o Ator e Seus Duplos

311
¿MASCARAS •BONECOS, ¡OBJETOS Ana Maris Amaral I m SAO PAULO I ed lls P

Transcript of o Ator e Seus Duplos

Page 1: o Ator e Seus Duplos

¿MASCARAS

•BONECOS,

¡OBJETOS

Ana Maris Amaral Im

SAO PAULO

I

edllsP

Page 2: o Ator e Seus Duplos

01-4982

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Amaral, Ana Maria.O ator e seus duplos : máscaras, bonecos, objetos / Ana

Maria Amaral. - São Paulo : Editora SENAC São Paulo, 2002.

ISBN 85-7359-227-3 ISBN 85-314-0665-X

1. Arte dramática 2. Atores 3. Bonecos (Teatro) 4. Máscaras (Teatro) I. Título.

CDD-792.028

índices para catálogo sistemático:1. Duplos no teatro : Artes da representação 792.028

Page 3: o Ator e Seus Duplos

edusP

0 ATOR Em WPtOÍ:máscaras, bonecos, objetos

Ana Maria Amaral

senac□□SÃO PAULO

Page 4: o Ator e Seus Duplos

ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DO SENAC NO ESTADO DE SÃO PAULO

Presidente do Conselho Regional: Abram SzajmanDiretor do Departamento Regional: Luiz Francisco de Assis SalgadoSuperintendente de Operações: Darcio Sayad Maia

EDITORA SENAC SÃO PAULO

Conselho Editorial: Luiz Francisco de Assis SalgadoClairton Martins Luiz Carlos Dourado Darcio Sayad Maia Marcus Vinícius Barili Alves

Editor Interino: Marcus Vinicius Barili Alves ([email protected])

Coordenação Editorial: Isabel M. M. Alexandre ([email protected])Coordenação de Produção Editorial: Antonio Roberto Bertelli ([email protected])

Preparação de Texto: Fátima de Carvalho M. de Souza Revisão de Texto: Adalberto Luís de Oliveira José Alessandre S. Neto Kátia MiaciroProjeto Gráfico e Editoração Eletrónica: Fabiana Femandes Capa: Sidney IttoImpressão e Acabamento: Cromoscte Gráfica e Editora Ltda.

Gerência Comercial: Marcus Vinicius Barili Alves ([email protected])Vendas: José Carlos de Souza Jr. ([email protected])Administração: Rubens Gonçalves Folha ([email protected])

ESPReitor: Jacques Marcovitch Vice-

reitor: Adolpho José Melfi

I edusPEDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO

Diretor-presidente: Plinio Martins Filho

Comissão Editorial: José Mindlin (Presidente)Oswaldo Paulo Forattini (Vice-presidente)Laura de Mello e Souza Murillo Marx Plinio Martins Filho

Diretora Editorial: Silvana Biral Diretora Comercial: Eliana Urabayashi Diretora Administrativa: Angela Maria Conceição Torres Editor-assistente: João Bandeira

Todos os direitos desta edição reservados à Editora SENAC São PauloRua Rui Barbosa, 377 - P andar - Bela Vista - CEP 01326-010Caixa Postal 3595 - CEP 01060-970 - São Paulo - SPTel. (11) 3284-4322 - Fax (11) 289-9634E-mail: [email protected] page: http://www.sp.senac.br© Ana Maria de Abreu Amaral, 2001

Page 5: o Ator e Seus Duplos

KIMMO

7Nota dos editores

9

Prefácio

Henryk Jurkowshi

1)Introdução

19Capítulo 1-0 ator

79Capítulo 2 - A máscara

77

Capítulo 3-0 boneco

11)Capítulo 4-0 objeto

1)3Objetivos, processos e fotografados

D)Referências bibliográficas

1)9Sobre a autora

Page 6: o Ator e Seus Duplos

NOTA DOS tDÍIOüCSWp' ator como personagem e o ator como manipulador de objetos são analisados aqui pela diretora e dramaturga Ana Maria Amaral, que alia a cuidadosa pesquisa e a acuidade teórica ao sentido didático desen- volvido na orientação de cursos e workshops. Como resultado, tem-se um livro que, útil para profissionais e estudantes de interpretação, é também de vivo interesse para todos os apreciadores das artes cênicas, graças às considerações sobre o trabalho do ator em geral e o do ator que manipula máscaras, bonecos e objetos.

A arte teatral ganha mais uma merecida contribuição com este livro que o SENAC de São Paulo e a Edusp (Editora da Universidade de São Paulo) lançam em parceria.

Page 7: o Ator e Seus Duplos

7

Page 8: o Ator e Seus Duplos

atual interesse por atores não humanos, tais como manequins, máscaras, bonecos ou objetos, parece resultar de um longo processo histórico das artes cênicas. Desde os primórdios a humanidade esteve em contato com essas representações de deuses, homens, animais e seres fantásticos que serviram para que o homem visualizasse o mundo antes mesmo de decidir-se a pisar num palco. Pouco a pouco, máscaras, figuras e bonecos foram retirados das cerimónias religiosas e das produções artísticas, cedendo lugar a pessoas-atores-mas apenas temporariamente. Hoje ressurgem em grande número, não como expressões marginais de arte popular ou peças de apelo infantil, mas com papel de destaque entre as mais refinadas manifestações artísticas.

Se nos voltarmos para a origem das artes, compreenderemos esse processo. Os homens de então, chocados e amedrontados com o ambiente hostil que os rodeava, tentaram negociar com as forças naturais - terra, fogo, água e ar e seus fenômenos decorrentes (terremotos, vulcões, inundações) -, assim como com os animais selvagens, conferindo-lhes o status de existência divina. Por não poderem se comunicar diretamente com esses elementos, passaram a representá-los por meio de ídolos, fetiches, estátuas. Essas figuras ganharam movimento, tornando-

Page 9: o Ator e Seus Duplos

se estátuas e bonecos animados.Os homens também inventaram

máscaras para apresentar os deuses em ação. De imediato, um portador de máscara se transformava em outro ser, divino, sagrado. Assim paramentado participava de todo tipo de ritual, para reverenciar os deuses ou para com eles negociar em favor

Tradução de Magda Modesto.

Page 10: o Ator e Seus Duplos

de seus fiéis. Os sacerdotes que dirigiam esses rituais, assim como seus auxiliares, preenchiam as funções mais primárias, que depois se configurariam como próprias de um ator.

Muitos pesquisadores acreditam por isso que o teatro nasceu nos degraus do altar, mas as opiniões se dividem em relação à primeira apresentação de personagens - essas figuras seriam estátuas ou seres humanos? No que concerne ao teatro grego, sabemos que se tratava de pessoas com máscaras. Mas outra questão se coloca: essas pessoas seriam atores? De qualquer forma, sabemos que os portadores de máscara assumiram e mantiveram as funções de sacerdotes e curandeiros.

Um longo caminho foi percorrido entre as primeiras apresentações semi-religiosas com máscaras e o conceito popular que hoje temos de ator. Os próprios atores passaram por vários estágios em sua profissão até chegar à situação atual, quando são reconhecidos como parte da elite cultural e, muitos deles, amplamente admirados. Não apreciam ter como substitutos manequins ou bonecos; orgulham- se de seu status no teatro moderno e principalmente no cinema. Não necessitam de máscaras. Essas e outras representações que os personalizam são requisitadas apenas por uma categoria especial, a dos

Page 11: o Ator e Seus Duplos

diretores e cenógrafos!E evidente que todos nós admiramos

os grandes e talentosos atores, embora sejam egocêntricos e tenham a tendência de dominar a arte teatral. No entanto, não desprezamos outras formas de expressão, como as transmitidas por meio das coisas e dos objetos. Os estudos de semiótica nos tornaram mais cientes de que tudo que nos rodeia se comunica conosco - todas as coisas emitem mensagens importantes. Não há, portanto, surpresa no fato de que formas animadas, ou formas não humanas, se manifestam hoje com energia renovada, pois sabemos que são tão antigas quanto a profissão de ator, senão mais antigas.

10

Page 12: o Ator e Seus Duplos

Nosso interesse em promover esse gênero reside no fato de estarmos procurando maior contato com as origens da nossa cultura, com todos os estágios de seu desenvolvimento e com a sua diacronia. E por isso que vamos em busca das máscaras e dos bonecos. Ao pensar em máscaras, sabemos que elas nos transportam aos primórdios dos tempos, quando eram as substitutas de “outros”. No tempo do “era uma vez...”, os “outros” eram os seres divinos. “Outros”, no nível psicológico, são criaturas de um mundo ilusório criadas por nós mesmos, pertencendo, assim, a um modelo de mundo imaginário. Mas os “outros” não vão além da imaginação humana, dos sonhos humanos e dos elementos próprios da subconsciencia humana.

Portanto, as máscaras, modeladas de acordo com diferentes objetivos culturais, nos introduzem em um outro mundo. É o processo da transformação que ocorre nas cerimónias rituais e nas festas profanas, como as do carnaval de Veneza, pois as máscaras permitem que seus portadores escondam a posição social mediante uma substituição de personalidade em busca de instintos e emoções. Assim, é natural que máscaras tenham sido usadas nas produções teatrais no decorrer de tantos séculos.

Lembramo-nos da esplêndida tradição do teatro grego e da commedia

Page 13: o Ator e Seus Duplos

deWarte, que, com as máscaras, imortalizou personagens como Arlechino ou Pulccinella. E lembramos, como a autora deste livro enfatiza, que a meia-máscara da Renascença tem relação com a máscara abstrata moderna, que, por sua vez, também apresenta similaridades com o enfoque ritualístico da máscara africana.

Hoje, as máscaras pertencem à expressão teatral de muitos grupos, dos quais talvez os mais importantes sejam o Groteska, teatro de bonecos e máscaras da Polónia, e o Bread and Puppet Theatre, dos Estados Unidos.

11

Page 14: o Ator e Seus Duplos

As máscaras não são apenas instrumentos de disfar- ce; são peças de arte, urna forma especial de manifestação artística. Como tal, são um ponto de partida para a interpretação teatral, desde que seu portador siga as características e a forma que têm, para isso adequando-lhes seu corpo, tal como se fazia na escola de Jacques Lecoq.

A historia dos bonecos é similar à das máscaras - de sua utilização religiosa a seu uso como signo plástico inanimado em cena -, podendo ser, nas mãos de um ator, a aparente e completa substituição de um personagem. Ator e boneco passam a constituir então uma simbiose, uma unidade, enquanto compartilham a tarefa cênica que lhes cabe. Os bonecos, oriundos das mais diversas culturas, são muito diferentes entre si e essa diversidade os torna atraentes. Cada tipo de boneco, de acordo com o material de que é feito, com sua forma, os equipamentos técnicos adotados e a função cênica, demanda um tratamento especial e habilidade de manipulação.

Os bonecos fascinam pelo material com que são construídos, quer sejam simples e básicos (de argila, palha, galhos ou madeira), quer sejam mais sofisticados (pergaminho, papel maché, tecido e todo tipo de objetos que sirvam à sua confecção). Atraem também

Page 15: o Ator e Seus Duplos

pelo visual inusitado tanto na reprodução de esculturas divinas como na representação de imagens naturalistas ou abstratas. Por isso são objetos cobiçados.

É claro que. bonecos são objetos, mas objetos especiais, ícones de personagens teatrais que diferem dos outros - os não teatrais, de uso prático, ícones de sua própria categoria. Na realidade, a quantidade de objetos em nossos dias é tal que passaram a nos dominar. Daí a tentação de reverter essa situação e procurar dominá-los... no palco. Nas fábulas, contos de magia ou contos populares, certos

Page 16: o Ator e Seus Duplos

objetos recebem vida e até se tornam personagens. Nesse aspecto, Hans Christian Andersen causou grande impacto.

Já se admite que o teatro de objetos é a grande no- vidade atual. Essa inovação, também chamada de teatro plástico ou visual, é um teatro no qual formas e objetos são criados de acordo com a visão pictórica dos artistas.

A autora deste livro tem pleno conhecimento desses fatos que constituem a base das suas discussões sobre o teatro moderno. Ela valoriza a diacronia da nossa cultura; por essa razão, faz uma revisão histórica do uso das máscaras, assim como do uso dos bonecos, mencionando os mais famosos gêneros e companhias - o teatro Nô, o Teatro Campesino, o Mummenschanz, o Teatro Manarf e as últimas produções de Julie Taymor.

Seu objetivo não é apresentar uma antropologia, uma história ou uma taxionomia dos objetos teatrais. Sendo ao mesmo tempo pesquisadora e praticante de teatro, ela pretende com este livro oferecer uma espécie de manual com informações culturais básicas a todos os interessados nos aspectos contemporâneos da interpretação teatral. Naturalmente, as considerações que coloca se baseiam em sua sensibilidade para captar as características de nosso tempo, no

Page 17: o Ator e Seus Duplos

qual o homem se vê cercado por múltiplos objetos originários de culturas passadas ou dados a nós em abundância pela civilização atual.

A autora trata com facilidade de todos os aspectos técnicos da interpretação teatral, salientando o trabalho interior do ator e sua concentração, que é de dupla natureza, psíquica e fisiológica. Descreve algumas experiências, dando aos leitores exemplos e caminhos e tendo sempre em vista esta perspectiva: a conexão humana com os principais elementos da natureza. Todos os exemplos de espetáculo teatral que apresenta pretendem ser uma recomendação para o estudo da interpretação e sua dramaturgia.

1?

Page 18: o Ator e Seus Duplos

Ana Maria Amaral não tem a intenção de criar uma nova teoria de interpretação, sendo provocativamente modesta em sua abordagem a esse respeito. Ao mesmo tempo, explora princípios gerais de interpretação, visando à preparação de um novo tipo de ator - um ator virtual, possível, mas ainda inexistente ou existente apenas em nossas expectativas. Ator que tanto poderá usar máscaras como manipular bonecos e objetos, sejam quais forem suas formas, técnicas ou procedência. Nesse aspecto ela é absolutamente singular entre todos os pesquisadores da arte teatral.

A autora tem consciência da capacidade expressiva dos bonecos e dos objetos que, com as máscaras, constituem uma linguagem especial do teatro contemporâneo. Destaca a diferença entre esses elementos de animação e a mímica. Faz uma observação certa e ao mesmo tempo poética quando diz que, ao se trabalhar com objetos, a representação do personagem se desprende do corpo desses objetos, que é de onde provém sua energia, porque os objetos são de diferentes matérias. Considera a dicotomia existente entre os objetos e a natureza humana uma porta surrealista para o mundo da metáfora. Vê arte teatral como unidade total, sendo o ator o núcleo dos elementos materiais empregados. Ana Maria Amaral

Page 19: o Ator e Seus Duplos

compartilha essa visão com os leitores, dando um novo enfoque ao teatro contemporâneo. E isso que faz com que seu trabalho seja tão especial e valioso.

Henryk Jurkoivski2

Natural de Varsóvia, Polónia - historiador, pesquisador e crítico teatral -, é um dos raros teóricos especializados em teatro de airimação. Como acadêmico, foi reitor da Escola Superior de Teatro de Cracovia, vice- reitor da Academia de Teatro de Varsóvia; atualmente, professor convidado de várias universidades européias. Possui livros publicados na Polónia, França, Inglaterra e Espanha.

M

Page 20: o Ator e Seus Duplos

9f\ teatro se situa entre o ritual e o jogo profano. Do ^1/ ritual herdou seus principais elementos: dança, ritmo, máscaras, gestos codificados, narrativas e mitos que falam das transformações do universo.

As máscaras usadas nos rituais representam forças da natureza e entidades sobrenaturais. Nas tragédias gre- gas, encarnavam heróis divinos que lutavam contra as forças do destino; nas comédias, com os mimos, passam a reproduzir o cotidiano; e no confronto homem versus homem satirizam os dramas sociais. Os bonecos, na Grécia, eram réplicas dos mimos, numa expressão de teatro mais popular.

Na Europa (apesar do controle da Igreja sobre certas manifestações), máscaras e bonecos continuam a apresen- tar-se em feiras e praças até a Idade Média e Renascença. E um teatro ambulante, irreverente e crítico, que mostra caricaturas do dia-a-dia em situações ilógicas, provocando o riso. No período romântico, começa a ter outra conotação. A máscara representa agora o estranho, o grotesco- numinoso, e o teatro de bonecos, como os autómatos, atrai e perturba pela magia que a ilusão de vida desperta. Num outro plano, os bonecos são usados também como substitutos do ator nos teatros elitistas da corte, em repertório

Page 21: o Ator e Seus Duplos

literário.No Oriente, o teatro de bonecos é

principalmente épico; temas míticos, ligados à tradição, são apresentados em cerimónias religiosas e no culto aos antepassados. Na índia, inicialmente, as narrativas eram ilustradas por imagens estáticas, iluminadas por uma luz que se movia e seguia os diferentes quadros. Aos poucos essas imagens pas-

1)

Page 22: o Ator e Seus Duplos

saram a receber movimentos, isto é, as figuras bidimen- sionais, iluminadas por uma luz fixa, adquirem articulações e transparências. Começa assim o teatro de sombras. Não que não houvesse também naquele país outro tipo de teatro, mais leve, satírico e popular, com bonecos tridimensionais, mas seu teatro de sombras é o mais fascinante. Em Java, o teatro de bonecos é até hoje a mais importante manifestação de cultura no país. Os wajang purwas (teatro de sombras) apresentam temas tradicionais, que terminam com uma dança dos wajang goleks

(bonecos de vara, esculpidos em madeira), encerrando os espetáculos de forte cunho ritual.

E foram essas características do teatro oriental que, no final do século XIX, tanto chamaram a atenção de Edward Gordon Craig, que via nos bonecos “o homem em grande cerimónia”, lançando a idéia da supermarionete como ideal do ator.1 Também Maeterlinck dizia que, por ser a arte um símbolo e como todo “símbolo não suporta a presença ativa do homem”, dever-se-ia substituir o ator orgânico por figuras e imagens.2 Assim, com os simbolistas, bonecos e máscaras voltam a ocupar seu espaço, priorizando-se a linguagem dos arquétipos, trazendo de

1 E. G. Craig, O» the Art of the Theatre (Nova York: Theatre Ares Books, 1956).

2 M. Maeterlinck apuã Denis Bablet em O. Asían (org.), Le masque, du rite au théâtre (Paris: CNRS, 1985), p. 140.

Page 23: o Ator e Seus Duplos

volta símbolos ausentes. Pesquisas e experimentações de espaço, cor e forma levam a um teatro cada vez mais abstrato. Os futuristas substituem a psicologia pelo lirismo da matéria e, no Surrealismo, o objeto, agora sujeito, se coloca como protagonista.3

3 No palco, quando a luz incide sobre objetos, acontece um fenômeno estranho, como se do interior deles saltasse alguma coisa; não é apenas a luz que provoca essa sensação, mas os objetos mesmos que parecem ter dentro de si alguma coisa que assim se manifesta.

Page 24: o Ator e Seus Duplos

A matéria ganha assim dignidade e o mundo mate- rial é visto sob outro ponto de vista. Cada vez mais, figuras inanimadas representam o ator vivo. E com as novas possibilidades que a tecnologia oferece, o homem acostuma-se a traduzir a vida por imagens, provocando no teatro profundas modificações. O ator agora divide o espaço com seus duplos, contracenando com objetos, simulacros, reflexos e projeções da própria imagem.

Os duplos

O que são afinal esses reflexos, imagens, objetos, símbolos e simulacros? São materializações das nossas idéias, dos nossos pensamentos.

Segundo Novalis, o pensamento cria na mente imagens, traduzidas depois em palavras, que se concretizam e se transformam em objetos.4

Assim, a imagem é anterior à fala e à escrita (a escrita era realizada por meio de imagens simbólicas), está no nível do inconsciente, é ligada aos arquétipos e, como estes, depende de uma concretização para sua manifestação. E como as manifestações dos arquétipos, as palavras e os objetos são também centros energéticos. A cópia, o duplo, ou a repetição de eventos vêm carregados da energia original. Talvez seja por isso que o homem sempre se sinta fascinado

Page 25: o Ator e Seus Duplos

ao se ver representado, atraído por seus reflexos, seja o seu reflexo em sombra, na água ou em espelhos, em desenhos, esculturas ou fotos. Curiosidade e prazer como se, ao conferir detalhes de sua imagem, se reassegurasse da própria existência.5

4 Novalis apud B. Boie, Lhomme et ses simulacres (Paris: Conti, 1979).5 Será que sofremos os efeitos de uma pane tía memória que apaga de nós um

tempo em que fomos espíritos des-corporificados?

17

Page 26: o Ator e Seus Duplos

Os duplos e os simulacros estão em toda parte, na vida prática, na ciência, na arte, no lazer. São estátuas e estatuetas, figuras de cera ou de presépio, bonecos e ma^ nequins, os autómatos de ontem e os robôs de hoje; pinturas, fotografias, projeções e transparências; nossa imagem em vídeo, cinema e TV.

No teatro, os duplos sempre existiram através das máscaras, do teatro de sombras e do teatro de bonecos.6 As máscaras, por sua fixidez, amplificam, generalizam, tomam-nos por inteiro. As sombras mostram-nos a realidade sob um aspecto sutil, transportam-nos a outros níveis. Os bonecos são como corpos sem alma que, no teatro, repentinamente adquirem vida e/ou nos perturbam ou nos fazem rir. Figuras e estatuetas de cera ou de brinquedo, corpóreas ou incorpóreas, cómicas ou poéticas, materiais e ao mesmo tempo imaginárias, o que existe, afinal, por trás das figuras que representam o homem?

No teatro busca-se com elas algo mais do que simples aparências e semelhanças. São transposições da realidade. H é nesse jogo de transformações, simulações e revelações que vamos aqui nos adentrar. Vamos experimentar?

Page 27: o Ator e Seus Duplos

As máscaras podem ser classificadas por suas formas (faciais, corporais ou parciais) ou por seus conteúdos (neutras, realistas, expressivas ou abstratas). Os bonecos podem ser classificados por sua estrutura técnica (com luvas, com fios, articulados, de sombra, etc.). Já os objetos, por sua grande abrangência, têm uma classificação mais complexa. Podem ser naturais (produtos da terra, do ar, do fogo, da água) ou construídos pelo homem (funcionais, artísticos, sagrados, em uso ou desuso, etc.).

18

Page 28: o Ator e Seus Duplos
Page 29: o Ator e Seus Duplos

Boneco-máscaraPersonagem de A Benfazeja, conto de João Guimarães Rosa. Montagem da Pesquisa Teatro de Animação. 2001.Foto de Angela Garcia.

Page 30: o Ator e Seus Duplos

líj eatro é transformação. No teatro o ator morre en' 1§L quanto indivíduo e renasce enquanto personagem. Existem semelhanças entre ritual e teatro. Assim, da mesma forma que o crente oferece seu corpo e torna-se um instrumento para que o contato com o divino aconteça, o ator, para estabelecer comunicação com seu público, torna-se outra pessoa. Passa assim por um processo de constante ambiguidade, oscilando entre o ser si mesmo e o pretender ser outro, entre o criar e manter disfarces, sempre consciente desses seus desdobramentos.

A primeira etapa no trabalho de um ator é o aprendizado do sair de si. Num primeiro momento, deve estar aberto, disponível, ter a mente vazia, sem tensões, procurando antes comunicar-se com o próprio corpo. E um estado de prontidão e alerta. Vem, em seguida, o momento da criação do personagem, e a comunicação passa a ser entre um indivíduo e outro (entre personagens) ou entre símbolos, inicialmente numa linguagem em que predomina o olhar. Para construir o personagem, treina os seus músculos, sua voz, mantém o controle sobre a sua respiração, enfim, aprende a manipular o seu corpo. Por isso acreditamos que, ao manipular um objeto estranho, mas a ele ligado

Page 31: o Ator e Seus Duplos

(como máscaras) ou distanciado (como bonecos e objetos), o ator desloca o foco de si para algo fora dele mesmo, e isso o ajuda a se perceber melhor. Passar portanto pela experiência de manipulação de máscaras, bonecos e objetos, como a que nos propomos aqui, é para ele muito importante.

Se o deslocamento de si para um objeto externo é importante para o ator, as percepções que a máscara des-

Page 32: o Ator e Seus Duplos

perta são ainda muito mais importantes para o ator- manipulador e para o bonequeiro, porque é sua linguagem mesma.

Bonequeiro é aquele que não só dá vida aos personagens, mas também os concebe, constrói, dirige, quando não é também o dramaturgo, o iluminador, o produtor, numa polivalência de responsabilidades muito questionáveis, que não pretendemos tratar aqui. Todo bonequeiro é um ator-manipulador, mas qual a diferença entre bonequeiro, ator-manipulador e ator? Ou, ator-manipulador, que tipo de ator é esse?

O ator é aquele que no palco é visto, encarna e tem a imagem do personagem. O ator-manipulador é um ator que eventualmente se propõe ou, num determinado espetáculo, tem necessidade de animar e dar vida a personagens inanimados. Enquanto ator-manipulador, nem sempre é visto ou, quando visto, deve manter-se neutro para que o foco não caia sobre si, mas sobre o boneco ou objeto. Nesse caso, pode ser considerado também como um duplo, um duplo de si mesmo.

A preparação corporal do ator é o primeiro passo de um processo contínuo. A máscara torna-se parte do corpo de quem a usa, pois as sensações aí são emitidas direta-

Page 33: o Ator e Seus Duplos

mente. No relacionamento com bonecos e objetos existe um distanciamento. E como se a máscara fosse um meio- termo entre o homem e o boneco, uma mistura, fusão de ator e personagem, o vivo e o inerte, uma verdadeira metamorfose. O boneco representa o homem, é um simulacro. Os objetos representam situações ou idéias e no teatro são colocados como metáforas.

Page 34: o Ator e Seus Duplos

PRCPARAÇÀO DO CORPO DO ATOR - CKCRCÍCÍOS'Percepção de si

O espaço de trabalho deve ser um espaço amplo, fechado à volta por um grande círculo de giz. Os atores, ao chegar ao local, antes de entrar no grande círculo, devem se preparar, tirando os sapatos, vestindo a roupa de trabalho, deixando os seus pertences fora do espaço de* marcado. Dar um tempo para “baixar a poeira da estrada”, isto é, desligarem-se do mundo de fora e irem aos poucos apagando os estímulos externos. Os atores devem entrar depois no grande círculo, onde cada um traça um pequeno círculo a sua volta - pequenos círculos individuais, ou círculos duplos, enganchados um no outro. Sentados assim dentro de seu próprio espaço, fechar os olhos e concentrar-se em si, percebendo as sensações de seu corpo. Mover os dedos do pé, sem tocá-los. Sentir os músculos. Mover os dedos da mão. Suavemente, uma mão deve tocar a outra e, depois, com ambas, tocar o próprio corpo, massagear os pés, os braços, a nuca, coxas e torso, mantendo sempre os olhos fechados. Tocar depois seu rosto e mentalmente procurar visualizar os seus traços.

