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LUANA ALMEIDA MAGALHES
O ATENDIMENTO FONOAUDIOLGICO NAS DISFAGIAS: DO CORPO-OBJETO AO CORPO DOS AFETOS
Mestrado em Fonoaudiologia
PUC-SP
2007
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Livros Grtis
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Milhares de livros grtis para download.
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LUANA ALMEIDA MAGALHES
O ATENDIMENTO FONOAUDIOLGICO NAS DISFAGIAS: DO CORPO-OBJETO AO CORPO DOS AFETOS
Dissertao de Mestrado apresentada
Banca Examinadora da Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, como
exigncia parcial para obteno do Ttulo de
Mestre em Fonoaudiologia, sob a orientao
do Prof. Dr. Luiz Augusto de Paula Souza.
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
2007
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM FONOAUDIOLOGIA
Banca Examinadora
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Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou
parcial desta dissertao por processos de fotocopiadoras ou eletrnicos.
Assinatura: ________________________ Local e Data: ___________________
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Para minha famlia,
sempre presente na minha caminhada.
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AGRADECIMENTOS
Ao Tuto, pela oportunidade de poder ter um orientador to presente,
mesmo quando na ausncia, que acompanhou e respeitou meu processo de
construo da pesquisa, com interlocues sempre marcantes.
Aos professores Rogrio Lerner, Ruth Palladino e Zelita Guedes, pelos
importantes apontamentos e contribuies no exame de qualificao.
A professora Claudia Cunha, pelas discusses nas aulas que, em muito,
movimentaram a minha escrita da dissertao
A professora Suzana Maia, sempre atenta, paciente e cuidadosa nas
orientaes da disciplina de Seminrios de Dissertao, de onde germinou o
projeto de pesquisa do mestrado.
A Carolina Parisi, pela discusso sobre o caso clnico na pr-qualificao.
Aos professores do Programa de Estudos Ps-Graduados em
Fonoaudiologia, especialmente aqueles com os quais pude me relacionar nas
disciplinas, por participarem da minha formao de pesquisadora clnica.
Aos professores Marcos Massetto e Suely Rolnik, pela possibilidade de
experimentar aulas to especiais em ambientes permeados por diferenas.
A Dona Laura (minha paciente, cujo nome fictcio) e a sua famlia, por
terem dado a oportunidade de me debruar sobre uma experincia de caso clnico
to intensa e marcante na minha vida.
Aos profissionais da equipe do Home Care, pelo trabalho conjunto e pela
possibilidade de realizao da pesquisa.
A Capes, por financiar a realizao deste projeto.
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As minhas amigas especiais da turma de Seminrios de Dissertao:
Fernanda Machado, Aline Garrido, Karin Genaro, Cristiane Silva, Renata Ensinas,
Mirella Guilhen, alm dos vibrteis Daniella Zorzi, Lus Jardim e Fernanda
Rocco, que participaram das discusses e estiveram bem prximos, cada qual ao
seu modo, em momentos importantes da escrita desta pesquisa.
Aos amigos do Aprimoramento em Sade Coletiva, pelas profcuas
discusses e supervises clnicas, que trouxeram reflexes importantes para a
realizao do mestrado.
A Vera Mendes, que acompanha de perto, h algum tempo, minhas
inquietudes, desassossegos e crescimentos na Fonoaudiologia, com quem venho
compartilhando a descoberta de novos caminhos a trilhar.
As grandes amigas Slvia Guedes, Dani Zorzi e Mari Campos, e porque
no dizer tambm a caula Flvia Cardoso, por dividirem comigo a experincia de
constituir um grupo to singular e heterogneo.
Aos meus pais, pelo incentivo e confiana constantes, por suportarem as
minhas ausncias e pelo amor incondicional.
A minha irm, por existir e estar presente de forma to especial na histria
da minha vida.
Ao Adriano, querido amor e companheiro, que divide a experincia intensa
do viver ao meu lado.
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Mas graas a Deus que h imperfeio no mundo
Porque a imperfeio uma cousa,
E haver gente que erra original,
E haver gente doente torna o mundo maior.
Se no houvesse imperfeio, havia uma cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ouvir
(Enquanto os olhos e ouvidos se no fecham)...
Fernando Pessoa
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RESUMO
A dissertao trata da descrio de um caso clnico de paciente disfgica
atendida em domiclio.
O objetivo foi demonstrar a relevncia dos aspectos psquicos na
reabilitao fonoaudiolgica dos transtornos de deglutio, buscando entender
por que os sintomas disfgicos se tornaram recorrentes mesmo que, do ponto de
vista orgnico-funcional, a paciente no mais possusse alterao alimentar.
Trata-se de uma pesquisa descritiva, realizada a partir do mtodo clnico-
qualitativo, por meio de estudo de caso clnico nico, exemplar ou emblemtico. O
caso clnico relatado nesta pesquisa de uma paciente de 82 anos (nomeada
como Dona Laura), que foi acometida por um Acidente Vascular Enceflico
Isqumico e apresentava quadro de disfagia e de parestesia e paresia facial
esquerda, alm de alterao na expresso da linguagem e disartrofonia. Os
dados para reflexo foram coletados no perodo de junho de 2004 a dezembro de
2005, e o material clnico constituiu-se da anlise das memrias dos atendimentos
e dos registros semanais, escritos em forma de narrativa aps os atendimentos
realizados.
O advento do AVE fragilizou subjetivamente a paciente e isso dificultou
tanto as relaes familiares quanto suas rotinas. A abertura da escuta da
terapeuta para as angstias advindas desta situao permitiu que a paciente
pudesse se deslocar a partir da reabilitao orgnica em direo uma
ressubjetivao, ou seja, construo de um novo perfil subjetivo, mais
satisfatrio em relao s condies atuais de vida e relacionais da paciente.
A pesquisa demonstrou a relevncia de se considerar o corpo na
reabilitao fonoaudiolgica das disfagias, no apenas por sua face orgnica,
mas nas esferas simblica e afetiva.
Descritores: Fonoaudiologia, Disfagia, Relaes bio-psquicas, Teraputica
fonoaudiolgica, Transtornos de deglutio.
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ABSTRACT
This study deals with the description of a home care dysphagic patient case
study. The aim was to demonstrate the relevance of the psychic aspects in the
swallowing disorders treatment, searching to understand why the dysphagic
symptoms became recurrent since in the organic-functionary point of view, the
patient had no more disorders.
This is a descriptive research done through clinic-qualitative method, by a
unique, exemplary or emblematic clinical case study of an 82 years old patient
(named as Dona Laura) with stroke that caused dysphagia, paresthesia and
paresis of the left facial side, beyond language expression disorder and dysarthria.
The data had been collected between June 2004 and December 2005, and the
clinical material consisted of the therapies memories analysis, made by weekly
registers, written in a narrative form.
The stroke brought fragility to the patient subjectivity and made it difficult to
her support the familiar relations, as well as her routines. The opening of the
therapist listening to this suffering situation allowed the patient to be dislocated
from the organic rehabilitation into the direction of a ressubjectivation, meaning a
construction of a new subjective profile, more satisfactory in the current relationary
conditions of patients life.
The research demonstrated the relevance of considering the body in the
dysphagia treatment, not only on its organic face, but also on its symbolical and
affective spheres.
Key words: Speech therapy, Dysphagia, Bio-psychic relations, Speech language
pathology therapeutical, Swallowing disorders.
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SUMRIO
Introduo 10
Captulo 1 Manifestao da disfagia no organismo 19
Captulo 2 O corpo dos afetos 31
Captulo 3 Percurso metodolgico: apresentao do caso clnico 50
3.1 O primeiro encontro com Dona Laura 54
3.2 Incio do atendimento clnico: o setting teraputico 57
3.3 Lidando com o imprevisvel 60
3.4 Revivendo o sintoma: o retorno das ocorrncias de engasgo 63
3.5 Outro modo de atuar com o sintoma 64
3.6 Mudana de olhar: possibilidades de novas relaes 67
3.7 Dos efeitos subjetivos produzidos no encontro teraputico 71
Captulo 4 Anlise do processo teraputico: reflexes sobre corpo e afetos 73
Referncias Bibliogrficas 79
Anexos 84
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INTRODUO
Ah, os nossos sentidos, os doentes que vem e ouvem! Fossemos ns como deveramos ser
E no haveria em ns necessidade de iluso... Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem reparamos para que h sentidos... (Fernando Pessoa)
A escolha em tratar certos aspectos da disfagia deriva do meu
envolvimento com o assunto desde a graduao. Naquela poca, j me
interessava por transitar em espaos de discusso sobre o tema, participando de
palestras, mesas-redondas, oficinas e disciplinas eletivas.
Foi pela via dos atendimentos clnicos que me iniciei na teraputica voltada
ao paciente com disfagia, que est impossibilitado de se alimentar pela via oral.
Minha atuao profissional est relacionada ao cuidado de pacientes disfgicos
na esfera domiciliar e hospitalar.
Na prtica clnica, interessa-me, e relevante, o fato de poder intervir por
meio da terapia de reabilitao, permitindo aos pacientes retomar condies de
alimentao que haviam sido perdidas. Muitas vezes, so os prprios pacientes
e/ou seus familiares que notam dificuldades de deglutio e procuram o
atendimento, aps a ocorrncia ou o acometimento de alguma patologia. Mas,
geralmente, so os mdicos que os encaminham ao atendimento, para iniciar
rapidamente o processo de reabilitao no ambiente hospitalar, a fim de
possibilitar uma evoluo mais rpida.
A formao terica promoveu o manejo de conceitos que sustentam o
atendimento clnico. Encontrei estudos como os de Marchesan (1999) e Tubero
(2003), que definem a disfagia como qualquer dificuldade no percurso do
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alimento, da boca at o estmago, que leve o paciente a riscos de desnutrio,
desidratao e infeces pulmonares. Problemas orgnicos impedem ou
dificultam o processo de alimentao e comprometem a condio nutricional do
paciente, trazendo riscos para sua sade, uma vez que causam srias
complicaes respiratrias pela aspirao de alimento em vias areas superiores.
Para as autoras, a disfagia no considerada uma doena, mas a
conseqncia de uma sndrome ou doena de base, decorrente de problemas
congnitos ou adquiridos, e classificada como disfagia neurognica, mecnica,
miognica e psicognica. As desordens mais freqentes nas disfagias
neurognicas so aquelas advindas de disfunes neurolgicas, resultantes de
Acidente Vascular Enceflico (hemorrgico ou isqumico), traumatismos crnio-
enceflicos, tumores cerebrais, doenas degenerativas (Esclerose Lateral
Amiotrfica, Doena de Alzheimer, Doena de Parkinson, Demncias), Esclerose
Mltipla e encefalopatia crnica infantil no evolutiva.
