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    O ATO DE NOMEAR- DA CONSTRUO DECATEGORIAS DE GNERO AT A ABJEO

    Thami Amarlis Straiotto Moreira (UFG)[email protected]

    1. Sobre nomearA nomeao uma das questes centrais quando o assunto a

    relao entre linguagem e realidade. Em geral, a relao lingua-gem/realidade bastante complexa por si s. A nomeao apenas

    uma das funes da linguagem que tem um papel muito importante,pois os significados dos nomes organizam e classificam as formas deperceber a realidade, alm de estarem ligados diretamente com umacultura ou comunidade.

    Um nome no uma palavra aleatria ou qualquer. Ele sem-pre quer dizer alguma coisa e sua relao com a significao com-plexa. Dizer isso significa que a questo dos nomes e seus significa-dos sempre geraram muita polmica e inquietao. As propriedadesde um nome nem sempre esto postas s claras, o que geralmente

    cria muita discrdia entre os filsofos e linguistas. Quando pensamosem nome e no que ele significa logo nos vem cabea alguma desig-nao. Como se um nome servisse para designar as coisas, pessoas,lugares, etc. Enfim, como se ele servisse para especificar algo que nomeado. Especificar ou designar algo quer dizer separar algumacoisa para lhe dar destaque. Para lhe conferir uma certa exclusivi-dade de tratamento, quero dizer, para se referir a algo sem recorrer aalguma interferncia que um objeto pode ter em outro.

    1.1.Plato e o nomeO nome sempre suscitou uma questo ontolgica, quer dizer,

    uma questo de existncia. Nomear era considerado como pressupora existncia de algo. Essa noo surgiu com Plato (2001). Ao anali-sar a relao dos nomes com o estado de coisas no mundo, ele for-mula o problema ontolgico dos nomes: se h um nome porque ho que nomeado. possvel falar significativamente de coisas queno existem? E se no existem, fala-se ento do nada, um no-ser?

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    Para Plato (2001), nada pode ser afirmado com sentido acerca donada, do no ser, pois sobre o no ser no h significado. Ento, nada

    se poderia falar sobre ele com sentido porque ele no faz parte da re-alidade.

    Usar um nome como um compromisso que se estabelece.Um compromisso de que aquilo existe na realidade sendo, portanto,verdade. Plato (2001) trata, no dilogo estabelecido entre Scrates eHermgenes, a questo da nomeao de maneira essencialista. Her-mgenes no acredita que os nomes possuem uma motivao e, por-tanto, esse nome arbitrrio. Para ele, a justeza dos nomes no se

    baseia em outra coisa seno uma conveno ou um acordo. Os no-

    mes obedecem lei do costume e do hbito. Ento, Hermgenes ar-gumenta que sendo assim possvel mudar o nome das coisas semque haja prejuzo de acerto.

    Scrates, por sua vez, questiona a convencionalidade dos no-mes. Ele questiona primeiramente se a mudana dos nomes algoque qualquer um possa fazer quando quiser, se essa mudana aconte-ce dessa maneira mesmo to livre e se ela traz prejuzos. Logo emseguida ele lembra Hermgenes de que tanto possvel dizer umnome verdadeiro quanto um falso. Pode-se tanto dizer a verdade oumentir ao pronunciar um nome. Quer dizer, posso designar um obje-to com um nome falso, que no corresponda ao objeto.

    Plato (2001), ao dar voz a Scrates, instaura a noo de ver-dade que no se aplicaria apenas aos nomes, mas aos homens e, as-sim, a todas as coisas e seres do mundo. A verdade seria nica, querdizer que a verdade no depende do juzo de cada um, mas ao mes-mo tempo ela no seria semelhante nem simultnea a todos, mesmosendo nica. Assim, a verdade das coisas, voltando aos nomes, exis-

    tiria por si mesma. Com isso, Plato chega essncia das coisas e se-res no mundo. A verdade no depende de cada indivduo em particu-lar.

    O que Plato faz dar certa autonomia s aes, uma auto-nomia dependente da verdade, de um modo natural e certo de agir decada coisa. E no corresponder a esse modo correto de cada coisa, ouseja, essncia de cada ser no mundo significa errar. O erro na no-meao diz respeito a errar quanto denominao que fazemos atra-vs de um nome. Plato quer dizer que nomear tambm seguir uma

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    essncia ou verdade, mas que a possibilidade de errar existe, e assima coisa nomeada ficaria com uma designao falsa.

