentava, na poca,

    quadro de disfagia e de parestesia e paresia facial esquerda, alm de

    disartrofonia e alterao na linguagem oral e escrita.

    A terapia fonoaudiolgica foi iniciada com enfoque na sensibilidade,

    tonicidade e mobilidade das estruturas orofaciais, enfatizando a mastigao e a

    postura da musculatura facial, a fim de evitar presena de resduos alimentares

    na cavidade oral, que pudessem levar a uma possvel aspirao traqueal.

    Tambm foram realizadas estimulaes voltadas para as dificuldades de

    articulao da fala.

    Foi possvel observar mudana significativa no padro mastigatrio, de

    deglutio e de sensibilidade e mobilidade da musculatura oral, a partir do

    primeiro ms de estimulao miofuncional e, assim, o enfoque da terapia passou

    a ser dirigido s dificuldades de fala, de linguagem oral e de escrita. No entanto,

    aps um perodo de 2 meses, a paciente apresentou dois episdios de convulso

    e, novamente, aps outros 2 meses, ocorreu outra convulso. A partir da, ela e

    os familiares se queixavam novamente de dificuldades na alimentao, com a

    presena de engasgos durante a ingesto de lquidos e slidos.

    Restabeleceu-se a teraputica voltada disfagia e, aps um perodo

    tambm de aproximadamente 2 meses, houve melhora do quadro: ela no mais

    engasgava nas refeies e nem durante a fala. Porm, no ms seguinte, sem que

    houvesse intercorrncia orgnica, as queixas retornaram e a paciente e seus

    familiares voltaram a referir a ocorrncia de engasgos e tosse durante a

    alimentao, o que tornou necessrio retomar a estimulao miofuncional.

    14

  • Em decorrncia deste caso, passei a refletir sobre a teraputica

    implementada nos casos de disfagia: por que os sintomas retornavam se havia

    melhora nos padres miofuncionais orais e, especificamente, na deglutio?

    Se a teraputica se estabelece para reabilitar a alimentao, do ponto de

    vista mais estritamente ligado ao organismo, devido necessidade imediata de

    promover a alimentao por via oral de forma segura, como o manejo das

    tcnicas de reabilitao oral e das manobras teraputicas no permitiam

    estabilizar a funo de alimentao por via oral?

    Embora a reabilitao da disfagia apresente particularidades, em funo do

    tipo de atuao realizada (as tcnicas de reabilitao miofuncional criam marcas

    no corpo do paciente) e dos riscos encontrados (pelo fato de ser freqente a

    possibilidade de aspirao pulmonar do alimento), preciso considerar que a

    abordagem apenas dimenso biolgica/orgnica do corpo parece no ser

    suficiente para que se compreendam situaes como a de Dona Laura.

    Considerando que na reabilitao das disfagias h sempre a ocorrncia de

    um comprometimento orgnico, comum que a Fonoaudiologia pense os

    sintomas a partir da idia de que corpo sinnimo de organismo, ou seja, a rea

    tende a entender o corpo enquanto estrutura regida exclusivamente pelas

    instncias anatmica, neurofisiolgica e cognitiva. Mas, se fosse assim, o corpo

    seria apreensvel numa suposta objetividade pura e o referencial para

    diagnosticar um paciente estaria na exterioridade do sintoma. Desta forma, de

    acordo com Parisi (2003, p. 32), a posio ocupada pelo fonoaudilogo fica com

    caracterstica mais corretiva do que clnica, uma vez que lhe resta ensinar cdigos

    e padres considerados satisfatrios ou normais. Ao corpo atribudo o estatuto

    de organismo e, sendo assim, tomado apenas em sua face biolgica.

    15

  • A esta altura, necessrio problematizar a concepo de corpo,

    esclarecendo diferenas em relao noo de organismo, uma vez que esta

    diferenciao abre caminho para o desenvolvimento do presente estudo. O termo

    orgnico (do grego organiks e do latim organicu) refere-se uma dimenso

    biolgica e adjetiva aquilo que diz respeito ao organismo, a uma estrutura

    antomo-fisiolgica organizada, ou seja, disposta em rgos (PALLADINO,

    SOUZA e CUNHA, 2004).

    Orgnico diz de uma constituio em que h rgos arranjados de modo a

    assegurar as suas funes particulares, vinculadas a uma funo vital. Esta uma

    constituio sinttica, na qual as partes esto numa relao sobredeterminada por

    leis que visam realizar a vida. possvel dizer, ento, que a ordem orgnica a

    sintaxe dos rgos. (Id., p.102)

    Tratar da noo de corpo mais amplamente e tal como pretende-se aqui,

    refere-se influncia que o psiquismo, pela via da linguagem, exerce sobre o

    organismo, a partir dos modos pelos quais os signos (material psquico) se

    incorporam no biolgico, se encarnando no corpo, como faces ou registros de um

    mesmo processo. O corpo contrai os signos (materiais e imateriais) nas relaes

    que estabelece com o mundo e deles se apropria anatmica, fisiolgica e

    metabolicamente (SOUZA, 2000). A idia de corpo vem atrelada, ento, ordem

    do desejo, advm do acontecimento simblico que toma o organismo como corpo,

    ou seja, quando a carne envergada em uma trama significante (PALLADINO,

    SOUZA e CUNHA, op. cit.), pela capacidade de afetar e de ser afetado pelo outro

    por meio dos signos.

    16

  • pelo contato entre sujeitos que os corpos se afetam e so afetados. So

    os afetos que do o contorno para as sensaes e para os funcionamentos fsicos

    e psquicos (...), so eles que impregnam ou esculpem o corpo fsico dando um

    carter humano para o interior do corpo, constituindo o indivduo da espcie em

    ser humano (NEISSER, 2003, p.28).

    Se for assim, uma questo se impe: por meio da reabilitao miofuncional

    ou sem dela prescindir, como enredar a prtica fonoaudiolgica em uma clnica

    das disfagias e de outros distrbios alimentares, que admita uma articulao entre

    o orgnico e o simblico?

    Pensar sobre o encontro teraputico, como espao potencial para produzir

    diferenas de sentido para o paciente disfgico em relao ao transtorno que o

    acomete parece ser um caminho. a presena do transtorno alimentar, causado

    pela leso cerebral, que faz com que o paciente encontre com o terapeuta um

    lugar que, alm da reabilitao miofuncional, permita a elaborao de sua

    condio subjetiva, em face das mudanas em suas rotinas e do sofrimento

    representado, por exemplo, pelas limitaes e seqelas decorrentes da doena

    de base (AVE, tumores, demncias, etc), entre as quais est a disfagia. A relao

    singular estabelecida entre terapeuta e paciente favorece o enfrentamento do que

    o sintoma representa.

    Pelo processo de transferncia2, o paciente estabelece com o terapeuta um

    vnculo de sua confiana, por imaginar que ele saber como curar o mal que lhe

    acomete. Mesmo que essa confiana seja excessiva, ela ser til ao andamento

    2 O conceito de transferncia, utilizado pela psicanlise, refere-se a uma relao transferencial estabelecida entre o terapeuta e o paciente, cujo instrumento fundamental para a mudana psquica, utilizado pelo analista a interpretao do material onrico apresentado em associaes livres pelo paciente. O trabalho com a transferncia permite ao analista um conhecimento sobre o paciente que lhe d meios de conduzir-se com segurana no processo analtico.

    17

  • do processo teraputico; ela diz do modo como o paciente se implica com aquilo

    que lhe causa sofrimento. Ao terapeuta, importante sustentar esse lugar de

    suposto saber na relao com o paciente, mas considerando a singularidade de

    cada paciente, pois durante o processo teraputico que se constri o saber

    sobre o paciente. Desta forma, o vnculo estabelecido com o paciente

    fundamental para o enfrentamento da situao clnica. No entanto, embora tal

    confiana seja importante, o processo teraputico no deve promover a

    dependncia do paciente terapia ou ao terapeuta (CALLIGARIS, 2004).

    Foi nesse sentido que esta pesquisa trabalhou com um caso clnico

    exemplar ou emblemtico, buscando entender por que os sintomas disfgicos se

    tornaram recorrentes mesmo que, do ponto de vista orgnico-funcional, a

    paciente no mais possusse alterao alimentar.

    Tal perspectiva metodolgica ancorou-se numa articulao terica sobre as

    relaes entre a disfagia e o corpo, por meio de investigao bibliogrfica,

    apresentada no primeiro e no segundo captulo da dissertao. A discusso

    acerca da interveno na disfagia ampliada partir do segundo captulo,

    considerando as relaes estabelecidas entre corpo e psiquismo, cujo

    embasamento terico se faz num dilogo com a produo recente da

    Fonoaudiologia, que apropria noes advindas da Psicanlise e da Filosofia.

    No terceiro captulo, a exposio do caso clnico permitiu, ento, atualizar

    conhecimentos e questionamentos expostos nos dois primeiros captulos. Sendo

    que, no quarto captulo, baseado na exposio do caso clnico so analisadas e

    discutidas as relaes concretas entre o corpo e o psiquismo na abordagem de

    pacientes disfgicos.