As disfagias mecnicas, muitas vezes decorrentes de tumores de cabea e
pescoo, que necessitam de cirurgias de retirada de rgos e de tratamentos
agressivos, como a radioterapia, alm do uso de medicamentos que podem
modificar a produo de saliva (sialorria ou xerostomia) e alterar a sensibilidade
ou tonicidade muscular, tambm ocorrem nos casos de pacientes submetidos a
intubao orotraqueal e traqueostomia, uma vez que causam comprometimentos
na dinmica da deglutio. Com relao s disfagias miognicas, alguns dos
distrbios musculares mais freqentes so as miopatias, a miastenia gravis e as
distrofias musculares progressivas. Por fim, tm-se as disfagias psicognicas,
advindas de distrbios psquicos como a depresso, o autismo, a histeria, a
esquizofrenia, entre outros.
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Nesta pesquisa, a disfagia entendida enquanto um transtorno alimentar,
no sentido de um transtorno oral que se encontra na gama de acometimentos
ocorridos na regio oral e que, portanto, so relativos tambm alimentao. Os
transtornos orais denotam casos como os de alteraes de tonicidade e fora
muscular com conseqentes imprecises articulatrias fonmicas strictu sensu
e ceceios variados , questes respiratrias, de deglutio; quadros de deglutio
atpica; transtornos na alimentao; alm de idiossincrasias nos rituais
alimentares (PALLADINO, SOUZA e CUNHA, 2004).
Para ser melhor compreendida, do ponto de vista funcional, a disfagia pode
ser dividida em fases: preparatria oral, oral, farngea e esofgica (MARCHESAN,
op. cit.). Apenas as duas primeiras so voluntrias, j as fases farngea e
esofgica so involuntrias. Na maioria dos casos de disfagia neurognica, h
alteraes nas fases oral e farngea, manifestadas por sintomas como desordem
na mastigao, dificuldade de iniciar a deglutio e controlar o bolo na cavidade
oral, regurgitao nasal e pela presena de tosse e engasgos durante a
alimentao, que levam a problemas pulmonares como a pneumonia aspirativa,
por exemplo, levando a quadros de desnutrio e desidratao (BUCHHOLZ,
1994).
Pela reabilitao fonoaudiolgica, possvel intervir nas fases oral e
farngea da deglutio, por meio de estimulaes motoras, sensoriais e
funcionais, que visam maximizar a tonicidade, a sensibilidade, a mobilidade e a
coordenao dos rgos fonoarticulatrios. Alm disso, objetiva-se co-relacionar
a estimulao orofacial com os outros processos relativos deglutio, como a
fonao, a articulao da fala e a respirao.
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A partir da prtica clnica com pacientes que apresentavam disfagia
neurognica, passei a questionar sobre a reabilitao fonoaudiolgica, tendo em
vista que, geralmente, a proposta teraputica era baseada apenas no dficit
orgnico observvel no corpo, ou seja, a interveno teraputica se dirigia
correo de uma alterao orgnica observada. Nessa tica, as tcnicas de
reabilitao alimentar, realizadas por meio de estimulaes sensrio-motoras
miofuncionais, tm o intuito, exclusivamente, de resgatar funes comprometidas.
Inicialmente, no me questionava, durante o processo teraputico, sobre a
aplicao das tcnicas de reabilitao oral, pois os problemas de alimentao
apresentados eram minimizados e o objetivo de restabelecer a alimentao do
paciente por via oral era alcanado, na maior parte das vezes. No entanto, alguns
casos passaram a me inquietar em razo de sua evoluo. Passei a observar que
nem sempre bastava o uso adequado das tcnicas de reabilitao para aliviar o
sofrimento de quem estava impossibilitado de se alimentar por via oral. Muitas
vezes, o paciente apresentava, segundo uma perspectiva biolgica, um bom
prognstico para a alimentao, mas a interveno proposta, baseada na
aplicao das tcnicas de reabilitao oral no era capaz de promover a melhora
do quadro. Comecei a observar que o organismo, enquanto locus da interveno
reabilitadora, no podia ser compreendido como unidade fechada sobre si
mesma, encerrando o distrbio antomo-fisiolgico.
O caso de Dona Laura1, de 82 anos, foi emblemtico e permitiu refletir
sobre a terapia de reabilitao. A paciente foi encaminhada para avaliao
fonoaudiolgica pelo mdico, quando ainda estava hospitalizada. Havia sido
acometida, em junho de 2004, por um Acidente Vascular Enceflico Isqumico
1 Nome fictcio
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(leso cerebral em hemisfrio direito, localizada no lobo parietal, de acordo com o
laudo do exame de tomografia computadorizada) e apresentava, na poca,
quadro de disfagia e de parestesia e paresia facial esquerda, alm de
disartrofonia e alterao na linguagem oral e escrita.
A terapia fonoaudiolgica foi iniciada com enfoque na sensibilidade,
tonicidade e mobilidade das estruturas orofaciais, enfatizando a mastigao e a
postura da musculatura facial, a fim de evitar presena de resduos alimentares
na cavidade oral, que pudessem levar a uma possvel aspirao traqueal.
Tambm foram realizadas estimulaes voltadas para as dificuldades de
articulao da fala.
Foi possvel observar mudana significativa no padro mastigatrio, de
deglutio e de sensibilidade e mobilidade da musculatura oral, a partir do
primeiro ms de estimulao miofuncional e, assim, o enfoque da terapia passou
a ser dirigido s dificuldades de fala, de linguagem oral e de escrita. No entanto,
aps um perodo de 2 meses, a paciente apresentou dois episdios de convulso
e, novamente, aps outros 2 meses, ocorreu outra convulso. A partir da, ela e
os familiares se queixavam novamente de dificuldades na alimentao, com a
presena de engasgos durante a ingesto de lquidos e slidos.
Restabeleceu-se a teraputica voltada disfagia e, aps um perodo
tambm de aproximadamente 2 meses, houve melhora do quadro: ela no mais
engasgava nas refeies e nem durante a fala. Porm, no ms seguinte, sem que
houvesse intercorrncia orgnica, as queixas retornaram e a paciente e seus
familiares voltaram a referir a ocorrncia de engasgos e tosse durante a
alimentao, o que tornou necessrio retomar a estimulao miofuncional.
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Em decorrncia deste caso, passei a refletir sobre a teraputica
implementada nos casos de disfagia: por que os sintomas retornavam se havia
melhora nos padres miofuncionais orais e, especificamente, na deglutio?
Se a teraputica se estabelece para reabilitar a alimentao, do ponto de
vista mais estritamente ligado ao organismo, devido necessidade imediata de
promover a alimentao por via oral de forma segura, como o manejo das
tcnicas de reabilitao oral e das manobras teraputicas no permitiam
estabilizar a funo de alimentao por via oral?
Embora a reabilitao da disfagia apresente particularidades, em funo do
tipo de atuao realizada (as tcnicas de reabilitao miofuncional criam marcas
no corpo do paciente) e dos riscos encontrados (pelo fato de ser freqente a
possibilidade de aspirao pulmonar do alimento), preciso considerar que a
abordagem apenas dimenso biolgica/orgnica do corpo parece no ser
suficiente para que se compreendam situaes como a de Dona Laura.
Considerando que na reabilitao das disfagias h sempre a ocorrncia de
um comprometimento orgnico, comum que a Fonoaudiologia pense os
sintomas a partir da idia de que corpo sinnimo de organismo, ou seja, a rea
tende a entender o corpo enquanto estrutura regida exclusivamente pelas
instncias anatmica, neurofisiolgica e cognitiva. Mas, se fosse assim, o corpo
seria apreensvel numa suposta objetividade pura e o referencial para
diagnosticar um paciente estaria na exterioridade do sintoma. Desta forma, de
acordo com Parisi (2003, p. 32), a posio ocupada pelo fonoaudilogo fica com
caracterstica mais corretiva do que clnica, uma vez que lhe resta ensinar cdigos
e padres considerados satisfatrios ou normais. Ao corpo atribudo o estatuto
de organismo e, sendo assim, tomado apenas em sua face biolgica.
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A esta altura, necessrio problematizar a concepo de corpo,
esclarecendo diferenas em relao noo de organismo, uma vez que esta
diferenciao abre caminho para o desenvolvimento do presente estudo. O termo
orgnico (do grego organiks e do latim organicu) refere-se uma dimenso
biolgica e adjetiva aquilo que diz respeito ao organismo, a uma estrutura
antomo-fisiolgica organizada, ou seja, disposta em rgos (PALLADINO,
SOUZA e CUNHA, 2004).
Orgnico diz de uma constituio em que h rgos arranjados de modo a
assegurar as suas funes particulares, vinculadas a uma funo vital. Esta uma
constituio sinttica, na qual as partes esto numa relao sobredeterminada por
leis que visam realizar a vida. possvel dizer, ento, que a ordem orgnica a
sintaxe dos rgos. (Id., p.102)
Tratar da noo de corpo mais amplamente e tal como pretende-se aqui,
refere-se influncia que o psiquismo, pela via da linguagem, exerce sobre o
organismo, a partir dos modos pelos quais os signos (material psquico) se
incorporam no biolgico, se encarnando no corpo, como faces ou registros de um
mesmo processo. O corpo contrai os signos (materiais e imateriais) nas relaes
que estabelece com o mundo e deles se apropria anatmica, fisiolgica e
metabolicamente (SOUZA, 2000). A idia de corpo vem atrelada, ento, ordem
do desejo, advm do acontecimento simblico que toma o organismo como corpo,
ou seja, quando a carne envergada em uma trama significante (PALLADINO,
SOUZA e CUNHA, op. cit.), pela capacidade de afetar e de ser afetado pelo outro
por meio dos signos.
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pelo contato entre sujeitos que os corpos se afetam e so afetados. So
os afetos que do o contorno para as sensaes e para os funcionamentos fsicos
e psquicos (...), so eles que impregnam ou esculpem o corpo fsico dando um
carter humano para o interior do corpo, constituindo o indivduo da espcie em
ser humano (NEISSER, 2003, p.28).
Se for assim, uma questo se impe: por meio da reabilitao miofuncional
ou sem dela prescindir, como enredar a prtica fonoaudiolgica em uma clnica
das disfagias e de outros distrbios alimentares, que admita uma articulao entre
o orgnico e o simblico?