    Para ele, a nomeao uma funo da linguagem, como uminstrumento, seguindo o seu prprio exemplo, um furador que utili-zamos para perfurar, ou uma lanadeira que usamos para tecer. As-sim tambm o nome o que usamos para nomear. Nomear desig-nar alguma coisa e isso, segundo Plato, significa dar informao dacoisa designada aos outros. Ou seja, distinguir uma coisa entre ou-tras conforme suas constituies.

    Plato comea a fazer associao entre a nomeao e a identi-dade. Se nomear designar algo sobre alguma coisa, e isso infor-mar e distinguir essa coisa das demais de acordo com as suas pr-

    prias caractersticas, ento nomear um ato de identidade, que pro-move a identidade. Nomear separa atravs da diferenciao uma coi-sa da outra, separa e difere os seres, estados de coisas. E cria a iden-tidade.

    1.2.Nome e identidadeBrah (2006, p. 335), analisando o termo negro, mostra que

    [q]uando utilizado em relao aos sul-asiticos o conceito de fatoesvaziado daqueles significados culturais especficos associados comexpresses como msica negra. Ela mostra como o termo negroadquire significados diferentes de acordo com o lugar no qual ele empregado. As palavras e seu uso esto condicionados a regras, co-mo em um jogo, e que so regras estabelecidas mediante um acordoe tidas convencionalmente na lngua em uso.

    Ampliando essa noo de regras e convenes, possvel vi-sualizar que so as prticas e costumes de cada cultura que regem ouso cotidiano da lngua. a poltica de cada regio, a religio e asclasses sociais predominantes, entre outros marcadores, que voconstruindo e produzindo costumes e sentidos. No caso que Brah a-

    presenta, o nome negro enquadra pessoas diferentes em diferenteslugares, e o motivo da diferena so os marcadores identitrios con-textualizados que interseccionam as culturas, trazendo novas con-cepes e vinculando interesses diversos.

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    Silva (2007, p. 76) afirma que identidade e diferena parti-lham uma importante caracterstica: elas so o resultado de atos de

    criao lingustica. Tratar daquilo que feito quando se nomeia ainda realizar um ato de predicao. Ou seja, sempre que nomeamosatribumos simultaneamente um predicado, um complemento ao no-me, uma caracterstica, um adjetivo. E com isso, diferenciamos e i-dentificamos, classificando e separando. A nomeao , por causa da

    predicao, um ato que diferencia, sendo tambm um ato que identi-fica.

    Se o nome a base para que a identidade surja, ele quem di-ferencia as coisas e seres no mundo. A identidade e a diferena, se-

    gundo a proposta de Silva (2007), acontecem simultaneamente sendoum produto de um mesmo processo, o da identificao. Por trs deuma identidade existe sempre ao menos uma negao. E a diferenasempre nega vrias afirmaes. Ento, dizer que se algo ou se iden-tificar sob um nome significa negar e esconder vrios outros que deimediato no aparecem. Essa negao e o que est escondido no no-me no esto dados junto com o nome. O que aparece de forma ex-

    plcita no nome o predicativo ou complemento que o acompanha.

    1.3.O ato de nomearO que o ato de nomear pode querer dizer ou fazer? Ou seja, o

    que o ato de nomear pode representar? Com a viso performativa dalinguagem trazida por Austin (1976), fica mais fcil perceber como alngua opera as identidades. Para Austin, dizer implica fazer. Dizeralguma coisa no significa a simples descrio de algo, ou um relatode um acontecimento, muito menos apenas a declarao de algumacoisa, pois toda declarao em si realiza uma ao. Austin separoudois grupos de sentenas: o constativo e o performativo.

    Os performativos seriam as sentenas mascaradas, aquelasque se disfaram porque parecem desempenhar uma funo quandona verdade desempenham outra. Nesse caso, os performativos se dis-faram de sentenas declarativas enquanto que, ao invs de declara-rem ou descreverem algo, elas fazem. Quer dizer, as sentenas cons-tativas teriam a funo de descrever a realidade ou declarar algumacoisa ou fato do mundo, e as performativas realizariam uma ao.