    18

  • CAPTULO 1 MANIFESTAES DA DISFAGIA NO ORGANISMO

    No entardecer dos dias de Vero, s vezes, Ainda que no haja brisa nenhuma, parece Que passa, um momento, uma leve brisa...

    Mas as rvores permaneceriam imveis Em todas as maneiras das suas folhas E os nossos sentidos tiveram a iluso,

    Tiveram a iluso do que lhes agradaria... (Fernando Pessoa)

    Pensar o atendimento ao disfgico no campo fonoaudiolgico remete, via

    de regra, a uma interveno direta no organismo, com condutas especficas

    tomadas diante das alteraes da funo de deglutio, cuja finalidade a de

    nutrir e hidratar o indivduo, mantendo seu estado nutricional e protegendo a via

    area, com manuteno do prazer alimentar, garantindo sua sobrevivncia

    (FURKIM e MATTANA, 2004, p.212).

    A deglutio definida como um processo sinrgico, composto por fases

    intrinsecamente relacionadas, seqenciais e harmnicas, divididas em fase

    antecipatria, fase oral, fase farngea e fase esofgica. Para que seja eficiente,

    esse ato depende de complexa ao neuromuscular (sensibilidade, paladar,

    propriocepo, mobilidade, tnus e tenso), alm da inteno de se alimentar.

    Depende tambm da integridade dos sistemas neuronais (vias aferentes,

    integrao dos estmulos no sistema nervoso central, vias eferentes, resposta

    motora) (FURKIM e SILVA, 1999).

    A disfagia entendida, assim, como um distrbio de deglutio, com sinais

    e sintomas especficos, caracterizado por alteraes em qualquer etapa e/ou

    entre etapas da dinmica da deglutio, podendo ser de origem congnita ou

    adquirida aps comprometimento neurolgico, mecnico ou psicognico. Esse

  • distrbio pode resultar em comprometimento no estado de nutrio, de hidratao

    e de sade pulmonar, assim como no prazer alimentar e na interao social do

    indivduo (Id., 1999). Em geral, nas intervenes fonoaudiolgicas, em terapias de

    linguagem, audio, voz e motricidade oral, no h riscos de morte, ao contrrio

    da disfagia.

    A Fonoaudiologia brasileira passou a se haver com as questes da disfagia

    de forma mais sistemtica h cerca de vinte anos, iniciando estudos e

    publicaes sobre o tema em meios cientficos. Os primeiros artigos cientficos

    encontrados indicam uma tendncia da rea em descrever e classificar as

    estruturas envolvidas no processo de deglutio, propondo avaliaes e

    teraputicas nos casos com alterao de linguagem e de deglutio decorrentes

    de leses cerebrais, como paralisia cerebral e AVE, por exemplo (LIMONGI,

    1980; PARENTE e MANSUR, 1980, entre outros).

    Posteriormente, outros estudos, como o de Gonalves et al. (1989),

    voltaram-se para a reabilitao do paciente laringectomizado, considerando outra

    faceta da reabilitao das disfagias, cuja alterao apresentada decorria da

    retirada de rgos em procedimentos cirrgicos, devido presena de tumores de

    cabea e pescoo e de tratamentos como a radioterapia.

    H ainda a publicao de estudos mdicos envolvidos com a dinmica da

    alimentao (COSTA, 1988), que investigaram o processo da deglutio desde o

    seu incio, na cavidade oral, e no apenas em regio esofgica ou gstrica. Estas

    pesquisas foram desenvolvidas concomitantemente ao desenvolvimento de

    recursos tecnolgicos para auxiliar o diagnstico, inicialmente, pela

    videofluoroscopia (cuja tcnica consiste na visualizao da imagem por meio de

    contraste com flor, sendo realizada em qualquer regio do corpo), chegando ao

    20

  • desenvolvimento de exames, como o videodeglutograma, que permitiram a

    anlise da dinmica da deglutio desde a orofaringe, passando pela laringe e

    esfago, por meio da alimentao contrastada com brio ou iodo, a fim de

    entender o funcionamento da deglutio dentro dos padres de normalidade,

    estendendo estudos posteriores aos padres patolgicos.

    A partir da dcada de noventa, com o rpido desenvolvimento de novas

    tecnologias, como a avaliao endoscpica da deglutio, aliada ao

    videodeglutograma, houve um aumento significativo de estudos fonoaudiolgicos

    sobre a disfagia e, conseqentemente, sobre novas possibilidades de avaliao,

    de diagnstico e de intervenes teraputicas, pautados nas alteraes orgnicas

    do paciente disfgico. Com o desenvolvimento das pesquisas, o tratamento

    fonoaudiolgico, que j era conhecido de longa data e praticado de maneira

    emprica, passou a ter embasamento cientfico, inicialmente, a partir de pesquisas

    com grupos controle (MACEDO FILHO, GOMES e FURKIM, 2000).

    Neste movimento, observou-se que a presena de outros profissionais de

    sade integrando a equipe mdica permitiu a constituio de equipes multi e

    interdisciplinares, geralmente em servios hospitalares. Estas so compostas, na

    maioria das vezes, por mdicos, fonoaudilogos, nutricionistas, fisioterapeutas,

    enfermeiros, terapeutas ocupacionais, psiclogos, entre outros. A ampliao do

    olhar do clnico para o doente, e no apenas para a patologia que o acomete,

    tambm passa a interferir na formao do profissional, que solicita mudanas de

    base, operadas desde a formao acadmica.

    Observa-se que a ampliao do trabalho no ambiente hospitalar, a partir da

    difuso da ateno em domiclio (atendimentos de Home Care), traz cena a

    necessidade de considerar o paciente em sua singularidade, iniciando o

    21

  • rompimento de uma lgica centrada na especialidade e na patologia,

    exclusivamente. Passa a ser possvel a construo de processos de cuidados que

    articulam vrias especialidades no tratamento de pacientes disfgicos, de modo a

    buscar uma abordagem mais sofisticada para a avaliao, o diagnstico e a

    teraputica destes sujeitos (MACEDO FILHO, GOMES e FURKIM, op. cit.).

    A necessidade de cuidados hospitalares revela que a disfagia, a despeito

    de outros distrbios fonoaudiolgicos, pode ser um dos nicos casos no quais

    erros na atuao teraputica podem levar morte, em decorrncia de eventual

    inadequao da conduta tomada pelo fonoaudilogo acerca da alimentao.

    Neste sentido, a Fonoaudiologia tende, talvez mais do que em outras reas

    teraputicas e/ou reabilitadoras, a se respaldar em atendimentos que enfocam

    estritamente o acometimento orgnico, numa prtica que se aproxima de formas

    de abordagens mdicas, cujo cuidado com as doenas so tambm,

    freqentemente, pautados pelo privilgio de tcnicas de manejo e controle

    orgnicos.

    No caso da Fonoaudiologia, a manipulao tcnica das funes orais de

    maneira precisa decisiva na reabilitao da disfagia, a fim de evitar outros

    agravos sade do paciente, como, por exemplo, pneumonias decorrentes de

    aspirao traqueal do alimento por vezes, de modo silente. No entanto, muitas

    vezes, desconsidera-se o sujeito que foi acometido pela dificuldade de deglutio

    e as implicaes disto em sua vida, enfocando o tratamento apenas do ponto de

    vista dos aspectos fisiolgicos.

    Em funo deste tipo de atuao, realizada por meio das tcnicas de

    reabilitao miofuncional, possvel, em vrios casos, alcanar os objetivos de

    restabelecer o processo de deglutio compensatrio ou mais prximo possvel

    22

  • da normalidade, minimizando as possibilidades de ocorrncia do risco inerente a

    esses casos: possibilidade de aspirao pulmonar do alimento.

    Observa-se que as tcnicas reabilitadoras, utilizadas no atendimento do

    paciente disfgico, apresentam particularidades no que diz respeito terapia

    miofuncional. Isto porque, neste tipo de interveno clnica, h uma forte atuao

    sobre o organismo, quero dizer, faz-se necessrio, neste tipo de interveno,

    realizar manobras posturais e tcnicas de estimulaes orofaciais, de modo a

    oferecer ao paciente novos padres adaptados de deglutio segura. Para esta

    adaptao, muitas das manobras posturais e estimulaes so realizadas pelo

    clnico e outras tantas podem ser realizadas voluntariamente pelo paciente, a

    menos que haja comprometimento motor voluntrio, cognitivo e/ou de linguagem

    (FURKIM, 1999; FURKIM e SILVA, op. cit.; MACEDO FILHO, GOMES e FURKIM,

    op. cit.; FURKIM e MATTANA, op.cit.; SILVA, 2004; FORTE e FORTE, 2004).