Pensar sobre o encontro teraputico, como espao potencial para produzir
diferenas de sentido para o paciente disfgico em relao ao transtorno que o
acomete parece ser um caminho. a presena do transtorno alimentar, causado
pela leso cerebral, que faz com que o paciente encontre com o terapeuta um
lugar que, alm da reabilitao miofuncional, permita a elaborao de sua
condio subjetiva, em face das mudanas em suas rotinas e do sofrimento
representado, por exemplo, pelas limitaes e seqelas decorrentes da doena
de base (AVE, tumores, demncias, etc), entre as quais est a disfagia. A relao
singular estabelecida entre terapeuta e paciente favorece o enfrentamento do que
o sintoma representa.
Pelo processo de transferncia2, o paciente estabelece com o terapeuta um
vnculo de sua confiana, por imaginar que ele saber como curar o mal que lhe
acomete. Mesmo que essa confiana seja excessiva, ela ser til ao andamento
2 O conceito de transferncia, utilizado pela psicanlise, refere-se a uma relao transferencial estabelecida entre o terapeuta e o paciente, cujo instrumento fundamental para a mudana psquica, utilizado pelo analista a interpretao do material onrico apresentado em associaes livres pelo paciente. O trabalho com a transferncia permite ao analista um conhecimento sobre o paciente que lhe d meios de conduzir-se com segurana no processo analtico.
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do processo teraputico; ela diz do modo como o paciente se implica com aquilo
que lhe causa sofrimento. Ao terapeuta, importante sustentar esse lugar de
suposto saber na relao com o paciente, mas considerando a singularidade de
cada paciente, pois durante o processo teraputico que se constri o saber
sobre o paciente. Desta forma, o vnculo estabelecido com o paciente
fundamental para o enfrentamento da situao clnica. No entanto, embora tal
confiana seja importante, o processo teraputico no deve promover a
dependncia do paciente terapia ou ao terapeuta (CALLIGARIS, 2004).
Foi nesse sentido que esta pesquisa trabalhou com um caso clnico
exemplar ou emblemtico, buscando entender por que os sintomas disfgicos se
tornaram recorrentes mesmo que, do ponto de vista orgnico-funcional, a
paciente no mais possusse alterao alimentar.
Tal perspectiva metodolgica ancorou-se numa articulao terica sobre as
relaes entre a disfagia e o corpo, por meio de investigao bibliogrfica,
apresentada no primeiro e no segundo captulo da dissertao. A discusso
acerca da interveno na disfagia ampliada partir do segundo captulo,
considerando as relaes estabelecidas entre corpo e psiquismo, cujo
embasamento terico se faz num dilogo com a produo recente da
Fonoaudiologia, que apropria noes advindas da Psicanlise e da Filosofia.
No terceiro captulo, a exposio do caso clnico permitiu, ento, atualizar
conhecimentos e questionamentos expostos nos dois primeiros captulos. Sendo
que, no quarto captulo, baseado na exposio do caso clnico so analisadas e
discutidas as relaes concretas entre o corpo e o psiquismo na abordagem de
pacientes disfgicos.
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CAPTULO 1 MANIFESTAES DA DISFAGIA NO ORGANISMO
No entardecer dos dias de Vero, s vezes, Ainda que no haja brisa nenhuma, parece Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as rvores permaneceriam imveis Em todas as maneiras das suas folhas E os nossos sentidos tiveram a iluso,
Tiveram a iluso do que lhes agradaria... (Fernando Pessoa)
Pensar o atendimento ao disfgico no campo fonoaudiolgico remete, via
de regra, a uma interveno direta no organismo, com condutas especficas
tomadas diante das alteraes da funo de deglutio, cuja finalidade a de
nutrir e hidratar o indivduo, mantendo seu estado nutricional e protegendo a via
area, com manuteno do prazer alimentar, garantindo sua sobrevivncia
(FURKIM e MATTANA, 2004, p.212).
A deglutio definida como um processo sinrgico, composto por fases
intrinsecamente relacionadas, seqenciais e harmnicas, divididas em fase
antecipatria, fase oral, fase farngea e fase esofgica. Para que seja eficiente,
esse ato depende de complexa ao neuromuscular (sensibilidade, paladar,
propriocepo, mobilidade, tnus e tenso), alm da inteno de se alimentar.
Depende tambm da integridade dos sistemas neuronais (vias aferentes,
integrao dos estmulos no sistema nervoso central, vias eferentes, resposta
motora) (FURKIM e SILVA, 1999).
A disfagia entendida, assim, como um distrbio de deglutio, com sinais
e sintomas especficos, caracterizado por alteraes em qualquer etapa e/ou
entre etapas da dinmica da deglutio, podendo ser de origem congnita ou
adquirida aps comprometimento neurolgico, mecnico ou psicognico. Esse
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distrbio pode resultar em comprometimento no estado de nutrio, de hidratao
e de sade pulmonar, assim como no prazer alimentar e na interao social do
indivduo (Id., 1999). Em geral, nas intervenes fonoaudiolgicas, em terapias de
linguagem, audio, voz e motricidade oral, no h riscos de morte, ao contrrio
da disfagia.
A Fonoaudiologia brasileira passou a se haver com as questes da disfagia
de forma mais sistemtica h cerca de vinte anos, iniciando estudos e
publicaes sobre o tema em meios cientficos. Os primeiros artigos cientficos
encontrados indicam uma tendncia da rea em descrever e classificar as
estruturas envolvidas no processo de deglutio, propondo avaliaes e
teraputicas nos casos com alterao de linguagem e de deglutio decorrentes
de leses cerebrais, como paralisia cerebral e AVE, por exemplo (LIMONGI,
1980; PARENTE e MANSUR, 1980, entre outros).
Posteriormente, outros estudos, como o de Gonalves et al. (1989),
voltaram-se para a reabilitao do paciente laringectomizado, considerando outra
faceta da reabilitao das disfagias, cuja alterao apresentada decorria da
retirada de rgos em procedimentos cirrgicos, devido presena de tumores de
cabea e pescoo e de tratamentos como a radioterapia.
H ainda a publicao de estudos mdicos envolvidos com a dinmica da
alimentao (COSTA, 1988), que investigaram o processo da deglutio desde o
seu incio, na cavidade oral, e no apenas em regio esofgica ou gstrica. Estas
pesquisas foram desenvolvidas concomitantemente ao desenvolvimento de
recursos tecnolgicos para auxiliar o diagnstico, inicialmente, pela
videofluoroscopia (cuja tcnica consiste na visualizao da imagem por meio de
contraste com flor, sendo realizada em qualquer regio do corpo), chegando ao
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desenvolvimento de exames, como o videodeglutograma, que permitiram a
anlise da dinmica da deglutio desde a orofaringe, passando pela laringe e
esfago, por meio da alimentao contrastada com brio ou iodo, a fim de
entender o funcionamento da deglutio dentro dos padres de normalidade,
estendendo estudos posteriores aos padres patolgicos.
A partir da dcada de noventa, com o rpido desenvolvimento de novas
tecnologias, como a avaliao endoscpica da deglutio, aliada ao
videodeglutograma, houve um aumento significativo de estudos fonoaudiolgicos
sobre a disfagia e, conseqentemente, sobre novas possibilidades de avaliao,
de diagnstico e de intervenes teraputicas, pautados nas alteraes orgnicas
do paciente disfgico. Com o desenvolvimento das pesquisas, o tratamento
fonoaudiolgico, que j era conhecido de longa data e praticado de maneira
emprica, passou a ter embasamento cientfico, inicialmente, a partir de pesquisas
com grupos controle (MACEDO FILHO, GOMES e FURKIM, 2000).
Neste movimento, observou-se que a presena de outros profissionais de
sade integrando a equipe mdica permitiu a constituio de equipes multi e
interdisciplinares, geralmente em servios hospitalares. Estas so compostas, na
maioria das vezes, por mdicos, fonoaudilogos, nutricionistas, fisioterapeutas,
enfermeiros, terapeutas ocupacionais, psiclogos, entre outros. A ampliao do
olhar do clnico para o doente, e no apenas para a patologia que o acomete,
tambm passa a interferir na formao do profissional, que solicita mudanas de
base, operadas desde a formao acadmica.
Observa-se que a ampliao do trabalho no ambiente hospitalar, a partir da
difuso da ateno em domiclio (atendimentos de Home Care), traz cena a
necessidade de considerar o paciente em sua singularidade, iniciando o
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rompimento de uma lgica centrada na especialidade e na patologia,
exclusivamente. Passa a ser possvel a construo de processos de cuidados que
articulam vrias especialidades no tratamento de pacientes disfgicos, de modo a
buscar uma abordagem mais sofisticada para a avaliao, o diagnstico e a
teraputica destes sujeitos (MACEDO FILHO, GOMES e FURKIM, op. cit.).
A necessidade de cuidados hospitalares revela que a disfagia, a despeito
de outros distrbios fonoaudiolgicos, pode ser um dos nicos casos no quais
erros na atuao teraputica podem levar morte, em decorrncia de eventual
inadequao da conduta tomada pelo fonoaudilogo acerca da alimentao.
Neste sentido, a Fonoaudiologia tende, talvez mais do que em outras reas
teraputicas e/ou reabilitadoras, a se respaldar em atendimentos que enfocam
estritamente o acometimento orgnico, numa prtica que se aproxima de formas
de abordagens mdicas, cujo cuidado com as doenas so tambm,
freqentemente, pautados pelo privilgio de tcnicas de manejo e controle
orgnicos.
No caso da Fonoaudiologia, a manipulao tcnica das funes orais de
maneira precisa decisiva na reabilitao da disfagia, a fim de evitar outros
agravos sade do paciente, como, por exemplo, pneumonias decorrentes de
aspirao traqueal do alimento por vezes, de modo silente. No entanto, muitas
vezes, desconsidera-se o sujeito que foi acometido pela dificuldade de deglutio
e as implicaes disto em sua vida, enfocando o tratamento apenas do ponto de
vista dos aspectos fisiolgicos.
Em funo deste tipo de atuao, realizada por meio das tcnicas de
reabilitao miofuncional, possvel, em vrios casos, alcanar os objetivos de
restabelecer o processo de deglutio compensatrio ou mais prximo possvel
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da normalidade, minimizando as possibilidades de ocorrncia do risco inerente a
esses casos: possibilidade de aspirao pulmonar do alimento.