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    Mas muitas vezes podemos nos enganar se uma sentena constativaou performativa, Austin diz que as performativas se camuflam como

    se fossem constativas, pois no percebemos de pronto que mais quedeclarar ou descrever o mundo essas sentenas performativas provo-cam uma ao no mundo. Ao final, ele defende que a dificuldade emseparar constativo de performativo acontece porque todas as senten-as so performativas.

    Assim, Austin parte para a anlise de um ato performativo eo divide em trs partes chamadas de locucionrio, ilocucionrio e

    perlocucionrio. Todas essas partes acontecem juntas, no so sepa-rveis porque elas, juntas, formam o ato de fala. Como locucionrio,

    Austin delimitou a sentena em si, a locuo com todos os sons e to-da a gramtica de uma lngua, o enunciado. De ato ilocucionrio, elechamou a ao que a sentena opera, e de perlocucionrio as suasconsequncias ou efeitos.

    Dizer que falar implica em fazer uma maneira de dizer queo ato de fala tem fora, seno no realizaria ao. Mas essa fora noest na prpria palavra em si, est em todo o conjunto que a possibi-lita existir e ter sentido. Para ter fora de realizar a ao que se quero ato de fala precisa vir acompanhado das convenes que o gover-nam. Austin mostrou que para que uma fala realize uma ao pre-ciso que convenes sejam respeitadas e seguidas. So as condiesque devem ser satisfeitas para que um ato seja realizado de forma fe-liz, que significa completa. Caso esses procedimentos no sejam sa-tisfeitos teremos um caso de infelicidade, no qual o ato esperado noacontecer por violao de alguma conveno. Ele separou seis con-dies, entre as quais as quatro primeiras correspondem a desacertosonde h a tentativa do ato, mas uma tentativa nula. E os dois lti-mos Austin considerou como abusos onde o ato vazio.

    Desmistificando as pretenses filosficas que medem a lin-guagem nela mesma quanto ao valor de verdade, Austin mostra comsua teoria e principalmente atravs das infelicidades, que toda a lin-guagem uma produo e construo que depende do sujeito. Sujei-to e lngua aparecem juntos na linguagem. No possvel separar su-

    jeito e linguagem porque tanto o sujeito quanto a lngua operam omundo. Os dois so considerados agncias dentro da viso performa-

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    tiva porque os dois realizam aes. Isso ressalta a importncia do su-jeito para a constituio da performatividade do ato de fala.

    Quem fala e de onde se fala so questes centrais que revelamos interesses por trs do que falado. Para a nomeao, extrema-mente relevante, uma vez que o ato de nomear performativo porque

    pratica uma ao que, segundo as convenes estabelecidas por Aus-tin, precisa preencher todos os requisitos para que seja completa. Va-le ressaltar que nesse ato, assim como nos outros, as posies dequem nomeia e do que nomeado devem ser obedecidas, e essas po-sies revelam quem tem poder e autoridade para nomear e quem, ouo que, est subordinado a esse poder.

    Austin mostra que o poder no se encontra nas prprias pala-vras porque existe a fora ilocucionria que se refere a condies fo-ra da linguagem. Se refere a quem diz e s condies de dizer. E es-sas condies acabam se tornando fundamentais para mostrar se oato legtimo ou no. Como explica Bourdieu (1996, p. 87), O po-der das palavras apenas opoder delegado do porta-voz. Na verda-de, a lgica da linguagem no est nela mesma, mas vem de fora. Asmanifestaes lingusticas obedecem a um poder exterior a ela que revestido de autoridade (BOURDIEU, 1996, p. 87).

    O sujeito pronuncia as palavras, detm o ato de fala. No en-tanto, ele fala de acordo com o que ele pode falar, manipulando alngua com toda a sua estrutura sinttica e semntica de acordo comseu interesse, mascarando suas intenes, disfarando o seu ato per-formativo em descrio ou constatao de algo, tirando a autonomiae autoridade que lhe pertence ao manifestar-se linguisticamente, pas-sando-a para a lngua ou at para a natureza. Bourdieu (1996) chamaa ateno para o sujeito ou porta-voz, pois este sujeito quem disfar-

    a a performatividade da lngua. A linguagem, portanto, no aconte-ce sozinha, no aparece de forma isolada e independente da existn-cia humana. Ao contrrio, ela est ligada produo feita pelo serhumano, ela surge a partir dele e os dois, linguagem e sujeito, agemno mundo. Mas dizer isso no tira a autoridade do sujeito e no fazcom que a lngua adquira autoridade e fora por si s. A lngua temfora, mas governada pelas circunstncias de seu uso, que inclui tan-to as convenes quanto os sujeitos.