Abrir os olhos e, num pequenino

Page 35: o Ator e Seus Duplos

espelho - então colocado ao lado de cada círculo - olhar-se e perguntar- se se a imagem que vê coincide com a imagem que interiormente se tem de si. A imagem no espelho refletida, será a imagem de um “outro eu”? Ou, será esse nosso rosto, nossa primeira máscara?

Material necessário: giz, espelhinhos, duas túnicas, dois capuzes e más- caras transparentes.

22

Page 36: o Ator e Seus Duplos

?1

Percepção do outro

Olhar à volta e ver o outro. Observar os traços do rosto da pessoa mais próxima. Observar depois os outros e refletir sobre as diferenças. Somos todos reflexos uns dos outros. Levantar-se e com os pés apagar o pequeno círculo.4 Sentirse inserido no círculo maior, com todos do grupo.

O corpo e seu espaço

Voltar o pensamento para o seu corpo. Centralizar o olhar e deixá-lo cair no próprio umbigo. Sentir o corpo como algo externo à sua mente, sentir seu volume, seu peso. Mover os braços, as pernas, os ombros e todas as partes do corpo físico que estão

4 Esses pequenos detalhes gestuais, como riscar ou apagar o círculo, são importantes, pois esses atos físicos representam atitudes mentais.

Nossa primeira máscara

Laboratório 0 ator e seus duplos. 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

Page 37: o Ator e Seus Duplos

?1

?1

sob nosso controle. Sentir o peso da cabeça, dos ombros, do tórax, o peso das pernas e deixar-se cair. Sentar. Procurar perceber depois, na medida da sensibilidade de cada um, as sensações do corpo

Page 38: o Ator e Seus Duplos

?1

orgânico, isto é, os órgãos sobre os quais não temos com trole e se movem e vivem por si. Por exemplo, as batidas do coração, os músculos do estômago, a respiração, etc. Voltando a concentração agora para partes do corpo sobre as quais temos controle (pernas, braços, etc.), fazer movimentos, como balançar-se, levantar-se, andar, correr, deixando o corpo agir por si, descontraidamente.

Observar até que ponto, ou em que momento, o corpo está, ou não, sob seu comando.

Movimento e ação

Sentindo toda a sola do pé, andar normalmente, no ritmo da respiração e/ou do coração. Sentir o chão e suas irregularidades. Imaginar-se depois andando num terreno esburacado ou sob poças d’água, em cima de uma corda bamba, na areia quente, sobre pedregulhos, etc.

Andar de costas, depois lateralmente. Voltar a andar para a frente, percebendo agora o balanço do corpo de um lado para o outro, esquerda, direita, com o deslocamento de peso. De repente, mudar o seu ponto de equilíbrio, transferindo o eixo do corpo. Por

Page 39: o Ator e Seus Duplos

exemplo, apoiar- se apenas sobre uma perna, andar torto, andar com uma perna e um braço, andar arrastando-se ou saltitando. Continuar o exercício usando cada um sua própria imaginação. Em alguns momentos congelar, depois prosseguir.

Observar que, quando se modificam os movimentos habituais do corpo, a concentração mental se aguça. Quando o eixo do corpo muda, quando o corpo adquire posições que alteram seu centro de equilíbrio, geram-se tensões orgânicas. A não estabilidade exige do corpo muita energia, colocando-o em estado de alerta, pronto para a ação, e mais apto a tazer novos movimentos.

2)

Page 40: o Ator e Seus Duplos

Movimento e gesto

Sugerir ao grupo que faça os seguintes movimentos:

a) espontâneos: não racionalizados. Por exemplo, andar aleatoriamente, jogar bola, brincar de estátua, etc.;

b) mecanizados: marchar, limpar o vidro de uma janela, bater prego;3

c) dinâmicos: quando os movimentos se aceleram. Os mesmos movimentos, mas em ritmo mais forte;

Experimentando movimentosLaboratório 0 ator e seus duplos. 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

Page 41: o Ator e Seus Duplos

A cada novo tipo de movimento, pedir ao grupo que improvise outros semelhantes.

n

Page 42: o Ator e Seus Duplos

d) energéticos: movimentos nos quais existe sempre um cálculo premeditado antes da ação; quase sempre uma pausa antecede esse movimento. Por exemplo, a posição da mão pronta para matar um mosquito que zumbe à nossa volta;

e) impulsivos: nestes movimentos, ao contrário dos energéticos, não existe pausa antes da ação; eles nascem de um impulso interior e refletem-se numa ação exterior. Impulso de dar um tapa em alguém, gritar de susto, pegar uma bola ou segurar uma criança que cai;

0 de esforço: por exemplo, puxar ou empurrar um carro, levantar uma pedra pesada, arrastar uma mala;

g) aleatórios, não intencionais: coçar, passar a mão no cabelo, etc.;

h) movimento e gesto: gesto é um movimento intencional, acompanhado de emoção. Por exemplo, entregar a alguém uma flor, ou dar-lhe um tapa, abraçar, olhar com emoção. Essas ações não são simples movimentos. São gestos.

Pedir ao grupo que realize ações, como lavar roupa, tirar objetos de um baú, ler jornal, varrer, até que algo

Page 43: o Ator e Seus Duplos

inesperado surja e esses movimentos simples sejam interrompidos por segundos, suspensos, e, depois de uma pausa, sob efeito da emoção, susto ou curiosidade, prossigam lentos, hesitantes, perscrutadores, mais densos.

Esse tipo de movimento mais consciente é o que se pode chamar de gesto. A diferença entre movimento e gesto é uma diferença de grau. E intenção mais emoção, ou seja, movimento é uma ação mais mecânica e gesto uma ação mais consciente ou emocional.

27

Page 44: o Ator e Seus Duplos

O estático

Numa ação cotidiana qualquer, fazer com que o grupo acelere ou desacelere os seus movimentos. Dançar, cozinhar, varrer, escrever. Em seguida, aos poucos, diminuir o ritmo até que esses movimentos se tornem muito lentos. Parar. Congelar o gesto no ar. Permanecer estático. Sentir o corpo percebendo ora uma, ora outra parte. Perceber o equilíbrio dos dois lados, esquerdo e direito. Mover o corpo sutilmente de um lado para outro, a ponto de não ser visível o seu deslocamento. Jogar o peso do corpo ora para um, ora para outro lado. Sentir a pressão do solo sob os pés, como se o piso os empurrasse. Ter a sensação de que existe um fio puxando a cabeça para cima, como se a pessoa fosse uma marionete. Imaginar, por exemplo, que se está segurando uma grande bola ou que existe alguma coisa entre as mãos ou entre as pernas. Permanecer imóvel, imaginando porém que está correndo, abraçando alguém, fazendo alguma ação. Manter, enfim, a mente sempre ocupada com alguma atividade corporal, mentalmente criada. Relaxar aos poucos. Do estático passar para um movimento muito lento e do lento para o normal, al- ternando-os. Balançar o corpo. Relaxar.

Page 45: o Ator e Seus Duplos

Para manter o corpo estático é preciso muita concentração e atenção. Para isso é necessário muita energia, pois energia é contenção.

Os opostos: expansão e recolhimento

a) Estático e lentoRepetir o final do exercício

anterior, isto é, a alternação entre o estar estático e em movimento, lentamente, sentindo os músculos, o coração e a respiração.

n

Page 46: o Ator e Seus Duplos

b) Sólido e fluidoInspirar, sentindo a tensão dos

músculos e a firmeza dos ossos. Prender a respiração e soltá-la. Ao expirar, sem tir nesse momento a fluidez do ar, como se todo o corpo se esvaziasse.

Visualizar um copo de água a alguns passos. Estender o braço para alcançá-lo, inspirando e prendendo a respiração, sentindo a firmeza da musculatura. Sentir como se a mão tocasse realmente o copo imaginário. Levá-lo então à boca e, à medida que bebe a água, expirar conscientemente, sentindo a leveza do corpo.

c) 'Ferra e céu/chão e tetoSentir o espaço acima da cabeça e

o suporte do chão sob os pés.

d) Interior e exteriorCom os braços caídos ao longo do

corpo, abrir e fechar as palmas das mãos. Com as mãos abertas, girá-las para fora, permanecendo assim por alguns segundos, fechando-as depois. Novamente girar as mãos para dentro. Repetir três vezes.

Levantar os braços até a altura dos ombros, com a palma da mão para cima, e aí sentir a energia que vem do alto; girar as palmas das mãos para baixo e sentir a atração da terra; fechar os braços. O olhar acompanha o

Page 47: o Ator e Seus Duplos

movimento das mãos. Repetir três vezes.

Levantar os braços agora acima da cabeça, estican- do-os como se fosse tocar o céu. Abrir as palmas das mãos, sentindo a energia que vem do alto; depois deixar cair os braços lentamente, com as palmas das mãos para baixo. Repetir três vezes, com movimentos lentos.

Page 48: o Ator e Seus Duplos

Tensão e relaxamento - exercício do gato

Colocar-se na posição de um gato, e, como um gato que dorme, deitar e relaxar totalmente o corpo. De repente, perceber algum estímulo (som, luz, ou um objeto que se move), abrir os olhos, fixar-se no objeto ou dirigir o olhar para o estímulo sonoro ou luminoso atentamente. Por alguns segundos, todo o corpo parece deslocar-se em direção ao estímulo recebido, perscrutando-o. O estímulo se desvanece, o corpo relaxa e novamente volta ao ponto inicial de repouso.

Foco - exercício do galo

Olhar um ponto à frente e seguir em sua direção. Girando o pescoço, olhar outro ponto, à direita ou à esquerda (os olhos ficam sempre fixos, o que se move é apenas o pescoço). Fixar o olhar, acertar o corpo girando na direção do novo foco e encaminhar-se para essa direção. Tomar outros pontos. Repetir.

O olhar

É importante fazer esses exercícios numa sala com fundo negro e que tenha pelo menos um refletor para dar um foco de luz sobre o rosto dos

Page 49: o Ator e Seus Duplos

atores. Se isso não for possível, usar em determinados momentos de ênfase uma moldura ao redor do rosto para que os olhos sejam ressaltados. Dificuldades podem surgir quando não há suficiente concentração, dos atores ou da platéia. Foco fechado sobre os olhos pode ajudar.

Dividir o grupo em dois, metade observa e metade faz o exercício.

;o

Page 50: o Ator e Seus Duplos

Descansar os olhos, fechando-os com as palmas das mãos. Com os olhos assim vendados, movê-los em círculos, lateralmente, de cima para baixo, etc. Piscar. Abrir os olhos.

Olhar fixo: pousar o olhar em algum ponto e mantê- los assim fixos. Observar o impacto que a concentração fixa do olhar num determinado ponto, ou objeto, causa no corpo. A sensação que se deve criar é a de que não apenas os olhos vêem, mas o corpo todo.

Olhar vago, distraído: é um olhar que não vê. As intenções do corpo não coincidem com as direções do. olhar. Sensação do corpo oposta à do exercício anterior quando o corpo está totalmente relaxado.

Olhar preocupado: esse é um olhar que não percebe nada, está atento a um ponto invisível e variável.

Page 51: o Ator e Seus Duplos

O olharLaboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

Page 52: o Ator e Seus Duplos

O corpo acompanha com tensão nos másculos, sem mover-se.

Olhar descobridor: o olhar segue alguma coisa no espaço, uma mosca, um fio imperceptível, um pêndulo, baforadas de fumaça, etc.

Exercitar também olhar de dor, defesa, inveja, desprezo, susto, pavor, cobiça, malícia, insegurança, auto- suficiência, etc.

Esse exercício tem relação direta com o uso de máscaras pelo ator, pois quando o ator está com máscara, ainda que seus olhos não sejam percebidos, existe sempre uma paridade entre o olhar e o corpo, e é importante que se perceba isso, que se sinta as partes em que o corpo está concentrado para que, conscientemente, possa mandar energias a essa região do rosto, como se a intensidade do olhar determinasse o gestual do corpo.

Repetir esses exercícios com o corpo coberto por uma túnica e sem venda nos olhos.

Concentração interior

1. Os elementosComo vimos, o olhar nos leva para

fora, traz o mundo exterior para nosso interior, modificando-o e diversifi- cando-o.

Propomos agora exercícios opostos, isto é, ficar com os olhos e

Page 53: o Ator e Seus Duplos

o rosto vendados, usando para isso “máscaras transparentes”, de tule ou tecido leve, ou simples vendas nos olhos. O ator, assim isolado de estímulos externos, às cegas, e sentindo na pele o toque de uma máscara, deve trabalhar a partir de seu interior com os conceitos que tem dos elementos e da natureza.

Page 54: o Ator e Seus Duplos

Mover-se de acordo com os elementos:

a) Terra. Fazer movimentos que tenham a ver com o fixo, a base, o solo, o que (aparentemente) não se move. Movimentos relacionados com a parte mais sólida do nosso corpo (ossos, músculos).b) Ar. Respirar e sentir o ar penetrando o corpo. Sentir o espaço e mover-se nele. Fazer movimentos sutis (como o pensamento, o que volatiliza, o etéreo).c) Agua. Sentir a saliva. Sentir a sensação de estar engolindo líquidos. Ser água. Água externa ao corpo, que o arrasta; água que cai, pesa. E o frió.d) Fogo. Sentir o calor em nosso corpo através da palma das mãos. Fogo é o que aquece, sobe, destrói, transforma.

Os elementos fogo, terra, água e ar existem tanto na natureza como dentro de nós, em nosso organismo. Esse exercício, aparentemente simples, exige muita concentração. À medida que nos concentramos, os estímulos mentais são assimilados pelo corpo.

Repetir o exercício sem venda nos olhos, mas cobrindo o corpo e a cabeça

Page 55: o Ator e Seus Duplos

com túnicas, para maior liberdade de ação.

2. Sobre a natureza e os animaisA partir do exercício anterior,

seguir improvisando com movimentos ligados à natureza: onda de mar, cascata, folha, tronco, fogo queimando árvores, árvores se retorcendo, passarinhos voando. Deixar que o grupo crie seus próprios estímulos buscando também inspiração no movimento dos animais.

Esses exercícios são uma preparação do corpo do ator para o uso de máscaras. Diz-se que a máscara se transfor-

tf

Page 56: o Ator e Seus Duplos

ma naquilo que vê, isto é, ela reflete o que o ator pensa e sente no momento que a veste. Ao sentir o vento, ver um arco-íris, defrontar-se com uma montanha alta e rochosa ou dunas de areia, a máscara espelha o vento, o arco-íris, a montanha, as dunas. Se o estímulo for calor, há uma transferência da sensação de calor para a máscara; se o estímulo for um som, sente-se o som no rosto; conseqúen- temente, essas energias refletem-se na máscara e o corpo do ator reagirá. A mesma sensação será repassada para o público.

As partes do corpo

Deitar sobre um colchonete e relaxar o corpo.

Tencionar perna esquerda e braço direito. Alternar e relaxar.

Tencionar da cintura para cima e relaxar da cintura para baixo. Alternar.

Tencionar o corpo e manter o rosto tranqiiilo. Relaxar. Tencionar os músculos da face e relaxar o corpo.

Deixar uma emoção qualquer acumular-se dentro de si (alegria, raiva, tédio, medo, curiosidade, etc.). Expressá-la no rosto. Manter a expressão congelada, criando assim uma máscara muscular. Mantê-la o máximo possível. Relaxar. Repetir o exercício

Page 57: o Ator e Seus Duplos

para cada uma dessas sensações, fazer uma pausa e concentrar na sensação oposta. Por exemplo, da alegria, passar para a tristeza; do medo, para a descontração, tranqüilidade, etc. O corpo todo acompanha a sensação estampada no rosto, mas o trabalho aqui deve ser o de expressar essa sensação apenas através dos músculos faciais, mantendo o corpo tão neutro quanto possível.

Page 58: o Ator e Seus Duplos

Os opostos

1. Rosto exposto (corpo coberto)Dois atores escolhem sensações

opostas. Por exemplo, empáfia e humildade, insegurança e auto-suficiência, desprezo e admiração. Cobrem o corpo com uma túnica. Concentrar-se para que cada um consiga expressar a sua emoção através do rosto. Quando estiverem prontos, isto é, com a “máscara” da emoção esculpida no rosto, apresentar-se ao grupo, disposto em círculo. Os atores encaram o público, olhando um a um (olho no olho), expressando-se pela máscara facial e pelo olhar. Depois de encarar todos do grupo, posam no centro, por alguns segundos, evidenciando-se os contrastes entre ambos. Saem de cena para se concentrar na troca de papéis.

Repetir o exercício.

2. Corpo exposto (rosto oculto)Os mesmos atores tiram suas

túnicas e, com o corpo descoberto, cobrem a cabeça com um capuz. Combinam entre si os temas que vão interpretar. Depois, concentram- se para fazer agora um trabalho de expressão corporal. Entram no círculo e contracenam um com o outro. O jogo agora é entre eles, não com o público. Num certo momento, congelar. Trocar de papéis (eles têm alguns segundos de

Page 59: o Ator e Seus Duplos

pausa para se concentrar em seus novos papéis). O jogo continua. Repetir momentos de congelamento e momentos de troca de papéis.

3. O todo (rosto e corpo)De capuz, sem túnicas, voltar a

fazer o mesmo exercício com troca de papéis e momentos de congelamento.

Page 60: o Ator e Seus Duplos

Num dado momento, sem aviso, o diretor retira os capu- zes e os atores continuam o exercício trocando sempre de papéis e com momentos de congelamento em situações mais críticas. Nesse jogo corporal surgem, às vezes, movi- mentos muito expressivos.

O jogo dos opostos enfatiza partes do corpo (rosto e corpo, pernas e braços, mãos e rosto) e, ao mesmo tempo, a necessidade de expressão de todo o corpo. Com o corpo coberto, o ator concentra-se no olhar; mesmo estando oculto por uma túnica não significa que o corpo não participe,

Rosto exposto (corpo oculto)Rosto oculto (corpo exposto)Laboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

Page 61: o Ator e Seus Duplos

ao contrário, ao ser visualmente anulado, sua energia con- centra-se no rosto.

Esse exercício nos leva também a refletir em que medida o corpo serve à máscara, nesse caso, a máscara

»

Page 62: o Ator e Seus Duplos

facial criada pelo ator. Ou, em que medida se deve anular o corpo para maior concentração de energia no rosto, isto é, na máscara.

No exercício inicial (rosto exposto), em que o ator se confronta com a platéia, ele precisa de muita concentração. É um momento difícil, pois a tendência é se deixar levar pelo público. O objetivo desse exercício é o ator manter-se dentro do personagem por ele criado, apesar dos estímulos externos contraditórios. A dificuldade está em encarar a platéia. E preciso atraí-la sem se deixar levar ou se envolver com ela, mantendo a “máscara”. Esse é também um treinamento para o “mostrar-se”, mantendo distanciamento com o público.

O confronto ator/platéia, que surge através da troca dos olhares, reforça a máscara ou desconcentra o ator? Como neutralizar o olhar da platéia para não se envolver, para manter a própria máscara? O jogo dos opostos reforça a máscara?

Sejam quais forem as dúvidas e as dificuldades, esses exercícios procuram desenvolver a concentração. Por meio deles procura-se mostrar a necessidade de se trabalhar o corpo e o rosto, separada e simultaneamente. O fato de o corpo estar coberto por uma túnica, ou o rosto oculto por um capuz ou máscara, não significa que não

Page 63: o Ator e Seus Duplos

participem; ao contrário, partes do corpo quando não visíveis reforçam a expressão das partes expostas, pois ocorre uma concentração maior de energia.

v

Page 64: o Ator e Seus Duplos
Page 65: o Ator e Seus Duplos

O ator em máscaraCena de A Benfazeja, conto de João Guimarães Rosa. Montagem da Pesquisa Teatro de Animação, 2001. Foto de Angela Garcia.

Page 66: o Ator e Seus Duplos

X áscara é o que transforma, simula, oculta e reve- JL la. Se bonecos, imagens e marionetes representam o homem, a máscara é sua metamorfose. Por sua rigidez, prende o momento, registra e fixa o essencial, mais per- manente. O rosto humano está sujeito a instabilidades emocionais, reflete o interior da alma e facilmente se deixa trair. Já a máscara é como um rosto sem interior. Ao vesti- la, o ator assume sua parte racional e sensitiva, assim como constrói o seu corpo.

Por que a máscara vem sempre associada ao teatro, aos ritos, à magia? E o que é teatro, rito, magia?

Teatro é o que acontece num determinado momento e espaço, onde alguma coisa se transforma através de movimentos, gestos, palavras e, ao se transformar, modifica o ambiente e as pessoas à volta. Um ato teatral acontece quando o indivíduo que o executa modifica-se, colocando outra personalidade em seu lugar. E outro o seu tom de voz, outra sua aparência, trata e representa outra coisa que não a simples rotina. O personagem surge quando o ator deixa de ser simplesmente o que é para aparentar ou simbolizar algo além de si mesmo. O teatro existe desde que o homem passou a sentir esse tipo de necessidade, necessidade de sair de si, de se despersonalizar, de se disfarçar, de escapar do dia-a-dia para expressar outras maneiras de

Page 67: o Ator e Seus Duplos

ser. Seja em rituais ou no teatro, experiências desse tipo sempre existiram, desde os primórdios.

Num ritual, o homem, em máscara, transforma-se em deus, em animal, em forças cósmicas. A máscara provoca transformações imediatas, com ela a pessoa passa de sua condição para outra. E magia porque magia é um fe-

11

Page 68: o Ator e Seus Duplos

nômeno que surge quando duas realidades diferentes, mesmo opostas, são conectadas. A máscara, sendo um ob- jeto material, também representa algo não material.

Os rituais, aos poucos, foram sofrendo transformações e tornando-se cada vez mais espetaculares. Mas no ritual ou no teatro, a máscara continuou representando forças, conceitos, idéias abstratas. O que antes eram deuses transformou-se em personagens-arquétipos.

A máscara esteve sempre presente nas manifestações espetaculares do Oriente, na origem do teatro grego, nas grandes tragédias e depois nas comédias; des- sacralizada, foi levada às ruas pelos mimos. É parte das festas populares, das cerimonias religiosas e profanas, com o intuito de reverenciar ou simular, assustar ou brincar. Nos folguedos, representa liberação de forças sociais anárquicas. É riso e contestação.

No teatro, com o surgimento do gênero literário, o homem, representado na figura do ator, passa a ser o centro. A máscara é assim praticamente abolida do teatro europeu, tornando-se objeto cenográfico, objeto de cena e, para as artes, um objeto estético. No início do século XX, no entanto, por influência da arte abstrata africana e do teatro oriental, em reação aos excessos do Realismo, ela retorna

Page 69: o Ator e Seus Duplos

enquanto símbolo. E parte do teatro simbolista.

Para Maeterlinck, a máscara atenua a presença do homem no palco. Os futuristas usaram-na contracenando com objetos. Está presente nos experimentos cênicos da Bauhaus; Meyerhold, em seus laboratórios, utiliza-se dela para exercícios de movimento do corpo no espaço. E, dentro de uma nova concepção de interpretação teatral, passou a ser usada também.

1?

Page 70: o Ator e Seus Duplos

Ainda que a máscara tenha perdurado no tempo, a sua conceituação mudou. Se antes, no ritual, o portador de urna máscara sentia-se habitado por forças e deuses, hoje, para o ator contemporâneo, ela não tem a mesma significação.

Símbolo, cenografia ou personagem, a máscara continua instrumento fundamental do trabalho teatral.

Mas por que é a máscara considerada instrumento no treinamento do ator quando, na verdade, o que ele (pelo menos num primeiro impacto) sente ao usá-la é uma grande sensação de desconforto? De pronto, ao vesti-la, percebe uma limitação no seu campo visual, a respiração é dificultada e a voz ou se distorce ou perde a força. Em compensação, o espaço à sua volta toma outras dimensões, o simples mover do corpo exige uma atenção tal que, para mínimos gestos, exige-se muita concentração. A máscara leva à conscientização do corpo, tornando o ator muito sensível aos estímulos físicos que o cercam. Por isso ela é fundamental para sua formação, principalmente quando o ator pretende se expressar através de personagens materiais, inanimados.

O treinamento em máscara exige tempo, paciência e muita concentração. Pode ser feito por etapas. E a primeira etapa são

Page 71: o Ator e Seus Duplos

exercícios com máscara neutra.Máscara neutra é uma máscara sem

expressão, branca ou de cor indefinida; em si, nada representa. A máscara neutra é o oposto da individualidade. Através dela o ator começa a se perceber e aprende a desvencilhar-se de sua própria personalidade. Despoja-se de si, abrindo espaço para o personagem. Entra no vazio. E o ser antes de qualquer definição. Em máscara neutra percebe-se o ponto zero, momento de energização e de escuta que antecede

13

Page 72: o Ator e Seus Duplos

a ação, pausa antes do agir. Mas esse é apenas um momento fugaz, pois assim que recebe algum estímulo exterior, essa neutralidade cessa. E ao sair do estado neutro a máscara reage, sem “pré-conceitos”, e, assim desprevenida, age como se percebesse o mundo pela primeira vez. Trabalhar com máscara neutra leva o ator a perceber as nuanças entre o seu estado-matéria ou estado-objeto (estar), o seu estado-orgánico (ser) e o seu estado-racional (analisar, deduzir).

A etapa seguinte é o treinamento com máscaras expressivas. As máscaras expressivas representam tipos, são personagens que pedem um gestual próprio e inspiram situações determinadas. A percepção do espaço à volta, dos objetos e de outros personagens fica mais clara. E o momento da contracena.

Máscaras abstratas levam o personagem para algo além das qualidades sociais, enfatizam o movimento e a forma, são metafísicas.

Para o uso de máscaras - neutras, expressivas ou abstratas - existem certos requisitos. Para começar é preciso concentração, tranqüilidade, disponibilidade para deixar de lado o seu eu e, sem pré-conceitos, assumir o desconhecido. E o começo de uma transformação. Afinal, não é essa a função do teatro?5

5As máscaras podem ser classificadas por sua forma, pelo material com que são confeccionadas ou tamanho. De acordo com a forma, elas podem ser neutras, expressivas ou abstratas. As expressivas subdividem-se em realistas e exp ressumis tas - usando aqui uma classificação muito

Page 73: o Ator e Seus Duplos

$

mm tvc(n^?

A máscara em seu estado-objeto

asearas neutras, propriamente, não existem. Há nelas sempre algo que as torna únicas e

diferentes. É complicada a modelagem e confecção de uma máscara totalmente neutra, pois o neutro absoluto não existe. Para os exercícios a seguir, portanto, o que se recomenda é que sejam usadas máscaras sem características marcantes, máscaras que não determinem nenhum personagem e tenham uma unidade grupai.

Começar pela observação de um conjunto de máscaras colocadas sobre uma mesa ou tatame.3 Notar a diferença entre o ser e o estar. Em seu estado-objeto, a máscara não é. Não tem vida. Apenas está sobre a mesa ou sobre o tatame.