    No que diz respeito s tcnicas e manobras para o tratamento

    fonoaudiolgico de pacientes com disfagia orofarngea neurognica, Furkim

    (1999) discute que o manejo dessas tcnicas pode se dar em ambiente clnico,

    domiciliar e, predominantemente, hospitalar. Previamente ao incio da terapia,

    sugere que seja realizada avaliao criteriosa das estruturas anatmicas e

    funcionais, verificando o estado clnico do paciente, seu comportamento e

    possibilidade de comunicao bsica (id, p.231), que determina seu estado de

    alerta e cooperao para a realizao das tcnicas.

    Alm disso, a autora orienta a realizao de avaliao funcional da

    deglutio, quando, por meio da oferta de alimento, so observadas as condies

    de alimentao por via oral, nas consistncias geralmente testadas (pastosa,

    lquida e slida). No entanto, tal avaliao somente realizada quando o paciente

    23

  • apresenta condies mnimas de lidar com a deglutio de saliva e apresenta

    condies mnimas de sensibilidade orofacial (intra e extra-oral).

    Neste momento, alm da observao do paciente, verificando se

    demonstra lentido no tempo de trnsito oral, tosses ou engasgos ao deglutir, o

    fonoaudilogo realiza ausculta cervical para verificar tambm a presena de

    rudos que sugiram a ocorrncia de escape precoce ou tardio do alimento, e que

    levem a suspeitar da ocorrncia de penetrao larngea e/ou aspirao traqueal

    do alimento. Vale mencionar que esta avaliao tambm feita com o paciente

    em repouso, na avaliao clnica de rgos fonoarticulatrios, antes da oferta do

    alimento, a fim de verificar se h qualquer dificuldade na manipulao da saliva na

    cavidade oral, observando-se os mesmos sinais citados anteriormente.

    Para complementar a avaliao clnica da deglutio, o terapeuta pode

    lanar mo de exames objetivos que auxiliem no diagnstico da disfagia. Por

    meio do videodeglutograma, possvel visualizar a dinmica do processo de

    deglutio e suas disfunes, nas fases oral e farngea, atravs de imagens

    registradas em fitas de vdeo (VHS). O mtodo deixa ver e correlacionar, com

    qualidade suficiente e baixo ndice de exposio radiao, a dinmica da

    deglutio, de modo a compreender o processo adequadamente, sem que sejam

    necessrias novas exposies radiao (COSTA, 2000).

    Este estudo permite visualizar no somente a aspirao laringotraqueal,

    mas tambm classific-la em aspirao que ocorre antes, durante e aps a

    deglutio, observando se h apenas penetrao do alimento na regio do

    vestbulo larngeo ou se h aspirao do mesmo para regio traqueal. Com o

    advento desse exame, possvel testar de forma direta as manobras teraputicas

    24

  • e sua eficcia para a deglutio do paciente (MACEDO FILHO, GOMES e

    FURKIM, op. cit.).

    Outro exame tambm utilizado o estudo endoscpico da deglutio,

    realizado por meio de um nasofaringolaringoscpio. Neste caso, o enfoque se d,

    sobretudo, na fase farngea e larngea da deglutio. O exame, desenvolvido no

    final dos anos oitenta, foi descrito, inicialmente, para identificar a penetrao

    larngea e a aspirao traqueal da saliva e do alimento ofertado, alm de

    determinar se a ingesto por via oral era segura em pacientes neurolgicos com

    disfagia. Posteriormente, verificou-se que mais informaes sobre a deglutio de

    pacientes com diversas patologias poderiam ser levantadas, alm da simples

    aspirao do alimento e/ou saliva. A grande vantagem desse exame era a sua

    realizao em pacientes acamados e impossibilitados de mobilizao ao setor de

    radiologia, em pacientes na unidade de terapia intensiva, ou mesmo em pacientes

    domiciliares (MACEDO FILHO, GOMES e FURKIM, op. cit, p.14), alm da

    avaliao da sensibilidade larngea, pela qual se poderia observar uma das

    causas para a aspirao, seja ela silente ou no.

    Desta forma, a partir da avaliao clnica e funcional da deglutio, o

    fonoaudilogo tem a possibilidade de verificar quais so as necessidades do

    paciente para, a partir da, estabelecer estratgias de interveno. Na reabilitao

    da disfagia, h dois tipos de intervenes teraputicas utilizadas de acordo com

    as condies clnicas do paciente: a terapia indireta e a direta.

    As terapias indiretas tm o objetivo de melhorar as condies orais do

    paciente por meio de exerccios ativos (feitos voluntariamente pelo paciente) para

    maximizar as fases preparatria oral e oral da deglutio, alm de atuar

    indiretamente na fase farngea, uma vez que as mudanas das fases voluntrias

    25

  • tambm interferem na dinmica da movimentao de faringe e laringe. Como

    interveno, so realizados exerccios miofuncionais para maximizar as funes

    do sistema estomatogntico, incluindo adequao da mobilidade, tonicidade e

    coordenao das estruturas orofaciais envolvidas (lngua, lbios, bochechas,

    palato mole, msculos mastigatrios, coaptao gltica, movimentao de faringe

    e de laringe). Alm disso, so feitas adaptaes com manobras posturais para

    organizao corporal do paciente.

    A terapia indireta tambm abrange as estimulaes passivas, realizadas

    com o intuito de aumentar a sensibilidade e a propriocepo orofacial. Muitas

    vezes, os estmulos passivos so utilizados quando o paciente est debilitado, a

    ponto de no ter condies de realizar os exerccios voluntariamente, sendo

    necessria a induo dos movimentos orais pelo fonoaudilogo. Importante

    esclarecer que na terapia indireta no h introduo de alimento por via oral, pois

    esto sendo criadas condies para faz-lo de forma segura, posteriormente.

    Quando o paciente apresenta condies de proteo das vias areas

    superiores, inicia-se a terapia direta, em que so utilizados alimentos como forma

    de estimulao, com os mesmos objetivos da terapia indireta citada, a fim de

    encontrar estratgias para favorecer a alimentao segura. H uma grande

    preocupao com o posicionamento adequado do paciente, sendo indicada a

    posio sentada, com o tronco a 90 em relao ao cho, para proteo das vias

    areas, evitando riscos de aspirao pulmonar. Tambm so realizadas

    manobras posturais e facilitadoras da deglutio com o objetivo de adaptar esta

    funo, garantindo melhor execuo dos movimentos e, conseqentemente, a

    proteo pulmonar.

    26

  • Na terapia de reabilitao da deglutio, FURKIM (op. cit.), inicialmente,

    sugere que seja enfatizado o trabalho com a sensibilidade orofacial, por meio da

    utilizao de diversos procedimentos: estmulos tteis, trmicos e cinestsicos,

    fazendo uso tambm de tcnicas de relaxamento e estimulao digital para

    normalizao da sensibilidade intra e extra-oral, estimulao do reflexo de

    deglutio e minimizao de reflexos patolgicos que possam estar exacerbados.

    Assim, criam-se condies de propriocepo adequadas para, simultaneamente,

    maximizar tonicidade, coordenao e mobilidade dos rgos fonoarticulatrios.

    A higienizao oral tambm preconizada e enfatizada pelo fonoaudilogo

    com o paciente e seu cuidador, pois, assim como menciona Venites, et al. (2001),

    esta tambm uma experincia sensorial e de estimulao da resistncia da

    musculatura de lngua.

    No caso do paciente idoso, a autora afirma que de fundamental

    importncia o cuidado destes aspectos. Trata-se de uma populao que, muitas

    vezes, apresenta deteriorizao da arcada dentria, utiliza prteses dentrias, ou

    ainda encontra-se edntula. Alm disso, esto mais propensos a serem

    acometidos por desordens neurolgicas, que levam a prejuzos de diversas

    naturezas, no s no mbito fonoaudiolgico.

    A populao idosa caracterizada, por Venites, et al. (op. cit., p.110), como

    sendo um dos segmentos populacionais que mais necessitam de cuidados

    sade, j que esta etapa da vida marcada pela presena de patologias

    associadas ou de multipatologias. Os aspectos que levam a maiores

    comprometimentos do paciente disfgico idoso dizem respeito s conseqncias

    em seu estado geral de sade, com alterao do estado nutricional e presena de

    pneumonia de aspirao, que colocam sua sade em risco.

    27

  • Os estudos de Bilton, et al. (1999) vo ao encontro dessa lgica de cuidado

    e estabelecem que a atuao do fonoaudilogo, na enfermaria gerontolgica,

    alm de reabilitar o paciente, tambm a de detectar possveis alteraes de

    deglutio, que possam levar a quadros de desnutrio e/ou aspirao pulmonar

    do alimento. A autora refora a importncia de orientar os pacientes (quando

    esto aptos a realizarem suas atividades de cuidados pessoais) e seus

    cuidadores/familiares sobre a higienizao oral. Venites, et al. (op.cit.) tambm

    cita que esta uma forma de prevenir possveis riscos de pneumonia aspirativa.