Observa-se que as tcnicas reabilitadoras, utilizadas no atendimento do
paciente disfgico, apresentam particularidades no que diz respeito terapia
miofuncional. Isto porque, neste tipo de interveno clnica, h uma forte atuao
sobre o organismo, quero dizer, faz-se necessrio, neste tipo de interveno,
realizar manobras posturais e tcnicas de estimulaes orofaciais, de modo a
oferecer ao paciente novos padres adaptados de deglutio segura. Para esta
adaptao, muitas das manobras posturais e estimulaes so realizadas pelo
clnico e outras tantas podem ser realizadas voluntariamente pelo paciente, a
menos que haja comprometimento motor voluntrio, cognitivo e/ou de linguagem
(FURKIM, 1999; FURKIM e SILVA, op. cit.; MACEDO FILHO, GOMES e FURKIM,
op. cit.; FURKIM e MATTANA, op.cit.; SILVA, 2004; FORTE e FORTE, 2004).
No que diz respeito s tcnicas e manobras para o tratamento
fonoaudiolgico de pacientes com disfagia orofarngea neurognica, Furkim
(1999) discute que o manejo dessas tcnicas pode se dar em ambiente clnico,
domiciliar e, predominantemente, hospitalar. Previamente ao incio da terapia,
sugere que seja realizada avaliao criteriosa das estruturas anatmicas e
funcionais, verificando o estado clnico do paciente, seu comportamento e
possibilidade de comunicao bsica (id, p.231), que determina seu estado de
alerta e cooperao para a realizao das tcnicas.
Alm disso, a autora orienta a realizao de avaliao funcional da
deglutio, quando, por meio da oferta de alimento, so observadas as condies
de alimentao por via oral, nas consistncias geralmente testadas (pastosa,
lquida e slida). No entanto, tal avaliao somente realizada quando o paciente
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apresenta condies mnimas de lidar com a deglutio de saliva e apresenta
condies mnimas de sensibilidade orofacial (intra e extra-oral).
Neste momento, alm da observao do paciente, verificando se
demonstra lentido no tempo de trnsito oral, tosses ou engasgos ao deglutir, o
fonoaudilogo realiza ausculta cervical para verificar tambm a presena de
rudos que sugiram a ocorrncia de escape precoce ou tardio do alimento, e que
levem a suspeitar da ocorrncia de penetrao larngea e/ou aspirao traqueal
do alimento. Vale mencionar que esta avaliao tambm feita com o paciente
em repouso, na avaliao clnica de rgos fonoarticulatrios, antes da oferta do
alimento, a fim de verificar se h qualquer dificuldade na manipulao da saliva na
cavidade oral, observando-se os mesmos sinais citados anteriormente.
Para complementar a avaliao clnica da deglutio, o terapeuta pode
lanar mo de exames objetivos que auxiliem no diagnstico da disfagia. Por
meio do videodeglutograma, possvel visualizar a dinmica do processo de
deglutio e suas disfunes, nas fases oral e farngea, atravs de imagens
registradas em fitas de vdeo (VHS). O mtodo deixa ver e correlacionar, com
qualidade suficiente e baixo ndice de exposio radiao, a dinmica da
deglutio, de modo a compreender o processo adequadamente, sem que sejam
necessrias novas exposies radiao (COSTA, 2000).
Este estudo permite visualizar no somente a aspirao laringotraqueal,
mas tambm classific-la em aspirao que ocorre antes, durante e aps a
deglutio, observando se h apenas penetrao do alimento na regio do
vestbulo larngeo ou se h aspirao do mesmo para regio traqueal. Com o
advento desse exame, possvel testar de forma direta as manobras teraputicas
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e sua eficcia para a deglutio do paciente (MACEDO FILHO, GOMES e
FURKIM, op. cit.).
Outro exame tambm utilizado o estudo endoscpico da deglutio,
realizado por meio de um nasofaringolaringoscpio. Neste caso, o enfoque se d,
sobretudo, na fase farngea e larngea da deglutio. O exame, desenvolvido no
final dos anos oitenta, foi descrito, inicialmente, para identificar a penetrao
larngea e a aspirao traqueal da saliva e do alimento ofertado, alm de
determinar se a ingesto por via oral era segura em pacientes neurolgicos com
disfagia. Posteriormente, verificou-se que mais informaes sobre a deglutio de
pacientes com diversas patologias poderiam ser levantadas, alm da simples
aspirao do alimento e/ou saliva. A grande vantagem desse exame era a sua
realizao em pacientes acamados e impossibilitados de mobilizao ao setor de
radiologia, em pacientes na unidade de terapia intensiva, ou mesmo em pacientes
domiciliares (MACEDO FILHO, GOMES e FURKIM, op. cit, p.14), alm da
avaliao da sensibilidade larngea, pela qual se poderia observar uma das
causas para a aspirao, seja ela silente ou no.
Desta forma, a partir da avaliao clnica e funcional da deglutio, o
fonoaudilogo tem a possibilidade de verificar quais so as necessidades do
paciente para, a partir da, estabelecer estratgias de interveno. Na reabilitao
da disfagia, h dois tipos de intervenes teraputicas utilizadas de acordo com
as condies clnicas do paciente: a terapia indireta e a direta.
As terapias indiretas tm o objetivo de melhorar as condies orais do
paciente por meio de exerccios ativos (feitos voluntariamente pelo paciente) para
maximizar as fases preparatria oral e oral da deglutio, alm de atuar
indiretamente na fase farngea, uma vez que as mudanas das fases voluntrias
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tambm interferem na dinmica da movimentao de faringe e laringe. Como
interveno, so realizados exerccios miofuncionais para maximizar as funes
do sistema estomatogntico, incluindo adequao da mobilidade, tonicidade e
coordenao das estruturas orofaciais envolvidas (lngua, lbios, bochechas,
palato mole, msculos mastigatrios, coaptao gltica, movimentao de faringe
e de laringe). Alm disso, so feitas adaptaes com manobras posturais para
organizao corporal do paciente.
A terapia indireta tambm abrange as estimulaes passivas, realizadas
com o intuito de aumentar a sensibilidade e a propriocepo orofacial. Muitas
vezes, os estmulos passivos so utilizados quando o paciente est debilitado, a
ponto de no ter condies de realizar os exerccios voluntariamente, sendo
necessria a induo dos movimentos orais pelo fonoaudilogo. Importante
esclarecer que na terapia indireta no h introduo de alimento por via oral, pois
esto sendo criadas condies para faz-lo de forma segura, posteriormente.
Quando o paciente apresenta condies de proteo das vias areas
superiores, inicia-se a terapia direta, em que so utilizados alimentos como forma
de estimulao, com os mesmos objetivos da terapia indireta citada, a fim de
encontrar estratgias para favorecer a alimentao segura. H uma grande
preocupao com o posicionamento adequado do paciente, sendo indicada a
posio sentada, com o tronco a 90 em relao ao cho, para proteo das vias
areas, evitando riscos de aspirao pulmonar. Tambm so realizadas
manobras posturais e facilitadoras da deglutio com o objetivo de adaptar esta
funo, garantindo melhor execuo dos movimentos e, conseqentemente, a
proteo pulmonar.
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Na terapia de reabilitao da deglutio, FURKIM (op. cit.), inicialmente,
sugere que seja enfatizado o trabalho com a sensibilidade orofacial, por meio da
utilizao de diversos procedimentos: estmulos tteis, trmicos e cinestsicos,
fazendo uso tambm de tcnicas de relaxamento e estimulao digital para
normalizao da sensibilidade intra e extra-oral, estimulao do reflexo de
deglutio e minimizao de reflexos patolgicos que possam estar exacerbados.
Assim, criam-se condies de propriocepo adequadas para, simultaneamente,
maximizar tonicidade, coordenao e mobilidade dos rgos fonoarticulatrios.
A higienizao oral tambm preconizada e enfatizada pelo fonoaudilogo
com o paciente e seu cuidador, pois, assim como menciona Venites, et al. (2001),
esta tambm uma experincia sensorial e de estimulao da resistncia da
musculatura de lngua.
No caso do paciente idoso, a autora afirma que de fundamental
importncia o cuidado destes aspectos. Trata-se de uma populao que, muitas
vezes, apresenta deteriorizao da arcada dentria, utiliza prteses dentrias, ou
ainda encontra-se edntula. Alm disso, esto mais propensos a serem
acometidos por desordens neurolgicas, que levam a prejuzos de diversas
naturezas, no s no mbito fonoaudiolgico.
A populao idosa caracterizada, por Venites, et al. (op. cit., p.110), como
sendo um dos segmentos populacionais que mais necessitam de cuidados
sade, j que esta etapa da vida marcada pela presena de patologias
associadas ou de multipatologias. Os aspectos que levam a maiores
comprometimentos do paciente disfgico idoso dizem respeito s conseqncias
em seu estado geral de sade, com alterao do estado nutricional e presena de
pneumonia de aspirao, que colocam sua sade em risco.
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Os estudos de Bilton, et al. (1999) vo ao encontro dessa lgica de cuidado
e estabelecem que a atuao do fonoaudilogo, na enfermaria gerontolgica,
alm de reabilitar o paciente, tambm a de detectar possveis alteraes de
deglutio, que possam levar a quadros de desnutrio e/ou aspirao pulmonar
do alimento. A autora refora a importncia de orientar os pacientes (quando
esto aptos a realizarem suas atividades de cuidados pessoais) e seus
cuidadores/familiares sobre a higienizao oral. Venites, et al. (op.cit.) tambm
cita que esta uma forma de prevenir possveis riscos de pneumonia aspirativa.
Nesta direo, ao avaliar o paciente idoso acometido por doenas crnico-
degenerativas, cujo acometimento neurolgico se faz presente, Magalhes e
Bilton (2004) indicam que outras mudanas de condutas na rotina de vida diria,
como a orientao aos cuidadores sobre o posicionamento adequado do paciente
na alimentao (geralmente sentado ou com a maior elevao da cama possvel),
a mudana de consistncias dos alimentos, ou at mesmo da via de alimentao
(sugerindo utilizao de via alternativa), criam condies de aumento da
qualidade de vida dos pacientes que no apresentam condies de alimentao
por via oral (exclusivamente) e que necessitam de estimulao mioterpica.
Considerar a importncia do trabalho miofuncional na reabilitao das
disfagias reitera a necessidade de se lanar mo dos procedimentos citados
acima para tocar o organismo que apresenta dificuldades. No entanto, o uso puro
e simples das tcnicas de manejo corporal, muitas vezes produz um apagamento
do paciente, operando a generalizao e a naturalizao das mesmas. Assim, o
corpo, enquanto objeto de ao, considerado apenas em sua esfera biolgica e
orgnica.