Para os primeiros exercícios, o ator deve escolher a máscara que melhor lhe sirva, que melhor se adapte ao seu rosto. O elenco de máscaras oferecido ao grupo deve ser bem variado. Elas devem ser escolhidas pelo conforto, como se escolhe uma luva ou um sapato. A melhor máscara é a que melhor se adapta ao rosto, como uma prótese. E

generalizada (as realistas imitam a realidade, as expressionistas apontam e exageram determinados tipos). De acordo com o material com que são confeccionadas, podem ser rígidas ou maleáveis. As rígidas são construídas de madeira, metal, couro, tecido, papel maché, plástico, isopor. As maleáveis podem ser feitas de tecido ou couro fino, espuma, látex. De acordo com o tamanho podem ser faciais (cobrindo todo o rosto), meia- máscara (só a parte superior do rosto), parciais (nariz, orelha, partes do corpo), ou corporais (corpo inteiro).

Page 74: o Ator e Seus Duplos

quanto mais leve, melhor.Na escolha de uma máscara neutra,

antes de tocá- la, pode-se medi-la com o olhar e assim, por aproximação,

Material necessário: máscaras transparentes, máscaras neutras, máscaras expressivas, objetos para contracena, roupas pretas ou neutras para os atores.O ideal seria, numa fase anterior a esta, realizar uma outra oficina, de confecção de máscaras, na qual se possa construir pelo menos uma máscara neutra para cada ator, a partir de seu próprio rosto. Na impossibilidade disso, pode-se prover máscaras preconstruídas.

1)

Page 75: o Ator e Seus Duplos

antecipar a que melhor se adapte ao rosto de cada um. Para tocádas existem regras. As máscaras devem ser pegas pelas laterais, nunca colocar a mão na parte frontal de urna máscara e nunca deixá-las viradas, com o nariz sobre a mesa, muito menos jogadas no chão. Experimentar tantas quantas forem necessárias, visando antes de tudo ao conforto.

Page 76: o Ator e Seus Duplos

1*

A máscara em estado-objetoLaboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

Page 77: o Ator e Seus Duplos

O ato de usar urna máscara exige do ator urna ati- tude de concentração e neutralidade. O momento em que se toma a máscara que está sobre urna mesa, para colocar o rosto em sua parte côncava, é o início da passagem da máscara-objeto para a máscara-orgánica, ponto inicial de sua animação. Notar a diferença que existe entre colocar a máscara no rosto e colocar o rosto na máscara. Colocar o rosto na máscara significa sair de si, entrar no desconhecido.6

Depois que os atores escolhem as máscaras, precisam de um tempo para se acostumar a elas para passar para o estágio do ator em máscara, quando então a unidade máscara/ator torna-se realidade.7

Nesse momento, o ator deve começar um relaxamento e, para isso, pode traçar um círculo de giz à sua volta, sentar-se e ai permanecer por algum tempo de olhos fechados. O ato de traçar o círculo de giz ao redor de si é um ritual que separa o estar em si e o estar em máscara, é uma preparação para se abrir espaço, criar dentro de si um vazio. É um momento importante para o início do trabalho. Momento interior neutro.8

6Antes de o acor vestir a máscara ou introduzir nela seu rosco, se se tratar da mesma pessoa que a construiu, essa pessoa já esteve dentro dela, pois,7ao construí-la, o mascareiro já a habita.8Espelhos neste momento não são indicados, pois não é a aparência que importa, mas a sensação de conforto e abandono da própria personalidade. Há uma estreita relação entre a máscara e o pensamento zen. Sobre o

Page 78: o Ator e Seus Duplos

A máscara em seu estado-orgánico

A máscara vai passar agora de seu estado-objeto para um estado-orgánico. Isto é, de simples objeto colocado so-

assunto, ver David Feldbush, “Zen and che Actor”, em TDR, Nova York, NYU, s/d.

Page 79: o Ator e Seus Duplos

bre uma mesa passa a fazer parte do estado orgânico do ator. E o princípio orgânico mais fundamental é a respiração.

O ator deve estar em repouso, como que adormeci- do, mas consciente, principalmente consciente de sua respiração que deve ser percebida através da máscara. A máscara assim adquire dele movimentos quase impercep- tíveis de respiração. A impressão que se tem então é de que a máscara vive, respira. E uma respiração suave, lenta, ritmada.

Temos aqui o princípio básico da máscara teatral: não apenas está como também é. Vive. Um objeto vivo em cena diferencia-se de todo objeto inerte. Por isso, a máscara em cena deve dar sinais de vida, seja pela respiração, pela concentração de seu olhar ou por

O estado-orgânico. Exercício da respiraçãoLaboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

Page 80: o Ator e Seus Duplos

seus movimentos.9

9 Esse exercício, aparentemente simples, é complicado, pois exige muita concentração e tempo para chegar a ter efeito.

Page 81: o Ator e Seus Duplos

A máscara em seu estado-animal

Como vimos, a máscara em repouso, ou em estado neutro, não significa estar ausente. Aparentemente quieta, ela está atenta e disponível a qualquer estímulo externo. O momento neutro é sempre um momento fugaz. O ator em máscara, ao perceber qualquer ruído ou movimento, reage imediatamente, voltando-se em direção a esse estímulo. Sua reação manifesta-se através de todo o corpo. A impressão que o ator em máscara deve dar é de que ele vê e ouve com todo o seu corpo. Estado-animal é o sentir e reagir a estímulos externos.

A máscara age por impulsos e

Reação aos estímulos externos. 0 estado-animalLaboratório 0 ator e seus duplos, 2000.Foto de Berenice Farina Rosa.

Page 82: o Ator e Seus Duplos

pausas. Ao perceber qualquer som, luz, calor, o ator em máscara deve reagir imediatamente. Registrado e absorvido o estímulo, o ator deve expressá-lo em movimentos sutis, que imprime à máscara. Se o estímulo for de calor, transferir a sensação de calor; se o estímulo for um som, sentir o som no rosto. O corpo acompanha sempre a máscara, não se expressa separadamente dela. Ao receber um estímulo, o ator ma

Page 83: o Ator e Seus Duplos

nifesta-o na máscara, suspendendo por alguns segundos a sua respiração. Faz um leve movimento de pescoço e imediatamente o corpo reage, indo em direção ao estímulo; o olhar também focaliza essa direção. Ao ir em direção ao estímulo, seus movimentos devem ser muito económicos. Essa economia é conseguida através de contínuas repetições do exercício, pois, através da repetição, o ator toma consciência dos movimentos desnecessários.

A máscara em seu estado-racional

Estado-racional é o estado de perceber, deduzir, manifestar. Nesse estágio os exercícios vão além da simples reação física. A máscara, depois de perceber o estímulo e reagir corporalmente, vai perscrutá-lo e descobrir do que se trata. Identificando-o, expressa sua reação.

Ao receber um estímulo, a máscara exterioriza-o também através do olhar. Aqui pode ocorrer a triangulação, isto é, um olhar de conluio lançado ao público. Imediatamente segue-se a reação corporal, isto é, o ator se desloca para aproximar-se e verificar melhor a causa da perturbação. Nesse ir em direção ao estímulo, não são necessários mais do que três ou quatro passos e, no total, entre o perceber,

Page 84: o Ator e Seus Duplos

ir em direção ao estímulo, conferi-lo e reagir, não deve haver mais do que cinco ou sete movimentos.

Nesse exercício, cada detalhe deve ser analisado. Tudo deve ser feito pausada e lentamente. A mudança do movimento normal para o lento ressalta a intenção da ação; o superlento ressalta o estático; e o estático ressalta a essência.8 O objetivo é descobrir e usar apenas os movimen-

s Observar a relação entre o rosto de um ator estático e o ator em máscara, entre este e figuras rígidas, entre a máscara e o boneco. Ou, amda, entre bonecos ou máscaras e os símbolos.

>0

Page 85: o Ator e Seus Duplos

tos essenciais. Voltar ao ponto inicial. Dissolver. Repetir a mesma ação e a mesma reação várias vezes. Voltar ao pon' to inicial. Repetir. A cada repetição os movimentos vão sendo enxugados e a ação e intenção da máscara tornam- se claras.

A máscara neutra não toma nunca atitudes precon- cebidas. Age sob estímulos, somente. Os estímulos podem ser físicos (sonoros, visuais, táteis, etc.) ou mentalmente criados.

Estímulos físicosa) SonorosProvocar estímulos concretos. Por

exemplo, o toque de uma campainha, uma pedra que cai, uma janela que bate, som de vozes longínquas, etc. No processo dos exer- cicios, quanto mais óbvios e reais os estímulos, mais claro é o foco e mais direta a reação.

b) Estímulos visuais e táteis9

Partir da máscara em seu estado-orgânico, neutro, em repouso. Exercitar a respiração. Pedir que os atores fechem os olhos para que não percebam que objetos vão sendo colocados à sua volta.10 Num certo momento, esses objetos são percebidos pelo tato ou por sons que despertam as máscaras. Assim que a máscara perceber o objeto, deve imediatamente reagir, deixando-se invadir por ele, sendo o objeto, sutilmente refletindo os seus movimentos. O objeto deve ser

Page 86: o Ator e Seus Duplos

perscrutado pela máscara como alguma coisa vista e descoberta pela primeira vez. Um ator em máscara, ao ver um objeto, deve sentir-se como que tomado, invadido por ele. E fascinante observar o grupo

9 Nesse exercício inicia-se uma percepção mais aguçada dos objetos, o que será retomado no capítulo 4-

10 Essa é uma tareia do diretor de oticina.

>1

Page 87: o Ator e Seus Duplos

descobrindo formas, cor, movimentos, textura e sons dos objetos. A cada descoberta a máscara reage, incorporan- do as qualidades que descobre fora de si.

c) A máscara e o objetoO mesmo que o exercício anterior,

só que o ator em máscara não em repouso, mas em pé, de maneira a poder locomover-se para aproximar-se ou tocar os objetos. Partindo de seu estado neutro, percebe objetos à sua volta (cadeiras, escadas, livros, uma sucata de ferro, um tecido leve e transparente, etc.). Nesse trabalho de percepção

&

Page 88: o Ator e Seus Duplos

A máscara e o objeto. Primeiros contatosLaboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

>?

Page 89: o Ator e Seus Duplos

«Ne

cios objetos, fazer movimentos simples: girar a cabeça, de* ter o olhar, caminhar em direção ao objeto, tocá-lo. Para cada uma dessas ações, descobrir movimentos básicos, nunca mais do que em cinco tempos. Eliminar o supér- fluo. Importante é perceber onde um movimento começa e onde acaba; perceber o espaço, o tempo.

d) Outros estímulosRepetir os exercícios anteriores,

agora com estímulos de luz, calor, vento ou sons de uma melodia ou poema.

A sequência desses exercícios pode ser uma cena coletiva improvisada, em que todas as máscaras do grupo comecem a interagir.11

Estímulos mentalmente criadosa) Máscara penteia-se enquanto se

observa num espelho.b) Máscara procura agulha perdida

sobre uma mesa.c) Máscara lê.d) Chuva bate forte na janela,

máscara assusta-se, vai em direção a ela, estende o braço e fecha a janela.

e) Cozinhar: mexer lentamente uma colher dentro de uma panela, parar, provar a comida, continuar.

0 Andar normalmente. De repente, ver um precipício ou uma porta que se fecha, um tijolo que

Page 90: o Ator e Seus Duplos

cai, um cachorro que late, etc.g) Telefone toca, máscara olha

para o telefone, estende o braço, pega o gancho atendendo, ninguém fala. Máscara estranha, desliga. Telefone

11 Em todos esses exercícios é importante que o grupo possa ver o que está acontecendo. Dividir o grupo e alternar entre os que vêem e os que trabalham.

»

Page 91: o Ator e Seus Duplos

novamente toca, máscara simplesmente o olha, não atende.

h) Entrar numa estação, ver o trem que chega, atrapalhar-se ao tentar passar pela catraca, olhar atónito diante do trem que fecha suas portas e se afasta da estação.

i) Um grupo de máscaras num ponto de ônibus. Atitude de espera, cansaço. As máscaras olham fixamente na direção de onde se supõe vir o ônibus, ou têm um olhar vago, impreciso; ocasionalmente, algumas máscaras esbarram entre si, levemente se notam, mas voltam a concentrar-se na direção de onde o ônibus deve vir. Finalmente, este chega. As máscaras assumem todas um foco único; percebe-se assim, através delas, a aproximação do ônibus.12

Máscara X máscara + objeto

Nesse exercício, é importante observar o início, ou seja, o ponto neutro inicial. Estar em estado neutro é não pensar e, ao mesmo tempo, colocar-se em estado de alerta, um estado da mais aguçada percepção, pronto para receber e reagir a todo e qualquer estímulo externo. As reações devem ser imediatas e as ações

Page 92: o Ator e Seus Duplos

precisas.No jogo de cena entre duas

máscaras existe sempre uma que percebe o estímulo primeiro, reagindo pronta-

12 Interessante é trabalhar a ação e reação com máscaras de grupo. Pode ser uma multidão anónima e desintegrada, sem nada em comum; o povo de um determinado local, determinada classe social ou raça, com preocupações e objetivos comuns; um grupo de pessoas num ponto de ônibus, numa tila de mercado, etc. As máscaras de grupo podem ser iguais, uniformizadas ou diferenciadas por sexo, idade, cor.

M

Page 93: o Ator e Seus Duplos

mente. Nesse caso, a outra máscara, também atenta ao que se passa à sua volta, reage à ação - quase sempre mais óbvia - da primeira. Esse é um exercício de ação e reação.

Duas máscaras em cena acarretam sempre inten- ções diferentes, conflitantes, têm objetivos opostos. A ação que se desenvolve entre elas expressa vontades com trárias.

O conflito cênico coloca princípios básicos, tais como positivo/negativo, masculino/feminino, ação/reação/ resultado, princípios universais geradores de energia.

As ações devem ser claras. Uma cena com máscaras é como uma escrita. Cada frase deve ser enunciada separadamente e completada antes de se iniciar a próxima. O início e o fim de uma ação, o ritmo dos movimentos e as pausas equivalem a pontos e vírgulas. O fim de um parágrafo, ou seu ponto final, é o retorno da máscara ao ponto neutro, início e fim de toda ação.

No jogo cênico com máscaras é interessante que ocorra a triangulação. Triangulação é quando a intenção, que antecede a ação, é mostrada através de uma troca de olhar entre personagem e público. Uma pequena pausa na qual a intenção dc uma ação é reforçada num diálogo mudo entre o palco e a platéia.13

Depois de exercícios dirigidos,

Page 94: o Ator e Seus Duplos

sugere-se que os atores improvisem suas próprias cenas.

O exercício máscara X máscara + objeto pode incluir também a interferência da platéia. Isto é, o grupo que observa permanece em máscaras para, rapidamente e

13 Notar que nesses exercícios, os objetos são usados apenas como estímulos e coirtracenam com as máscaras enquanto objetos, não como personagens.

)}

Page 95: o Ator e Seus Duplos

no momento oportuno, entrar em cena. Não ter mais do que três máscaras de cada vez em cena e, na entrada de uma quarta máscara, uma delas (a que estiver mais apartada do conflito) congela, dissolve-se e retira-se.

Dependendo da qualidade e talento do grupo, situações muito ricas podem surgir. Cada processo ou oficina é uma experiência única, impossível de se repetir. E, como o teatro, deve ser vivenciado.

Nos exercícios com máscara neutra é preciso lembrar que ela em si nada representa ou nada deve representar, pois não deve ter expressão. Mas através déla pódese perceber o tempo, o espaço e o esforço necessários para a execução dos mais simples gestos. Ela ajuda a eliminar movimentos supérfluos. A máscara neutra é como urna página em branco, sobre a qual se pode criar qualquer personagem, expressando aquilo que é comum a todos.

Já a máscara expressiva revela personagens com características próprias, sem que, para isso, o ator precise fazer qualquer coisa.

mm<> wmm

s máscaras expressivas

Page 96: o Ator e Seus Duplos

apresentam o personagem. Elas podem ser realistas e expressionistas. Realistas são máscaras imitativas, que reproduzem o rosto humano, representando tipos de pessoas. Geralmente são cuidadosamente confeccionadas e muito bem pintadas. As expressionistas têm uma expressão forte, enfatizam os traços, às vezes propositadamente distorcidos. Apresentam mais a emoção do que tipos. Rudes, nelas não importa a

)f)

Page 97: o Ator e Seus Duplos

perfeição ou proporção, mas sim a força de expressão. Apre- sentam a realidade exageradamente.

Dando seqiiência aos nossos exercícios, colocar à disposição do grupo vários tipos de máscaras. Notar que não se trata aqui de buscar máscaras para personagens predeterminados, mas sim descobrir e criar personagens a partir de máscaras dadas.14 E, diante de um elenco variado, os atores devem fazer sua opção por atração, empatia, curiosidade, estranheza, preferência de tipos, níveis de linguagem, etc. Escolhida a máscara, observá-la antes de vesti- la. Depois, em máscara, o ator pode observar-se no espelho, procurando interiorizá-la. Acrescentar alguma indumentária mas, no início, antes de se definirem os personagens, usar túnicas simples, luvas, cobrir ou deixar soltos os cabelos, enfim, usar

Descobrindo personagens

Laboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

Page 98: o Ator e Seus Duplos

artifícios que eliminem o corpo do ator para que a máscara ressalte. Os figurinos devem vir numa etapa posterior, quando os personagens estiverem mais definidos.

14 Esses exercícios são feitos a partir de máscaras prontas. Se os atores puderem passar também pelo processo de criação e confecção de máscaras neutras ou expressivas, todo o processo passa a ser muito mais rico. “Modelar, fabricar e depois animar são etapas para conhecer-se a si mesmo e ao outro”, em O. Asían (org.), Le masque, du rite au théâtre (Paris: CNRS, 1985).

>7

Page 99: o Ator e Seus Duplos

Sobre o personagem, perguntar-se: qual seria o seu elemento mais determinante, o fogo (que transforma, queima, sobe) ?; a terra (com suas características de solidez, permanência)?; a água (que tudo invade, destrói, lava, purifica)?; o ar (o etéreo que paira)? Perguntar-se também qual o animal que lhe é mais próximo; qual o seu sexo; idade; onde habita; com quem; quais os seus gestos mais peculiares; qual sua postura em repouso; o que almeja; quais os seus objetivos em geral e num momento transitório. Descobrir também qual é o seu objeto-símbolo,13 e, ao descobri-lo, improvisar com ele um jogo de contracena.

Essa pesquisa deve ser feita pelo grupo através de improvisações livres e no tempo que for necessário. No início, é um trabalho individual, isolado. Mas, à medida que cada ator passe a ter claro o personagem que emergiu de sua máscara, espontaneamente começam a surgir interações muito interessantes entre eles.10 11

Nos exercícios com máscara expressiva, o primeiro impacto é o

10 Objecos-símbolos seriam aqui como marcas de determinados tipos. Por exemplo, a máquina fotográfica para um fotógrafo ou para alguém que quer registrar imagens; uma bengala para alguém com dificuldade de andar; um revólver; um crucifixo; um relógio; cordas; garrafas; etc.

11 Impressionante como cada ator cria o seu personagem, apesar das características próprias de cada um. A mesma máscara usada por diferentes atores pode se transformar em personagens totalmente diversos.

Page 100: o Ator e Seus Duplos

mais importante, pois é o momento em que a máscara é vista, vê. Num primeiro instante ela se apresenta tal como é, um objeto inerte, para depois passar a sensação de que é viva. E vista, também vê. Respira. Sua imagem deve ser coerente com sua postura. O que ela representa deve ser percebido de forma total, nos traços da máscara, na postura corporal do ator, em seus gestos, na maneira de andar, olhar, reagir.

Page 101: o Ator e Seus Duplos

Numa contracena de máscaras é importante que se vejam as diferenças entre os personagens, pois elas se re- afirmam pelo contraste.

O trabalho em máscara é diferente do trabalho da mímica, pois uma coisa é o rosto vivo de um mímico e, outra, é a máscara. Na mímica o ator se expressa através de seu rosto e de seu corpo; já o ator em máscara deve concentrar nela toda sua expressão.

A mímica conta uma história, já a máscara mostra sensações. O trabalho com máscaras não considera fato- res psicológicos. Um ator em máscara está muito mais pró- ximo da animalidade do que da racionalidade. Ele está a

Page 102: o Ator e Seus Duplos

0 ator em máscaraLaboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

Page 103: o Ator e Seus Duplos

serviço da máscara, isto é, seu corpo é apenas um suporte. Mas, assim como a mímica exige do ator um treinamento especial, também o ator, para trabalhar com máscara, precisa de treino, precisa tomar conhecimento de suas regras, ritmo, pausas, intenções. Improvisações só desva- lorizam a máscara e comprometem a qualidade da cena.

A partir dos exercícios em máscara neutra e das improvisações com as máscaras expressivas, concluímos que a

Gesto e forma: buscando a essência do personagemLaboratório 0 ator e seus duplos, 2000.Fotos de Berenice Farina Rosa.

Page 104: o Ator e Seus Duplos

máscara ajuda a distinguir o que é teatro e o que é vida, pois através déla o ator percebe o seu eu separado do personagem. Sair de si e entrar no personagem é um

60

Page 105: o Ator e Seus Duplos

processo de anulação do ego. Esse trabalho de desperso- nalização é uma técnica que se adquire, imprescindível para criar e manter diferentes personagens.

Com a máscara ocorre como que uma separação entre corpo e mente. Atento ao espaço à sua volta e aos estímulos visuais e auditivos, o ator aguça os sentidos e toma consciência de dois momentos importantes: tensão e descontração.

Esse processo leva a uma percepção maior da respiração. A inspiração está ligada aos músculos e a tudo que é sólido, à base, à inspiração. A expiração é relaxante, é o vazio. Em repouso, a respiração é normal. Ao sentir o estímulo (sonoro ou visual), a inspiração é retida e, ao reagir, o ator expira. Em cenas com gestos contínuos e repetitivos - pentear, cozinhar, esperar, etc. - a respiração é normal e rítmica até o momento em que surja alguma coisa que quebre essa continuidade; a respiração então pára e logo se solta. Um dos exercícios fundamentais aqui apresentados é o exercício inicial, o da respiração da máscara neutra. Em cena, a máscara deixa de ser um objeto inerte para, em contato com o rosto e o corpo do ator, ganhar vida. Os seus movimentos de respiração são muito sutis, mas suficientes para distingui-la de um

Page 106: o Ator e Seus Duplos

objeto inerte. No palco o ator, mesmo imóvel, sempre transmite vida; já o objeto, quando imóvel em cena, é apenas um objeto inerte. Portanto, o respirar da máscara é um exercício que concentra energias, mesmo quando ela está em inação.17

17 O mesmo se pode dizer quanto à energização de um boneco ou objeto — quando sua ação é o estar parado; aí a simulação de vida é dada por movimentos sutis. Notar, porém, que o estar parado é diferente do estar atento, com um foco definido. O “estar olhando” é, em si, ação, é manifestação de vida.

M

Page 107: o Ator e Seus Duplos

Os movimentos do corpo refletem emoção desde que conscientemente realizados. Gestos amplos e abertos nos levam à extrospecção; gestos pequenos e fechados, à introspeção. Há também uma separação do corpo e do rosto, por isso são importantes os exercícios que despertam a percepção do corpo. Esses exercícios visam ao controle sobre os músculos, de maneira que o ator possa se expressar separadamente, do corpo ou do rosto. A desassociação corpo/rosto leva a uma maior concentração.

Trabalhar em máscara é filtrar e apresentar apenas o essencial. Provocar o anedótico é uma recorrência fácil, mas evitá-lo ou eliminá-lo é fundamental.

A máscara deve partir sempre de seu ponto zero, neutro, e terminar no ponto de onde partiu. Do início ao fim, cada movimento deve ser sempre muito claro.

O olhar antecede e indica as intenções da ação.

Os movimentos do ator em máscara são dicoto- mizados, rítmicos. Daí a proximidade da máscara com a dança. Há sempre uma pausa entre cada segmento da ação.

A máscara, ao mesmo tempo que leva à concentração, leva à extroversão, pois sua linguagem são os gestos e estímulos externos. Nela nada é

Page 108: o Ator e Seus Duplos

psicológico.Pelos detalhes, pela acuidade e

ritmo, cada pequeno gesto da máscara amplia-se, assim como as peculiaridades dos personagens. Essa exacerbação, muitas vezes, leva-a ao grotesco, por isso perturbam, denunciam, subvertem.

A máscara é sempre genérica e, à medida que despersonifica, ela tipifica. Ao eliminar de seus gestos os excessos, ela ressalta o essencial. E uma abstração, é arquétipo.

w

Page 109: o Ator e Seus Duplos

Trabalhar em máscara ajuda o ator a perceber melhor os diferentes centros de gravidade de seu corpo, centros esses que surgem de acordo com as posições que assume. Eliminando movimentos supérfluos, ele passa a agir de maneira direta, sem vacilações.

DA (0/wvxtDíA Dtiim AO MOo teatro grego ao teatro popular da Idade Média, as máscaras

sempre representaram arquétipos (o poder, o bem, o mal, o demónio), tipos sociais, sempre genéricos. Eram máscaras inteiras que cobriam todo o rosto.

Na Renascença, período em que o homem é considerado o centro do universo, o ator também começa a se afirmar como indivíduo.1S A máscara ainda não é totalmente eliminada mas apresenta-se pela metade. A meia-máscara da Commedia dell’Arte representa bem esse período de transição pois possui um duplo significado: a parte superior - a máscara, propriamente - representa a tradição, o passado; a parte baixa do rosto - com a boca exposta - representa a sensualidade e a racionalidade, a ousadia contestatória

Page 110: o Ator e Seus Duplos

do homem renascentista. A meia- máscara é uma máscara falante, em que a palavra adquire grande importância na cena, atendendo às exigências do público e às necessidades dos próprios atores. O texto (cannovacio) é fixo e flexível. E também dual: mantém o preestabelecido e apresenta o improviso livre.12 13

12 Esse período é marcado também pelo início do teatro profissional.13 Em seu artigo “Le rôle du masque dans la formation de 1’acteur”, Jacques

Lecoq diz que falar numa meia-máscara é “[...] encontrar a sua voz, sua linguagem, seu estilo de representar”.

Page 111: o Ator e Seus Duplos

Máscaras neutras - neutralização relativa às feições de cada umPesquisa Teatro de Animação, 2000/2001.Foto da autora.

Page 112: o Ator e Seus Duplos
Page 113: o Ator e Seus Duplos

Recriando a própria máscaraPesquisa Teatro de Animação, 2000/2001. Fotos da autora.

Page 114: o Ator e Seus Duplos

O sair de siPreparando para entrar em cena. Foto de Angela Garcia.