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    Isso no ato de nomear se torna imprescindvel j que a nome-ao no o simples ato de identificar coisas no mundo. A nomea-

    o tem fora, mas apenas ter fora para nomear algum objeto oupessoa se vier de algum com a autoridade devida para isso. Quandose nomeia, a autoridade da palavra no intrnseca prpria lngua,como no em nenhum outro uso da palavra, a fora designada pe-la pessoa ou instituio que a usa.

    2. Corpo abjeto2.1.Nome e gnero

    Como a linguagem constri as categorias de sexo? (BU-TLER, 2003, p. 10). Butler afirma que essa construo acontece a-travs da circulao de fbulas de gnero criadas pelas estruturas ju-rdicas que legitimam as pessoas perante a sociedade, instituindo umcontrato social no qual os sujeitos consentem livremente e, em suamaioria, ingenuamente em serem governados e manipulados por essaestrutura de poder e interesse. A circulao de fbulas de gnero criaa noo errada de que gnero algo natural por causa do discurso e-laborado por elas, fundado em uma ontologia fundante do ser, espe-cialmente atravs da nomeao, como se j existisse algo pr-estabelecido antes mesmo do sujeito. Essa circulao no desinte-ressada, baseada nas relaes de poder existentes na sociedade.

    Somos regidos pela matriz heterossexual1, que binria e o-posicional. De acordo com essa matriz, homem e mulher apare-cem justamente nessa ordem hierrquica, primeiro homem e depoismulher. Ela supe que esses dois nomes sejam distintos e que um se-

    ja exatamente o extremo do outro, sugerindo que um refira sempre

    diretamente ao outro. O gnero articulado ao sexo de cada sujeito,ou seja, desde que se nasce j se determina o gnero e a vida mar-cada.

    1 O termo usado por Butler para designar a grade de inteligibilidade cultural na qualos corpos, o gnero e os desejos so naturalizados. Serve para caracterizar o modelodiscursivo/epistemolgico que hegemnico e que estabelece a necessidade de umsexo estvel expresso por um gnero tambm estvel. Aqui, o termo tem o mesmo

    sentido.

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    A classificao de gnero organizada a partir do corpo. Ocorpo o lugar de estilizaes, sendo, antes de tudo, uma entidade

    poltica, pois o gnero institudo pelas estruturas que constituem opoder e relacional porque se constitui sempre entre um eu e outro, e,por isso, interseccionado por raa, nacionalidade, classe etc., entreoutros marcadores identitrios. Presumir uma identidade definida pa-ra as categorias de gnero, tanto mulher como homem, significadizer que existe uma identidade fixa que inata cada pessoa.

    A noo de sujeito para a poltica primordial, uma vez que atravs dessa noo que se pode governar e manipular algum. A e-xistncia da categoria de gnero justamente para inserir os sujeitos

    dentro de uma, e apenas uma, das duas do par binrio ho-mem/mulher e barrar a diversidade. Estando dentro de uma des-sas categorias, pressuposto que o sujeito deve agir em concordn-cia com a norma exigida pela categoria e que tenha determinadas ca-ractersticas de comportamento e desejo. O gnero estabelece limitesa serem seguidos por cada pessoa. Esses limites devem guiar o su-

    jeito e fixar fronteiras entre homens e mulheres, o que significaser homem e o que significa ser mulher dentro da nossa sociedade.

    Homem e mulher, esses so os dois nomes aceitos pela ordemde gnero criada pela Lei, so as duas nicas formas possveis de ar-ticulao da existncia dos corpos dentro da sociedade. So corres-

    pondentes ao sexo macho e fmea que designam o desejo e atra-o pelo corpo oposto ao seu sexo. Sexo, gnero e sexualidade apa-recem em sequncia como consequncia um do outro. Uma trajetria

    bem marcada e delimitada pela norma de posies que os corpos de-vero assumir no decorrer de suas vidas. Se um corpo foge a essa de-limitao, ele torna-se ilegtimo e excludo ou marginalizado.