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Sem descartar a importncia da atuao fonoaudiolgica no organismo,
possvel contar tambm com uma lgica de funcionamento que considere a
articulao entre corpo, linguagem e psiquismo. Damsio (1996), ao questionar a
lgica do pensamento cartesiano, reflete sobre as relaes da conscincia
humana com o mundo, integrando as bases neurolgicas do corpo mente.
porque o crebro interage com o resto do corpo que os acontecimentos neurais
ocorrem no crebro, da ser necessrio levar em conta que a alma respira
atravs do corpo, e o sofrimento, quer comece no corpo ou numa imagem mental,
acontece na carne (op. cit., p.18).
No entanto, para tal interveno no se trata apenas de executar
movimentos de forma mecnica para obter os resultados desejados. Este tipo de
interveno fonoaudiolgica, pautada na realizao de exerccios e de
estimulaes realizadas no organismo com uma disfuno, coloca o clnico em
uma posio muitas vezes invasiva, embora necessria, tendo em vista que no
possvel reabilitar as disfunes da deglutio sem tocar o corpo.
Ao considerar a reabilitao do disfgico, cabe levar em conta que este tipo
de interveno cria marcas no corpo do sujeito, pois h uma mudana funcional
decorrente das adaptaes advindas da reabilitao. Compreende-se que esta
interveno cria marcas simblicas no corpo, por meio da relao estabelecida
entre os sujeitos (terapeuta e paciente) ali presentes.
Pensar no paciente como sujeito significa considerar, de forma
indissocivel, a dimenso orgnica (que abarca um conjunto de rgos, tecidos e
substncias corpreas em sua funcionalidade), e do corpo simblico (processo de
subjetivao atravessado por afetos capacidade de afetar e de ser afetado pelo
outro).
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Nesta relao intrincada, a dimenso orgnica atravessada pela
dimenso simblica e, portanto, afetada pela linguagem, pela condio semitica
do corpo, isto , o corpo, tal como visto, sentido e imaginado pelo sujeito est
sempre marcado por signos, pela linguagem.
A partir de uma viso monista de abordagem do corpo, que ser
desenvolvida no prximo captulo, cabe ao terapeuta trabalhar as questes
orgnicas em sintonia com a rede simblica que o sintoma articula. Dessa forma,
um exerccio, por mais mecnico que parea, ser investido pelo paciente e pelo
terapeuta. O terapeuta, a partir da leitura que faz do sintoma, pode privilegiar certos
exerccios em detrimento de outros, ou ainda, em determinados momentos do
processo teraputico, suspender o uso de exerccios que visem adequao de
tnus, mobilidade. Assim, pode haver diferentes perspectivas de abordagem do
corpo na clnica fonoaudiolgica, na medida em que as maneiras de trabalhar o
corpo e as tcnicas/estratgias utilizadas sero repensadas luz da rede mnmica
do sujeito. No cabe generalizar os exerccios por meio de referncias apenas
dadas pela aparncia e localizao dos sintomas no corpo fsico ou natural.
(PARISI, op. cit., p.37,38)
Assim, aps tecer algumas consideraes sobre aspectos orgnicos da
disfagia, preciso investigar formas de cuidado que valorizem o sujeito e no
apenas ou exclusivamente sua patologia. Nesta perspectiva, parece ser
importante considerar a histria de vida e os modos pelos quais o paciente lida
com a doena e com os efeitos que a situao de doente impe sua vida.
Ampliar o olhar da clnica fonoaudiolgica, no prximo captulo, permite trazer
contribuies de outras reas para este processo.
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CAPTULO 2 O CORPO DOS AFETOS
Se podes olhar, v. Se podes ver, repara.
(Jos Saramago, Ensaio sobre a cegueira)
Pensar as questes suscitadas a partir de um caso clnico requer
consideraes prvias acerca do contexto clnico-teraputico, considerando
relaes entre o corpo, que coloca em pauta as alteraes de deglutio e a
linguagem. Ao considerar uma viso monista do corpo possvel ampliar os
modos de refletir e perceber as marcas engendradas no corpo pelos
atendimentos fonoaudiolgicos, pela via dos afetos.
Na situao clnico-teraputica de pacientes com quadros disfgicos, h de
fato comprometimentos orgnicos que necessitam de reabilitao, o que remete a
uma interveno teraputica especfica. Mas pensar tambm nos efeitos que a
interveno fonoaudiolgica dirigida ao organismo do sujeito e as implicaes
advindas do acometimento disfgico, permite entender de que modo esta situao
marca a histria de vida do paciente, considerando a doena como algo que faz
parte de sua vida e no como algo estrangeiro a ele.
Pode-se observar, no levantamento da literatura da rea, que a maneira
pela qual a Fonoaudiologia encontrou sustentao para a prtica clnica, nos
casos de disfagia, se deu por meio de estudos que analisam as alteraes
orgnicas (FURKIM, op. cit.; FURKIM e SILVA, op. cit.; MACEDO FILHO, GOMES
e FURKIM, op. cit.; FURKIM e MATTANA, op. cit.; SILVA, op. cit.; FORTE e
FORTE, op. cit.). A incidncia da ao clnica, no que diz respeito avaliao
clnica da deglutio, busca investigar os aspectos orgnicos que indicam
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alterao das funes orais, assim como a reabilitao fonoaudiolgica se prope
aplicao de uma teraputica voltada s inadequaes da funo de deglutio.
Tal abordagem advm da aproximao histrica entre a Fonoaudiologia e a
Medicina, nomeadamente ao mtodo antomo-fisiolgico (SOUZA, 2004), que
isola o organismo como objeto, com intuito de agir sobre ele no sentido de
controlar seu funcionamento e suas regularidades. A Fonoaudiologia, por sua vez,
com freqncia, incorpora a viso mdica e prioriza a atuao no organismo,
considerando, primordialmente, suas faces visveis: fsica, biolgica.
As estratgias teraputicas so voltadas correo dos desvios e
disfunes orgnicas que acometem o paciente. Souza (1999) menciona que o
corpo na Medicina tradicionalmente tratado em si mesmo, como uma entidade
que apenas responde s presses do meio externo, sem que essa relao
interfira diretamente em sua constituio. Desta forma, seria possvel isol-lo e
secundarizar as dimenses produzidas por esses circuitos (meio externo e meio
interno). Pois bem, como a Fonoaudiologia se constituiu, em boa medida, apoiada
em pressupostos advindos da Medicina, tal isolamento parece ser freqente
tambm em nossa rea.
Souza (1999) trata a relao entre corpo, linguagem e subjetividade
interpelando a prtica fonoaudiolgica pautada na tradio mdica, cujo mtodo
(antomo-clnico) caracteriza sua lgica e opera pela ciso entre corpo e mente,
seguindo os desdobramentos do dualismo cartesiano. O objetivo teraputico
passaria a ser, no nosso caso e nessa perspectiva, o de criar estratgias
teraputicas para corrigir os desvios e disfunes, com o intuito de eliminar o
distrbio de alimentao. A efetividade da interveno estaria diretamente ligada
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garantia de resultados favorveis a partir da reabilitao realizada no
organismo.
Os procedimentos diagnsticos da Fonoaudiologia, criados para classificar
segundo distrbios descritos, reconhecem e constatam a alterao apresentada,
adotando tcnicas e procedimentos de combate sintomatologia, de modo a
atuar nos comprometimentos tidos por inadequados, visando minimizar os efeitos
indesejados para potencializar a reabilitao (id., 1999).
Se, na Fonoaudiologia, o trabalho destinado terapia da disfagia implica
em abordar o corpo para promover mudanas que possibilitem readequao de
funes orais, o corpo pode ser pensado e abordado pelo clnico de diversas
maneiras. Em uma abordagem estritamente orgnica, voltada apenas s
questes funcionais alteradas, seriam evocadas aes para minimizar e suprimir
os sintomas apresentados. Mas seria possvel considerar, na reabilitao
orgnica, as implicaes subjetivas que um distrbio alimentar pode causar?
Um caminho pode ser pensado a partir das relaes entre o orgnico e o
psquico, no qual possvel encontrar espao de escuta e de disponibilidade ao
sofrimento dos pacientes que demandam atendimento ao fonoaudilogo. Para
Souza (2004), nas relaes entre corpos humanos a existncia das palavras
passa pela via dos
afetos engendrados nos enunciados, nas palavras; afetos capazes de marcar a
pele, o metabolismo, os gestos... esculpindo o corpo a partir de modulaes
imagticas e sinestsicas, aptas a produzir uma imagem inconsciente do corpo (op.
cit, p.895).
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Ao encontro dessa idia, o autor, inspirado em Franoise Dolto, afirma que
no encontro entre corpos que a carne faz-se verbo e, de maneira recproca, o
verbo incide sobre o corpo e nele se encarna, esculpindo-o e fazendo dele
tambm linguagem (id., p.893). No humano, o corpo linguagem quando faz3
coisas que produzem diferenas de sentido, mantendo e alimentando o desejo de
diferir (id., p.893).
Dolto (2002) prope entender que tudo linguagem, uma vez que a
linguagem, em palavras, o que h de mais germinativo, mais fundante, no
corao e na simblica do ser humano que acaba de nascer (id., p.20). O sujeito
s se desenvolve num corpo se estiver relacionado com uma voz de homem ou
de mulher. O ser humano marcado pelos contatos verdadeiros que manteve
com o consciente e o inconsciente das pessoas que viviam sua volta, a me em
primeiro lugar, o pai, e as primeiras pessoas que faziam o papel de outro da sua
me (id., p.30). A linguagem tanto uma dinmica que sustenta e estimula s
pulses de vida, quanto uma dinmica que deprime de acordo com o que o ser
entende e compreende de sua vida.
Ao entender que tudo linguagem no ser humano, Dolto (2004, p.308)
anuncia que o prprio corpo, pela sade ou pela doena linguagem. A sade
a linguagem do saudvel; a doena uma linguagem de quem est passando por
uma prova e, por vezes, angustiado.
Na rea fonoaudiolgica, h estudos, nessa direo, que apontam uma
indissociabilidade entre a instncia orgnica e a simblica (PARISI, op. cit.).
Significa dizer que, embora a reabilitao sensrio-motora seja potente para
3 Grifo da autora.
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resgatar as funes de alimentao por via oral, nem sempre ela suficiente, no
sentido estrito de sua aplicao.