Page 115: o Ator e Seus Duplos

A máscara e o objeto, em contracenaLaboratório O ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

Page 116: o Ator e Seus Duplos

Brincando - Bonecos de luvaApresentação de alunos da ECA/USP, 1995. Foto da autora.

Page 117: o Ator e Seus Duplos

Máscaras expressivasCena de A Benfazeja, de João Guimarães Rosa. Foto de Angela Garcia.

Page 118: o Ator e Seus Duplos

Cena de Palomares - Bonecos de luvaTexto e direção de Ana Maria Amaral. Montagem de O Casulo, 1978/1981.

Page 119: o Ator e Seus Duplos

Passando emoçõesLaboratório O ator e seus duplos, 2000. Foto da autora.

Page 120: o Ator e Seus Duplos

Cenas de O paraíso perdidoCriação coletiva, direção de Joana Albuquerque. Alunos da ECA/USP, 1995.Foto da autora.

Page 121: o Ator e Seus Duplos

Cena de Tempo de espera - Bonecos articuladosAdaptação para bonecos da peça de Aldo Leite. Apresentação de alunos da ECA/USP, 1994-

Foto da autora.

Page 122: o Ator e Seus Duplos

Descobrindo movimentos e formasLaboratório O ator e seus duplos, 2000. Foto da autora.

Page 123: o Ator e Seus Duplos

História da batata - Improvisação com objetosLaboratório O ator e seus duplos, 2000.Foto da autora.

Page 124: o Ator e Seus Duplos

A contracenaLaboratorio O ator e seus duplos, 2000. Foto da autora.

Page 125: o Ator e Seus Duplos

Objeto e atorLaboratório O ator e seus duplos, 2000. Foto da autora.

Page 126: o Ator e Seus Duplos

Cena de A Coisa — Vibrações/Luz do Objeto-lmagemCriação coletiva, direção de Ana Maria Amaral.

Montagem de O Casulo, 1989/1990.Foto da autora.

Page 127: o Ator e Seus Duplos

Cena de A Coisa - Vibrações/Luz do Objeto-ImagemCriação coletiva, direção de Ana Maria Amaral.

Montagem de O Casulo, 1989/1990.Foto da autora.

Page 128: o Ator e Seus Duplos

Assim, da comédia italiana e do teatro de feira francês até o final do século XIX, prepondera um novo tipo de teatro, literário e racionalista. Mas aí também a meia- máscara foi perdendo seu espaço. O ator maquiado substitui a máscara e, sempre centrado no homem, as exacerbações do Romantismo acabam levando o teatro e o ator a um excesso individualista e a uma interpretação exageradamente naturalista.20 Essa tendência só se atenua com o Simbolismo que, surgido no final do século XIX, perdura até hoje.

A máscara é sempre um símbolo, símbolos de realidades próximas e símbolos que fogem à nossa compreensão lógica. Trágicas ou caricatas, referem-se à vida cotidiana natural; já as abstratas pressupõem outro tipo de vida, mais sobrenatural.

Máscaras abstratas são máscaras com pouco ou nenhum referencial do cotidiano humano. Apresentam traços simples, podendo ser geométricos.21 As máscaras abstratas dos surrealistas despertam o onírico. Ambas relacionam-se com idéias, com tipos míticos, com o inconsciente. Apresentam o estranho, despertam o medo, o diabólico, e seu reverso, o divino, o sagrado.

Page 129: o Ator e Seus Duplos

E irrefutável a importância do teatro abstrato no panorama atual das artes cênicas. O teatro abstrato é equivalente ao movimento abstrato que ocorreu nas artes plásticas. “O seu hermetismo”, diz E. T. Kirby, “denuncia a existência de um outro tipo de vida”.22 Desperta suspeitas

20 A maquiagem não deixa de ser também uma máscara, que se taz e refaz a cada dia.

:i Exemplos de máscaras abstratas são as máscaras africanas, as máscaras dos indígenas brasileiros, e também as máscaras abstratas da Bauhaus.

:: Ver E. T. Kirby, “The Mask: Abstract Theatre, Primitive and Modern”,em TDR, setembro de 1972.

M

Page 130: o Ator e Seus Duplos

de uma outra ordem de existência, que transforma e ame- aça a nossa. O incógnito provoca sempre um mal-estar. Existe, segundo Kirby, uma relação entre o teatro abstrato contemporâneo e a magia dos rituais. O teatro abstrato, assim como os rituais, é a-racional, não-pessoal.14 Ambos apresentam o não-homem, o homem-animal, o homem- deus, o super-homem - seres mutantes, enfim. O ator em máscara é o não-indivíduo, seus gestos não são os do cotidiano, tocam, portanto, outras dimensões.

KOMAGCM, Df&tÇÃO, DMMMUMWteatro Nô do Japão é uma

combinação de poesia lírica e dança. Sua origem vem de danças religiosas que se realizavam nos templos em homenagem aos deuses e espíritos dos antepassados. Essas danças eram sempre acompanhadas por máscaras. No início, por influência da índia, as máscaras usadas (gugaku) eram muito grotescas; aos poucos, porém, foram se aperfeiçoando e se tornaram mais delicadas (bugaku).

14 A despersonalização do teatro abstrato é semelhante à despersonalização da arte abstrata.

Page 131: o Ator e Seus Duplos

O teatro Nô reflete o pensamento budista e é importante conhecê-lo para entender esse teatro. A filosofia budista apóia-se sobre dois princípios básicos: mutação do universo e anulação do ego.15 O universo vive em constante mutação e não existe eu

nenhum capaz de interromper esse processo ou que possa dominar as leis que

15 Eico Suzuki, Nô, teatro clássico japonês (São Paulo: Editora do Escritor, 1977).

Page 132: o Ator e Seus Duplos

provocam essas mudanças.25 Para se atingir a verdade existe o caminho do esforço próprio e o caminho direto. O cami- nho do esforço próprio é o que se trilha seguindo os ensinamentos de Buda, a filosofia zen e através do exercício da arte (dança, música, poesia). O outro caminho é aquele que se percorre sob inspiração da misericórdia divina, por isso chamado de caminho direto. Os fenômenos do universo ocorrem em vários espaços. Há o espaço dos animais e aves; há o espaço kazurá, dos seres humanos que vivem sob condições de carência, impotência e perecibilidade; o assurá é o local dos seres divinos que convivem com os humanos; o inferno são espaços particulares, onde seres inferiores coabitam com os homens em vales, encostas, lugares escuros ou lodosos; há também o céu, lugar que, uma vez atingido, não se perde mais.

O teatro Nô é povoado por deuses, espíritos, monstros, figuras fantásticas da mitologia, em cena representados sempre por máscaras. Com máscaras são também apresentados os personagens femininos e os homens anciãos. Essas máscaras são refinadas peças de escultura, construídas por artistas que seguem técnicas tradicionais. Possuem certas peculiaridades: um lado da máscara é levemente diferente do outro, para

Page 133: o Ator e Seus Duplos

mostrar mudanças de sentimento; pela modelagem dos lábios, entreabertos, se a máscara olha para baixo, tem-se a impressão de estar triste, se olha para cima sugere um sorriso; conforme o formato dos olhos, expressa doçura.

Os atores que representam os personagens masculinos apresentam-se sem máscara. Seus rostos, sem ma- quiagem, são absolutamente neutros, sem qualquer ex-

25 As causas e efeitos podem ser bons ou maus.

M

Page 134: o Ator e Seus Duplos

pressão fisionómica. Trabalham com gestos simbólicos. São mais de 250 gestos codificados para expressar tristeza, alegria, sono, ciúmes, vingança, tédio. E um tipo de interpretação na qual os atores constroem máscaras corporais e criam em seus rostos máscaras neutras vivas.

No teatro Nô, o protagonista está sempre em viagem, é portanto alguém desligado de seu cotidiano. Em linguagem poética, monólogos, diálogos e coro, em versos arcaicos, são cantados e acompanhados por flautas e tambores. Esses textos não devem ser lidos ou interpretados literalmente, mas sim percebidos como se “estivéssemos ouvindo música”, segundo Fenollosa.26

As peças são de diferentes categorias: as fantásticas; as de diversão; as que tratam do céu; as que tratam dos humanos e dos seres divinos; peças do assurá; peças do kazurá

sobre problemas relativos à fragilidade da condição humana.27

O teatro Nô não reproduz fatos, não imita a vida, como também os gestos empregados não reproduzem os gestos do cotidiano. A expressão facial dos seus atores é neutra; eles se expressam apenas por meio de símbolos, ritmo, música e canto. O

Page 135: o Ator e Seus Duplos

teatro Nô não trata da realidade, mas sintetiza o sentido dos acontecimentos e dos sentimentos como se vistos apenas sob a ótica interior da alma. E, nesse tipo de teatro, a máscara cobre totalmente sua função. Em nossa cultura ocidental houve um processo histórico pelo qual as máscaras foram eliminadas da cena, mas isso hoje já se reverteu: “No início era a máscara”, disse Vigo-Arjena, “[...] por trás da máscara surgiu o ator.

26 Ezra Pound & Emest Fenollosa, The Classic Noh Theatre of Japan (Nova York: New Directions, 1959).

27 E. Suzuki, Nô, teatro clássico japonês, cit.

h7

Page 136: o Ator e Seus Duplos

O ator se apropriou do teatro. E a imagem do homem se apropriou dos símbolos que até então residiam na máscara. A revolução antropocentrista que aconteceu no teatro, entre outras conseqüéncias, transferiu ao autor dramático o fardo da originalidade”.16

Com essas considerações, Vigo- Arjena quer dizer que o que a máscara por si mesma expressa transformou-se numa tarefa que os dramaturgos assumiram, nestes últimos três séculos, tentando colocar em palavras aquilo que a máscara por si mesma fala. E no momento atual, isto é, no processo de retorno à máscara ocorrido ao longo do século XX, vemos surgir um número cada vez mais crescente de grupos e diretores que procuram expressar-se através dela.

O Bread and Puppet é um teatro ligado à vida. E segundo Françoise Kourilsky, entre as décadas de 1960- 1980, foi modelo para grupos que queriam afastar-se do teatro enquanto instituição e aproximar-se da realidade cotidiana. Os seus muitos e variados espetáculos, procissões de protesto ou simples eventos têm todos, em sua dramaturgia, algo em comum. Ainda que pareçam diferentes entre si, seja pelos espaços em que atuam (em rua, igrejas, fábricas ou

16 :s Miguel Vigo-Arjena, “Dieu ex-masque”, em Puck, n® 8, Charleville- Mézières, Insticut Internacional de la Marionnette, 1995.

Page 137: o Ator e Seus Duplos

palco), seja pelos diferentes públicos aos quais se dirigem, têm uma estrutura semelhante.

Peter Schumann, diretor do grupo, não parte de um texto escrito e, mesmo quando parte de histórias da Bíblia, de contos de Grimm ou fábulas de Esopo, não conserva desses textos nem as palavras nem o “espírito”, a história apenas corre paralela. O seu estilo é a narrativa. O próprio Schumann se diz um contador de histórias, e

Page 138: o Ator e Seus Duplos

nem sempre sente a necessidade de diálogos. No teatro, segundo ele, o diálogo acontece entre duas pessoas e alguém que escuta. Só que esse alguém (o público) não pode intervir, pois a situação teatral impede o público de se manifestar. Em seu teatro, quando existem diálogos, são quase sempre colocados pelo narrador. Françoise Kourilsky explica essa técnica, dando como exemplo um diálogo entre uma mulher e um soldado. O narrador diz: “[...] a mulher falou, meu filho morreu”. Mulher: “[...] meu filho morreu”. O narrador continua: “[...] o soldado diz, eu não sou culpado”. Soldado: “[...] eu não sou culpado”. Os diálogos são colocados pelo narrador e repetidos pelos personagens. No final da peça, os atores fazem perguntas aos personagens, abrindo um diálogo também com o público. Os diálogos, intermediados pelo narrador, são sempre reduzidos ao mínimo e reproduzem a linguagem do dia-a-dia, as conversas do cotidiano.

Outra característica da dramaturgia do Bread and Puppet são os roteiros, que partem de artigos de jornal ou discursos políticos. Por exemplo, o discurso do presidente Johnson, de 1966, em que

Page 139: o Ator e Seus Duplos

ele define a sua concepção sobre a “grande sociedade”. Extraindo das mensagens os seus pontos mais cruciais, deixa claro o seu conteúdo. E, contrapondo-se às palavras recitadas pelos atores, as máscaras executam ações que despertam ansiedade no povo, exatamente o contrário do que o discurso pretendia despertar.17

Originalmente escultor, Peter Schumann escolheu o teatro como sua expressão definitiva, porque “[...] no teatro pode-se apontar com o dedo”. O gesto da máscara, e do boneco, tem o poder de exagerar e penetrar fundo

17 Françoise Kourilsky, Le Bread and Puppet théâtre (Lausanne: La Cité, 1971).

Page 140: o Ator e Seus Duplos

em nós como “sons que cortam o silêncio”, diz Kourilsky. Tanto os gestos como os sons ou as palavras são muito mais evidentes quando apresentados cada um isoladamente. E no Bread and Puppet a palavra vem sempre separada do som, e o som, separado do gesto. Cada um desses elementos é uma leitura à parte, cada um tem sua importância. Essa técnica reforça a narrativa. Ações, palavras e sons acontecem separadamente - como no Bunraku japonês, onde o recitativo acontece independentemente da ação dos bonecos.30

O Bread and Puppet é um teatro em que não apenas existe um mínimo de palavras, diálogos, como também os gestos e as ações das máscaras e dos bonecos são extremamente sucintos, com um máximo de economia, eliminando todo o supérfluo.

O povo chicano é uma mistura de raças, composta de índios, mexicanos, americanos e hispânicos, que vive na fronteira do México com os Estados Unidos. É uma minoria oprimida que encontrou no Teatro Campesino sua grande expressão.

O Teatro Campesino, atuante desde a década de 1960, é dirigido por Luiz Valdez, um ator antes filiado ao San Francisco Mime Troupe que, seguindo técnicas de interpretação da Commedia

Page 141: o Ator e Seus Duplos

deli*Arte, usa a caricatura para satirizar tipos da sociedade rural ou para ressaltar a situação carente dos camponeses que vivem nessa região. Seu teatro está ligado ao movimento sindicalista agrário, organizado por Cesar Chaves. Fundamentalmente um tea-

30 O Bimraku é uma das técnicas do teatro de bonecos do Japão, considerada uma arte trina por apresentar uma parte visual, plástica (os bonecos), uma parte literária (o texto) e a música (o recitativo acompanhado de canto).

70

Page 142: o Ator e Seus Duplos

tro de máscaras, com elas são colocadas situações e per* sonagens do dia-a-dia. Os patrões capitalistas são caricaturalmente apresentados com feições animalescas, os capatazes têm expressões aterradoras, os rostos dos que se deixam por eles manipular são rígidos, em oposição ao rosto nu, natural, humano dos que se rebelam.

O Teatro Campesino ressalta a presença do índio entre os chícanos. A população indígena mexicana ainda conserva as tradições culturais herdadas dos seus ancestrais, os maias e os astecas, seja no seu cotidiano seja nos seus rituais. Através da apresentação de antigos mitos, o Teatro Campesino constantemente lembra a origem divina do homem.

“As máscaras permitem que se trabalhe o confronto de dois grandes princípios das filosofias asteca e maia, conseguindo uma síntese entre o dualismo asteca de que a vida está na morte e

a morte está na vida, e o princípio maia de harmonia cosmogónica universal”, segundo Geneviève Fabre.31

No sincretismo cultural desse povo estão sempre presentes arquétipos, como figuras da morte e do diabo, entre outros. Se a morte é um personagem tradicional no teatro mexicano e espanhol, é também “f...j

Page 143: o Ator e Seus Duplos

uma realidade cotidiana na vida dos chícanos”.3: Não tem porém nenhum sentido macabro, nem trágico; ao contrário, empresta leveza, humor, malícia. A máscara, no Teatro Campesino, desperta o riso e ao mesmo tempo a reflexão.

Se o objetivo do teatro de Valdez é despertar uma consciência política, o simples uso de máscaras em suas

31 Geneviève Fabre, “Les masques dans le théâtre américain d’aujourd’hui: le Bread and Puppet Theatre et le Théâtre Campesino", em O. Asían (org.), Le masque, du rice au théâtre (Paris: CNRS, 1985).

33 Ibidem.

71

Page 144: o Ator e Seus Duplos

apresentações, por si, já cria um distanciamento natural para sua melhor percepção.

Julie Taymor é uma artista ligada às artes cênicas que fundamentalmente se expressa através de máscaras e bonecos, combinando diferentes formas, gêneros e tradi- ções. Como disse Eileen Blumenthal, Julie Taymor tem um trabalho eclético que abrange não só o teatro como também a ópera e o cinema. Sutilmente incorpora técnicas de teatro japonês, da Indonésia, da Ópera de Pequim, sombras chinesas e do teatro tcheco. Ao utilizar sombras, cria efeitos cinematográficos. Por exemplo: na apresentação de um casario, em que pequeninas janelas pouco a pouco se acendem - percebendo-se através delas silhuetas em movimentos -, tem-se a impressão exata de uma câmara passando.33

Julie Taymor, uma americana de Boston, teve uma precoce e diversificada formação teatral. Suas experiências vão desde uma escola de teatro para crianças à Universidade de Ohio, onde trabalhou com Joseph Chakin, do Open Theatre. Mais tarde, freqüentou a Escola de Jacques Lecoq, em Paris, onde se familiarizou com as máscaras, experiência essa reafirmada

Page 145: o Ator e Seus Duplos

depois no contato com o Bread and Puppet. Também importante para sua carreira foi o período em que participou do grupo de Herbert Blau, do California Institute of the Arts. Mais marcante ainda para sua carreira foram os anos que passou na Indonésia, na Academia Nacional de Arte Taman Ismail Marzaki. Impressionou-se com a conexão que percebeu aí

33 E. Blumenchal, Julie Taymor, Playing wich Fire (Nova York: Harry N. Abrams, 1995).

72

Page 146: o Ator e Seus Duplos

existir entre arte e comunidade, uma ligação profunda entre o humano e o divino. E durante os anos que passou em Bali montou Tirai, com um elenco muito heterogéneo. O tema desse trabalho tratava justamente dos confrontos e assimilações culturais. Em Tirai, máscaras estilizadas contracenavam com atores, misturando uma interpreta- ção estilizada e naturalista. Tirai provocou grandes controvérsias, pois, em Bali, os trabalhos criados por estrangeiros sobre a cultura balinesa são vistos (e com razão) com desconfiança. De volta aos Estados Unidos remontou o mesmo espetáculo com atores americanos, obtendo grande sucesso no teatro La Mama. A partir daí sua carreira prosseguiu com êxito. Atualmente, conta com um grande número de produções realizadas nos Estados Unidos, Europa e Ásia. Além de dirigir, esculpe e constrói, ela mesma, suas máscaras e bonecos, sendo também excelente cenógrafa e figurinista.34

Em seu trabalho com máscaras foi fundamental a influência que recebeu de Herbert Blau, dele assimilando, e depois desenvolvendo em seu próprio estilo, exercícios nos quais os atores, para apresentar a essência de uma história, devem buscar o que ele

Page 147: o Ator e Seus Duplos

chama de “gesto ideográfico”, ou seja, deve-se passar emoção através de um único gesto. Assim, para expressar amizade e traição, dois atores devem criar, juntos, uma posição de equilíbrio que expresse a amizade e a confiança entre eles; num segundo momento, quando essa amizade é abalada pelo ciúme, a posição corporal muda, pois perdeu-se o equilíbrio que havia entre eles.35

Quando quer expres-

34 Suas máscaras implicam a figura completa do personagem, por isso, para cada máscara ela cria figurinos.

35 E. Blumenthal, Julie Taymor, Playing with Fire, cit.

Ti

Page 148: o Ator e Seus Duplos

sar a ambigüidade de um personagem, apresenta, simultaneamente, o rosto e a máscara, ou a máscara e o corpo descoberto.

Nas palavras de Eileen Blumenthal, Julie Taymor “[...] congrega num só quadro elementos de arte da Indonésia, da Itália, do Japão, da Grécia, integrando também palavras, imagens, sons e movimentos, numa experiência muito orgânica”.36

Mas esse conjunto complexo e diferenciado, ao mesmo tempo que colabora para seu sucesso, fazem-na ser vista por alguns como uma coleciona- dora de tradições exóticas. Na verdade, nada mais faz do que expressar a pós-modernidade, onde a miscelânea é a grande característica. De qualquer forma, para nós, interessados na encenação de máscaras e bonecos, é fascinante observar a relevância que esses elementos assumem em seu teatro.

O Mummenschanz é um grupo composto por dois suíços e uma italiana, que se iniciaram na mímica com Jacques Lecoq, em Paris. São eles, André Brossard, Bernie Schurch e Floriana Frasetto. No início, o Mummenschanz trabalhava com máscaras faciais simples, mas o grupo sentiu logo a necessidade de metamorfoseá-las. Tentou então as máscaras maleáveis, que se criavam e se

Page 149: o Ator e Seus Duplos

desfaziam à vista do público. Suas máscaras faciais apresentavam, no início, todos os traços de um rosto, mas logo vieram formas mais abstratas. O estágio seguinte foi a descoberta da cabeça-objeto ou máscara-objeto. Mas a verdadeira característica do grupo são as suas máscaras corporais, isto é, máscara-cabeça-corpo.37

36 Ibidem.Ana Maria Amaral, Teatro de formas animadas, 3â ed. (São Paulo: Edusp,1997).

71

Page 150: o Ator e Seus Duplos

As máscaras corporais exigem um grande aprendi' zado de movimentos. Bernie, André e Floriana assimila* ram muito bem os exercícios de máscara neutra da Escola de Lecoq que, ao eliminar as expressões faciais do ator, transfere-as ao corpo. Porém, ao passarem da máscara con poral para a máscara-objeto, tiveram que enfrentar outro tipo de linguagem; tiveram que se confrontar com os movimentos duros e lentos da matéria, sendo que as suas primeiras máscaras faciais ou corporais eram, em geral, de tecido, espuma, plásticos voláteis e transparentes.

Corporais, faciais ou máscaras-objetos, com elas o grupo procura expressar estados de alma, sentimentos banais, como desejo, ciúmes, ternura, incomunicabilidade, idéias reduzidas a uma forma muito simples. Por exemplo, o grupo tem um número com dois cubos que se transformam em máscaras, passando ao público a noção do cheio e do vazio.

Através do riso, o Mummenschanz transmite seus recados. Não por meio de palavras, mas de formas, movimentos, impulsos e pausas, causando surpresas e provocando o espanto. Segundo Bernie, a palavra expressa apenas aquilo que ela significa, mas um gesto é a síntese de muitas outras coisas. Para Jacques

Page 151: o Ator e Seus Duplos

Lecoq, o Mummenschanz apresenta a poética do silêncio com humor.

Por suas fortes conotações simbólicas e arquetípicas, a máscara exige um suporte filosófico, temático, cultural. Colocá-la em cena acreditando que certos atributos (como forma, pintura, textura) são suficientes para transformá- la em personagem é um engano. Num primeiro impacto, causa estranheza e admiração, mas aos poucos torna-se repetitiva. Não se deve com ela reproduzir o cotidiano como tal. E outro o seu ritmo, outras as suas condições.

Page 152: o Ator e Seus Duplos

Usá'la em cena para fazer o que uma pessoa usualmente faz, sem transposição teatral, acaba se criando apenas o anedótico. E essa não é a sua função dramática.

Page 153: o Ator e Seus Duplos
Page 154: o Ator e Seus Duplos

O ator e o bonecoCena de A Benfazeja, conto de João Guimarães Rosa. Montagem da Pesquisa Teatro de Animação, 2001. Foto de Angela Garcia.

Page 155: o Ator e Seus Duplos

0 ÔOlvCCO: (Ima RtlAÇÃO IMAMIIM -OdCMMAMPdlAOdtM^

tjr\ máscara está ligada ao corpo do ator que, ao vesti- JfX la e identificar-se com ela, passa por um processo de osmose e metamorfose. Máscara e ator formam um só personagem.

O boneco é considerado também uma máscara, mas destacada do corpo do ator. Ao manipular um boneco, o ator percebe-o separado de si e, nesse distanciamento, pode observar o personagem e assim movê-lo. Existe uma diferença entre o personagem-boneco e o personagem encarnado pelo ator. O boneco é o personagem, enquanto o ator apenas “representa um papel, que varia”, como disse Enno Podehl.1 Podehl observa ainda que, na relação ator/ boneco, existe um triângulo relacional, composto pelo manipulador, pelo boneco e pelo papel.

No jogo ator/boneco, se consideramos o boneco como uma cópia em miniatura do homem, o teatro de bonecos tende a cair no desprezo, pois o ator, com certeza, pode representar melhor esse papel. “O boneco não é um ser humano em miniatura, é diferente, tem vida própria.”2 Por isso, diz Podehl, para fazer o jogo teatral com o boneco, é necessário que o ator-manipulador faça antes uma viagem ao interior

Page 156: o Ator e Seus Duplos

desse boneco para descobrir o personagem nele implícito, desvendando assim sua autonomia. Do que se conclui que o processo de trabalho de um ator é diferente do processo de trabalho do ator-manipulador,

1 Ermo Podehl, “Dialogues”, em Puck, n2 5, Charleville-Mézières, Insdtut Internacional de la Marionnetce, março de 1992.

2 I bidem.

79

Page 157: o Ator e Seus Duplos

pois, enquanto ator, ele representa um personagem, isto é, tem um papel; já o boneco é o seu papel, é o personagem apenas. Para animar um boneco o ator deve observá- lo bem antes, captar sua essência e procurar transmiti-la. Para dar vida ao inanimado é preciso ressaltar a matéria, ressaltar essas peculiaridades intrínsecas da materialidade com que todo boneco é feito.

Essa autonomia, essa vida interior própria que carateriza o boneco, é criada a partir de sua construção. Antes de o ator-manipulador animar um boneco, ou seja, antes de habitá-lo, no sentido de dar-lhe vida, quem o construiu já o habitou, já colocou ali um personagem.18 E verdade que qualquer

objeto inerte pode vir carregado de significações; assim, as feições de um boneco determinam o personagem. Na construção de um boneco também são criadas as suas possibilidades técnicas, o que, para sua encenação, é um fator determinante.

O boneco pode assumir características de sexo, idade, raça, temperamento, etc. Mas quando essas características são muito realistas, quando se pretende com ele representar naturalisticamente o

18 Na África, existe uma distinção entre imagem votiva e a marionete ou boneco de teatro. A diferença está em que a imagem votiva representa entidades e, diante dela, o devoto tem uma atitude de reverência, sentindo-se separado dela; já no teatro de bonecos, existe uma relação mais estreita entre o objeto/boneco, o seu ator-manipulador e o público, relação essa que começa a partir do momento mesmo de sua confecção ou criação.