    2.2.Poltica e performatividadeAs marcaes de gnero so categorias identitrias que locali-

    zam os corpos e os marca de acordo com uma das duas categorias degnero possveis. A necessidade dessa fixao dos corpos em um dosgneros serve para identificar e organizar os corpos tornando-os le-gveis, o que facilita a governabilidade dos mesmos, uma forma decontrole. Para criar essas categorias, um modelo posto como o re-

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    presentante, o que Butler (2003, p. 205) chama no incio de catego-rias fundantes, para depois nome-las de fantassticas.

    Fundantes porque seriam elas que proporcionam as bases deformao de uma categoria identitria, e pretendem ser fixas e mos-trar s pessoas que o gnero algo imutvel. Porm, por no daremconta de todos os corpos e principalmente dos deslocamentos que e-les fazem entre uma categoria e outra, por exemplo, a pardia decorpos tidos como masculinos, mas que se travestem em femininos,os casos de hermafroditismo e vrios outros corpos hbridos que bur-lam o sistema binrio oposicional, eles rompem com essas represen-taes ditas fundantes. Por isso, as categorias fundantes para Butler

    (2003) passam a ser chamadas de fantassticas, ou seja, no pas-sam de uma inveno que no corresponde aos corpos, realidade.

    Inveno que significa construo, e, portanto, o sujeito surgeatravs do processo, ele se forma durante o processo de constituiode uma identidade. Gnero um ato, um comportamento que traba-lhado. No existe um gnero antes do ato ou por trs das atitudes edos comportamentos. O sujeito se constitui durante as prprias aescomportamentais. Ou seja, o comportamento no consequncia deum gnero ou sexo; gnero e comportamento acontecem simultane-amente e so interdependentes. Acreditar nisso ver a possibilidadede mudar a identidade ou misturar as identidades de gnero, alm derevelar o carter performativo, no sentido austiniano, das identidadesde gnero.

    2.3.Subverso atravs do corpoAdmitindo que a identidade mutvel e construda social-

    mente a partir do contato com outras identidades, e que, alm disso,desde que nascemos nos encontramos condicionados por uma normaimputada a ns e esperada que sigamos pelos outros, podemos per-ceber a falcia das identidades de gnero. Porm, fugir a essa normanos caracteriza como sujeitos ininteligveis e deslegitimados, cau-sando excluso e marginalizao de nossos corpos.

    E justamente isso o que acontece muitas vezes, corpos quefogem regra estabelecida, significando que existe um espao enor-me entre um gnero e outro, que um no refere diretamente o outro

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    podendo haver vrios outros estilos comportamentais. E mais, com oaparecimento desses corpos desviantes, torna-se uma iluso a ideia

    de que gnero e sexo significam a mesma coisa, esto juntos e queexiste o antes do sujeito.

    Comportamentos no so determinados por uma constituioanatmica, e sim por uma construo social. Portanto, gnero pro-duzido, baseado em uma matriz, a heterossexual, para melhor gover-nabilidade, e mantido por estruturas jurdicas e outras estratgiascomo a linguagem. A atuao do gnero dentro da sociedade criare manter hierarquias, facilitando o controle dos sujeitos. Homemcomo universal e abstrato e a mulher o Outro, concreto e indivi-

    dual. E eles se relacionam assim como a mente e o corpo, estandoum acima do outro. O homem como a mente e a mulher como o cor-

    po. Mente e corpo operam valores diferentes, assim como homem emulher.

    Butler (2003) sugere uma poltica de coalizo que rompa coma ideia de univocidade, possibilitando a movimentao das identida-des dentro da sociedade. uma abordagem antifundacionista quetenta e quer articular uma noo de identidade mutvel e mltipla.

    2.4.Materializando corposO gnero estabiliza o corpo dando a ele a humanidade. Estra-

    nho pensar em um corpo desumanizado, porm assim que acontececom a inteno de significao dos mesmos dentro da sociedade. Aabjeo o desumano, o que no possui as imagens corporais signi-ficantes em: menino ou menina?. atravs dessas imagens corpo-rais que o corpo se torna humano. E o no humano se encontra sem

    identificao dentro da sociedade e sem lugar. Ele passa a no signi-ficar nada e, portanto, a no existir dentro do sistema, mesmo que eleesteja ao nosso lado. So corpos que no constituem matria e peso.