    Nesta direo, ao avaliar o paciente idoso acometido por doenas crnico-

    degenerativas, cujo acometimento neurolgico se faz presente, Magalhes e

    Bilton (2004) indicam que outras mudanas de condutas na rotina de vida diria,

    como a orientao aos cuidadores sobre o posicionamento adequado do paciente

    na alimentao (geralmente sentado ou com a maior elevao da cama possvel),

    a mudana de consistncias dos alimentos, ou at mesmo da via de alimentao

    (sugerindo utilizao de via alternativa), criam condies de aumento da

    qualidade de vida dos pacientes que no apresentam condies de alimentao

    por via oral (exclusivamente) e que necessitam de estimulao mioterpica.

    Considerar a importncia do trabalho miofuncional na reabilitao das

    disfagias reitera a necessidade de se lanar mo dos procedimentos citados

    acima para tocar o organismo que apresenta dificuldades. No entanto, o uso puro

    e simples das tcnicas de manejo corporal, muitas vezes produz um apagamento

    do paciente, operando a generalizao e a naturalizao das mesmas. Assim, o

    corpo, enquanto objeto de ao, considerado apenas em sua esfera biolgica e

    orgnica.

    28

  • Sem descartar a importncia da atuao fonoaudiolgica no organismo,

    possvel contar tambm com uma lgica de funcionamento que considere a

    articulao entre corpo, linguagem e psiquismo. Damsio (1996), ao questionar a

    lgica do pensamento cartesiano, reflete sobre as relaes da conscincia

    humana com o mundo, integrando as bases neurolgicas do corpo mente.

    porque o crebro interage com o resto do corpo que os acontecimentos neurais

    ocorrem no crebro, da ser necessrio levar em conta que a alma respira

    atravs do corpo, e o sofrimento, quer comece no corpo ou numa imagem mental,

    acontece na carne (op. cit., p.18).

    No entanto, para tal interveno no se trata apenas de executar

    movimentos de forma mecnica para obter os resultados desejados. Este tipo de

    interveno fonoaudiolgica, pautada na realizao de exerccios e de

    estimulaes realizadas no organismo com uma disfuno, coloca o clnico em

    uma posio muitas vezes invasiva, embora necessria, tendo em vista que no

    possvel reabilitar as disfunes da deglutio sem tocar o corpo.

    Ao considerar a reabilitao do disfgico, cabe levar em conta que este tipo

    de interveno cria marcas no corpo do sujeito, pois h uma mudana funcional

    decorrente das adaptaes advindas da reabilitao. Compreende-se que esta

    interveno cria marcas simblicas no corpo, por meio da relao estabelecida

    entre os sujeitos (terapeuta e paciente) ali presentes.

    Pensar no paciente como sujeito significa considerar, de forma

    indissocivel, a dimenso orgnica (que abarca um conjunto de rgos, tecidos e

    substncias corpreas em sua funcionalidade), e do corpo simblico (processo de

    subjetivao atravessado por afetos capacidade de afetar e de ser afetado pelo

    outro).

    29

  • Nesta relao intrincada, a dimenso orgnica atravessada pela

    dimenso simblica e, portanto, afetada pela linguagem, pela condio semitica

    do corpo, isto , o corpo, tal como visto, sentido e imaginado pelo sujeito est

    sempre marcado por signos, pela linguagem.

    A partir de uma viso monista de abordagem do corpo, que ser

    desenvolvida no prximo captulo, cabe ao terapeuta trabalhar as questes

    orgnicas em sintonia com a rede simblica que o sintoma articula. Dessa forma,

    um exerccio, por mais mecnico que parea, ser investido pelo paciente e pelo

    terapeuta. O terapeuta, a partir da leitura que faz do sintoma, pode privilegiar certos

    exerccios em detrimento de outros, ou ainda, em determinados momentos do

    processo teraputico, suspender o uso de exerccios que visem adequao de

    tnus, mobilidade. Assim, pode haver diferentes perspectivas de abordagem do

    corpo na clnica fonoaudiolgica, na medida em que as maneiras de trabalhar o

    corpo e as tcnicas/estratgias utilizadas sero repensadas luz da rede mnmica

    do sujeito. No cabe generalizar os exerccios por meio de referncias apenas

    dadas pela aparncia e localizao dos sintomas no corpo fsico ou natural.

    (PARISI, op. cit., p.37,38)

    Assim, aps tecer algumas consideraes sobre aspectos orgnicos da

    disfagia, preciso investigar formas de cuidado que valorizem o sujeito e no

    apenas ou exclusivamente sua patologia. Nesta perspectiva, parece ser

    importante considerar a histria de vida e os modos pelos quais o paciente lida

    com a doena e com os efeitos que a situao de doente impe sua vida.

    Ampliar o olhar da clnica fonoaudiolgica, no prximo captulo, permite trazer

    contribuies de outras reas para este processo.

    30

  • CAPTULO 2 O CORPO DOS AFETOS

    Se podes olhar, v. Se podes ver, repara.

    (Jos Saramago, Ensaio sobre a cegueira)

    Pensar as questes suscitadas a partir de um caso clnico requer

    consideraes prvias acerca do contexto clnico-teraputico, considerando

    relaes entre o corpo, que coloca em pauta as alteraes de deglutio e a

    linguagem. Ao considerar uma viso monista do corpo possvel ampliar os

    modos de refletir e perceber as marcas engendradas no corpo pelos

    atendimentos fonoaudiolgicos, pela via dos afetos.

    Na situao clnico-teraputica de pacientes com quadros disfgicos, h de

    fato comprometimentos orgnicos que necessitam de reabilitao, o que remete a

    uma interveno teraputica especfica. Mas pensar tambm nos efeitos que a

    interveno fonoaudiolgica dirigida ao organismo do sujeito e as implicaes

    advindas do acometimento disfgico, permite entender de que modo esta situao

    marca a histria de vida do paciente, considerando a doena como algo que faz

    parte de sua vida e no como algo estrangeiro a ele.

    Pode-se observar, no levantamento da literatura da rea, que a maneira

    pela qual a Fonoaudiologia encontrou sustentao para a prtica clnica, nos

    casos de disfagia, se deu por meio de estudos que analisam as alteraes

    orgnicas (FURKIM, op. cit.; FURKIM e SILVA, op. cit.; MACEDO FILHO, GOMES

    e FURKIM, op. cit.; FURKIM e MATTANA, op. cit.; SILVA, op. cit.; FORTE e

    FORTE, op. cit.). A incidncia da ao clnica, no que diz respeito avaliao

    clnica da deglutio, busca investigar os aspectos orgnicos que indicam

  • alterao das funes orais, assim como a reabilitao fonoaudiolgica se prope

    aplicao de uma teraputica voltada s inadequaes da funo de deglutio.

    Tal abordagem advm da aproximao histrica entre a Fonoaudiologia e a

    Medicina, nomeadamente ao mtodo antomo-fisiolgico (SOUZA, 2004), que

    isola o organismo como objeto, com intuito de agir sobre ele no sentido de

    controlar seu funcionamento e suas regularidades. A Fonoaudiologia, por sua vez,

    com freqncia, incorpora a viso mdica e prioriza a atuao no organismo,

    considerando, primordialmente, suas faces visveis: fsica, biolgica.

    As estratgias teraputicas so voltadas correo dos desvios e

    disfunes orgnicas que acometem o paciente. Souza (1999) menciona que o

    corpo na Medicina tradicionalmente tratado em si mesmo, como uma entidade

    que apenas responde s presses do meio externo, sem que essa relao

    interfira diretamente em sua constituio. Desta forma, seria possvel isol-lo e

    secundarizar as dimenses produzidas por esses circuitos (meio externo e meio

    interno). Pois bem, como a Fonoaudiologia se constituiu, em boa medida, apoiada

    em pressupostos advindos da Medicina, tal isolamento parece ser freqente

    tambm em nossa rea.

    Souza (1999) trata a relao entre corpo, linguagem e subjetividade

    interpelando a prtica fonoaudiolgica pautada na tradio mdica, cujo mtodo

    (antomo-clnico) caracteriza sua lgica e opera pela ciso entre corpo e mente,

    seguindo os desdobramentos do dualismo cartesiano. O objetivo teraputico

    passaria a ser, no nosso caso e nessa perspectiva, o de criar estratgias

    teraputicas para corrigir os desvios e disfunes, com o intuito de eliminar o

    distrbio de alimentao. A efetividade da interveno estaria diretamente ligada

    32

  • garantia de resultados favorveis a partir da reabilitao realizada no

    organismo.

    Os procedimentos diagnsticos da Fonoaudiologia, criados para classificar

    segundo distrbios descritos, reconhecem e constatam a alterao apresentada,

    adotando tcnicas e procedimentos de combate sintomatologia, de modo a

    atuar nos comprometimentos tidos por inadequados, visando minimizar os efeitos

    indesejados para potencializar a reabilitao (id., 1999).