Por esse ponto de vista, compreender a instncia corporal dos afetos
importante para no dicotomizar corpo e psiquismo. Pensar a perspectiva de
atuao fonoaudiolgica com o paciente disfgico, por essa via, no se restringe
a assumir um processo fonoaudiolgico baseado fundamentalmente na
reabilitao miofuncional. Embora no se negue a importncia do uso das
tcnicas teraputicas para a reabilitao oral, entende-se que a relao com o
outro, por meio da interveno teraputica, pode ser uma possibilidade de tocar o
corpo e produzir efeitos na relao linguagem e psiquismo (CUNHA, 2004,
p.901).
O trabalho miofuncional, voltado ao manejo de rgos e sistemas
miofuncionais, anatmicos e neurofisiolgicos para possibilitar alimentao
funcional ao paciente, convoca um caminho que articule tal reabilitao com um
trabalho sobre a subjetividade do paciente; o que tambm lhe traz mudanas na
postura e nos padres musculares. Trata-se de pensar os gestos teraputicos
pautados pela interpretabilidade (op. cit, p.902), para que possam gerar efeitos
simblicos em virtude de sua potncia, ajudando o paciente a criar novas
possibilidades de descobrir as funes de seu corpo de forma a se apropriar das
mudanas obtidas no processo de reabilitao da disfagia.
Articulando as questes orgnicas com as psquicas, Palladino, Souza e
Cunha (op. cit.), refletem sobre a freqncia com que transtornos de linguagem e
de alimentao co-ocorrem na clnica da infncia.
Os autores referem que a natureza dos transtornos orais demanda
utilizao de tcnica apurada e muita sutileza na abordagem, por meio de uma
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leitura verticalizada, que evite o reducionismo da condio orgnica e fisiolgica.
neste sentido que
as abordagens que privilegiam os aspectos mecnicos dos transtornos orais no se
do conta de que, muitas vezes, o tratamento desorganizado por fatores e
acontecimentos que escapam reabilitao motora, inclusive, tornando-a ineficaz.
No incomum um paciente voltar a padres atpicos de deglutio, quando j
comeava a se distanciar deles no transcurso do trabalho de reabilitao oral; ou
apresentar, alternadamente, padres alterados e adequados. (id., p.105)
Segundo os autores, tambm no incomum que o sujeito disfgico volte
a s-lo aps a alta; ou no se livre da sonda, que lhe garante a alimentao,
apesar da adequao mecnica do seu trato orofarngeo.
Nesta direo, uma certa abordagem monista de corpo permite entender
como possvel o retorno de um sintoma aps a remisso das causas orgnicas
que justificavam sua presena. Tal perspectiva aquela que admite um caminho
que afasta a idia de corpo como exclusivamente orgnico.
Do ponto de vista teraputico, encontro sustentao no estudo de Parisi
(op. cit.), que pensa no imprevisvel do encontro entre terapeuta e paciente. H
neste encontro uma imprevisibilidade que, segundo ela, apesar de incluir, no se
restringe ao funcionamento antomo-fisiolgico. Ao terapeuta cabe caminhar com
o sujeito, acolhendo suas angstias e compreendendo porqu e como por meio
do corpo, em sua esfera orgnica, que os sintomas se manifestam e se
expressam.
Neste mbito, o corpo pode ser entendido como instncia que no obedece
diretamente materialidade antomo-fisiolgica. luz do estudo de Parisi (op.
cit.), entende-se que tambm no atendimento do paciente disfgico, o corpo pode
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ser tomado como processualidade e como singularidade. Falar em singularidade
considerar as particularidades do sujeito, considerar que cada sujeito nico,
suas caractersticas e sua histria (seus processos vivenciais) no se repetem,
assim, no possvel generaliz-lo pelas semelhanas fsicas com outros corpos.
O processo da terapia permite oferecer possibilidades de elaborao e de
reconstruo da histria do sujeito, por meio do vnculo estabelecido com o
terapeuta. Vnculo entendido, nesta pesquisa, como uma relao de confiana,
que potencializa a atualizao, na cena clnica, por parte do paciente, das
particularidades e questes relacionados ao seu sofrimento, dispondo-as
interpretao do terapeuta, oferecendo novos sentidos elaborao pelo
paciente.
Assim, no processo clnico-teraputico, abre-se espao para que o sujeito
se movimente. O encontro teraputico pode se tornar espao de
(des/re)construo contnua; criado com a finalidade de permitir ao paciente estar
aberto ao novo e ao terapeuta dividir o atravessamento das dificuldades do
processo com o paciente.
A presena do terapeuta precisa ser manejada e trabalhada,
constantemente, para que seja possvel a autonomia do paciente. Uma vez que
as indicaes nos tratamentos de disfagia referem-se, inicialmente, ao
acompanhamento da alimentao por meio da reabilitao, cabe ao terapeuta
encaminhar o processo teraputico, a partir do vnculo estabelecido, de modo a
oferecer condies para o paciente e seus familiares se apropriarem das
questes relativas alimentao de modo seguro, sendo possvel desenvolver
uma relao de gerenciamento e acompanhamento.
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O terapeuta, em cada encontro, entra em contato com o paciente e pode
intervir no processo corporal, simultaneamente, em suas dimenses bio-
psquicas. Nas palavras de Nasio (2003, p.15), o terapeuta o clnico que
acredita que para livrar o paciente de seu sofrimento preciso compreender o
sofrimento e, para compreend-lo, preciso experiment-lo; quer dizer, [...] sentir
em si o que o outro esqueceu. Nessa perspectiva, o terapeuta aquele que
atravessa o sofrimento com o paciente, e no pelo paciente.
No que diz respeito escuta clnica, o estudo de Fernandes (2003) sobre o
corpo e as intervenes psicanalticas, traz a idia de enquadres de escuta, para
distinguir a especificidade de uma abordagem propriamente psicanaltica das
relaes entre o psquico e o somtico, que tem como palco o corpo. Tal
proposio teve o intuito de chamar ateno para a idia de que a escuta,
tomada em seu sentido analtico, supe que exista sempre uma palavra a ser
ouvida, mais precisamente a ser acolhida (op. cit., p.28).
Seu trabalho institucional mostrou que preciso ir alm do que pode ser
ouvido, ou seja, no se pode escutar sem ver. A autora ressalta que o
escutar-ver primordial, principalmente quando se depara com situaes nas
quais as palavras pouco ou nada conseguem dizer (op. cit., p.28). O termo
escutar-ver amplia o material clnico do terapeuta, implica em ampliar as
possibilidades de cuidado, entrando em contato com o adoecimento do corpo e
revelando as relaes entre o psquico e o somtico. As relaes de vnculo
estabelecidas no processo teraputico abrem espao para a escuta do clnico ao
sofrimento do paciente, permitindo sua elaborao do processo vivido,
independentemente do espao em que a interveno teraputica ocorra.
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Nesta pesquisa de mestrado, em especfico, o atendimento clnico-
teraputico se deu no domiclio da paciente. Entretanto, no importa apenas o
local fsico em que o atendimento ocorra, mas se a atuao teraputica possibilita
apreender, atravs da escuta e do olhar diferenciados do terapeuta, a histria do
paciente, bem como a singularidade estabelecida pela/na relao teraputica.
Magalhes Jnior (2002) trata do atendimento domiciliar de uma paciente
afsica e situa a clnica da linguagem como abertura de espao fala do outro, na
qual o terapeuta deslocado da posio de modelo de fala para um lugar de
escuta do dito e do no dito, numa relao intersubjetiva, em que o imprevisto
entra em cena e no h nada predeterminado. Pensando no atendimento do
paciente disfgico, pode-se inferir que, embora se utilizem tcnicas de reabilitao
por meio de intervenes relativamente invasivas, no h como prescindir da
linguagem em sua atuao.
Considerar o setting fundamental em qualquer atendimento clnico,
inclusive no caso de um atendimento domiciliar; ele inclui um espao fsico que
abarca o funcionamento familiar. O setting constitui-se como uma marcao, um
enquadramento num campo, em que viabilizada e mantida a possibilidade do
paciente representar como quiser, e puder, a vida real na situao teraputica.
Sendo assim, pode ser constitudo em qualquer lugar que permita a construo
de tal espao relacional.
A determinao do setting no se refere a um espao fsico estrito, Cunha
(2002) menciona que o setting apresenta-se delimitado por certos parmetros
temporais e espaciais, que adquirem carter simblico, indispensvel aos
processos teraputicos para a mobilizao dos contedos inter e intrapsquicos,
tanto do paciente quanto do terapeuta. neste espao que o terapeuta e o
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paciente podem vivenciar situaes em que os contedos psquicos so
compreendidos como parte integrante da histria de vida do sujeito, mesmo que
no se esteja intervindo direta ou exclusivamente sobre eles.
Magalhes Jnior (op. cit.) afirma que em todo o lugar pode ser constitudo
um setting, j que este depende, principalmente, do ambiente humano e no do
fsico. O ambiente fsico conhecido e particular do paciente no caso, sua
residncia quando permite a estruturao do setting, deixa apreender aspectos
relevantes do paciente em suas particularidades e na relao com os outros com
quem (con)vive e destes com ele. A interveno fonoaudiolgica pode ser
favorvel no ambiente onde o paciente vive suas rotinas com os outros de sua
famlia, a partir da interveno nas rotinas da famlia com o paciente,
estabelecendo novas relaes ao longo de um processo teraputico, criando
condies de trabalho fonoaudiolgico com o paciente.
Mas, independente do ambiente em que se d a terapia fonoaudiolgica, o
processo teraputico ocorre apenas em virtude da presena de uma demanda de
um sujeito em sofrimento. Neste sentido, intervir de forma teraputica permite a
constituio de uma relao entre os sujeitos (terapeuta e paciente) que possa
ser ressignificada para alm da realizao de estimulaes diretas no organismo,
por meio de exerccios miofuncionais, para a correo de problemas orgnico-
funcionais.
tambm na relao entre sujeitos que se opera a relao entre-corpos.
O encontro se d no s pelo que o outro fala, mas por tudo que o toca. Muitas
vezes, por meio de uma expresso, de um cheiro, de um olhar, do jeito de
vestir-se, de uma palavra ou enunciado proferido de um certo modo, que se
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estabelece uma ligao ou um afastamento entre sujeitos. nesse espao virtual
de encontro com o outro que se expressa a singularidade do sujeito.