    A abjeo no marcada e no possui uma posio dentro dasociedade, nem como excluda. um corpo no articulado, seu lu-gar no foi marcado [...] neste mundo que me evitou. E ela/ele arti-cula o sentido inicial de abjeo (BUTLER, 2003, p. 153). Para noser marcada, a abjeo no deve ser proferida, descrita, nomeada,

    pois, uma vez feito isso, ela ganha peso e se constitui como matria

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    dentro da sociedade, deixando de ser abjeo. E esse um grandeproblema pois corremos o risco de atribuir-lhe sentido a partir do

    nosso sistema de nomeao e predicao.A abjeo existe e percebemos sua existncia que incomoda e

    torna a lei confusa. Mas ela no nem o certo e nem o errado, nem odentro e nem o fora, nem o incluso e nem o excluso, pois para todasessas categorias pressupe-se que ajam corpos que devem ser evita-dos e que geralmente so o oposto dos tidos como modelos de exis-tncia, lugares marcados. uma operao prpria e tpica da lei, ela binria e, portanto, funciona por oposio, assim todas as suas ma-nobras agem no sentido de confirmar a oposio e o binarismo do

    mundo. De modo que at o que certo diretamente oposto ao erra-do e os dois formam par e se afirmam mutuamente.

    Ento, os corpos so abjetos porque no esto dentro da onto-logia, e a ontologia conhecida e criada a partir do nosso sistema e-

    pistemolgico de conhecimento. Um sistema em que prevalece amaneira de conhecimento do eu em detrimento do conhecimentodo Outro. Ou seja, a distribuio ontolgica guiada por relaes de

    poder e interesse. O campo do eu no neutro e dentro desse sis-tema de conhecimento ele quem possui o poder para dizer o que real ou no, o que existe ou no, portanto, o que se materializa ouno. E mesmo fora desse campo do que existe, ou sendo excludo doque real, os Outros corpos tambm possuem um conhecimento eum sistema, mesmo que diferentes do eu. Assim tambm os corposexcludos desse eu e Outro, ou seja, a realidade excluda no deixade existir apenas porque deixou de ser classificada ontologicamente

    pela epistemologia.

    A materialidade acontece atravs dos discursos, e vale e mui-

    to perguntar quais os discursos que podem circular ou que podem serfalados. A materialidade dos corpos est envolvida nesses discursosque produzem ontologia, atravs de formas e normas comportamen-tais e de conduta, normas normativas e polticas, mas tambm atra-vs dos atos de nomeao que integram tais discursos. o discursoda autoridade, e s tem autoridade quem possui poder. Poder primei-ro para dizer e depois para ser ouvido e obedecido. importantelembrar que todo discurso uma reificao de valores e uma reitera-o de sentidos dispostos da forma que se quer destacar e dada a n-

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    fase que se quer dar em determinados pontos. Ento, alguns fatos soesquecidos enquanto outros so frisados. E o performativo pode ser

    uma das formas pelas quais o discurso operacionaliza o poder.(BUTLER, MEIJER & PRINS, 1999, p. 161).

    Os corpos abjetos so contraditrios, e essa a condio pro-posital dos mesmos para que essa contradio invoque uma existn-cia impossvel e a imponha. A abjeo significa ambivalncia, ambi-valncia de pertencer a algum sexo, a alguma categoria. Talvez a nomarcao da abjeo se d justamente por causa dessa ambivalnciaque a impossibilidade de fixao do corpo a uma s categoria. Tal-vez existam outras categorias que no fazem sentido para ns por

    no se encontrarem dentro da nossa norma.Creio que a nomeao normatiza os corpos tornando-os fixos

    dentro de uma categoria porque a construo dos corpos e suas dis-posies dentro da sociedade se do por meio dos discursos criados sua volta. E o ato de nomear traz consigo delimitaes, que signifi-cam limites correspondentes aos nomes. Segundo Butler (BUTLER,MEIJER & PRINS, 1999), o abjeto fica fora do que nomeado, de-signado, classificado. No o imprprio ou errado, o que est forade cogitao.

    E quais so to inominveis e inclassificveis que se tornamimprprios impropriedade, ficando fora do imprprio? (BUTLER,MEIJER & PRINS, 1999, p. 166). Corpos abjetos so corpos queno possuem vida, mas no porque esto mortos, e sim porque vivemnas regies sombrias da ontologia (BUTLER, MEIJER & PRINS,1999, p. 157).

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