    Se, na Fonoaudiologia, o trabalho destinado terapia da disfagia implica

    em abordar o corpo para promover mudanas que possibilitem readequao de

    funes orais, o corpo pode ser pensado e abordado pelo clnico de diversas

    maneiras. Em uma abordagem estritamente orgnica, voltada apenas s

    questes funcionais alteradas, seriam evocadas aes para minimizar e suprimir

    os sintomas apresentados. Mas seria possvel considerar, na reabilitao

    orgnica, as implicaes subjetivas que um distrbio alimentar pode causar?

    Um caminho pode ser pensado a partir das relaes entre o orgnico e o

    psquico, no qual possvel encontrar espao de escuta e de disponibilidade ao

    sofrimento dos pacientes que demandam atendimento ao fonoaudilogo. Para

    Souza (2004), nas relaes entre corpos humanos a existncia das palavras

    passa pela via dos

    afetos engendrados nos enunciados, nas palavras; afetos capazes de marcar a

    pele, o metabolismo, os gestos... esculpindo o corpo a partir de modulaes

    imagticas e sinestsicas, aptas a produzir uma imagem inconsciente do corpo (op.

    cit, p.895).

    33

  • Ao encontro dessa idia, o autor, inspirado em Franoise Dolto, afirma que

    no encontro entre corpos que a carne faz-se verbo e, de maneira recproca, o

    verbo incide sobre o corpo e nele se encarna, esculpindo-o e fazendo dele

    tambm linguagem (id., p.893). No humano, o corpo linguagem quando faz3

    coisas que produzem diferenas de sentido, mantendo e alimentando o desejo de

    diferir (id., p.893).

    Dolto (2002) prope entender que tudo linguagem, uma vez que a

    linguagem, em palavras, o que h de mais germinativo, mais fundante, no

    corao e na simblica do ser humano que acaba de nascer (id., p.20). O sujeito

    s se desenvolve num corpo se estiver relacionado com uma voz de homem ou

    de mulher. O ser humano marcado pelos contatos verdadeiros que manteve

    com o consciente e o inconsciente das pessoas que viviam sua volta, a me em

    primeiro lugar, o pai, e as primeiras pessoas que faziam o papel de outro da sua

    me (id., p.30). A linguagem tanto uma dinmica que sustenta e estimula s

    pulses de vida, quanto uma dinmica que deprime de acordo com o que o ser

    entende e compreende de sua vida.

    Ao entender que tudo linguagem no ser humano, Dolto (2004, p.308)

    anuncia que o prprio corpo, pela sade ou pela doena linguagem. A sade

    a linguagem do saudvel; a doena uma linguagem de quem est passando por

    uma prova e, por vezes, angustiado.

    Na rea fonoaudiolgica, h estudos, nessa direo, que apontam uma

    indissociabilidade entre a instncia orgnica e a simblica (PARISI, op. cit.).

    Significa dizer que, embora a reabilitao sensrio-motora seja potente para

    3 Grifo da autora.

    34

  • resgatar as funes de alimentao por via oral, nem sempre ela suficiente, no

    sentido estrito de sua aplicao.

    Por esse ponto de vista, compreender a instncia corporal dos afetos

    importante para no dicotomizar corpo e psiquismo. Pensar a perspectiva de

    atuao fonoaudiolgica com o paciente disfgico, por essa via, no se restringe

    a assumir um processo fonoaudiolgico baseado fundamentalmente na

    reabilitao miofuncional. Embora no se negue a importncia do uso das

    tcnicas teraputicas para a reabilitao oral, entende-se que a relao com o

    outro, por meio da interveno teraputica, pode ser uma possibilidade de tocar o

    corpo e produzir efeitos na relao linguagem e psiquismo (CUNHA, 2004,

    p.901).

    O trabalho miofuncional, voltado ao manejo de rgos e sistemas

    miofuncionais, anatmicos e neurofisiolgicos para possibilitar alimentao

    funcional ao paciente, convoca um caminho que articule tal reabilitao com um

    trabalho sobre a subjetividade do paciente; o que tambm lhe traz mudanas na

    postura e nos padres musculares. Trata-se de pensar os gestos teraputicos

    pautados pela interpretabilidade (op. cit, p.902), para que possam gerar efeitos

    simblicos em virtude de sua potncia, ajudando o paciente a criar novas

    possibilidades de descobrir as funes de seu corpo de forma a se apropriar das

    mudanas obtidas no processo de reabilitao da disfagia.

    Articulando as questes orgnicas com as psquicas, Palladino, Souza e

    Cunha (op. cit.), refletem sobre a freqncia com que transtornos de linguagem e

    de alimentao co-ocorrem na clnica da infncia.

    Os autores referem que a natureza dos transtornos orais demanda

    utilizao de tcnica apurada e muita sutileza na abordagem, por meio de uma

    35

  • leitura verticalizada, que evite o reducionismo da condio orgnica e fisiolgica.

    neste sentido que

    as abordagens que privilegiam os aspectos mecnicos dos transtornos orais no se

    do conta de que, muitas vezes, o tratamento desorganizado por fatores e

    acontecimentos que escapam reabilitao motora, inclusive, tornando-a ineficaz.

    No incomum um paciente voltar a padres atpicos de deglutio, quando j

    comeava a se distanciar deles no transcurso do trabalho de reabilitao oral; ou

    apresentar, alternadamente, padres alterados e adequados. (id., p.105)

    Segundo os autores, tambm no incomum que o sujeito disfgico volte

    a s-lo aps a alta; ou no se livre da sonda, que lhe garante a alimentao,

    apesar da adequao mecnica do seu trato orofarngeo.

    Nesta direo, uma certa abordagem monista de corpo permite entender

    como possvel o retorno de um sintoma aps a remisso das causas orgnicas

    que justificavam sua presena. Tal perspectiva aquela que admite um caminho

    que afasta a idia de corpo como exclusivamente orgnico.

    Do ponto de vista teraputico, encontro sustentao no estudo de Parisi

    (op. cit.), que pensa no imprevisvel do encontro entre terapeuta e paciente. H

    neste encontro uma imprevisibilidade que, segundo ela, apesar de incluir, no se

    restringe ao funcionamento antomo-fisiolgico. Ao terapeuta cabe caminhar com

    o sujeito, acolhendo suas angstias e compreendendo porqu e como por meio

    do corpo, em sua esfera orgnica, que os sintomas se manifestam e se

    expressam.

    Neste mbito, o corpo pode ser entendido como instncia que no obedece

    diretamente materialidade antomo-fisiolgica. luz do estudo de Parisi (op.

    cit.), entende-se que tambm no atendimento do paciente disfgico, o corpo pode

    36

  • ser tomado como processualidade e como singularidade. Falar em singularidade

    considerar as particularidades do sujeito, considerar que cada sujeito nico,

    suas caractersticas e sua histria (seus processos vivenciais) no se repetem,

    assim, no possvel generaliz-lo pelas semelhanas fsicas com outros corpos.

    O processo da terapia permite oferecer possibilidades de elaborao e de

    reconstruo da histria do sujeito, por meio do vnculo estabelecido com o

    terapeuta. Vnculo entendido, nesta pesquisa, como uma relao de confiana,

    que potencializa a atualizao, na cena clnica, por parte do paciente, das

    particularidades e questes relacionados ao seu sofrimento, dispondo-as

    interpretao do terapeuta, oferecendo novos sentidos elaborao pelo

    paciente.

    Assim, no processo clnico-teraputico, abre-se espao para que o sujeito

    se movimente. O encontro teraputico pode se tornar espao de

    (des/re)construo contnua; criado com a finalidade de permitir ao paciente estar

    aberto ao novo e ao terapeuta dividir o atravessamento das dificuldades do

    processo com o paciente.

    A presena do terapeuta precisa ser manejada e trabalhada,

    constantemente, para que seja possvel a autonomia do paciente. Uma vez que

    as indicaes nos tratamentos de disfagia referem-se, inicialmente, ao

    acompanhamento da alimentao por meio da reabilitao, cabe ao terapeuta

    encaminhar o processo teraputico, a partir do vnculo estabelecido, de modo a

    oferecer condies para o paciente e seus familiares se apropriarem das

    questes relativas alimentao de modo seguro, sendo possvel desenvolver

    uma relao de gerenciamento e acompanhamento.

    37

  • O terapeuta, em cada encontro, entra em contato com o paciente e pode

    intervir no processo corporal, simultaneamente, em suas dimenses bio-

    psquicas. Nas palavras de Nasio (2003, p.15), o terapeuta o clnico que

    acredita que para livrar o paciente de seu sofrimento preciso compreender o

    sofrimento e, para compreend-lo, preciso experiment-lo; quer dizer, [...] sentir

    em si o que o outro esqueceu. Nessa perspectiva, o terapeuta aquele que

    atravessa o sofrimento com o paciente, e no pelo paciente.