Page 158: o Ator e Seus Duplos

homem, o boneco corre o risco de se tornar cómico, grotesco. Mas o contrário acontece quando a representação humana é indeterminada e pouco realista; dessa forma, torna-se poética. O boneco é poético quando se atém ao genérico, pois quanto mais abstrato, mais próximo fica da essência daquilo que se quer com ele representar.

Page 159: o Ator e Seus Duplos

81

Todo objeto é, por natureza, imóvel, mas torna-se animado pelos movimentos que recebe. E pura mate- rialidade: cor, forma, tamanho, peso. E aos seus signos vi' suais, plásticos, formais soma-se a qualidade dos impulsos externos que recebe. Esses impulsos “devem ser no ponto certo e na medida exata”.19

Portanto, a capacidade de o ator se expressar através de um boneco é não só relativa às suas características e possibilidades técnicas, mas tam- bém à capacidade em observado, respeitá-lo e perceber o “nervo vital que vem do seu interior”.20 E o que Podehl chama de transferência de energias.

Além das características próprias do boneco e do movimento adequado que recebe do ator-manipulador, existe também a interferência do público. O público sabe que um boneco não se move por si, que alguém ou algum truque o faz mover-se, mas a consciência de haver um mecanismo não destrói a ilusão. O movimento do boneco em cena produz uma sensação na platéia e essa sensação é importante. A ilusão é consequência da sensação que se tem ao ver um objeto mover-se, aparentemente, por si. Não é o movimento que causa a sensação, ela é despertada pela relação que se cria entre o ator, o boneco e o público. A matéria em si não tem vida, mas, a partir da emoção que o boneco

19Enno Podehl, “Dialogues”, em Puck, cic.20Ibidem.

Page 160: o Ator e Seus Duplos

desperta no ator, cria-se uma reação na platéia que provoca essa ilusão.

Portanto, o boneco influencia o ator-manipulador e, a partir da impressão que o boneco desperta no ator, este lhe imprime impulsos que lhe conferem ilusão de vida - sempre com a aquiescência e a emoção do público.

Page 161: o Ator e Seus Duplos

A sátira e a poesia

Existem dois tipos de teatro de boneco: um em que os personagens são vistos apenas como objetos, isto é, sem vida; e outro em que eles são vistos como dotados de vida.21 No primeiro caso predomina a percepção de sua materialidade e assim não os levamos muito a sério, pois, ao tentarem imitar a realidade, mais despertam o riso por serem grotescos; já no segundo caso, quando a percepção de vida é mais importante do que a percepção material, eles se tornam enigmáticos, são mistério, estranheza, vão além da realidade, despertam o poético.22 Enfim, quando se tenta copiar demais o real, o boneco tende ao cliché, é caricatura; quanto mais tenta ser real mais se deixa trair, fica falso. Mas quando renuncia à cópia e se afasta do real, aproximasse da idéia genérica de homem, criasse o tipo, é arquétipo, toca a essência.

“Teatro não é vida”, já dizia Craig.23 O ator não deve copiar a realidade, mas, dentro da linguagem teatral, deve criar algo além dessa realidade, usando para isso uma linguagem não naturalista. Da mesma forma, o boneco não deve ser uma simples réplica do ator, mas deve

21 H. Jurkowski, “Trairscodification of che Sign Systems of Puppetry”, em Semiótica Journal, n2 47, International Association for Semiotic Studies, 1983.

22 Sobre esse tema, ver também Ana Maria Amaral, Teatro de animação (São Paulo: Ateliê, 1977), pp- 22-24.

23 E. G. Craig, On lhe Art of lhe Theatre (Nova York: Theatre Arts Books, 1956).

Page 162: o Ator e Seus Duplos

expressar plenamente suas características de não-realidade ou fantasia.

Existem, pois, dois tipos de teatro de bonecos: um teatro cómico, caricato, em que predomina a sátira, e outro poético, que se coloca na esfera do simbólico.

Page 163: o Ator e Seus Duplos

Os exercícios que seguem têm por objetivo preparar o ator para a manipulação. É um trabalho equivalente ao trabalho de interpretação. Antes dos exercícios, porém, é importante lembrar que no jogo cênico entre ator e boneco podem surgir dificuldades que comprometem a qualidade de um bom teatro de bonecos. Por exemplo, quando o ator se serve de bonecos apenas para reforçar o seu personagem, isto é, quando os bonecos são usados como acessórios do ator, eles podem ser um estímulo para o ator reforçar sua interpretação, mas, nesse caso, não se deve pensar que, pelo simples fato de se colocar bonecos em cena, se esteja fazendo teatro de bonecos. Também na manipulação à vista é comum surgirem problemas, pois o ator muitas vezes sufoca o boneco. “Quanto pior o ator, quanto mais ruidoso é, mais ele o abafa.”9 Para ser um bom manipulador o ator deve ceder espaço, deve colocarse em segundo plano e, através do boneco, deixar viver o personagem.

O ator e o boneco - exercícios e reflexões

lã Momento - ator interpreta o personagem —

teatro de atorDois atores interpretam

personagens numa cena em que ações e texto vão sendo por eles improvisados. Num determinado

Page 164: o Ator e Seus Duplos

momento, congelar. (Colocar biombo entre atores e platéia.)

Conclusão: o ego do ator se mistura com o personagem. O ator tem sua presença, é a imagem do personagem.

Enno Podehl, “Dialogues”, em Pucíc, cit.

Page 165: o Ator e Seus Duplos

22 Momento - o boneco é o personagem - teatro de bonecosProsseguir a cena. Mas agora os

atores estarão escondidos atrás do biombo, e, ao manipular os bonecos, transferem a eles os personagens que antes encarnavam. Deixar improvisar. Num dado momento, congelar. (Retirar o biombo.) Voltar ao momento anterior em que os atores são os personagens. Congelar. (Colocar biombo.) Continuar com os bonecos.

Seguir alternando momentos em que os personagens são bonecos e os atores são simplesmente manipuladores, e momentos em que os atores interpretam os personagens. Nesse jogo fica bem claro que os bonecos são sempre os personagens que encarnam, mas o ator não é o personagem, ele simplesmente representa.

Conclusão: o boneco neutraliza a presença do ator em cena. O ator é o ego do personagem, mas não a sua imagem. E quanto maior a interpretação do ator mais se reforça a atuação do boneco/personagem. O boneco age, o ator interpreta.

32 Momento - ator-manipulador e o outro ego do personagemNa relação ator-manipulador e

personagem-boneco, o ator percebe o distanciamento que existe entre ele e o seu personagem. A dicotomia é

Page 166: o Ator e Seus Duplos

clara.Pode-se aqui improvisar cenas em

que ator e boneco se confrontam. Criar uma discussão entre o boneco e o ator, em que este último se manifesta contrário às atitudes de violência que o seu personagem-boneco possa tomar, criar um diálogo entre ele (enquanto pessoa) e o personagem-boneco (o ator falaria simultaneamente pelo perso-

Page 167: o Ator e Seus Duplos

nagem e por si próprio). Dessa dicotomia muitas cenas podem ser improvisadas. Por exemplo, um boneco de luva diz ao seu manipulador que não agüenta mais o suor de suas mãos; ou, um boneco de vara sussurra à platéia que atrás dele, no palco, há um vulto, uma sombra que o se* gue por todos os lados; um boneco de fio, irritado de ser constantemente puxado para cá e para lá, pede à platéia que lhe corte os fios, ou, desesperado por não poder dirigir suas próprias ações, resolve enforcar-se em seus cordões; ou ainda, bonecos dependurados atrás do palco, imóveis, comentam entre si sobre as incoerências do texto. Essas idéias foram aqui colocadas como exemplo para ressaltar o distanciamento possível entre ator e boneco.24 Nesse jogo o ator percebe a diferença que existe entre o seu ego e o personagem.

Portanto, na relação ator-boneco existe: uma associação, quando o ator se reflete no objeto animado; uma desassociação, quando o ator se percebe diferente do personagem; e um distanciamento, quando o ator se vê atuando.

Tipos de bonecos e sua manipulação

Os bonecos podem ser: articulados, de luva ou fantoches, de

24 Essas são idéias colhidas em improvisações de oficinas, ou roteiros de espetáculos, por isso devem-se respeitar os direitos autorais das mesmas, repeti-las seria plágio.

Page 168: o Ator e Seus Duplos

vara, de fios ou marionetes. Podem ser também uma combinação dessas técnicas: de vara com boca articulada, de luva e vara, de vara e fios, etc.25

25 Neste trabalho, pretendemos nos ater mais sobre a manipulação de bonecos articulados e bonecos de luva, entre si bastante diferentes. Não abriremos um item especial para os bonecos de vara porque a sua manipulação é semelhante à dos bonecos de luva ou articulados. Já o controle e

Page 169: o Ator e Seus Duplos

Boneco-máscara em construçãoPesquisa Teatro de Animação, 2000/2001. Foto da autora.

Testando movimentosPesquisa Teatro de Animação, 2000/2001. Foto da autora.

manipulação de bonecos de fios é uma outra experiência, que depende muito mais da acuidade e da familiaridade técnica de sua construção, não exigindo muita interação corporal do ator.

Page 170: o Ator e Seus Duplos

Bonecos articulados reproduzem a figura humana (ou animal) de maneira mais completa e têm articulações em quase todas as suas juntas. Também as marionetes apresentam a figura humana inteira, com movimentos de braços, pernas, pescoço, além das articulações de boca, olhos, sobrancelhas e dedos.

Bonecos de luva, também chamados fantoches, são aqueles que o bonequeiro veste como uma luva.

Bonecos de vara são bonecos sustentados e manipulados por varetas, sejam elas presas à cabeça do boneco, nas mãos ou nos pés. Os bonecos de vara têm uma gestualidade ampla e imponente. São ótimos para espetáculos destinados a grandes platéias, pois podem ser construídos em grandes dimensões.

Existe também uma combinação de boneco e máscara. O boneco-máscara tem o tamanho natural de uma pessoa. A cabeça é uma máscara inteira manipulada, de seu interior, pela mão do ator; o corpo é metade boneco e metade o corpo do próprio manipulador.

Bonecos de sombra são em geral bidimensionais. São quase sempre articulados, mas podem ser também rígidos, pois sombras em movimento, por si, já criam a ilusão de vida. As

Page 171: o Ator e Seus Duplos

figuras projetadas em sombra são movidas a distância, por varetas.

Para cada tipo de boneco existe uma técnica diferente de manipulação. Antes de tratarmos da manipulação dos bonecos articulados e de luva, cabe lembrar algumas regras básicas, válidas para qualquer técnica utilizada.

• A entrada de um boneco em cena é um momento fundamental, deVe causar impacto. Ao ser visto pela primeira vez, por segundos que sejam, o boneco deve ter uma postura tal que num pri-

87

Page 172: o Ator e Seus Duplos

meiro instante dê a impressão de existir por si. Depois dessa sua apresentação, seguem-se os seus primeiros movimentos, também importantes porque são esses movimentos que vão transformé- lo, de simples objeto, em personagem vivo. Philip Genty diz que, ao animar um objeto, todo movimento exige do ator-manipulador muita concentração, o que significa que nenhum movimento deve ser feito sem convicção. Fazer movimentos com convicção é ter um foco de ação claro. Dessa convicção surgem os impulsos que saem de dentro do ator, que, por seu dinamismo, dão credibilidade ao personagem.

• Os bonecos podem ser animados por um manipulador oculto (atrás de um biombo) ou à vista, isto é, com o ator-manipulador visível. E, quando visível, o ator deve manter-se neutro; a manipulação à vista, por si, provoca o distanciamento cênico.

Page 173: o Ator e Seus Duplos

mm wícdiADosRelação entre ator-manipulador e boneco

ara a manipulação de bonecos articulados é imporei tante que se

estabeleça uma relação entre o corpo do ator e o boneco.26 No caso de manipulação a três, isto é, na

manipulação de um boneco com três manipuladores,

26A opção e a ênfase dadas aqui aos bonecos articulados são propositais, por sua estrutura corporal ser mais semelhante à do corpo humano.

Page 174: o Ator e Seus Duplos

é interessante que se estabeleça antes a relação entre eles.27

Sugerimos alguns exercícios.

I. Um personagem em cena - ator^boneco + 3

manipuladores + narrador.Esse exercício é feito com

quatro atores. Um deles concentra-se para criar em seu rosto a máscara de um personagem, mantendo-se totalmente passivo, e assim transforma-se num boneco, sob o controle de três manipuladores. Um controla a cabeça, outro manipula os braços, e um terceiro, com toques na parte de trás dos joelhos, comanda as pernas.

27 Na manipulação a três, um manipulador trabalha com a cabeça do boneco, o outro com os seus braços, e um terceiro com os seus pés.

Page 175: o Ator e Seus Duplos

O ator como objeto, sob controleLaboratório 0 ator e seus duplos. 2000. Foto da autora.

Page 176: o Ator e Seus Duplos

1- Momento - Exercitar os movimentos do “boneco” até ficarem bem coordenados. Esse é um trabalho de coordenação entre o ator-boneco e os seus três manipuladores. Nenhum movimento deve ser feito sem que o foco do seu olhar esteja bem direcionado, isto é, o olhar deve indicar a intenção da ação a ser executada.14 Nesse exercício é importante que se dê a máxima atenção aos movimentos da cabeça do ator-boneco que determina a direção do seu olhar - um olhar atento, inteligente, não um olhar vidrado ou rígido. Também fundamental é a neutralidade do ator que encarna o boneco: assim como todos os manipuladores, deve manter-se neutro na cena.

22 Momento - O narrador dá indicações para os movimentos que os atores-manipuladores vão executar, e esses devem, portanto, manter-se atentos à narrativa. Os movimentos corporais seguem o foco do olhar.

2. A contracena - dois atores-bonecos +

manipuladores + narrador.1- Momento - O narrador improvisa

uma história com dois personagens. No início, dar atenção a cada um dos personagens separadamente. Enquanto um está em foco, o outro fica congelado. Criar, por meio da narração, um roteiro de interação

Page 177: o Ator e Seus Duplos

entre os dois “bonecos”. O narrador ao mesmo tempo que narra a história também interage com o público.

22 Momento - Acrescentar diálogos à narrativa. A fala do personagem é dada pelo manipulador responsável pelos movimentos da cabeça, que lhe imprime movimentos de acordo com o ritmo das palavras e das pausas.

M Ver exercício de foco da máscara: o olhar da máscara antecede e indica a ação.

90

Page 178: o Ator e Seus Duplos

Num sistema de rodízio, todo o grupo pode participar desse exercício, alternando-se nas diferentes funções.

O ator que personifica um “boneco” sente um certo impacto, pois as ações mais simples que executa (andar, olhar, pegar um objeto qualquer, virar o rosto) não são realizadas sob o seu comando, mas por uma equipe de manipuladores que, por sua vez, é comandada por um narrador, o que exige de todos muita concentração e coordenação.

O ator passa a perceber assim a relação entre foco e ação. Em geral, os nossos movimentos corporais cotidianos são muito mecanizados, por isso, adquirir consciência da nossa estrutura física é importante, assim como perceber como se originam os nossos gestos.15

Ao concentrar-se nas ações do “boneco” que encarna, o ator como que se esvazia do seu ego, mantendo uma atitude neutra em cena, fundamental para esse trabalho de animação.

Estrutura

E importante que os atores conheçam a estrutura técnica dos bonecos que vão manipular. Para isso, a melhor maneira é através da prática, isto é, construindo-os ou

Page 179: o Ator e Seus Duplos

ajudando a construí-los. O processo de construção de bonecos, porém, é muito complexo, requer habilidades especiais, treino e tempo. Não importa, assim, num trabalho de interpretação para atores como o que nos propomos aqui. Mas sempre é possível dar algumas noções de construção através de confecções instantâneas, simplificadas,

15 No ceatro de bonecos existe um distanciamento entre a boca do personagem e a boca do locutor, que emite as palavras, o que provoca um estranhamento.

91

Page 180: o Ator e Seus Duplos

mantendo apenas o objetivo principal, que é a observação da estrutura do corpo humano e a sua relação com as articulações do boneco.

1. Estrutura corporal e confecção simplificada.

Material necessário: jornal, barbante e fita crepe.

a) Pesquisa através de uma confecção instantânea

Começar por projetar um desenho básico do corpohumano, observando medidas e proporções da cabeça, tronco e membros. Observar os pontos de articulações básicas: movimento de pescoço e cabeça, juntas dos joelhos, braço/antebraço, etc.

Construir um boneco de tamanho médio, com a altura aproximada de um metro, de modo a poder ser facilmente manipulado sobre uma mesa.

Trabalhar em grupos de quatro pessoas. Para formar as diferentes partes do corpo do boneco, usar jornal enrolado; para as articulações, barbante. O boneco deve ter movimentos de pescoço de maneira a poder girar a cabeça; os braços devem mover-se naturalmente; o corpo deve ter possibilidades de se curvar na cintura, de se sentar, de andar.

b) Pesquisa através de manipulação simplificada

Page 181: o Ator e Seus Duplos

Depois dos bonecos de jornal, uma confecção improvisada do grupo, é o momento de colocar os manipuladores em contato com bonecos bem estruturados, de madeira, tecido ou outro material mais durável, para que se familiarizem com articulações mais perfeitas e exatas.

2. Manipulação com bonecos simplificados.

Com os bonecos recém-construídos, vamos agora manipulá-los. Esse tipo de boneco requer três manipuladores. A manipulação pode ser direta, isto é, o ator-mani-

Page 182: o Ator e Seus Duplos

pillador segura diretamente a cabeça, os braços, os joelhos ou os pés. No início apenas brincar com o boneco aleatoriamente, exercitando os seus movimentos básicos. Mas é importante que uma outra pessoa do grupo faça o papel de diretor. Um boneco improvisado, mesmo sem detalhes ou rosto pintado, é importante que tenha nariz, para que melhor se perceba o foco de um suposto olhar do manipulador. Ir aos poucos criando movimentos mais complexos e intencionais, como pegar objetos próximos e distantes, coçar, dar adeus, andar, sentar, ler, etc.

Manipulação

Antes de passarmos à manipulação de bonecos tecnicamente mais elaborados, é necessária uma preparação com objetos.

a) Exercício com objetos flexíveis e rígidos

Com um tecido leve e três varetinhas, definir no pano um ponto que seria a cabeça e outros dois pontos que seriam as mãos de um suposto personagem. Um só ator pode operar as três varetinhas; com um segundo manipulador, podemos acrescentar ainda as pernas. Esse personagem pode contracenar com um seu oposto, por exemplo, um bloco

Page 183: o Ator e Seus Duplos

pesado de tijolo, manipulado por uma terceira pessoa. Ao mover as varetinhas, manter sempre claro o foco do olhar (que se localiza na suposta cabeça do boneco de tecido) e, na medida do possível, dar ao tijolo um foco pensante. Na contracena dos dois temos elementos para improvisação de uma cena. Repetir com outro tipo de material.

b) Exercício do telefoneUm ator segura um telefone e

disca os números, outro ator coloca o fone no ouvido e um terceiro fala. Em

v

Page 184: o Ator e Seus Duplos

outro ponto da sala, um novo grupo de manipuladores repete o mesmo esquema. Cria-se um diálogo entre os dois grupos.

c) Exercício do livroAtor 1, segura um livro; ator 2,

lê; ator 3, vira as páginas.d) O boneco invisívelTrês atores manipulam um boneco

invisível.Essa cena deve ser ensaiada até o

ponto em que os movimentos sejam tão bem coordenados que se “perceba” a

ação do boneco.

O boneco invisível

Page 185: o Ator e Seus Duplos

Laboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto da autora.

91

Page 186: o Ator e Seus Duplos

Coordenação a trêsLaboratório O ator e seus duplos, 2000. Foto da autora.

Improvisação com personagens tipificados

Finalmente, vamos agora entrar em contato com bonecos tipificados.

Colocar à disposição do grupo um elenco de bone- cos articulados. Os atores devem observar bem as suas características, suas possibilidades técnicas e depois pas' sar para improvisações livres. Manter sempre uma boa a> ordenação entre os manipuladores e sempre claro o foco, isto é, o olhar do boneco deve indicar as intenções de suas ações. Observar também que se deve manter uma relação coerente entre a personalidade do boneco e os seus movimentos.

Depois, criar improvisações livres, baseadas nas ca- racterísticas de cada tipo ou improvisações a partir de um texto ou

Page 187: o Ator e Seus Duplos

tema dado.

9)

Page 188: o Ator e Seus Duplos

ftvccivAÇÀo - roturo mvm*}lT m exemplo de texto ou tema dado é o exercício baseado na peça de Samuel Becket: Ato sem palavras I. A encenação dessa peça com boneco articulado é um excelente treino de manipulação. Nas rubricas do texto, o personagem é definido por “ [...] gestos instintivos de dobrar e desdobrar um lenço”. Movimentos detalhistas e repetitivos tomam-se mais enfáticos quando apresentados por bonecos, e quanto mais lentos e particularizados mais ampliam seu conteúdo. Em Ato sem palavras í, cada pequeno gesto tem um significado, o que torna esse texto muito apropriado para nosso trabalho. A peça começa com o personagem sendo jogado na cena. Ele cai e deve levantar-se lenta e pausadamente, enfatizando em detalhes as intenções de cada pequeno movimento. O ato de sacudir o pó deve vir antecedido por um olhar, inicialmente fixo, e, à medida que o pó se espalha e some, o olhar também se perde, desanuviado. O ato de reflexão do personagem é um excelente exercício de expressão. Momentos de pausa, logo cortados por um som, um apito que antecede a entrada de objetos na cena, despertando e tencionando o personagem, objetos que

Page 189: o Ator e Seus Duplos

se tornam alvos de desejo; com o olhar ele os segue. O personagem não vê apenas com os olhos, mas com todo o seu corpo. Quando uma jarra aparece, ela é imediatamente percebida através da postura do boneco, e quando ela desaparece, o personagem como que se esvazia. Quando nova mente surge e ele tenta pegá-la, a cena prende a atenção pelos detalhes que apresenta, pois as intenções são bem claras. Seja nas tentativas de agarrar os objetos ou subir nos cubos, ou nos momentos mais interiorizados de pausa, as ações indicadas são sempre objetivas e económicas.

n

Page 190: o Ator e Seus Duplos

O Ato sem palavras I, quando bem realizado com bonecos, é muito mais tocante e poético do que com ato- res, pois quando existe harmonia e coordenação entre os manipuladores, que somam e canalizam suas energias para o boneco, este passa a ter uma força de concentração tão grande, que nenhum ator consegue igualar. Experimente.

mm DC KIVA

or|\ s princípios básicos de manipulação dos bonecos são yS quase os mesmos da máscara, pois o boneco é uma máscara. Só que a máscara depende totalmente do movi- mento corporal do ator, enquanto o boneco, ainda que dependa do corpo do ator, é mais desprendido dele, de- pende mais da energia concentrada em suas mãos. Um boneco de luva, ou fantoche, recebe os seus movimentos diretamente das mãos do manipulador. Tem por isso muita agilidade.

O corpo do ator-manipulador

Como aquecimento, começar com um relaxamento físico e depois passar para uma atividade mais dinâmica.Em seguida, sugerir que o grupo

ande normalmente numa área grande da

Page 191: o Ator e Seus Duplos

sala de trabalho.O primeiro comando será o de

andar com as pernas curvadas, mantendo a espinha ereta.

A seguir, deslocar o olhar, isto é, fazer de conta que os olhos estão localizados em outras partes do corpo. Por exemplo, transferi-los para os ombros, depois para a barriga, para os joelhos, para os dedos das mãos, para a testa, etc.

97

Page 192: o Ator e Seus Duplos

Ainda com os joelhos semiflexionados e sempre com as costas retas, sentir o apoio do corpo sobre as coxas.16 Perceber a flexibilidade que o torso e os braços adquirem nessa posição. Sob o ritmo de um som, erguer os braços e ir aos poucos restringindo o espaço ocupado pelo grupo. Com os braços para cima, manter o foco do olhar sobre as mãos. Parar agora o movimento das pernas, mas continuar os movimentos do corpo. Imobilizar depois o tórax, movimentando apenas os braços, as mãos e o pescoço. Trancar o movimento dos braços, continuando a movimentar os pulsos, as mãos e os dedos. Imobilizar os pulsos e mover apenas as mãos e os dedos. Congelar durante alguns segundos. Fazer depois o caminho inverso, soltando os movimentos dos dedos, mãos, pulsos, braços, torso e pernas. Mudar o ritmo do som. Andar normalmente, ampliando o espaço ocupado pelo grupo. Relaxar.

Esse exercício ajuda a concentração sobre as diferentes partes do corpo, ao mesmo tempo que aguça a per- cepção de espaço e a proximidade corporal do grupo. A posição dos braços erguidos e das pernas curvadas é a posição normal de um manipulador de bonecos de luva. O espaço aqui é

Page 193: o Ator e Seus Duplos

propositadamente restrito, como é restrito o espaço atrás de um palco de fantoches. Nessa situação, é necessário manter a percepção dos outros e ao mesmo tempo evitar o abalroamento.

As mãos do ator-manipulador

Repetir o exercício anterior até o ponto em que os atores estão com os braços erguidos. Formar grupos de, no

16 Essa posição permite maior facilidade de movimento, mantendo as costas eretas.

90

Page 194: o Ator e Seus Duplos

máximo, quatro pessoas que se posicionam atrás de ante- paros, de maneira que apenas suas mãos fiquem visíveis.

Exercitar as mãos e os dedos, movendo-os separadamente. Fechar e abrir as mãos, sentindo a tensão, ou energia, que existe na palma quando fechada, que depois se expande pelos dedos quando as mãos se abrem. Observar que essa parte interna das mãos (a palma) é como um centro, e os dedos, antenas.

Como as estrelas, as mãos captam e emitem. Fechadas, escondem, prendem, interiorizam, pensam; abertas, soltam, mostram, exteriorizam, agem. Sacudir as mãos, soltando os pulsos, com as palmas voltadas uma para a outra. Nesse movimento contínuo, forma-se entre elas como que um volume, uma massa energética que se desprende do corpo e, através delas, pode ser repassada para as outras pessoas, criando-se uma energia comum.

As mãos fechadas são como um martelo, têm peso; as mãos abertas são nuvens, fumaça, borboleta. Notar que as mãos parecem ter olhos ou bocas (os dedos), um corpo (a palma da mão), ou pernas (os braços) que se movem.

Exercícios - Usando apenas as mãos, em pantomima, cada membro do

Page 195: o Ator e Seus Duplos

grupo (colocado em círculo) descreve a seqiiência de um dia: acordar, espreguiçar, lavarse, tomar café, ler jornal, sair, trabalhar. Cada pessoa faz uma ação que continua com a próxima pessoa no círculo. As mãos, nesse exercício, expressam apenas ações. Numa outra proposta, podem representar personagens, ou parte deles, por exemplo: a crista de um galo, a boca de um pato. Ou pela forma de se mover, podem representar um velho, uma mulher sedutora, uma criança, animais violentos, selvagens, ou animais domesticados, afáveis, trans- formam-se em aves fugidias, lesmas, insetos, monstros ou

Page 196: o Ator e Seus Duplos

fadas. Expressam também sentimentos: raiva, ternura, prepotência, depressão, medo. Exercitar sempre os contra- rios: amor e ódio, pressa e preguiça, criança e adulto, ataque e defesa, presunção e humildade.