O contato entre sujeitos um contato afetivo, de como os corpos so
afetados e afetam outros corpos. Isso porque so os afetos que do o contorno
para as sensaes e para funcionamentos fsicos e psquicos. So os afetos que
impregnam ou esculpem o organismo, abrindo-lhe dimenso simblica,
responsvel pela condio humana, para alm da animal. O corpo desempenha
papel fundamental na organizao do inconsciente, sendo que atravs do
inconsciente que o corpo age sobre a conscincia (NEISSER, op. cit.).
O organismo lugar tanto de manifestao de sintomas decorrentes de
alteraes orgnico-funcionais, quanto da linguagem, enquanto processo de
simbolizao. Num corpo que sofre a manifestao de dores, no se pode
prescindir da linguagem para sua simbolizao. O sujeito, ao sentir uma dor, a
simboliza por meio de signos, o que permite a representao simblica.
Fernandes (op. cit.) menciona que sentir dor uma condio da representao do
prprio corpo e que, na dor corporal, existe um investimento psquico elevado na
representao do local do corpo dolorido. em funo disto que, muitas vezes, o
paciente disfgico pode enunciar que sente dor ou incmodo em determinado
local especfico do trato digestivo ou respiratrio ao deglutir.
Neste sentido, a linguagem apresenta-se como dinmica vital, que inclusive
d acesso dor e aos contedos psquicos. Assim, se o fonoaudilogo o
profissional que atua nesta esfera, no basta reabilitar o transtorno orgnico, cabe
atentar s questes psquicas que gerenciam a ao motora.
Palladino, Souza e Cunha (op. cit., p. 96) situam o estatuto simblico na
alimentao, apontando uma relao entre o corpo, a mente e a linguagem, por
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meio da sobredeterminao que a ordem simblica lhes impe, ou seja, a ordem
simblica cria uma sintaxe do corpo, organiza seu funcionamento fisiolgico.
Desta forma, pode-se ampliar a mxima de que um transtorno causado por uma
leso de rgo: o transtorno pode lesionar um rgo ou funo, mas tambm a
palavra tem essa capacidade, podendo reeditar o prprio transtorno ou mesmo a
leso (op. cit., p.99).
Os autores indicam um outro modo de olhar os transtornos alimentares,
pois observaram que a alimentao um lugar privilegiado de formao e
encenao de sintomas psquicos, como aqueles que, com freqncia, esto
implicados nos quadros de linguagem (op. cit., p.105). Deste modo, a
alimentao indica um transtorno sobredeterminante: o simblico (op. cit.,
p.105).
Tendo em vista que a disfagia configura-se por uma disfuno no processo
de alimentao, cabe considerar a existncia de imagens psquicas na
representao do que este processo significa ao sujeito. possvel enfrentar o
sintoma pela via do atendimento clnico, isto ocorre em funo do
estabelecimento de uma relao vincular entre o terapeuta e o paciente.
Ao remeter a uma relao de vnculo entre esta dade, importante
explicitar a relao transferencial nela estabelecida. Na esfera da transferncia, o
terapeuta acolhe a emergncia do sintoma e pode ajudar o paciente a enfrentar e
suportar os elementos que ganham algum nvel de elaborao pela via da fala. O
analista lida com o material primitivo, interpretvel verbalmente, de modo a
permitir que, neste processo, o paciente possa reviver sentimentos muito
primitivos, que so irresgatveis para a conscincia. O trabalho com a
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transferncia permite ao analista um conhecimento sobre o paciente que lhe d
meios de conduzir-se com segurana no processo analtico.
Por esse ponto de vista, a interveno realizada pelo fonoaudilogo no
processo transferencial, apenas lida com os contedos psquicos que o sujeito
traz cena clnica pela fala. Ou seja, o fonoaudilogo no interpreta a
transferncia, mas apenas na transferncia, buscando que o paciente elabore o
seu sintoma (CUNHA, 1997, p.147). Ao fonoaudilogo no cabe interpretar a
transferncia e trabalhar as questes da advindas, mas manejar e reconhecer
questes transferenciais nessa relao, considerando a subjetividade do paciente.
Essa diferena se faz necessria porque, na clnica psicanaltica, a
sustentao constante da demanda do paciente que dirige o trabalho, no sentido
do que leva pesquisa do material inconsciente, redescobrindo-o em velhas
histrias e em contedos infantis que revelam a novidade da repetio do sintoma
(FERNANDES, op.cit.). Na terapia psicanaltica, a transferncia a via
teraputica que permite a criao de novas histrias, de modo a no suprimir os
sintomas, mas a transform-los, distanciando-os do sofrimento que demandou o
atendimento.
Desta forma, para a autora, interpretar no tem o estatuto de desvelar o
sentido oculto do sintoma, mas de construir sentidos por meio das palavras. A
interpretao deve ser essa palavra em suspenso que o paciente pode continuar
a enunciar em busca de outras (op. cit, p.99), num processo e numa abertura
para o novo.
Considerando os contedos transferenciais que podem vir tona na cena
clnica, os conhecimentos tericos do fonoaudilogo permitem auxiliar o paciente
a interpretar seu sintoma de forma a encontrar seus sentidos, inclusive no
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tratamento dirigido ao organismo, portanto, tambm na interveno sobre a
disfagia. Significa dizer que o atendimento clnico fonoaudiolgico promovido a
partir da escuta que o terapeuta dirige ao paciente.
Fernandes (op. cit.) ao discorrer sobre a delicadeza da escuta, explora (o
que remete tambm a auscultao mdica) a significao do verbo escutar,
originada do latim auscultare que
significa, literalmente, a escuta dos barulhos internos do sujeito- mtodo que
significa aplicar o ouvido com ateno, perceber ou ouvir; ouvir com ateno. Pode-
se dizer, ento, que escutar precisamente dar ouvidos a... dar ouvidos quilo que
se enuncia apenas veladamente, quilo que somente um ouvido atendo e
experimentado na arte da escuta pode acolher. (id., p.94 - grifo da autora)
A autora, em sua formulao acerca da delicadeza da escuta, prope que
a este instrumento analtico recai uma leitura das palavras, de modo a considerar
a sutileza dos detalhes, dos gestos, das imagens internas do paciente. Para a
autora, a palavra do analista funciona de modo a incentivar o paciente a
desenvolver seu poder imaginativo de tal forma que o acontecimento que toca o
corpo no fique privado de possibilidades metafricas (id., p.99).
Esta proposta psicanaltica abre espao para pensar que as formas de
apresentao do corpo so modos de representao da condio psquica. Ou
seja, possvel acolher a doena somtica levando em conta que a leso, que
afeta um rgo, uma realidade singular para o paciente. Assim, ao tratar de
pacientes que apresentam distrbios orgnicos, muitas vezes, preciso nomear a
doena, dando-lhe, de alguma forma, um contorno e um limite, para que o
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paciente possa inscrever a doena em uma histria, produzindo sentido por meio
de uma cadeia associativa discursiva.
Dolto (2002) afirma que trabalhar a funo teraputica uma forma de
considerar que, pela via da linguagem, o sujeito (do desejo) estabelece relao
com o outro e pelo outro acolhido.
Na Fonoaudiologia, Cunha (1997), luz de estudos psicanalticos, introduz
o conceito de escuta no campo fonoaudiolgico, com a utilizao da expresso:
as duas orelhas do fonoaudilogo. A autora prope que uma das orelhas esteja
a servio de ouvir o que soa audio em sua materialidade concreta, no que
est perturbado devido s falhas e faltas. Mas, sem que isto ensurdea o
terapeuta ao contedo relatado em sua fala, outra orelha cabe escutar os
buracos e silncios que se instauram na estrutura formal da linguagem (id.,
p.115), considerando o carter simblico do sintoma, em seus contedos
subjetivos.
Assim, a autora prope a interpretao fonoaudiolgica como uma
modalidade que possibilite transformaes na linguagem ou nos aspectos
orgnicos alterados/perturbados, a partir da articulao entre representaes
simblicas corporais e contedos psquicos inconscientes. Chama ateno
inclusive para a importncia em se considerar/compreender a natureza e a
expresso orgnica dos sintomas, em articulao com suas faces simblicas.
A partir da noo freudiana de simbolismo, numa relao constante entre
os contedos manifestos e suas tradues do inconsciente, Cunha (1997)
trabalha numa perspectiva que admite a noo de corpo ergeno, enquanto corpo
atravessado pelas pulses. As questes advindas do seu material clnico
permitiram criar intervenes teraputicas, por meio da escuta e dos contedos
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transferenciais que emergiram no processo teraputico, ou seja, a reabilitao do
corpo fsico tambm se d por meio da escuta clnica.
Primeiramente, trata-se de considerar a fala (enquanto investimento na
atividade dialgica) como modo de traduo dos sintomas numa esfera psquica,
de forma que possam ser enunciados em uma linguagem que no apenas a
corporal. Alm disso, h que se levar em conta que a interveno corporal,
atravs dos recursos tcnicos tradicionalmente disponveis no mtodo
fonoaudiolgico so essenciais ao processo de reabilitao, desde que no se
abra mo dos valores simblicos que podem ser atribudos a eles pelos
pacientes. Pois, dependendo do enquadre teraputico constitudo, os exerccios
fonoaudiolgicos apresentam-se como uma via peculiar de acesso ao
inconsciente pelo corpo e no apenas pela linguagem verbal-oral. Assim, as
transformaes ocorridas no aparato biolgico tm relao com as questes
simblicas constitutivas do sujeito.
Cabe, ento, considerar o corpo nesta perspectiva. Os estudos de Dolto
(2004) sobre a imagem inconsciente do corpo e o esquema corporal podem
ajudar. A autora afirma que o esquema corporal uma realidade relativa forma
carnal de viver, ou seja, diz respeito ao contato do mundo fsico com a realidade
orgnica. o esquema corporal que especifica o indivduo enquanto
representante da espcie e que ser intrprete ativo ou passivo da imagem do
corpo (id., p.14). A imagem inconsciente do corpo peculiar a cada indivduo da
espcie humana, nica, uma vez que est ligada ao sujeito e sua histria,
relacionada, portanto, relao libidinal. A imagem do corpo
a sntese viva das experincias emocionais: inter-humanas, repetidamente vividas
atravs das sensaes ergenas eletivas e arcaicas ou atuais. [...] pode ser
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considerada como encarnao simblica inconsciente do sujeito desejante e, isto,
antes mesmo que o indivduo em questo seja capaz de designar-se a si mesmo
pelo pronome pessoal Eu e saiba dizer Eu. [...] A imagem do corpo a cada
momento, memria inconsciente de todo o vivido relacional [...] atual, viva, em
situao dinmica. (id., p.14,15)
Para a autora, qualquer manifestao humana, ligada a expresso de uma
demanda no corpo linguagem. A linguagem vocalizada forma o cdigo da
expresso audvel; a linguagem dos gestos e da mmica forma o cdigo dos
desejos sutilmente exprimidos que se do a perceber. Esses cdigos,
compartilhados pela me e pela criana, estruturam imagens que so
memorizadas. As imagens auditivas, olfativas, tcteis e visuais de percepes
diversas permitem que a carne seja expressa e torne-se simblica de seu desejo.