    No que diz respeito escuta clnica, o estudo de Fernandes (2003) sobre o

    corpo e as intervenes psicanalticas, traz a idia de enquadres de escuta, para

    distinguir a especificidade de uma abordagem propriamente psicanaltica das

    relaes entre o psquico e o somtico, que tem como palco o corpo. Tal

    proposio teve o intuito de chamar ateno para a idia de que a escuta,

    tomada em seu sentido analtico, supe que exista sempre uma palavra a ser

    ouvida, mais precisamente a ser acolhida (op. cit., p.28).

    Seu trabalho institucional mostrou que preciso ir alm do que pode ser

    ouvido, ou seja, no se pode escutar sem ver. A autora ressalta que o

    escutar-ver primordial, principalmente quando se depara com situaes nas

    quais as palavras pouco ou nada conseguem dizer (op. cit., p.28). O termo

    escutar-ver amplia o material clnico do terapeuta, implica em ampliar as

    possibilidades de cuidado, entrando em contato com o adoecimento do corpo e

    revelando as relaes entre o psquico e o somtico. As relaes de vnculo

    estabelecidas no processo teraputico abrem espao para a escuta do clnico ao

    sofrimento do paciente, permitindo sua elaborao do processo vivido,

    independentemente do espao em que a interveno teraputica ocorra.

    38

  • Nesta pesquisa de mestrado, em especfico, o atendimento clnico-

    teraputico se deu no domiclio da paciente. Entretanto, no importa apenas o

    local fsico em que o atendimento ocorra, mas se a atuao teraputica possibilita

    apreender, atravs da escuta e do olhar diferenciados do terapeuta, a histria do

    paciente, bem como a singularidade estabelecida pela/na relao teraputica.

    Magalhes Jnior (2002) trata do atendimento domiciliar de uma paciente

    afsica e situa a clnica da linguagem como abertura de espao fala do outro, na

    qual o terapeuta deslocado da posio de modelo de fala para um lugar de

    escuta do dito e do no dito, numa relao intersubjetiva, em que o imprevisto

    entra em cena e no h nada predeterminado. Pensando no atendimento do

    paciente disfgico, pode-se inferir que, embora se utilizem tcnicas de reabilitao

    por meio de intervenes relativamente invasivas, no h como prescindir da

    linguagem em sua atuao.

    Considerar o setting fundamental em qualquer atendimento clnico,

    inclusive no caso de um atendimento domiciliar; ele inclui um espao fsico que

    abarca o funcionamento familiar. O setting constitui-se como uma marcao, um

    enquadramento num campo, em que viabilizada e mantida a possibilidade do

    paciente representar como quiser, e puder, a vida real na situao teraputica.

    Sendo assim, pode ser constitudo em qualquer lugar que permita a construo

    de tal espao relacional.

    A determinao do setting no se refere a um espao fsico estrito, Cunha

    (2002) menciona que o setting apresenta-se delimitado por certos parmetros

    temporais e espaciais, que adquirem carter simblico, indispensvel aos

    processos teraputicos para a mobilizao dos contedos inter e intrapsquicos,

    tanto do paciente quanto do terapeuta. neste espao que o terapeuta e o

    39

  • paciente podem vivenciar situaes em que os contedos psquicos so

    compreendidos como parte integrante da histria de vida do sujeito, mesmo que

    no se esteja intervindo direta ou exclusivamente sobre eles.

    Magalhes Jnior (op. cit.) afirma que em todo o lugar pode ser constitudo

    um setting, j que este depende, principalmente, do ambiente humano e no do

    fsico. O ambiente fsico conhecido e particular do paciente no caso, sua

    residncia quando permite a estruturao do setting, deixa apreender aspectos

    relevantes do paciente em suas particularidades e na relao com os outros com

    quem (con)vive e destes com ele. A interveno fonoaudiolgica pode ser

    favorvel no ambiente onde o paciente vive suas rotinas com os outros de sua

    famlia, a partir da interveno nas rotinas da famlia com o paciente,

    estabelecendo novas relaes ao longo de um processo teraputico, criando

    condies de trabalho fonoaudiolgico com o paciente.

    Mas, independente do ambiente em que se d a terapia fonoaudiolgica, o

    processo teraputico ocorre apenas em virtude da presena de uma demanda de

    um sujeito em sofrimento. Neste sentido, intervir de forma teraputica permite a

    constituio de uma relao entre os sujeitos (terapeuta e paciente) que possa

    ser ressignificada para alm da realizao de estimulaes diretas no organismo,

    por meio de exerccios miofuncionais, para a correo de problemas orgnico-

    funcionais.

    tambm na relao entre sujeitos que se opera a relao entre-corpos.

    O encontro se d no s pelo que o outro fala, mas por tudo que o toca. Muitas

    vezes, por meio de uma expresso, de um cheiro, de um olhar, do jeito de

    vestir-se, de uma palavra ou enunciado proferido de um certo modo, que se

    40

  • estabelece uma ligao ou um afastamento entre sujeitos. nesse espao virtual

    de encontro com o outro que se expressa a singularidade do sujeito.

    O contato entre sujeitos um contato afetivo, de como os corpos so

    afetados e afetam outros corpos. Isso porque so os afetos que do o contorno

    para as sensaes e para funcionamentos fsicos e psquicos. So os afetos que

    impregnam ou esculpem o organismo, abrindo-lhe dimenso simblica,

    responsvel pela condio humana, para alm da animal. O corpo desempenha

    papel fundamental na organizao do inconsciente, sendo que atravs do

    inconsciente que o corpo age sobre a conscincia (NEISSER, op. cit.).

    O organismo lugar tanto de manifestao de sintomas decorrentes de

    alteraes orgnico-funcionais, quanto da linguagem, enquanto processo de

    simbolizao. Num corpo que sofre a manifestao de dores, no se pode

    prescindir da linguagem para sua simbolizao. O sujeito, ao sentir uma dor, a

    simboliza por meio de signos, o que permite a representao simblica.

    Fernandes (op. cit.) menciona que sentir dor uma condio da representao do

    prprio corpo e que, na dor corporal, existe um investimento psquico elevado na

    representao do local do corpo dolorido. em funo disto que, muitas vezes, o

    paciente disfgico pode enunciar que sente dor ou incmodo em determinado

    local especfico do trato digestivo ou respiratrio ao deglutir.

    Neste sentido, a linguagem apresenta-se como dinmica vital, que inclusive

    d acesso dor e aos contedos psquicos. Assim, se o fonoaudilogo o

    profissional que atua nesta esfera, no basta reabilitar o transtorno orgnico, cabe

    atentar s questes psquicas que gerenciam a ao motora.

    Palladino, Souza e Cunha (op. cit., p. 96) situam o estatuto simblico na

    alimentao, apontando uma relao entre o corpo, a mente e a linguagem, por

    41

  • meio da sobredeterminao que a ordem simblica lhes impe, ou seja, a ordem

    simblica cria uma sintaxe do corpo, organiza seu funcionamento fisiolgico.

    Desta forma, pode-se ampliar a mxima de que um transtorno causado por uma

    leso de rgo: o transtorno pode lesionar um rgo ou funo, mas tambm a

    palavra tem essa capacidade, podendo reeditar o prprio transtorno ou mesmo a

    leso (op. cit., p.99).

    Os autores indicam um outro modo de olhar os transtornos alimentares,

    pois observaram que a alimentao um lugar privilegiado de formao e

    encenao de sintomas psquicos, como aqueles que, com freqncia, esto

    implicados nos quadros de linguagem (op. cit., p.105). Deste modo, a

    alimentao indica um transtorno sobredeterminante: o simblico (op. cit.,

    p.105).

    Tendo em vista que a disfagia configura-se por uma disfuno no processo

    de alimentao, cabe considerar a existncia de imagens psquicas na

    representao do que este processo significa ao sujeito. possvel enfrentar o

    sintoma pela via do atendimento clnico, isto ocorre em funo do

    estabelecimento de uma relao vincular entre o terapeuta e o paciente.

    Ao remeter a uma relao de vnculo entre esta dade, importante

    explicitar a relao transferencial nela estabelecida. Na esfera da transferncia, o

    terapeuta acolhe a emergncia do sintoma e pode ajudar o paciente a enfrentar e

    suportar os elementos que ganham algum nvel de elaborao pela via da fala. O

    analista lida com o material primitivo, interpretvel verbalmente, de modo a

    permitir que, neste processo, o paciente possa reviver sentimentos muito

    primitivos, que so irresgatveis para a conscincia. O trabalho com a

    42

  • transferncia permite ao analista um conhecimento sobre o paciente que lhe d

    meios de conduzir-se com segurana no processo analtico.

    Por esse ponto de vista, a interveno realizada pelo fonoaudilogo no

    processo transferencial, apenas lida com os contedos psquicos que o sujeito

    traz cena clnica pela fala. Ou seja, o fonoaudilogo no interpreta a

    transferncia, mas apenas na transferncia, buscando que o paciente elabore o

    seu sintoma (CUNHA, 1997, p.147). Ao fonoaudilogo no cabe interpretar a

    transferncia e trabalhar as questes da advindas, mas manejar e reconhecer

    questes transferenciais nessa relao, considerando a subjetividade do paciente.