Sugestões de ações: uma flor que se abre, um gancho que puxa um objeto pesado, dois amantes, dois lutadores de boxe num ringue, cena de um parto, ou cenas coletivas de pessoas em protesto confrontando-se com a autoridade violenta, debutantes valsando ou uma torcida de futebol.

Nos exercícios, é importante o ator manter seu corpo flexível e relaxado, não tencionando os ombros;

As mãosLaboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto da autora.

Page 197: o Ator e Seus Duplos

manter os braços sempre erguidos e os cotovelos à altura da testa do manipulador.

Page 198: o Ator e Seus Duplos

Esses exercícios podem ser feitos depois, com as mãos enluvadas. Usar luvas coloridas. As luvas são como uma etapa de transição entre a mão

do ator e o boneco-perso- nagem.17

Cena de Babel-formas e transformaçõesRoteiro e direção de Ana Maria Amaral, montagem de 0 Casulo, 1992. Foto de Caio Mattos.

17 Retomaremos esses exercícios mais adiante, no item que trata dos

Page 199: o Ator e Seus Duplos

bonecos neutros de luva.

101

Page 200: o Ator e Seus Duplos

A estrutura de um boneco de luva é muito simples. Seu corpo é apenas um tecido (tipo camisola) que a mão do manipulador veste, sustentando a cabeça do boneco com o seu dedo indicador.

A cabeça pode ser uma simples bola de isopor ou borracha, novelos de lã, pano enrolado, ou esculpida em papel maché, em madeira, ou outro material.

Bonecos neutros são bonecos sem características de personalidade. Podem ser elaboradamente confecciona' dos para esse fim, ou ser improvisados. São ótimos para os primeiros exercícios de manipulação de luva, pois, não chamando a atenção para as características formais dos personagens, não só colocam a ênfase na ação como do- sam exageros que um boneco muito caricaturado ou tipificado provoca. Na pantomima das cenas mudas, o elemento surpresa e a emoção poética são importantes.

Vamos passar agora a coordenar ação e palavras.

Page 201: o Ator e Seus Duplos

l azer o inanimado falar é sempre difícil. E deve-se

começar por perceber a relação que existe entre a voz e o

corpo em movimento. Todo movimento começa sempre de

uma pausa, o ponto zero.

fExiste uma relação entre voz e

corpo em movimento. Qualquer movimento que o corpo faça, começa do ponto zero, da pausa. Um simples adeus, feito com as mãos, para ser claro, inicia com o braço em repoüso, perfaz sua trajetória e retorna depois ao ponto de repouso inicial, o ponto zero. Da mesma forma as palavras, para serem com-

Page 202: o Ator e Seus Duplos

preensíveis, precisam ser intercaladas de pausas. A palavra acompanha os movimentos e vice-versa. E preciso atenção para não aglutiná-las. Cada frase tem seu ritmo. As pausas entre as palavras ou entre uma ideia e outra devem coincidir com uma certa imobilidade corporal dos bonecos, contrastando com momentos de fala nos quais as palavras vêm sempre acompanhadas de sutis movimentos ou gestos enfáticos, dependendo do discurso. As palavras, quando ditas pelo ator, vêm acompanhadas da energia que se exala dos poros de sua pele ou do brilho do olhar. Já no teatro do inanimado, os bonecos ou objetos, para darem ênfase às palavras, precisam alternar movimentos e pausas.

Mas esse é um problema cuja medida só é dada pela observação e pela prática. Não pretendemos aqui teorizar sobre o assunto, mas queremos ressaltar que a junção da palavra com a ação, no teatro de bonecos, é sempre complicada porque fazer falar o inanimado é uma tarefa difícil. É um trabalho de mis-en^bouche,

como disse B. Cordreaux.28 E como a voz é um instrumento essencial no teatro de animação, paralelo a este nosso treinamento, é necessário que

28 Entrevista a R. Wallet, “Marquer la différence”, em Marionnettes, n2 7, 1985, p. 31.

Page 203: o Ator e Seus Duplos

os atores-manipuladores façam um trabalho de voz com especialistas.

Exercício do arremesso

l2 Passo - O grupo coloca-se em círculo e brinca de jogar bola. Todos precisam estar atentos, pois a bola será lançada para aquele em quem o arremessador fixar o olhar. E, ao recebê-la, essa pessoa lança a bola para outra pessoa, fixando antes o seu olhar nela.

Page 204: o Ator e Seus Duplos

2- Passo - A bola é lançada com o olhar e um som qualquer. Coordenar olhar, gesto e som.

32 Passo - A bola segue agora na sequência do cír- culo, só que em lugar de som deve-se lançar uma palavra.

42 Passo - Agora o grupo deve ir formando uma frase. O primeiro coloca o sujeito, os demais vão colocando os adjetivos, verbos, preposições, etc. Manter a regra de que o olhar deve sempre anteceder o arremesso da palavra que vai junto com o gesto. A palavra vem sempre ligada ao gesto e à intenção do olhar.

ÍMPMVMÇÕCS - MCflOCS Pt CKCKÍCiOSA partir dos bonecos

1. Observação dos personagens sob o ponto de vista técnico e formal. Seus movimentos e características de personalidade.

2. Exercícios de manipulação. Interação dos personagens.

3. Improvisações até a esquematização de um roteiro - dividi-lo depois em cenas.

4. Trabalho individual de voz para o ator encontrar a voz do seu

Page 205: o Ator e Seus Duplos

personagem.5. Trabalho de todo elenco com as

falas e gestual. Ensaio por cenas.

6. Entrosamento das ações com som e luz.7. Ensaios gerais abertos ao

público para testar a reação: boneco/ator/público.

101

Page 206: o Ator e Seus Duplos

A partir de texto escrito para bonecos

1. Seleção de um texto e estudo preliminar de pos- síveis adaptações.19 Definição dos personagens.

2. Confecção dos bonecos de acordo com as características dos personagens e soluções técnicas de acordo com as ações sugeridas.

3. Observação dos movimentos dos bonecos recém- construídos.

4. Trabalhar a voz do personagem e sua sincronia com os gestos.

5. Trabalhar o texto. Texto e movimento.

6. Ensaios abertos para testes.

Page 207: o Ator e Seus Duplos

19 Mesmo quando escrito para bonecos, um texto dificilmente será tomado literalmente, a menos que já tenha sido testado, produzido, encenado e reescrito.

10)

Improvisando a partir de conto popular: O sapo e a cobra

Pesquisa Teatro de Animação, 2000/2001.Foto da autora.

Page 208: o Ator e Seus Duplos

Cena de Aventuras de uma viúva alucinadaPeça para mamulengo, de Ginú (Januário de Oliveira). Encenação de alunos da ECA/USP 1995.Foto da autora.

A partir de texto escrito para teatro de ator ou a partir de texto literário

O processo para criação de um roteiro e montagem de espetáculo baseado em

texto para atores, ou texto lite-

Cena de Zó da Vaca

Texto para bonecos de Ana Maria Amaral. Montagem de O Casulo, 1981/1985.Foto de Jeferson Costa.

Page 209: o Ator e Seus Duplos

rário, deve ser feito depois de se levar em conta as razões de sua transposição para o teatro de bonecos. E de acordo com o conteúdo, decidir as conveniências do uso de bonecos de luva, vara, sombra, articulados ou ños.

teatro de bonecos possui características que o dis- yS tinguem e, ao mesmo tempo, o aproximam do teatro de ator. Em sua pesquisa de doutorado, Felisberto Sabino da Costa levanta reflexões muito interessantes sobre os procedimentos dramáticos do teatro de animação.

Determinados recursos de

Cena de Ato sem palavrasTexto para ator de Samuel Becket. Encenado por alunos da ECA/USR 1987. Foto da autora.

Page 210: o Ator e Seus Duplos

interpretação estão mais ligados ao ator. Esses recursos não são factíveis para um boneco e, da

107

Page 211: o Ator e Seus Duplos

1

mesma forma, este tem propriedades que lhe são únicas se comparadas com o desempenho do ator. No teatro de bonecos, a comunicação que se estabelece com a platéia é intermediada pelo objeto, ao passo que no teatro de ator não há tal elemento de intermediação. Destarte, temos: no primeiro caso, ator-boneco-platéia; no segundo caso, ator-pla- téia. A inserção de um terceiro elemento na relação ator- platéia implicará num processo diferenciado ao se pensar em escrever para o teatro de animação. O dramaturgo não estará escrevendo para um ator somente, mas para um ator que dará vida a um objeto não animado. Ou melhor, para um boneco - ou outro objeto - que será animado por um ator. O boneco é um vir-a-ser. É a ponte que liga o ator-manipulador ao público.29

John Bell diz ser difícil definir o trabalho do dramaturgo por não ser bem compreendida essa função.30 No que se refere à dramaturgia do teatro de bonecos ou do teatro de máscaras, a tarefa é ainda mais complicada, porque esses teatros utilizam-se de técnicas pouco conhecidas. Mas neles

29 Felisberto Sabino da Cosca, Poética do ser e não ser, tese de doutorado (São Paulo: ECA/USP/Departamento de Artes Cênicas, 2001).

30 John Bell, professor da New York University, é também dramaturgo do Bread and Puppet Theatre.

Page 212: o Ator e Seus Duplos

1

1

existem elementos importantes ligados à dramaturgia. John Bell ressalta as diferenças que existem entre o teatro de bonecos e o teatro de ator.

No teatro de ator a dramaturgia é uma ligação entre o texto original dramático e sua transferência para o palco, mas há outros aspectos da dramaturgia concernentes à arte da representação, que estão sempre presentes no teatro de bonecos. O primeiro ensaio de uma peça para atores começa pela leitura do texto, já no teatro de bonecos começa-se por experimentar os movimentos próprios de cada personagem, dentro de um determinado espaço. O teatro de ator baseia-se

Page 213: o Ator e Seus Duplos

1

principalmente no script, nos diálogos e rubricas. E ainda qu o teatro de bonecos também se utilize de palavras, elas sã' mais usadas em narrativas do que em diálogos, e a improvisa ção é mais importante que a fidelidade ao texto. O teatro d bonecos dá mais ênfase à tradição oral do que aos texto escritos. Está mais próximo da poesia do que da prosa.22

Assim, no teatro de bonecos, nem o texto nem < ator devem suplantar o boneco.

A arte dramática do Oriente situa-se entre ficção fantasia, entre diversão e reflexão espiritual, e o seu obje tivo não é imitar a realidade, mas criar outra atmosfera pois o mais importante é a idéia que existe por trás do qu se diz ou do que se mostra.

Na China, os bonecos, por não serem reais, erar considerados mestres dos atores, que deles tiravam liçõe de interpretação. O boneco vinha sempre ligado à ópen à música, à dança, acompanhando o canto dos atores. Set movimentos eram em ritmo de dança e a voz era usada er tom diferente do natural. O épico aí soma-se ao lírico.

Na índia e em Java, as mil e uma histórias do Ramc yana e do Mahabharata

Page 214: o Ator e Seus Duplos

falam de lutas entre clãs poderc sos, confrontos entre deuses e demónios entremeados cor reflexões filosóficas sobre o bem e o mal. Esse imaginári fantástico não poderia ser melhor colocado do que atrs vés de personagens não reais, esculpidos em madeira o representados por silhuetas projetadas em sombra.

Também no Japão, a partir dos séculos XII e XII monges budistas, ao som do bi<wa, contavam lendas - í lendas do Heiki e do Joruri - sempre ilustradas por bont

22 John Bell, “Draraacurgy and che Theatve of Masks and Puppets”, e LMDA Review, 1 (3), Nova York, 1998-99.

m

Page 215: o Ator e Seus Duplos

eos.23 Os temas também eram disputas de poder, entre - meadas com historias de amor entre princesas e guerreiros que, no final, desvendavam-se como encarnações de deuses. Nos séculos XVII-XVIII, com o grande dramaturgo Uemura Chikamatsu (1653-1724), o teatro de bonecos alcança alto nível artístico e dramático, tornando-se muito popular. Sua produção divide-se em dois grupos: peças históricas e contos burgueses. As históricas apresentam a mitologia fantástica japonesa, falam de carmas e são cheias de enredos cruéis. Mas o grande impacto de suas peças está nos contos burgueses, em que, pela primeira vez, os dramas cotidianos do homem (e da mulher) são apresentados com severas críticas ao sistema patriarcal feroz e ao feudalismo da época.24 Os principios básicos de sua dramaturgia incluíam: a qualidade visual e emocional do personagem, qualidades vocais do narrador e muita ênfase no ritmo das palavras. Ou seja, havia uma perfeita combinação entre o drama, o ritmo da linguagem e o visual (bonecos). O tipo de boneco usado em suas peças era o boneco de luva, muito ágil, com movimento de olhos e sobrancelhas, articulações'nos dedos, tendo como fundo cenários móveis.25 Os

Page 216: o Ator e Seus Duplos

manipuladores, de incrível destreza, eram mudos, sendo as falas dos personagens dadas pelo narrador. Havia uma mistura de épico e lírico: os fatos eram apresentados pelo narrador, seguidos de canto lírico, havendo reflexões sobre os mesmos. Considerado entre os maiores da dramaturgia universal, Chikamatsu, que antes escrevia para atores, num determinado momento

23 O biwa é um mstrumeiuo de cordas, depois substituído pelo shamisen.24 O teatro Kabuki surge no século XVII com marcantes influências do teatro

de bonecos.25 O Bunraku é uma técnica de manipulação que surgiu bem mais tarde, no

século XIX.

110

Page 217: o Ator e Seus Duplos

preferia o teatro de bonecos pela maior liberdade de ex- pressão que com eles desfrutava.

No Ocidente, depois do apogeu da civilização grega e da decadência do seu teatro, surgem nas ruas os mimos, que continuam em Roma, perpetuando-se num teatro popular, e que atravessam toda a Idade Média.

Com o cristianismo, o teatro se divide entre o religioso e o profano. O teatro religioso versa sobre histórias da Bíblia, misturando-se aos ritos da Igreja Católica (a própria missa apresenta elementos dramáticos). E um teatro religioso imposto pelo poder oficial, diferente do misticismo oriental, dando margem a versões profanas. Quadros vivos montados com imagens de santos-de-roca vão inspirar a construção de marionetes; os retábulos transformam-se em pequenos palcos e assim percorrem as feiras. O teatro profano toma duas vertentes: poético e satírico. O profano-póetico está presente nas baladas, quase sempre ilustradas com bonecos.31 32 As baladas são monólogos

31 Temos Li Romans du bon roi Alixandre, escrito em 1338; Chansons de geste, poemas heroicos apreseirtados nos retábulos, conforme nos descreve Cervantes; Chamem de Roland; Aucassin et Nicolette, etc.

32 Michel de Ghelderode reconstituiu alguns desses espetáculos. Um texto delicioso, “O mistério de Nosso Senhor Jesus Cristo”, foi publicado por Hermilo Borba Filho em seu livro Fisionomia e espírito do mamulengo (São Paulo: Edusp, 1966).

Page 218: o Ator e Seus Duplos

dramáticos, às vezes com diálogos, poemas que falam de amor e de batalhas. O profano-satírico são versões populares dos episódios bíblicos, trata com irreverência histórias da Paixão de Cristo, da Arca de Noé, a criação do mundo, a vida de santos.22

A sátira vai se afirmar como um importante gênero do teatro de bonecos, principalmente a partir da Renascença.

Page 219: o Ator e Seus Duplos

A sátira, com suas afiadas e sutis investidas, representa o espírito crítico da Renascença. Ela visa à transformação da sociedade, pois nada melhor para desmoralizar o poder do que rir dele. Os tipos que surgem são anti-heróis que representam o homem comum, o povo. Os mimos agora são bufões, espertos e ladinos, “bobos”, ou excepcionais que, entre danças, deboches e violências, passam suas verdades.28

Da Turquia chega Karaghoz a Veneza, influenciando a estrutura da Commedia dell’Arte.29 Pulcio Anello, famoso ator, cria o personagem Pulcinella. E Pulcinella, na França, vira Polichinelle, na Inglaterra é Punchinella, depois Punch, viaja por toda Europa, e, por onde passa, inventa novas histórias e recebe diferentes nomes: Kasper, Guignol, Petrouschka, D. Cristóbal e Roberto; no Brasil é Brighella, Babau, João Redondo ou Tiridá. Todos, heróis e vilões nacionais, representantes do povo, críticos, justiceiros. Nada os detém na luta contra a ordem e a moral estabelecidas. Nesse teatro de bonecos popular, em meio a muita ação e pancadaria, a palavra domina, sem texto escrito. Em todas as culturas perpetua-se por tradição oral.

Mas o teatro de bonecos na Europa

Page 220: o Ator e Seus Duplos

dos séculos XVIII e XIX não é apenas reflexo da expressão espontânea do povo, é também um teatro de artistas e literatos, apresentando-se em cafés e salões da corte, com produções ricas,

28 “Bobos artificiais”, ou palhaços, são outros descendentes dos mimos, que trabalhavam em duplas. O primeiro mimo, esperto e inteligente, comandava o seguiido mimo, retardado e sempre passivo às ordens de seu companheiro.

29 Com a queda de Covistantinopla, muito de seus artistas e intelectuais mudaram-se para Veneza, tato que dá base a uma das teorias sobre as origens da Commedia dell’Arte, a teoria de Hermann Reich, para quem as farsas atelanas morreram na Idade Média, mas a mímica pura toi preservada no Oriente Médio através do teatro de sombras da Turquia, e grande foi a influência do teatro de bonecos ira Commedia dell’Arte.

11?

Page 221: o Ator e Seus Duplos

de grande aprimoramento técnico, cenografia, figurinos, apresentando um repertório de textos clássicos ou espe- cialmente escritos para ele. De acordo com Roger Daniel Bensky, a dramaturgia do teatro de bonecos erudito dessa época apresenta ora caricaturas da sociedade, ora um aspecto poético-fantasista. A sátira predomina, seja procurando corrigir a realidade, seja negando-a, fantasiando-a ou deformando-a. Assim, a sátira reafirma-se como desejo de transformação da sociedade.30 Ainda segundo Bensky, a sátira simples visa corrigir a realidade, apresen- tando-a por meio de exageros; assim é A ponte

quebrada, de Dominique Séraphin (1747-1800), um clássico do teatro de sombras, que, através de situações muito simplificadas e tipos bem esquematizados (o burguês e um menino do povo), apresenta um quadro da sociedade de então. Já as sátiras fantasistas pretendem provocar mudanças pela negação da realidade; exemplo dado por Bensky é a peça Le

marriage de Béttinette, de Lemercier de Neuville (1830-1918) .31

Com o Romantismo, o grotesco passa a ser o elemento deflagrador. Em Jouets et mystères, de Maurice Sand, o grotesco apresenta-se em fantasias poéticas, as transformações aí

Page 222: o Ator e Seus Duplos

ocorrem através de situações não reais. Já Ménage de Caroline, de Ghelderore, apresenta um grotesco lúgubre. Mas o melhor exemplo é Ubu rei, de Alfred Jarry, que estreou em Rennes, em 1886, como teatro de bonecos. As suas características guignolescas foram depois

30 R. D. Bensky, Structures textuelles de la marionnette de langue française (Paris: Nizet, 1969).

31 Neuville refletia em suas peças suas idéias (contra a política do Segundo Império e contra a falsa moral da época). Durante um ano dirigiu o famoso teatro Erotikon, cujos espetáculos acabavam em orgias. Gustave Doré trabalhava com ele, esculpindo as cabeças dos seus personageirs.

115

Page 223: o Ator e Seus Duplos

repassadas para a montagem com atores, na qual as transformações são mostradas por uma total desestruturação do real, pelo absurdo, pelo exagero.

A dualidade do boneco - religioso/profano, satíri- co/poético, espírito/matéria - tem sido uma constante na história do teatro. Mais recentemente, ora atrai os simbolistas por seu aspecto poético e pelas feições rígidas de seus personagens, que lembram a imobilidade da morte; ora o mecanicismo de seus corpos artificiais chama a atenção dos futuristas; ou as suas possibilidades de distorção e implausibilidades encaixam-se às concepções surrealistas. Com certeza, o boneco é a figura ideal para substituir ou contracenar com o “ator marionetizado” do teatro contemporâneo. No teatro não tradicional, são tantas as opções compatíveis que a sua dramaturgia ampliou-se, sendo difícil agora definir padrões, ou limitá-la com alguns exemplos.

O teatro de bonecos manifesta-se hoje num esquema maior, denominado teatro de animação, abrindo caminhos para uma nova teatralidade.

Page 224: o Ator e Seus Duplos
Page 225: o Ator e Seus Duplos

A Coisa - Vibrações/Luz do Objeto-imagemCriação coletiva, direção de Ana Maria Amaral. Montagem de O Casulo, 1989-1990.Foto da autora.

Page 226: o Ator e Seus Duplos

11

o (Mío c o itmO objeto

'jiT ni objeto pode ser natural ou construido pelo ho- mem. O objeto natural existe independentemente do homem, tal qual sua função. Os objetos naturais podem ser minerais ou vegetais. Minerais: areia, terra, pedra, ferro, conchas, etc. Vegetais: árvores, madeira, frutas, flores, folhas.

Os objetos construídos pelo homem existem em re- lação a ele, isto é, existem para servido e só podem ser definidos dentro de seu universo. Matéria pura, forma, idéia realizada, pensamento solidificado, quaisquer que sejam as definições que arrisquemos, o objeto é sempre relativo às mãos do homem, ao seu ambiente, ao grupo ou à sociedade que o criou.33

Os objetos construídos pelo homem podem ser classificados de acordo com as suas funções originais, isto é, de acordo com as funções para as quais foram construídos.

Segundo Jean Baudrillard, os objetos podem ser industriais, artesanais, antigos ou

33 Ver Aiia Maria Amaral, Teatro de formas animadas (São Paulo: Edusp, 1992), parte III, capítulo 2.

Page 227: o Ator e Seus Duplos

11

11

contemporâneos, em uso e em desuso, únicos, em série, mitológicos, fetichistas, etc.34 Já Erwin Panofsky classifica-os apenas em práticos e estéticos.35 Os práticos são subdivididos de acordo com suas funções ou “intenções”.36 E, conforme seus “intuitos”, podem ser ferramentas, aparelhos ou veículos de comunica-

34 Ver J. Baudrillard, Le système des objets (Paris: Gallimard, 1968).35 E. Panotsky, O significado nas artes visuais (São Paulo: Perspectiva, 1979).36 “Intenções” é um termo usado por Panotsky.

Page 228: o Ator e Seus Duplos

11

ção. Os estéticos são também simples ferramentas ou sim- pies veículos de comunicação.

Os objetos podem ainda ser classificados por seus conteúdos, isto é, de acordo com os seus valores culturais e sociais, podendo assim ser agressivos ou sedutores, posi- tivos ou negativos, morais ou imorais, ativos ou passivos, masculinos ou femininos. Esses valores tornam-se mais complexos conforme a cor, a forma, a textura, o peso e o tamanho.

Existe ainda o enfoque psicológico, pessoal, parecendo a uns bonitos e bons, a outros, feios e maus.

Importante é a relação dos objetos entre si, isto é, o tipo de relação que mantêm: físico-espacial, formal, mecânica, de ligação, de exclusão, etc.

A relação físico-espacial entre os objetos pode ser por justaposição ou por contato, isto é, podem estar justapostos ou levemente em contato. Por exemplo, peças de encaixe, cúpula e pé de abajur, duas partes de uma caixa de fósforo, rolha de garrafa, cordão de sapato e sapato. A relação por contato ocorre quando há uma ligação espacial entre recipientes e conteúdos: as argolas e o pau de

Page 229: o Ator e Seus Duplos

cortina que as sustenta, bola e raquete, cortina e janela, giz e lousa.

As características formais determinam outros tipos de relação: caixas quadradas, caixas ovais, objetos pontiagudos, objetos do mesmo tamanho ou de tamanhos opostos, semelhantes ou não, em série, ou mesmo vários objetos de tamanhos opostos estão juntos por determinação das suas semelhanças. No mesmo rol, e dependentes entre si, são os objetos feitos em série, os duplicados ou os complementares: pés direito e esquerdo de um par de sapatos, bolas de bilhar, vários pares de sapato de um mesmo

1)8

Page 230: o Ator e Seus Duplos

N— 7

tamanho, vela e castiçal. Importantes também são as re- lações mecânicas de controle, transporte ou exclusão: as peças do motor de um carro, rodas e direção; casco de um barco e vela; objetos confrontando-se e sujeitando-se ao poderio de certas peças automáticas, forçando -os a em tradas e saídas, etc.

Ligação existe entre os anéis de uma corrente, um pacote e seus barbantes, pontes, escadas, fios telefónicos. A relação de exclusão acontece entre um objeto e uma porta que repentinamente se fecha, uma barreira que sur- ge impedindo sua locomoção ou um pano que cai, ocul- tando-o.

Alguns objetos, ao mesmo tempo que têm trans- parências, proporcionam reflexos: água, espelhos, vidros, vidraças. Outros sugerem transposições, são passagem: portas, portais, janelas, pontes.

Naturais, ou construídos pelo homem, os objetos encerram em si um universo infinito de significados.

Objeto e movimento

Movimento implica sempre o deslocamento entreduas imobilidades. Esse deslocamento é relativo ao tempo _ e ao ritmo.✓ 3 Movimento é vida. E pulsação, energia.

Os movimentos podem

Page 231: o Ator e Seus Duplos

ser efémeros, permanentes, contínuos, descontínuos, mecânicos, aleatórios. Diferentes tipos de objeto apresentam diferentes tipos de movimento. Observar os movimentos de uma bolha de sabão, folhas voando ao vento, água correndo num riacho, raízes, pedregulhos e pedras pesadas; bolinhas de pingue-pongue,

Ritmo é a disposição do tempo, rião a rapidez.

IN

Page 232: o Ator e Seus Duplos

pêndulo de relógio, gangorras, cadeiras de balanço e cadeiras comuns, âncoras, pipas e pedaços de ferro. O inanimado não tem mobilidade própria. Os objetos naturais dependem e se movem segundo leis da natureza; já os objetos não naturais dependem do homem. Existe uma diferença nas possibilidades de movimentos dos objetos naturais e dos não naturais. Ainda que alguns objetos aparentem ter movimentos próprios, essa aparência é devida apenas à sua estrutura mecânica. Alguns objetos fabricados pelo homem são estruturalmente móveis e outros estruturalmente imóveis. Mas todos são movidos, direta ou indiretamente, pela mão do homem.