A imagem do corpo permanece inconsciente, mas se articula com o esquema
corporal4, que se desenvolve dia a dia e instrumenta a imagem do corpo (DOLTO,
2004).
A autora continua, afirmando que a linguagem a comunicao codificada
por afetos, que invoca, desperta o sujeito no outro, atravs das representaes
das emoes, dos sentidos, entre eles, os visuais e os tteis, conduzindo ao
prazer da intercomunicao com o outro. As zonas ergenas, onde se percebem
as referencias olfativas, gustativas, auditivas, visuais e tteis iro reger a
comunicao lingstica, descobertas e mantidas repetidamente pela criana, no
prazer do corpo, pela satisfao das necessidades que o adulto lhe proporciona.
A boca, as narinas, os ouvidos e a cavidade dos olhos, contidos no arcabouo
sseo enceflico, constituem a zona ergena cutneo-mucosa oral que,
4 Grifo da autora.
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juntamente da zona cutneo-mucosa anal e da uro-excrementcia, contgua
zona genital, constitui a zona anal. Boca e nus so lugares de tomada de contato
e ruptura de contato, nos limites do prprio corpo, em relao ao contato e
ruptura com a me, que leva sensaes ergenas dessas reas (DOLTO,
1996).
H uma sobredeterminao das estruturas orgnicas citadas que, alm de
estarem a servio da alimentao, disgesto e excreo de resduos, so
atravessadas por afetos que as simbolizam, que encenam prazer e desejo.
A zona oral sempre exibir uma espcie de truncamento entre a palavra, a
deglutio a respirao, enfim, nas funes que esto em cena desde os
primrdios da constituio simblica, do nascimento do sujeito. Ela ocupa um
espao de encenao simblica e por isso sua desorganizao apresenta-se
como sintoma (PALLADINO, SOUZA e CUNHA, op. cit.).
Pensar as relaes entre o corpo e a linguagem deixa refletir sobre as
implicaes da boca e da oralidade no sujeito. Golse e Guinot (2004) tratam das
questes relativas s dimenses psquicas da boca e da oralidade de crianas5.
Os autores situam outras funes para a boca, para alm da dimenso corporal e
anatmica. Embora o foco do estudo recaia sobre o tratamento de crianas,
muitas questes podem ser refletidas para sujeitos adultos, principalmente as
relativas s zonas ergenas.
Os autores relatam que a boca, enquanto zona ergena, tem papel de
estabelecimento de um limite entre o dentro e o fora, assim estabelece uma linha
de demarcao entre o registro da necessidade e do desejo no sujeito, desde seu
nascimento, quando amamentado pela me.
5 Traduo livre do francs, realizada por Fernanda Prada Machado.
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A boca e a oralidade, na viso dos autores, encenam assim um terreno
emblemtico e estruturante de uma srie de conflitos e apostas variadas, que vo
se tornar fundantes do sujeito. Assim como na criana, para o adulto, a boca um
campo de relao com o outro. No incio de seu desenvolvimento, tem a funo
primeira de alimentao; a boca encena um conjunto de elementos que passam a
funcionar tambm em outra ordem, revelando ligaes menos com o registro da
necessidade e mais com o do desejo.
Abordar as questes do corpo e do psiquismo, na direo das idias
propostas, traz subsdios que permitem pensar um modo de atuao
fonoaudiolgica nas disfagias para alm da reabilitao orgnica, ou seja, que
no desconsidere a subjetividade do paciente e as implicaes do acometimento
orgnico em sua vida.
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CAPTULO 3 PERCURSO METODOLGICO:
APRESENTAO DO CASO CLNICO
Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo.
(Fernando Pessoa)
Esta pesquisa adota o mtodo clnico-qualitativo que, por definio,
constitui um recurso que busca dar interpretaes a sentidos e significaes
sobre os mltiplos fenmenos pertinentes ao campo do binmio sade-doena,
permitindo ao pesquisador acolher angstias e ansiedades do ser humano,
valorizando os aspectos psicodinmicos mobilizados na relao com os sujeitos
em estudo (TURATO, 2003).
Dentre as muitas possibilidades de aprofundamento do estudo sobre o
fazer clnico, optou-se por investigar um caso clnico, de modo a considerar a
complexidade e a imprevisibilidade que acompanha este fenmeno singular.
Nesta direo, a pesquisa qualitativa no busca encontrar ou definir leis
constantes, que garantam uma generalizao, mas pretende investigar o
fenmeno para alm da sua aparncia, buscando, a partir da clnica, (re)pensar
as proposies tericas.
Para Nasio (2001), o estudo de caso tem trs funes ao descrever um
fenmeno, quais sejam: didtica, metafrica e heurstica. A funo didtica
desempenha um carter cnico, que confere a deduo de conceitos tericos a
partir da reflexo sobre um caso clnico e apresenta incontestvel sugesto de
ensino. A funo metafrica trata de ilustrar uma teoria por meio do caso clnico,
ou seja, a observao clnica apresenta-se de forma to imbricada ao conceito
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que se torna uma metfora dele. J a funo heurstica prope que o caso
ultrapasse seu papel de ilustrao ou de metfora emblemtica, tornando-se, em
si mesmo, um gerador de conceitos.
Nesta pesquisa, o estudo de caso remete s funes didtica e heurstica,
uma vez que por meio de sua anlise possvel ilustrar uma situao clnica, a
partir da qual se desenvolvem conceitos e teorizaes. No h meno funo
metafrica, devido ao fato de que, na Fonoaudiologia, no h relatos de casos
clnicos consagrados que representem por si s a substituio de um referencial
terico, como na Psicanlise, quando a teoria se coloca em cena ao se remeter
ao caso clnico. Ou seja, nesse campo, quando menciona-se um caso clnico,
como o caso Anna O. ou o caso Dora6, o conceito terico se apresenta
imediatamente ao interlocutor, que pode entender sobre o que est sendo referido
num determinado contexto cientfico.
Diante desses pressupostos, nesta pesquisa, o estudo de caso, como
recurso metodolgico, passa a ser uma escolha que permite desvendar, a partir
do interesse em compreender um processo, as caractersticas particulares num
contexto especfico de investigao de condies que ainda no apresentam
prvia teorizao.
Por meio do estudo de caso, tambm possvel contribuir para uma
reflexo e particularizao do processo teraputico, haja vista que este se
apresenta como uma situao cotidiana de vida, podendo iluminar reflexes
significativas para outros profissionais da rea, em seus processos teraputicos,
6 O caso de Anna O., remete ao conceito de transferncia desenvolvido por Freud, j o caso Dora, refere-se ao modo pelo qual o autor desenvolveu a conceituao sobre sintoma, enquanto sistema de representaes, que se manifesta no corpo como uma representao inadequada, apresentando uma nova nosologia: a histeria.
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advindas da prtica clnica e da investigao terica do pesquisador (TAHAN,
2003).
O estudo do caso no pretendeu esgotar a anlise sobre a vida, a
alimentao e a linguagem da paciente, mas apresentar, por meio de fragmentos
do processo teraputico, aspectos que marcaram e determinaram a conduta
teraputica, configurando, portanto, atualizaes daquela experincia clnica.
O caso clnico relatado nesta pesquisa de uma paciente de 82 anos
(nomeada, aqui, como Dona Laura), que foi acometida, em junho de 2004, por um
Acidente Vascular Enceflico Isqumico. A paciente apresentava quadro de
disfagia e de parestesia e paresia facial esquerda, alm de alterao na
expresso da linguagem e disartrofonia; estas ltimas, diagnosticadas na
avaliao fonoaudiolgica realizada enquanto ela ainda se encontrava
hospitalizada. Durante a escrita da dissertao, encontrava-se em atendimento
fonoaudiolgico e teve capacidade cognitiva de decidir sobre sua participao na
pesquisa, isto , ela no era mentalmente vulnervel e, portanto, no perdeu sua
autonomia cognitiva.
O material clnico constitui-se de dados colhidos na prtica clnica, de
modo a permitir a investigao e a reflexo. Os dados no so dispostos de forma
direta, so colhidos pelo pesquisador (LWY, 1985) que, ao selecionar e recortar
aspectos do dado bruto, proveniente do material clnico, circunscreve um
determinado objeto de investigao. A escolha do pesquisador, portanto, no
aleatria, envolve suas convices, valores e repertrio terico. No se trata de
um pesquisador neutro, mas que est em constante relao com o material
pesquisado. A relao entre o pesquisador e o sujeito pesquisado ativa, ou seja,
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entendida como significativa na constituio do material clnico a ser tratado
pela pesquisa.
Muito embora a paciente estivesse em atendimento durante o perodo
vigente de elaborao da escrita da dissertao de mestrado, os dados para
reflexo na pesquisa foram coletados no perodo de junho de 2004 a dezembro
de 2005. O material clnico constituiu-se da anlise das memrias dos
atendimentos ocorridos e dos registros semanais, escritos em forma de narrativa,
aps os atendimentos realizados, num total de 74 registros. Tratar da memria
clnica implica dizer que a escrita clnica coloca em cena o exerccio teraputico
de lidar com os contedos (contra)transferenciais vividos no setting. Assim, o
material clnico produzido pelo par teraputico sempre um conjunto de
representaes, isto , no acontece em um s momento (CUNHA, 2000).
Embora a coleta de dados seja cumulativa e linear, recebe tratamento
interpretativo constante por parte do pesquisador-terapeuta, tornando-se uma
produo cientfica, a partir do momento em que passa a ser matizada pelas
reflexes e articulaes tericas.
A anlise do material ser realizada por meio da articulao entre
referenciais tericos da Fonoaudiologia, da Psicanlise e da Filosofia sobre
conceitos de organismo, de corpo simblico e de sujeito. Segundo Gonzlez
(1999), o suporte terico apresenta-se como uma importante referncia para
intermediar a produo terica do investigador sobre o objetivo ao qual ele se
debrua para estudar.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comit de tica do Programa de Estudos
Ps-