    Essa diferena se faz necessria porque, na clnica psicanaltica, a

    sustentao constante da demanda do paciente que dirige o trabalho, no sentido

    do que leva pesquisa do material inconsciente, redescobrindo-o em velhas

    histrias e em contedos infantis que revelam a novidade da repetio do sintoma

    (FERNANDES, op.cit.). Na terapia psicanaltica, a transferncia a via

    teraputica que permite a criao de novas histrias, de modo a no suprimir os

    sintomas, mas a transform-los, distanciando-os do sofrimento que demandou o

    atendimento.

    Desta forma, para a autora, interpretar no tem o estatuto de desvelar o

    sentido oculto do sintoma, mas de construir sentidos por meio das palavras. A

    interpretao deve ser essa palavra em suspenso que o paciente pode continuar

    a enunciar em busca de outras (op. cit, p.99), num processo e numa abertura

    para o novo.

    Considerando os contedos transferenciais que podem vir tona na cena

    clnica, os conhecimentos tericos do fonoaudilogo permitem auxiliar o paciente

    a interpretar seu sintoma de forma a encontrar seus sentidos, inclusive no

    43

  • tratamento dirigido ao organismo, portanto, tambm na interveno sobre a

    disfagia. Significa dizer que o atendimento clnico fonoaudiolgico promovido a

    partir da escuta que o terapeuta dirige ao paciente.

    Fernandes (op. cit.) ao discorrer sobre a delicadeza da escuta, explora (o

    que remete tambm a auscultao mdica) a significao do verbo escutar,

    originada do latim auscultare que

    significa, literalmente, a escuta dos barulhos internos do sujeito- mtodo que

    significa aplicar o ouvido com ateno, perceber ou ouvir; ouvir com ateno. Pode-

    se dizer, ento, que escutar precisamente dar ouvidos a... dar ouvidos quilo que

    se enuncia apenas veladamente, quilo que somente um ouvido atendo e

    experimentado na arte da escuta pode acolher. (id., p.94 - grifo da autora)

    A autora, em sua formulao acerca da delicadeza da escuta, prope que

    a este instrumento analtico recai uma leitura das palavras, de modo a considerar

    a sutileza dos detalhes, dos gestos, das imagens internas do paciente. Para a

    autora, a palavra do analista funciona de modo a incentivar o paciente a

    desenvolver seu poder imaginativo de tal forma que o acontecimento que toca o

    corpo no fique privado de possibilidades metafricas (id., p.99).

    Esta proposta psicanaltica abre espao para pensar que as formas de

    apresentao do corpo so modos de representao da condio psquica. Ou

    seja, possvel acolher a doena somtica levando em conta que a leso, que

    afeta um rgo, uma realidade singular para o paciente. Assim, ao tratar de

    pacientes que apresentam distrbios orgnicos, muitas vezes, preciso nomear a

    doena, dando-lhe, de alguma forma, um contorno e um limite, para que o

    44

  • paciente possa inscrever a doena em uma histria, produzindo sentido por meio

    de uma cadeia associativa discursiva.

    Dolto (2002) afirma que trabalhar a funo teraputica uma forma de

    considerar que, pela via da linguagem, o sujeito (do desejo) estabelece relao

    com o outro e pelo outro acolhido.

    Na Fonoaudiologia, Cunha (1997), luz de estudos psicanalticos, introduz

    o conceito de escuta no campo fonoaudiolgico, com a utilizao da expresso:

    as duas orelhas do fonoaudilogo. A autora prope que uma das orelhas esteja

    a servio de ouvir o que soa audio em sua materialidade concreta, no que

    est perturbado devido s falhas e faltas. Mas, sem que isto ensurdea o

    terapeuta ao contedo relatado em sua fala, outra orelha cabe escutar os

    buracos e silncios que se instauram na estrutura formal da linguagem (id.,

    p.115), considerando o carter simblico do sintoma, em seus contedos

    subjetivos.

    Assim, a autora prope a interpretao fonoaudiolgica como uma

    modalidade que possibilite transformaes na linguagem ou nos aspectos

    orgnicos alterados/perturbados, a partir da articulao entre representaes

    simblicas corporais e contedos psquicos inconscientes. Chama ateno

    inclusive para a importncia em se considerar/compreender a natureza e a

    expresso orgnica dos sintomas, em articulao com suas faces simblicas.

    A partir da noo freudiana de simbolismo, numa relao constante entre

    os contedos manifestos e suas tradues do inconsciente, Cunha (1997)

    trabalha numa perspectiva que admite a noo de corpo ergeno, enquanto corpo

    atravessado pelas pulses. As questes advindas do seu material clnico

    permitiram criar intervenes teraputicas, por meio da escuta e dos contedos

    45

  • transferenciais que emergiram no processo teraputico, ou seja, a reabilitao do

    corpo fsico tambm se d por meio da escuta clnica.

    Primeiramente, trata-se de considerar a fala (enquanto investimento na

    atividade dialgica) como modo de traduo dos sintomas numa esfera psquica,

    de forma que possam ser enunciados em uma linguagem que no apenas a

    corporal. Alm disso, h que se levar em conta que a interveno corporal,

    atravs dos recursos tcnicos tradicionalmente disponveis no mtodo

    fonoaudiolgico so essenciais ao processo de reabilitao, desde que no se

    abra mo dos valores simblicos que podem ser atribudos a eles pelos

    pacientes. Pois, dependendo do enquadre teraputico constitudo, os exerccios

    fonoaudiolgicos apresentam-se como uma via peculiar de acesso ao

    inconsciente pelo corpo e no apenas pela linguagem verbal-oral. Assim, as

    transformaes ocorridas no aparato biolgico tm relao com as questes

    simblicas constitutivas do sujeito.

    Cabe, ento, considerar o corpo nesta perspectiva. Os estudos de Dolto

    (2004) sobre a imagem inconsciente do corpo e o esquema corporal podem

    ajudar. A autora afirma que o esquema corporal uma realidade relativa forma

    carnal de viver, ou seja, diz respeito ao contato do mundo fsico com a realidade

    orgnica. o esquema corporal que especifica o indivduo enquanto

    representante da espcie e que ser intrprete ativo ou passivo da imagem do

    corpo (id., p.14). A imagem inconsciente do corpo peculiar a cada indivduo da

    espcie humana, nica, uma vez que est ligada ao sujeito e sua histria,

    relacionada, portanto, relao libidinal. A imagem do corpo

    a sntese viva das experincias emocionais: inter-humanas, repetidamente vividas

    atravs das sensaes ergenas eletivas e arcaicas ou atuais. [...] pode ser

    46

  • considerada como encarnao simblica inconsciente do sujeito desejante e, isto,

    antes mesmo que o indivduo em questo seja capaz de designar-se a si mesmo

    pelo pronome pessoal Eu e saiba dizer Eu. [...] A imagem do corpo a cada

    momento, memria inconsciente de todo o vivido relacional [...] atual, viva, em

    situao dinmica. (id., p.14,15)

    Para a autora, qualquer manifestao humana, ligada a expresso de uma

    demanda no corpo linguagem. A linguagem vocalizada forma o cdigo da

    expresso audvel; a linguagem dos gestos e da mmica forma o cdigo dos

    desejos sutilmente exprimidos que se do a perceber. Esses cdigos,

    compartilhados pela me e pela criana, estruturam imagens que so

    memorizadas. As imagens auditivas, olfativas, tcteis e visuais de percepes

    diversas permitem que a carne seja expressa e torne-se simblica de seu desejo.

    A imagem do corpo permanece inconsciente, mas se articula com o esquema

    corporal4, que se desenvolve dia a dia e instrumenta a imagem do corpo (DOLTO,

    2004).

    A autora continua, afirmando que a linguagem a comunicao codificada

    por afetos, que invoca, desperta o sujeito no outro, atravs das representaes

    das emoes, dos sentidos, entre eles, os visuais e os tteis, conduzindo ao

    prazer da intercomunicao com o outro. As zonas ergenas, onde se percebem

    as referencias olfativas, gustativas, auditivas, visuais e tteis iro reger a

    comunicao lingstica, descobertas e mantidas repetidamente pela criana, no

    prazer do corpo, pela satisfao das necessidades que o adulto lhe proporciona.

    A boca, as narinas, os ouvidos e a cavidade dos olhos, contidos no arcabouo

    sseo enceflico, constituem a zona ergena cutneo-mucosa oral que,

    4 Grifo da autora.

    47

  • juntamente da zona cutneo-mucosa anal e da uro-excrementcia, contgua

    zona genital, constitui a zona anal. Boca e nus so lugares de tomada de contato

    e ruptura de contato, nos limites do prprio corpo, em relao ao contato e

    ruptura com a me, que leva sensaes ergenas dessas reas (DOLTO,

    1996).

    H uma sobredeterminao das estruturas orgnicas citadas que, alm de

    estarem a servio da alimentao, disgesto e excreo de resduos, so

    atravessadas por afetos que as simbolizam, que encenam prazer e desejo.