Sob o ponto de vista dramático, movimento é o que confere vida a um objeto. Em teatro de animação, movimento é uma ação com intenção. Um objeto torna-se animado quando os seus movimentos são, ou parecem ser, intencionais. Essa sua aparente intenção lhe é conferida pelo ator-manipulador. Sob os seus impulsos, o objeto “adquire vida”. O movimento dos objetos obedece a estímulos internos e externos. Estímulos internos ocorrem quando seu movimento parece ser intencional - sem intenção não existe animação. Estímulos externos são as condições decorrentes

Page 233: o Ator e Seus Duplos

de sua forma. Uma bola pula e rola, já uma tábua não se move com a mesma facilidade, pois precisa de impulsos externos contínuos. O movimento, portanto, depende da forma do objeto e, de acordo com o tipo de animação que recebe, sua figura se modifica, parece sofrer transformações.

Os objetos apresentam uma gama enorme de movimentos, maior que qualquer ser vivo, homem ou animal. Animar um objeto não é humanizá-lo, nem animalizá-lo,

120

Page 234: o Ator e Seus Duplos

v_

mas, antes de lhes imprimir movimentos, deve-se pesquisar os que lhes são próprios.

Teatro de objetos e teatro do objeto'imagem

O teatro de objetos - como o teatro de bonecos - é um teatro em que os protagonistas são objetos inanima' dos. A diferença entre um e outro é que os bonecos, realística ou abstratamente, representam a figura huma' na, enquanto o teatro de objetos não é (nem um pouco) realista.

Os objetos são importantes por seu poder de criar metáforas. Eles têm essa capacidade de apresentar situa' ções de maneira direta, peculiar e simbólica. Quando apropriadamente escolhidos, são um discurso em si. Por si já apresentam conteúdos. E o que formal e fisicamente sugerem, torna-se mais evidente no desenrolar da ação, na animação, somando-se ainda os significados que os objetos despertam no tipo de relações que podem manter entre si. Uma gaiola lembra prisão; um martelo represen- ta a força, a opressão, ou o trabalho; relógios referem-se ao tempo; roupas definem a profissão ou categoria social; um carro lembra distâncias. Velas,

Page 235: o Ator e Seus Duplos

fósforos e lanternas, iluminam, queimam, mas cada um tem características próprias. Cruz, pão, dinheiro, diferentes estilos de chapéus, objetos transparentes e leves, opacos e pesados, vidraças e delicadas cristaleiras, pesados muros - todos possuem grande potencial dramático e metafórico.

A diferença entre teatro de máscaras, teatro de bonecos e teatro de objetos é que máscaras e bonecos são criados e construídos para representar uma determinada idéia ou personagem. Já no teatro de objetos, a forma dos

Page 236: o Ator e Seus Duplos

protagonistas, isto é, dos objetos, vem pronta e como tal deve ser tomada. As suas estruturas determinam também os seus movimentos, definindo, ampliando ou limitando sua atuação.

O objeto, no teatro de objetos, não visa substituir o ator nem o boneco, mas devele com ele sugerir situações da vida humana, deve-se fazer a “transposição do destino humano”, como disse Joseph Krofta.6

O objeto, por sua não-humanidade, quando bem colocado, pode conter significados mais amplos que os personagens encarnados pelo ator. Em cena, o objeto é a abstração de uma idéia. Mas, note-se bem, o simples fato de se usar um objeto em cena não faz dela uma cena de teatro de objetos.

O objeto pode ser usado também no teatro por sua forma estética. É o que chamamos de objeto-imagem. Mais do que a metáfora, o que importa são as emoções que pode despertar. O objeto é uma massa física com determinadas funções, já o objeto-imagem não tem essa característica prática, não é criado com finalidades de uso. Está mais ligado à representação de uma idéia. Quando uma idéia se forma, surge a imagem. No início, apenas em nível mental, no inconsciente, depois, pela

Page 237: o Ator e Seus Duplos

necessidade de uma concretização, essa idéia se torna corpórea. Esse processo da materialização de idéias é responsável pela criação dos símbolos.

As imagens são abstratas, sintéticas, fragmentadas. Tocam mais o inconsciente do que o racional, não têm lógica. No teatro do objeto-imagem, a imagem está em primeiro plano e o ator, em segundo.

6 Joseph Krotta, diretor do teatro Drak da República Tcheca.

Page 238: o Ator e Seus Duplos

A imagem é sempre mais forte do que a palavra. Cronologicamente, na historia do homem, a imagem é anterior à fala e à escrita (tal como a temos hoje). E cm nosso processo mental, o pensamento gera imagens que se concretizam em palavras, e estas são transformadas em objetos.

O teatro do objeto-imagem - também chamado simplesmente teatro de imagens ou teatro visual - é um teatro que coloca em cena símbolos, transcendências ausentes na vida do homem moderno. Pois não são os nossos pensamentos que nos fazem transcender a matéria, mas é a matéria mesma que nos faz transcender a nossa realidade física e material.7

No teatro do objeto-imagem os conflitos também acontecem, seja na luz versus escuridão, no silêncio versus sons estridentes, na confrontação palco/platéia ou na fragmentação de imagens dentro de inesperados enquadramentos. E um teatro que leva o adulto à reflexão, à meditação. Na criança, desperta as suas primeiras emoções estéticas, um tipo de emoção sem discernimento, por meio da qual a criança ludicamente apreende e penetra o mundo da arte.

O teatro do objeto-imagem é diferente do teatro de objetos, pois

Page 239: o Ator e Seus Duplos

neste o objeto é o protagonista de uma história e naquele não existe nenhuma história. Por isso, diz-se que o teatro do objeto-imagem é o teatro da contempora- neidade, porque em nossos dias, cada vez mais se afirma a tendência de se eliminar a representação figurativa e realista do homem. Se no início do século era representado por formas simbólicas, abstratas ou expressionistas, hoje o objeto cru é colocado em cena, intrigando pela matéria de que é feito. Diz-nos Claude Monestier:

Ao contemplarmos o mundo natural (natureza), somos trarisportados ao mundo sobrenatural.

18

Page 240: o Ator e Seus Duplos

VI

Existe, por parte do ator, como que urna recusa da noção de

personagem para que se interprete a materialidade mesma do

objeto.

[...] não se trata mais de partir de bonecos cuidadosamente

construidos para representar determinado papel, mas de se deixar

questionar pelo material bruto em si, seja cartão, tecido, luz.37

Posição essa que vai ao encontro das ideias de Marinetti, que já dizia, no início do século XX, que não devemos “emprestar à matéria sentimentos humanos, nem apresentar dramas da matéria humanizada, pois é a solidez de uma chapa de ferro que nos interessa, essa aliança não-humana e incompreensível de suas moléculas”.38 As idéias são sempre transmitidas concretamente.

O ator e o objeto

O ator interpreta, cria os personagens. Já as máscaras, os bonecos e os objetos trazem em si uma programação. Entre esses, o objeto, por ser màis abstrato e menos figurativo, serve muito mais ao ator, no sentido de que, com ele, dispõe de maior liberdade para criar.

No teatro de objetos, é

37 Claude Monestier, “Le partage de la scène”, em Pude, na 5, Charleville- Mézières, Institut Internacional de la Marionnette, março de 1992.

38 Marinetti, “Manifesto técnico da literatura”, em A. F. Bernardini, O Futurismo italiano (São Paulo: Perspectiva, 1980).

Page 241: o Ator e Seus Duplos

VI

importante a presença do ator. E, sendo visível, precisa ter essa presença bem definida. Numa cena com objetos o ator assume várias funções: é (quase sempre) simples manipulador; é auxiliar do objeto (por exemplo, quando sua mão lhe abre uma porta) ; e pode ser também um personagem que contracena

Page 242: o Ator e Seus Duplos

com o objeto.39 Por isso, o ator precisa ter bem claro, para si mesmo, quem é, definir o que o objeto representa para ele e que tipo de relação existe entre ambos.

O objeto é extensão do ator, quando usado para enfatizar características do personagem. E diferente o caso de objetos com os quais o personagem mantém uma ligação psicológica. Nesse caso, o objeto não é extensão do ator, mas objeto de estimação e pode com ele contracenar. O objeto só é personagem quando tomado e apresentado em si mesmo, isto é, em seu conteúdo, cor, forma, textura e não enquanto objeto significante para o personagem encarnado pelo ator.

0 A10R t o OWCIO - CKCRCÍCiOS

O espelho

Dividir o grupo em duplas, colocando um ator em frente ao outro. O que lidera cria movimentos corporais e o outro procura segui-lo, como num espelho. Trocar de papéis.

Repetir o mesmo exercício, só que

39O objeto muitas vezes atua como antagonista do ator.

Page 243: o Ator e Seus Duplos

agora os que lideram têm em suas mãos objetos e com eles criam movimentos que o parceiro deve seguir, como num espelho. Trocar de papéis.

Ao seguir os movimentos de um objeto, percebe-se que este tem movimentos impossíveis de ser copiados, assim como o corpo tem movimentos que os objetos não têm.

Page 244: o Ator e Seus Duplos

A máquina

l2 Momento: O corpo do ator

Um ator se destaca do grupo e inicia um movimento, acompanhado de sons emitidos por ele. A seguir, outro ator entrosa-se no movimento iniciado pelo primeiro ator. Assim, sucessivamente, entra um terceiro, mais outro, até que todos formem um só corpo, sendo, cada um, em separado, partes ou peças de urna só máquina. Os movimentos devem vir acompanhados por sons. Os que entram na máquina devem criar movimentos entrosados com os já colocados, não devem portanto ser movimentos paralelos, nem periféricos. A medida que entram novos elementos, existe sempre a necessidade de ajustes, pois o ritmo da máquina pode sofrer alterações. Mas nem por isso a máquina deve parar.

22 Momento: O objeto como extensãodo corpo do atorO mesmo exercício que o anterior

só que com objetos, formando uma máquina mista, isto é, de pessoas e de objetos, cada um com seus movimentos e sons próprios.

3- Momento: O objeto em si

Page 245: o Ator e Seus Duplos

Sobre uma mesa, os atores com objetos nas mãos, um de cada vez, vão criando movimentos, como no exercício anterior, enfatizando agora o objeto. Os atores movem os objetos, mas ficam na retaguarda, fora do foco. Sempre que possível, usar sons que venham do próprio objeto.

42 Momento: Máquina expressivaO exercício da máquina, em seus

três momentos, pode ser repetido, dando a ela características próprias ou

Page 246: o Ator e Seus Duplos

expressões humanas. Isto é, podemos ter uma máquina lenta, enferrujada, moderna, energética, feminina, sedu- tora, masculina, preguiçosa, violenta, etc.

Reflexões sobre o espelho e sobre a máquina

Essa série de exercícios são aquecimentos para introduzir o ator no jogo cênico com objetos e perceber as suas possíveis interferências em

Exercício da máquinaOficina Teatro de Animação, 2000.

Univ. Santa Cruz, Ilhéus (BA). Foto da autora.

Page 247: o Ator e Seus Duplos

cena.Assim como o espelho é capaz de

refletir, da mesma forma o ator-manipulador deixa-se refletir no objeto, ou

w

Page 248: o Ator e Seus Duplos

no boneco que anima. O espelho é, portanto, urna metá- fora, porque no jogo teatral o homem reapresenta-se através do ator, provocando reflexões sobre si mesmo e o personagem que encarna.

A máquina é outra metáfora, aqui usada por ser ela um objeto funcional por excelência.

O exercício da máquina propicia o entrosamento do grupo, despertando percepções de ritmo, num movimento integrado. Começa-se a observar o objeto e suas interações cênicas.

No primeiro momento do exercício da máquina apenas o ator está em foco.

No segundo momento, o objeto é usado como urna extensão do ator.40

No terceiro momento, quando o objeto é colocado sobre a mesa em destaque e distanciado do corpo do ator, ele passa a ser o foco da cena. Sua função aí é reforçar o personagem. Nesse momento, o objeto, e não o ator, passa a ser sujeito da ação.

De todos os objetos feitos pelo homem, a máquina é o que mais ressalta sua funcionalidade.41 Entrar

40 Perceber que existe uma diferença em algumas situações, ou exercícios aqui colocados, em que a máscara vem acompanhada de objetos que representam e retorçam o seu personagem; nesse caso, esses objetos são aperias extensões do ator, n.ão personagens.

41 . Qualquer objeto funcional pode ser visto como uma pequena máquina. A estrutura total de um navio é uma graiide máquina, assim como um espremedor manual de batatas ou um simples apontador de lápis são também pequenas máquinas.

Page 249: o Ator e Seus Duplos

em cena é como entrar na máquina. O ator em cena, como as peças de urna máquina, não pode manter-se à parte, precisa estar entrosado, atento a todos e a tudo que o envolve. A máquina pode ser vista também como estrutura social. Estado, família e instituições são máquinas às quais nos submetemos. Nesse caso, o não-submeter-se às regras sociais, fami-

Page 250: o Ator e Seus Duplos

liares, políticas ou religiosas é fugir da teia, é romper as ligações com a máquina. Ou ainda, ser peça solta, não entrosada, estar à toa, entregue ao acaso (essa é uma ati- tude muito criativa, com certeza, mas não a postura apropriada para o ator no palco, onde todos dependem uns dos outros). O teatro, sem dúvida, reflete a sociedade.

oweio e owcihmagcm - ammObservação do objeto. O primeiro contato

Wã\ s atores sentam-se ao redor de um círculo; no cen- Sjs tro, um objeto. Um voluntário entra no círculo e procura se relacionar com esse objeto. Quando a situação se torna crítica, ou monótona, outro ator entra em cena, interferindo na relação que estava sendo estabelecida entre o primeiro ator e o objeto, dando a este outra conotação. Observar que, à medida que essa a relação muda, o objeto imediatamente muda de significado.

Outros atores interferem, sempre seguindo a regra, isto é, quando um novo ator entra, o que estava em cena, sai.

Page 251: o Ator e Seus Duplos

Num primeiro contato, o objeto é frio, neutro, mas, assim que outros valores lhe são atribuídos, ele adquire outro sentido. Modifica-se. Até sua aparência rígida parece sofrer alterações.

Forma, cor, textura, estrutura, etc.

O material de que um objeto é feito é muito importante, uma vez que determina suas ações. São diferentes os

Page 252: o Ator e Seus Duplos

movimentos de uma peça elástica ou metálica. O material determina também sua força, durabilidade ou fragilidade. Por exemplo, a diferença que existe entre uma bola de ma- deira e uma bexiga. A forma (cubos, circunferências, formas chapadas, etc.) também, por si, cria o personagem. A textura sugere sensações, sensualidades: a maciez da seda ou a aspereza de uma lixa influem no conteúdo de uma cena.

Essas peculiaridades são quase sempre captadas por artistas plásticos, mas os atores também podem ser sensibilizados por meio de exercícios de observação. Num laboratório pode-se propor que se desenhem as sombras refletidas pelos objetos, pois no delinear desses traços, muitas características, normalmente não percebidas, tornam-se evidentes. Para desenvolver a sensibilidade de crianças, M. H. Larminat propõe um jogo muito interessante.42 Ele sugere um jogo de dominó, no qual objetos vão-se emparelhando de acordo com semelhanças de cor, textura, forma ou quaisquer outras características.43

A metamorfose

42 Max-Henri Larminat, Objets en dérive (Paris: Atelier des Eníants/Centre George Pompidou, 1984).

43 Em H. Larminat, ver também o exercício do habitat dos objetos, que assim parecem ter vida própria, lião apenas funcional.

Page 253: o Ator e Seus Duplos

Ter disponível um elenco grande de objetos. Grandes, pequenos, objetos úteis, em uso ou sucatas, peças de máquinas, objetos delicados, transparentes, opacos, pesados e leves, etc.

Pedir aos atores que selecionem os que mais os atraírem e, a partir da função original de cada objeto, descobrir outras possíveis funções que possam, coerentemente, lhes ser atribuídas.

Page 254: o Ator e Seus Duplos

Depois que os atores selecionarem seus objetos, dar o tempo que lhes for necessário para que descubram, para cada objeto, urnas cinco, dez ou mais funções diferentes. Individualmente, os atores apresentam o resultado de suas pesquisas.

Conforme visto nos exercícios anteriores, para se observar um objeto é necessário levar em conta sua fon ma, mobilidade ou rigidez, som, textura, transparências, fragilidades, maleabilidades, peso, etc.

Para submeter um objeto a metamorfoses, é necessário observar também o seu centro de equilibrio e modificá-lo. Para isso, deve-se virar o objeto em posição contrária à que foi construído, isto é, de “cabeça” para baixo, ou de “pernas” para cima. Da mesma forma que o corpo humano, todo objeto tem um eixo e um “centro pensante”. O eixo é a parte principal que o sustenta, é sua espinha dorsal. Usando uma expressão de Hubert Japelle, “o centro pensante” é um ponto a partir do qual o objeto parece estar vendo, “pensando”.15

O ator, ao tomar em suas mãos um objeto, deve procurar seu eixo de equilíbrio e seu suposto “centro pensante”, procurando coincidi-los com o eixo e o equilíbrio de seu próprio corpo.

Page 255: o Ator e Seus Duplos

Na apresentação das várias metamorfoses a que os objetos podem ser submetidos, as situações colocadas devem ser claras, para que se compreenda bem o que o objeto, naquela situação, significa. Tentando especificar com detalhes a proposta deste exercício de metamorfose, diria que se deve começar por apresentar o objeto em sua função original e só então fazê-lo passar por transformações,

15 H. Japelle, “L ’interprétation du mouvement”, em Théâtre Public, Paris, setembro de 1980.

UI

Page 256: o Ator e Seus Duplos

adquirindo outras funções (plausíveis). Começar sempre do mais simples. Se a transformação vier do próprio obje- to, melhor, isto é, a causa da transformação do objeto deve, preferencialmente, vir dele mesmo. Por exemplo, se uma cuia vai-se transformar numa canoa, deve-se mostrar antes que ela, enquanto cuia, está boiando, para depois dar a perceber que está navegando e que se transformou num barco ou canoa. Outro exemplo: um ator inicia a cena sentado num banquinho de forma oval; de repente, desequilibra-se e percebe que o banco se move. E agora uma grande tartaruga. Assim sucessivamente, fazer uma sequência de metamorfoses. Em cada mudança, é preciso que se perceba a razão, externa ou interna, dessa transformação. As situações devem ser claras para que se compreenda bem o que o objeto significa. As mudanças também podem vir do narrador.

O papel do narrador é ajudar o público a perceber a ligação que existe entre uma etapa e outra no processo de metamorfose a que o objeto é submetido.

Quanto mais abstrato é um objeto, mais fácil é metamorfoseá-lo; e quanto mais óbvia sua função, mais difícil transformá-lo. E fácil metamorfosear peças ou sucatas de máquinas, não muito identificáveis em

Page 257: o Ator e Seus Duplos

suas funções. Difícil é trabalhar com objetos óbvios, como gaiolas, facas, chaves, pois suas formas e funções são evidentes, por isso, mais difíceis de ser metamorfoseadas.

O jogo da metamorfose é um exercício preliminar e básico para se conhecer e explorar as possibilidades do objeto, seja por suas formas externas, seja por seus mais óbvios conteúdos.16

16 Os exercícios das metáforas e metamorfoses foram colocados por J. Krofta em sua oficina sobre teatro de objetos, realizada no Instituto Internacional da Marionete, em Charleville-Mézières, em 1984, da qual a autora teve a oportunidade de participar.

Page 258: o Ator e Seus Duplos

O conteúdo17

a) Objeto em movimento e ator imóvelUma pessoa coloca-se dentro do

círculo; o diretor coloca um objeto que para ele tenha uma conotação pessoal: bom ou mau, agressivo ou passivo, “moral” ou “imoral”.18

Escolhe depois um ator e dirige-o sem usar uma palavra, utilizando apenas sons e gestos corporais, sem cair em mímica descritiva. Dessa forma, o ator deve perceber que tipo de movimento ou que tipo de animação o diretor deseja que ele imprima ao objeto/personagem. O ator deve expressar-se apenas por meio do objeto, mantendo-se absolutamente neutro.

17 Os exercícios b) objeto imóvel e c) objeto em movimento foram

Metáforas e metamorfosesLaboratório O ator e seus duplos, 2000. Foto da autora.

Page 259: o Ator e Seus Duplos

sugeridos por R. Paska, na mesma oficina sobre teatro de objetos mencionada anteriormente. R. Paska, bonequeiro e pesquisador americano, é hoje o diretor do Instituto Internacional da Marionete.

18 Esses conteúdos são determinados por opção pessoal subjetiva dos atores-manipuladores. Por mais pessoal que seja essa atribuição, o conteúdo dado deve ser sempre relativo às qualidades do objeto em si.

w

Page 260: o Ator e Seus Duplos

b) Objeto imóvel e ator em açãoO ator escolhe um objeto e

coloca-o em cena, reagindo a ele de acordo com a emoção pessoal que o objeto lhe desperta.

c) Objeto em movimento e ator em açãoEm cena, dois atores e dois

objetos de conteúdos opostos. Cada ator manipula seu objeto de acordo com o conteúdo que lhe atribui. Quando surge um conflito ou quando a relação entre os objetos se torna crítica (muito violenta ou repetitiva), o grupo que assiste à cena deve perceber que esse é o momento de interferir. Entra então outro ator com um terceiro objeto, substituindo o objeto agressivo. O objeto que entrar não assume a posição do objeto agressivo, eliminado, mas assume papel passivo, e o objeto que já estava em cena, antes passivo, torna-se ativo ou agressivo. A cena continua e quando novamente a situação se torna crítica, novamente o objeto agressivo, ou ativo, é substituído. Assim sucessivamente. A interferência na cena é necessária sempre que ela se torne crítica ou quando já não apresente outras possibilidades senão repetir-se.

Este exercício mostra os três momentos básicos de uma encenação: o

Page 261: o Ator e Seus Duplos

momento neutro, inicial, em que as coisas começam a se configurar; o momento de conflito; e o momento de transição ou transformação.

Um objeto é sempre um objeto. Suas possibilidades dramáticas surgem do conflito que as metáforas criam. Mas esse momento é muito efémero e deve ser imediatamente seguido por alguma transformação. As transformações devem ser coerentes com as possibilidades de conteúdo e forma dos objetos.

Page 262: o Ator e Seus Duplos

Foco e ator neutro

Pedir aos integrantes do grupo que escolham uní objeto e todos, separadamente, entram em cena para apre- sentado. Simplesmente entrar e apresentá-lo. Nesse exer- cício o importante é manter o foco no objeto. Não é um exercício que prioriza a relação ator-objeto ou a relação ator-platéia, pois o ator aqui é apenas suporte do objeto que, esse sim, é foco de atenção; a atitude do ator portanto deve ser absolutamente neutra. Se os objetos escolhidos forem pequenos, a cena deverá restringir-se a urna mesa; se forem de um tamanho igual ou quase igual ao tamanho do ator, então não será necessário nenhum apoio.44

A ação é simples: entrar e apresentar o objeto. Depois que todos do grupo tiverem apresentado os seus objetos, fazer uma avaliação da postura do ator, tipo de relação com o objeto, foco e reação da plateia, etc. O fundamental é que o ator se mantenha neutro e que o foco permaneça sobre o objeto.

O resultado desse exercício, em geral, é desastroso: os atores sentem-se olhados e retribuem o

44 É imprescindível que esses exercícios sejam feitos sobre tundo neutro, preferencialmente preto, e que os atores também estejam vestidos de malha inteiriça preta. A neutralidade do ambiente ressalta os objetos.

Page 263: o Ator e Seus Duplos

olhar, sorriem para a platéia, não se concentram no objeto e, muitas vezes, suas mãos, ou o volume de seus corpos, cobrem o objeto, ou parte dele. Para a conscientização dessas dificuldades e de suas soluções, temos um exercício divertido, descontraído e que dá ótimos resultados: o jogo do embrulho.

Page 264: o Ator e Seus Duplos

O primeiro impactoLaboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto da autora.

Entrada em cena ou o jogo do embrulho

Cada ator escolhe um objeto, embrulha-o como se fosse um presente ou mercadoria recém-saída de uma loja. Dá-lhe um

nome e escreve esse nome numa etiqueta ao lado do pacote. Todos os pacotes do grupo são colocados ao pé de uma mesa. O primeiro ator entra em cena e pega seu embrulho. Diz o nome do objeto e lentamente abre o pacote em cima da mesa. Papel e barbante não devem ser

m

Page 265: o Ator e Seus Duplos

tirados nem rasgados abruptamente, mas lentamente. Manter sempre um suspense. Assim que é descoberto, o objeto é mostrado em todos os seus ángulos. A concentra' ção deve estar totalmente voltada para o pacote, depois para o objeto, mostrado em seus diferentes e possíveis de- talhes. Em seguida o ator escolhe outro pacote e seu “dono” entra em cena. Repetir sucessivamente até todos fazerem suas apresentações.

E impressionante o efeito desse jogo. Desperta a concentração da platéia e do ator sobre os objetos. Estão aí as regras de como um objeto deve ser tratado em seu primeiro impacto de entrada em cena. Esses cuidados de- vem ser observados porque o objeto, sendo inanimado, precisa ser relevado no que ele tem, para aquele momen' to ou cena, de mais fundamental, seja a cor, a forma, alguns movimentos, enfim, tudo que leve o público a concluir sobre o conteúdo que se pretende ressaltar com ele.

No exercício do jogo do embrulho, como nos anteriores, procura-se ver o objeto desligado de seu cotidiano, alheio à funcionalidade para a qual foi criado, a fim de ressaltar a sua função de protagonista. Mas nem por isso o objeto se desliga de seu conteúdo original, pois esse continua

Page 266: o Ator e Seus Duplos

sendo o principal atributo com que se criam as metáforas.

mNAÇÃO DO OWnO-i/WtótM - CKtKÍCiOSnicialmente fazer exercícios de observação e manipulação com objetos encontrados (desde que se

descarte suas funções ou sua praticidade), tomando-os prin-f

Page 267: o Ator e Seus Duplos

cipalmente sob o seu enfoque visual. Tentar depois mate* riais crus diversos, sem funções, indefinidos.

A seguir, algumas sugestões de exercícios.

Objetos encontrados - exercícios a partir do próprio objeto

l2 passo - Deixar-se atrair por um objeto. Escolherum.

22 passo - Observá-lo em seu ambiente e em sua função. Depois, observá-lo separado desse ambiente e função e sob diferentes efeitos de luz e espaços.

32 passo - Depois de observar os seus possíveis movimentos, escolher e determinar uma seqiiência. Manter um roteiro.

4- passo - Acrescentar-lhe outros objetos em colagens. Ou acrescentar, cm contracena, outros objetos, depois de seguir com os mesmos o procedimento anterior.

5- passo - Colocar luz e som sobre os objetos em movimento.