    A zona oral sempre exibir uma espcie de truncamento entre a palavra, a

    deglutio a respirao, enfim, nas funes que esto em cena desde os

    primrdios da constituio simblica, do nascimento do sujeito. Ela ocupa um

    espao de encenao simblica e por isso sua desorganizao apresenta-se

    como sintoma (PALLADINO, SOUZA e CUNHA, op. cit.).

    Pensar as relaes entre o corpo e a linguagem deixa refletir sobre as

    implicaes da boca e da oralidade no sujeito. Golse e Guinot (2004) tratam das

    questes relativas s dimenses psquicas da boca e da oralidade de crianas5.

    Os autores situam outras funes para a boca, para alm da dimenso corporal e

    anatmica. Embora o foco do estudo recaia sobre o tratamento de crianas,

    muitas questes podem ser refletidas para sujeitos adultos, principalmente as

    relativas s zonas ergenas.

    Os autores relatam que a boca, enquanto zona ergena, tem papel de

    estabelecimento de um limite entre o dentro e o fora, assim estabelece uma linha

    de demarcao entre o registro da necessidade e do desejo no sujeito, desde seu

    nascimento, quando amamentado pela me.

    5 Traduo livre do francs, realizada por Fernanda Prada Machado.

    48

  • A boca e a oralidade, na viso dos autores, encenam assim um terreno

    emblemtico e estruturante de uma srie de conflitos e apostas variadas, que vo

    se tornar fundantes do sujeito. Assim como na criana, para o adulto, a boca um

    campo de relao com o outro. No incio de seu desenvolvimento, tem a funo

    primeira de alimentao; a boca encena um conjunto de elementos que passam a

    funcionar tambm em outra ordem, revelando ligaes menos com o registro da

    necessidade e mais com o do desejo.

    Abordar as questes do corpo e do psiquismo, na direo das idias

    propostas, traz subsdios que permitem pensar um modo de atuao

    fonoaudiolgica nas disfagias para alm da reabilitao orgnica, ou seja, que

    no desconsidere a subjetividade do paciente e as implicaes do acometimento

    orgnico em sua vida.

    49

  • CAPTULO 3 PERCURSO METODOLGICO:

    APRESENTAO DO CASO CLNICO

    Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo.

    (Fernando Pessoa)

    Esta pesquisa adota o mtodo clnico-qualitativo que, por definio,

    constitui um recurso que busca dar interpretaes a sentidos e significaes

    sobre os mltiplos fenmenos pertinentes ao campo do binmio sade-doena,

    permitindo ao pesquisador acolher angstias e ansiedades do ser humano,

    valorizando os aspectos psicodinmicos mobilizados na relao com os sujeitos

    em estudo (TURATO, 2003).

    Dentre as muitas possibilidades de aprofundamento do estudo sobre o

    fazer clnico, optou-se por investigar um caso clnico, de modo a considerar a

    complexidade e a imprevisibilidade que acompanha este fenmeno singular.

    Nesta direo, a pesquisa qualitativa no busca encontrar ou definir leis

    constantes, que garantam uma generalizao, mas pretende investigar o

    fenmeno para alm da sua aparncia, buscando, a partir da clnica, (re)pensar

    as proposies tericas.

    Para Nasio (2001), o estudo de caso tem trs funes ao descrever um

    fenmeno, quais sejam: didtica, metafrica e heurstica. A funo didtica

    desempenha um carter cnico, que confere a deduo de conceitos tericos a

    partir da reflexo sobre um caso clnico e apresenta incontestvel sugesto de

    ensino. A funo metafrica trata de ilustrar uma teoria por meio do caso clnico,

    ou seja, a observao clnica apresenta-se de forma to imbricada ao conceito

  • que se torna uma metfora dele. J a funo heurstica prope que o caso

    ultrapasse seu papel de ilustrao ou de metfora emblemtica, tornando-se, em

    si mesmo, um gerador de conceitos.

    Nesta pesquisa, o estudo de caso remete s funes didtica e heurstica,

    uma vez que por meio de sua anlise possvel ilustrar uma situao clnica, a

    partir da qual se desenvolvem conceitos e teorizaes. No h meno funo

    metafrica, devido ao fato de que, na Fonoaudiologia, no h relatos de casos

    clnicos consagrados que representem por si s a substituio de um referencial

    terico, como na Psicanlise, quando a teoria se coloca em cena ao se remeter

    ao caso clnico. Ou seja, nesse campo, quando menciona-se um caso clnico,

    como o caso Anna O. ou o caso Dora6, o conceito terico se apresenta

    imediatamente ao interlocutor, que pode entender sobre o que est sendo referido

    num determinado contexto cientfico.

    Diante desses pressupostos, nesta pesquisa, o estudo de caso, como

    recurso metodolgico, passa a ser uma escolha que permite desvendar, a partir

    do interesse em compreender um processo, as caractersticas particulares num

    contexto especfico de investigao de condies que ainda no apresentam

    prvia teorizao.

    Por meio do estudo de caso, tambm possvel contribuir para uma

    reflexo e particularizao do processo teraputico, haja vista que este se

    apresenta como uma situao cotidiana de vida, podendo iluminar reflexes

    significativas para outros profissionais da rea, em seus processos teraputicos,

    6 O caso de Anna O., remete ao conceito de transferncia desenvolvido por Freud, j o caso Dora, refere-se ao modo pelo qual o autor desenvolveu a conceituao sobre sintoma, enquanto sistema de representaes, que se manifesta no corpo como uma representao inadequada, apresentando uma nova nosologia: a histeria.

    51

  • advindas da prtica clnica e da investigao terica do pesquisador (TAHAN,

    2003).

    O estudo do caso no pretendeu esgotar a anlise sobre a vida, a

    alimentao e a linguagem da paciente, mas apresentar, por meio de fragmentos

    do processo teraputico, aspectos que marcaram e determinaram a conduta

    teraputica, configurando, portanto, atualizaes daquela experincia clnica.

    O caso clnico relatado nesta pesquisa de uma paciente de 82 anos

    (nomeada, aqui, como Dona Laura), que foi acometida, em junho de 2004, por um

    Acidente Vascular Enceflico Isqumico. A paciente apresentava quadro de

    disfagia e de parestesia e paresia facial esquerda, alm de alterao na

    expresso da linguagem e disartrofonia; estas ltimas, diagnosticadas na

    avaliao fonoaudiolgica realizada enquanto ela ainda se encontrava

    hospitalizada. Durante a escrita da dissertao, encontrava-se em atendimento

    fonoaudiolgico e teve capacidade cognitiva de decidir sobre sua participao na

    pesquisa, isto , ela no era mentalmente vulnervel e, portanto, no perdeu sua

    autonomia cognitiva.

    O material clnico constitui-se de dados colhidos na prtica clnica, de

    modo a permitir a investigao e a reflexo. Os dados no so dispostos de forma

    direta, so colhidos pelo pesquisador (LWY, 1985) que, ao selecionar e recortar

    aspectos do dado bruto, proveniente do material clnico, circunscreve um

    determinado objeto de investigao. A escolha do pesquisador, portanto, no

    aleatria, envolve suas convices, valores e repertrio terico. No se trata de

    um pesquisador neutro, mas que est em constante relao com o material

    pesquisado. A relao entre o pesquisador e o sujeito pesquisado ativa, ou seja,

    52

  • entendida como significativa na constituio do material clnico a ser tratado

    pela pesquisa.

    Muito embora a paciente estivesse em atendimento durante o perodo

    vigente de elaborao da escrita da dissertao de mestrado, os dados para

    reflexo na pesquisa foram coletados no perodo de junho de 2004 a dezembro

    de 2005. O material clnico constituiu-se da anlise das memrias dos

    atendimentos ocorridos e dos registros semanais, escritos em forma de narrativa,

    aps os atendimentos realizados, num total de 74 registros. Tratar da memria

    clnica implica dizer que a escrita clnica coloca em cena o exerccio teraputico

    de lidar com os contedos (contra)transferenciais vividos no setting. Assim, o

    material clnico produzido pelo par teraputico sempre um conjunto de

    representaes, isto , no acontece em um s momento (CUNHA, 2000).

    Embora a coleta de dados seja cumulativa e linear, recebe tratamento

    interpretativo constante por parte do pesquisador-terapeuta, tornando-se uma

    produo cientfica, a partir do momento em que passa a ser matizada pelas

    reflexes e articulaes tericas.

    A anlise do material ser realizada por meio da articulao entre

    referenciais tericos da Fonoaudiologia, da Psicanlise e da Filosofia sobre

    conceitos de organismo, de corpo simblico e de sujeito. Segundo Gonzlez

    (1999), o suporte terico apresenta-se como uma importante referncia para

    intermediar a produo terica do investigador sobre o objetivo ao qual ele se

    debrua para estudar.

    Esta pesquisa foi aprovada pelo Comit de tica do Programa de Estudos

    Ps-