Materiais diversos

Ter à mão materiais diversos (tecidos, fios, pedaços de metal, ferro, madeira, papelão, isopor, tinta, sucata industrial, objetos naturais, etc.). Criar com eles

Page 268: o Ator e Seus Duplos

objetos e formas (bidimensionais ou tridimensionais).

Essa criação segue a trajetória de qualquer objeto de pintura ou escultura. Analisar depois seus ângulos e movimentos.

Num trabalho com um grupo muito grande, separar os objetos criados por afinidades e semelhanças. Dentro

Page 269: o Ator e Seus Duplos

de cada categoria, escolher um ou criar diferentes grupos de diferentes categorias. Estudá-los em termos de volume, textura e mobilidade.

Seguir as mesmas etapas do exercício anterior.

Criação de objetos, formas, figuras

A etapa de criação e confecção pode seguir um impulso inicial de criar uma forma ou objeto, ou pode ser a etapa final depois da pesquisa de um tema.

O trabalho de criação e confecção é, sem dúvida, um trabalho artesanal e plástico.

Criação a partir de um tema

O tema pode vir do inconsciente, uma figura aparentemente sem conexão com a realidade. Pode ser a expressão de um desenho realizado pelo grupo ou individualmente. Pode também vir de uma situação real, vivenciada e com personagens reais, colocados abstratamente em cena.

Criação a partir da luz

Trabalhar com objetos encontrados, ou confeccionados, somando a eles todo tipo de iluminação, variando:

a) luz imóvel sobre objetos móveis;

Page 270: o Ator e Seus Duplos

b) luz imóvel sobre objetos imóveis;c) luz móvel sobre objetos móveis;d) luz móvel sobre fundo neutro.

Page 271: o Ator e Seus Duplos

Formas para um roteiro determinadoBabel - formas e transformações - Montagem de 0 Casulo, 1992. Roteiro e direção de Ana Maria Amaral.Fotos de Caio Mattos.

f

DtftCÀO C DM/WMMiA DO OftvIflO C DO

O teatro de objetos - considerações sobre sua

dramaturgia

ara se criar um roteiro ou montar um espetáculo de teatro

de objetos, existem dois caminhos: partir do objeto, partir de um tema ou de um texto

teatral. Partir do objeto é mais fácil e, normalmente, para o iniciante,

Page 272: o Ator e Seus Duplos

110

Page 273: o Ator e Seus Duplos

esse é o primeiro passo. Para partir de um tema ou texto é preciso ter os objetos adequados. Em todos esses casos, é necessário ter uma sensibilidade acurada para a seleção dos objetos e a percepção de suas peculiaridades e significados. Qualquer tema, fato ou texto, pode ser abordado com objetos. A dificuldade, ou a criatividade, está na escolha dos objetos apropriados às situações e às idéias colocadas, uma tarefa que exige sensibilidade e humor.20 E preciso descobrir sua peculiaridade e decidir em que medida podem servir aos nossos propósitos. Ao escolher-se um objeto para uma determinada cena, deve-se sempre perguntar o porquê desse objeto e o que ele realmente significa na situação em que está colocado.

Mas, seja uma dramatização inspirada no próprio objeto, seja uma dramatização a partir de um texto clássico, o momento primeiro em que o objeto é posto em cena é muito importante, pois deve ser percebido como personagem e não como simples objeto funcional. E por ser essa uma linguagem dramaticamente ainda incomum, a sua apresentação deve ser muito clara.

As ações também devem ser sempre muito objetivas para que temas e

Page 274: o Ator e Seus Duplos

metáforas fiquem claros. No teatro de objetos tudo deve ser mostrado. Nada é psicológico. Sentimentos só podem ser mostrados em suas causas, não em si. Se um objeto-personagem está triste, é preciso mostrar a causa de sua tristeza. Importa o que se vê, o impacto da ação. Sua dramaturgia baseia-se no visual, nos movimentos, no aspecto plástico e material dos seus personagens. E um teatro simbólico mas não hermético.

“Só quem se abandona simples e totalmente ao objeto de sua percepção poderá experimentá-lo esteticamente”, E. Panofsky, O significado nas arles visuais, cit.

111

Page 275: o Ator e Seus Duplos

A dramaturgia do teatro de objetos é igual à de qualquer texto dramático. No primeiro momento, temos a apresentação dos personagens e suas situações; no según- do, o conflito; no terceiro, as situações se resolvem, ou se dissolvem em conseqüentes transformações. Em outras palavras, nesse tipo de teatro perduram as mesmas regras de qualquer apresentação teatral: há um primeiro momento neutro, seguido por momentos de conflito; e um momento final com soluções e transformações. No teatro de objetos - diferentemente do teatro visual, que veremos mais adiante - uma história é contada, existe um conflito e soluções. O objeto aí é uma metáfora da problemática cotidiana do homem.

Contos, poemas ou textos do teatro de ator podem ser encenados com objetos. Todo texto, literário ou dramático, é em si a condensação de uma ideia. É só ter clara essa ideia e partir, então, na busca dos seus equivalentes cênicos para expressá-la por meio de símbolos e metáforas.

O objeto é real. Representa a realidade não simplesmente por suas funções, mas pelos muitos significados que pode transmitir.

No teatro convencional de ator, o objeto é apenas um acessório, ocupa

Page 276: o Ator e Seus Duplos

lugar secundário; no teatro de objetos, ele é o protagonista.

Jacques Templeraud, do teatro Manarf, trabalha só e sem texto. Sem palavras, comunica-se o tempo todo com o público, que considera um dos três principais elementos que formam seu teatro, juntamente com os objetos e o ator. As dificuldades de uma apresentação sem texto, com objetos apenas, apoiando-se na comunicação com o pú-

Page 277: o Ator e Seus Duplos

blico e nas situações que eventualmente possam ocorrer, constituem, ao mesmo tempo, sua própria força, pois tudo é decorrente das emoções comuns que surgem entre ator e público. Em Giglo I, Jacques Templeraud conta a história de Chapeuzinho Vermelho. Ele interpreta o papel de Giglo, um palhaço silencioso que prepara um jantar para amigos.

É um espetáculo para ser degustado com todos os sentidos. Trata-

se de uma epopeia sem palavras. U a história de Chapeuzinho

Vermelho em cinco atos. Chapeuzinho é uma maçã verde. O lobo

é uma cabeça de bacalhau fresco, que cheira como todo lobo. A

avó é uma batata cozida. A mãe, em sua versão, não tem muita

importância. O caçador é a própria mão de Giglo, que segura um

pequeno fuzil de verdade. Uma ópera acompanha todos os

ingredientes. Cómico e satírico.45

Denis Pondruel, artista e engenheiro francês, funde teatro, escultura e mecânica. Constrói máquinas teatrais que, segundo ele, situam-se entre teatro e artes plásticas. Pondruel diz-se inserido no teatro de objetos por ser esse um gênero de teatro não-figurativo. “Interesso-me pelos objetos”, diz ele, “principalmente por seu comportamento”.46 Para Pondruel, o teatro é esse meio capaz de mostrar

45 Ver Ana Maria Amaral, Teatro de formas animadas (3a ed. São Paulo: Edusp, 1997), pp. 218-219.

46 D. Pondruel, “La bombe et 1’horloge”, em Puclc, na 2, Charleville-Mézière, Institut International de la Marionnette, 1989.

Page 278: o Ator e Seus Duplos

transformações, e o tempo da representação teatral é o tempo das modificações que a matéria e as pessoas sofrem. O movimento em si não cria a sensação de vida, ou seja, a animação, mas cria uma relação.

As máquinas teatrais de Pondruel são de diferentes tipos: máquinas tipo relógio, tipo bomba, máquinas

Page 279: o Ator e Seus Duplos

sem perenidade, máquinas lingüísticas e máquinas pro gramadas.

As máquinas tipo bomba são autodestrutivas; ao se transformarem, transformam-se totalmente, são puro motor.

As máquinas tipo relógio não mostram seu motor, mas apenas as suas conseqüéncias, os ponteiros.

Um exemplo de máquina sem perenidade é um giz que se autodestrói à medida que se apresenta. Pondruel cria a história de um giz apaixonado por uma lousa que, à medida que a toca, ou que entra em contato com ela, se liquida, morre de paixão.

Nas máquinas lingüísticas, o objeto equivale à palavra, quando em movimento compõe a frase, e o conjunto dos movimentos compõe o texto. Com essas máquinas ele apresentou Othelo e El Cid.

Em sua versão de El Cid, tudo, ou quase tudo, é metálico. A fatalidade, cega e surda, toma a forma de uma enorme roda de aço que rola ameaçando o que encontra pelo caminho. Don Gómez, ao ser esbofeteado por Don Diego, é uma haste que se levanta e atinge um alvo. Jimena é um guindaste mecânico que coloca, com mãos articuladas de ferro, Rodrigo sobre trilhos para que caminhe em direção à luta que deve travar contra os

Page 280: o Ator e Seus Duplos

mouros. Cada peça aciona, no final de sua intervenção, a engrenagem seguinte, e a ação dramática nunca é interrompida. O texto é a programação das máquinas que criam o desenrolar da tragédia.

Em Othelo, o ciúme é provocado e mostrado por meio dos movimentos de um martelo, que exacerba as paixões até destroçar os rostos das estátuas que representam Othelo e Desdêmona, projetadas em placas de vidro. A tensão é

Page 281: o Ator e Seus Duplos

levada até à angústia e esta não se libera senão quando as placas se rompem, os estilhaços voam e as efigies se par- tem. A maquinaria então para e entra em repouso.

Com o tipo de máquina programada ele montou Romeu e Julieta.

Nesse projeto utilizo dois braços de robôs industriais, um muito

grande, outro menor. O pequeno está encarregado de seguir

metodicamente os contornos de uma pequena escultura, o busto de

uma jovem com um rosto muito feminino, escolhido pela

delicadeza de seus traços. O grande braço, acoplado

eletronicamente ao menor, reproduz no espaço os traços virtuais

ampliados desse rosto. Os braços devem “dançar” evocando o

respectivo corpo. Agrada-me que as máquinas sigam os contornos

de um rosto, criando uma espécie de coreografia.47

O teatro do objeto-imagem - considerações sobre uma possível dramaturgia

Objeto-imagem é um objeto natural ou fabricado pelo homem, colocado em cena por seus valores estéticos, isto é, por sua forma, cor, movimento, luminosidade, etc. Não se trata aqui de um jogo metafórico e também não necessariamente assume conotações simbólicas. Pode ser um objeto encontrado ou pode ser criado e confeccionado especialmente para uma determinada cena teatral.

No teatro de objetos há trama,

47 Ibidem.

Page 282: o Ator e Seus Duplos

conflito, mas no teatro do objeto-imagem, o que se busca é antes de tudo uma emoção visual. Pessoas e situações reais são transformadas em imagens abstratas, sofrem transposições.

Page 283: o Ator e Seus Duplos

A representação da figura humana, quando surge, é abstrata ou parcialmente apresentada. Um pé, um olho, a nuca, dependendo do que se pretende ressaltar.

Se o teatro de objetos, apesar de sua concretude, é mais abstrato do que o teatro de bonecos, o teatro do objeto-imagem vai além. O teatro do objeto-imagem é o género teatral que mais afinidades tem com a dança, as artes plásticas, a música. Só que, em cena, o que se busca não é um resultado pictórico, plástico ou musical - um quadro, uma escultura, uma partitura nele, o que mais importa é a emoção do gesto no momento mesmo em que está sendo realizado.

O teatro de bonecos tradicional reflete e imita o homem. O teatro de objetos usa o objeto como metáfora da condição humana, substituindo o humano por figuras inanimadas. O teatro visual ou teatro do objeto-imagem busca apenas emoções estéticas. É um teatro sem tramas nem dramas. Não conta nenhuma historia, não tem começo, meio ou fim. As formas, figuras, imagens apresentadas não têm nenhuma relação com a realidade prática. A não-presença do ator ou a não-apresentação do cotidiano humano toca fundo em nosso inconsciente, mais do que pretende

Page 284: o Ator e Seus Duplos

atingir o nosso racional.A dramaturgia do objeto-imagem

baseia-se na imagem e no movimento. A imagem não tem faixa etária, é, portanto, um teatro que atinge qualquer público. As crianças muito pequenas, de 2 a 6 anos, em fase pré-opera- tória, não discernem o particular, aprendem pelo geral. Portanto um teatro visual, sendo como é, um conjunto de elementos (imagens, movimento, luz, sons), ajuda-as a se desenvolver através dos vários elementos artísticos nele colocados. E os adultos são por ele levados ao sonho e à introspecção.

ll(i

Page 285: o Ator e Seus Duplos

Difícil descrever roteiros de um teatro baseado em imagens, sons, movimento, luz, cujo desfecho não chega a conclusões racionais, despertando apenas emoções estéticas.

Sua dramaturgia tanto nasce de uma idéia, de um pensamento, de uma visão, como pode inspirar-se na leitura de poemas, textos ou na interpretação de um quadro ou escultura. Desenvolve-se também através de processos ou de experiências práticas, vivenciadas, abstratamente transformadas.

Mas, qualquer que seja a origem de sua concepção, a sua realização depende sempre muito mais da sensibilidade de um artista plástico do que das qualidades de um ator, pois é uma manifestação mista: teatro unido às artes plásticas.24

O teatro visual da Universidade Católica de Lublin, Polónia, criado e dirigido por Leszek Madzik, é um exemplo desse tipo de manifestação teatral que conjuga teatro com artes plásticas.

Scena Plastyczna começou seus trabalhos no início da década de 1970, um período de grande entusiasmo artístico na Polónia, quando do surgimento de grandes produções e diretores, como Grotowski, Kantor,

Page 286: o Ator e Seus Duplos

entre outros. O teatro visual da Universidade de Lublin, a princípio, restringia suas apresentações aos palcos da universidade, mas logo foi alcançando outras plateias e hoje tem renome e uma atuação internacional.25

24 Num trabalho de laboratório com atores, porém, pode-se despertar neles esse “novo olhar sobre a cena”, através de exercícios de sensibilização já sugeridos.

25 A Universidade de Lublin, ou Katolickiego Uniwersytetu Lubelskiego (KUL), toi fundada eni 1918 e até 1939 desfrutou de grande liberdade. No período da Segunda Guerra Mundial, a Universidade foi desativada, mas, em 1945, as atividades acadêmicas foram retomadas. E considerada hoje uma das cinco melhores universidades da Polónia. Foi na Universi-

117

Page 287: o Ator e Seus Duplos

A Universidade Católica de Lublin assume um papel de mecenato no que se refere ao teatro visual. Através dela, Leszek Madzik pode tranquilamente criar e experimentar, sem as preocupações próprias de um teatro profissional. Leszek não trabalha só com atores, mas com estudantes de várias áreas. Suas oficinas têm a duração de um ano, terminando sempre com espetáculos experimentais. Seus participantes propõem temas, trazem material, confeccionam, criam. Entre as primeiras apresentações assinalamos: Ecce Homo, seu primeiro sucesso (1970), e, a seguir, Natividade (1971); A ceia, (1972); ícarus (1974); Herbarium (1976); Caminhando (1980); Litoral (1983); A porta (1989/90); Kir (1997).

Leszek Madzik coloca em cena visões construídas com luz, som, cores, objetos e, incidentalmente, atores - elementos esses tratados, todos, num mesmo nível. Em seu teatro o ator é um símbolo, é um objeto em movimento, não atua individualmente, pois pertence a uma composição na qual cada elemento colabora em pequenas e precisas doses. Fala através de símbolos, sendo os mais constantes a penumbra, a luz, a água

Page 288: o Ator e Seus Duplos

e a terra. Uma característica sua é o enquadramento de imagens - figuras inesperadas que surgem através de janelas, buracos, portas semi-abertas. A água está presente em quase todos os seus espetáculos. Outros de seus objetos-símbolos muito usados são pernas artificiais, torso humano, fragmentos de

dade de Lublin que se criou, em 1952, o primeiro grupo de teatro estu- daiitil da Polónia, que teve importante atuação ira vida cultural e acadêmica do país. No período de dominação comunista, quando não era permitida a apresentação de dramas religiosos ou metafísicos, peças de Claudel, Eliot, Chesterton e outros dramaturgos poloneses foram sempre enceiradas. A montagem de uma peça de Mickiewca, dramaturgo polonês, causou então grande celeuma, chegairdo a provocar, em 1955, repressão administrativa nas atividades acadêmicas.

Page 289: o Ator e Seus Duplos

corpo vivo, movidos sob ritmo e música. Madzik procura mostrar os objetos sob todos os seus possíveis ângulos, inclusive seu interior, descobrindo as suas diferentes possibilidades e sempre surpreendendo, como se os visse- mos pela primeira vez. Segundo Leszek, os objetos nos remetem ao passado.

As coisas materiais congregam associações emocionais, por isso guardamos ou destruímos as que despertam em nós memórias. Os objetos ficam impregnados das energias daqueles que deles se utilizaram, de tal forma que nem o tempo consegue destruí-las.[...] confio mais nos objetos do que nas pessoas [...] as pessoas mentem mas os objetos, não.26

Sobre seu trabalho, assim se expressa o crítico polonês Zbigniew Taranienko: “Leszek Madzik cria um diálogo entre a sensualidade da matéria e a pura espiritualidade, entre escuridão e morte, claridade e vida, entre a essência das idéias e a experiência. Toca o limite que existe entre o sensual e o sagrado”.27 Como que tentando definir o que é profano e o que é sagrado, Leszek Madzik mostra vida na matéria e descobre-se

Page 290: o Ator e Seus Duplos

que ela está cheia de espiritualidade.

O boneco, para ele, interessa por ser a cópia do humano, representa um tempo estagnado, é símbolo de vida e morte.

Constantemente pergunta o que é a vida e a morte. “A expressão artística é relativa à personalidade do artista e do mundo que o rodeia.” 28

26 L. Madzik, “I Think in Irnages”, em Teatr, junho de 1983.27 Zbigniew Taraiiienko, “Leszek Madzik’s Visual Theatre Technique”, em I

Meetings of Vision & Irnage Theatre, Katowice, 1986.28 Ibidem.

Page 291: o Ator e Seus Duplos

A arte polonesa inspira-se na situação negativa do homem. Pensar e falar sobre a morte é reñetir sobre urna realidade humana. Mesmo que esse seja um tema difícil, o homem o aceita porque é um tema que o atinge profunda- mente. Não é, segundo Madzik, um tema triste. A morte não é fim, nem agonia, é êxtase. E a verdade do homem. Seu teatro reflete assim a alma polonesa, cheia de religiosidade e sofrimento. É através do sofrimento que os poloneses percebem o valor da vida humana, uma obsessão que, na Polónia, é resultado da vivência com a Igreja Católica, e também influência das opressões políticas que o país por muitos anos viveu, seja sob o domínio comunista russo, seja sob o domínio alemão, seja ainda durante o império Austro- Húngaro. Nesses períodos, a Igreja era a única resistência possível e foi através dela que a identidade cultural, as tradições e até mesmo a língua se mantiveram.29

Em seus espetáculos, vida e morte se confrontam num plano metafísico.

Scena Plastyczna não conta nenhuma história, mas o público recebe uma carga emocional e estética inesquecível. Por exemplo, Wrota (1980). O espetáculo é apresentado em três planos: começa no teto, passa em seguida para o plano do palco

Page 292: o Ator e Seus Duplos

(separado do público por arames e fios) e termina no chão. Os espectadores, ao se levantarem de seus lugares, percebem que sob os seus pés, por baixo de um espesso vidro, figuras se movem - e não são bonecos nem objetos, mas pessoas, ou partes delas. O público é assim de tal forma circundado, que chega a perder as suas referências espaciais. A estranheza da perspectiva criada em cena provoca uma sensação de perda de equilí-

29 A liberdade, na Polónia, é uma experiência recente.

1)0

Page 293: o Ator e Seus Duplos

brio, como se o espaço, de repente, deixasse de ser físico. Mas suas imagens, por mais impressionantes que sejam, não inspiram temor, ao contrario, são suaves e têm um efeito calmante. Levam-nos ao nosso interior, ao nosso inconsciente. Existe nelas um drama cheio de espiritualidade.

Pode parecer um paradoxo dizer que o teatro visual, ou Scena Plastyczna em particular, não é para ser visto, mas para ser sentido, pois nele existe uma atmosfera emocional muito grande que envolve o público desde o início, através de um ritual de entrada.

Um a um, em silêncio, o público penetra uma suposta sala, em total escuridão. Por longos minutos há um momento de suspense e espera, sendo pouco o que se vê devido à pouca luminosidade, enquanto o olhar se fixa sobre sombras de objetos não identificáveis, imagens rígidas e imóveis (humanas? materiais?) que, de repente, desaparecem ou imperceptivelmente mudam de expressão, sob acordes sutis que se misturam aos murmúrios e sons abafados das pessoas entrando e acomodando-se, formando um aglomerado de experiências em que o pensamento, em quietude percebido, se corporifica

Page 294: o Ator e Seus Duplos

e se torna um elemento a mais. O espetáculo transcorre sem que se perceba o seu início, dura numa outra dimensão de tempo.

Scena Plastyczna é uma manifestação cênica mais próxima da performance, no sentido de ser a expressão de um indivíduo, ou seja, do autor/diretor, e seus atores ou performers não devem modificar os seus conceitos.

Principalmente, é um teatro que, por não utilizar a palavra mas seu silêncio, tolocado em alternâncias de sons e música, é muito eloqúente. “As palavras tornam as cenas dramáticas muito concretas. E, à medida que o

DI

Page 295: o Ator e Seus Duplos

ator se cala, ele se distancia do palco e se expande.”30 O silêncio, diz Leszek Madzik, é urna forma de comunica' ção com Deus.

30 W. Chudy, Theatre of Non Verbal Truth (Lublin: KUL, 1990).

Page 296: o Ator e Seus Duplos

1)2

Page 297: o Ator e Seus Duplos

osvjnivos, PWCCSSOS c moGwtADosjfiXiante da atual dramaturgia e de uma nova tea tralidade que freqüentemente colocam em cena, en lugar do ator ou junto a ele, representações artificiais d; figura humana, formas animadas ou simples objetos, tor na-se cada vez mais necessário que se repense novas téc nicas de interpretação do ator.

Dos cursos e oficinas que durante anos experimentamos, permaneceram alguns exercícios que, em seu conjunto, acabaram por se configurar numa metodologia. Apesar das dificuldades que surgem ao se tentar colocar no papel o que em um laboratório naturalmente flui (com resultados surpreendentes e sempre diferentes), conseguimos organizar

Page 298: o Ator e Seus Duplos

parte dessas experiências. E, ainda que os exercícios assim friamente colocados mais pareçam esqueletos, na verdade são estruturas às quais a criatividade de cada um pode sempre acrescentar novas descobertas, ampliando-as. Para quebrar a frieza dos exercícios aqui sugeridos, preocupamo-nos em ilustrá-los com fotos.

Page 299: o Ator e Seus Duplos

As fotos referem-se principalmente ao trabalho realizado - Pesquisa Teatro de Animação - no período de julho de 2000 a maio de 2001 que, sob o apoio da Fundação de Amparo e Pesquisas do Estado de São Paulo (Fapesp), desenvolveu-se no ámbito do Departamento de Artes Cênicas da USP e outros espaços alternativos.

A pesquisa incluiu palestras e seminarios com reflexões sobre dramaturgia do teatro de animação, oficinas práticas para improvisação e criação de roteiros, teatro de sombras e oficinas de confecção de máscaras e bonecos. A maior parte das fotografías foram tiradas durante um laboratorio - O ator e seus duplos - realizado no Serviço Social do Comércio (Sesc) de Pinheiros; outras referem- se a trabalhos ou cursos anteriores.

Participaram dessa pesquisa alunos, bonequeiros e atores: Amaya Llainez, Andy Rubinstein, Cássia Macieira, Cíntia Abreu, Cláudia Rubinsteinn Soares, Cristiane Giménez, Cristiane Mendes, Daisy Nery, Elise V. dos Santos, Gilson de Barros Melo, Helô Cardoso, Gustavo Noronha, Ipojucan, Irina Sabatier, José Parente, Teotônio Sobrinho, Ludmilla Martins, Maira Fanton, Maurício Maas, Roberto Moretto,

Page 300: o Ator e Seus Duplos

Ronaldo de Castro, Samadi Coelho, Silvana Marcondes, Vânia Marques, entre outros. No final, foi feita uma adaptação do conto A Benfazeja, de João Guimarães Rosa, para uma encenação com bonecos e máscaras. Os atores que participaram da montagem foram Cíntia Abreu, Cristiane Mendes, Franklyn Brabo, José Parente, Ronaldo de Castro e Teotônio Sobrinho.

Em todo esse trabalho priorizamos a relação do ator com a máscara, com o boneco e com os objetos.

1)1

Page 301: o Ator e Seus Duplos

mmm wmrnmLivros

AMARAL, A. M. Teatro deformas animadas. 3â ed. São Paulo: Edusp, 1997.

___________Teatro de animação. São Paulo: Ateliê,

1997.ASLAN, Odette (org.). Le masque, du rite au

théâtre. Paris: CNRS, 1985.BATY, G. & CHAVANCE, R. Histoire des marionnettes.

Paris: PUF, 1972.BAUDRILLARD, J. Le système des objets. Paris:

Gallimard, 1968.BELLASI, Pietro & LALLI, Pina. Recitare com gli

Oggetti. Bolonha: Cappelli, 1986.BENSKY, R. Daniel. Structures textuelles de

la marionnette de langue française. Paris: Nizet, 1969.

BERNARDINI, A. F. O Futurismo italiano. São Paulo: Perspectiva, 1980.

BLUMENTHAL, Eileen. Julie Taymor, Playing ivith Fire. Nova York: Harry N. Abrams, 1995.

BOIE, B. Lhomme et ses simulacres. Paris: Conti, 1979.BORBA FILHO, H. Fisionomia e espírito do

mamulengo. São Paulo: Edusp, 1966.CHUDY, W. TheatreofNon Verbal Truth. Lublin: KUL, 1990.CRAIG, Edward Gordon. On the Art of the Theatre.

Nova York: Theatre Arts Books, 1956.

Page 302: o Ator e Seus Duplos

FOURNEL, Paul et alii. Les marionnettes. Paris: Bordas, 1980.GIROUX, Sakae M. &. TAE, Suzuki. Bunraku:

um teatro de bonecos. São Paulo: Perspectiva, 1991.

Page 303: o Ator e Seus Duplos

JURKOWSKI, H. Écrivains et marionnettes: quatre siècles de littérature dramatique. Charle ville'Méziéres: Instituí International de la Marionnette, 1991.A_____HistoryofEuropean Puppetry. NovaYork: Mellen Press, 1996.Aspects_of Puppet Theatre. Londres:Puppet Centre Trust, 1988.

KEENE, Donald. Bunraku. Tóquio: Kodansha International, 1974.

KOURILSKY, Françoise. Le Bread and Puppet théâtre. Lausanne: La Cité, 1971.

LARMINAT, Max-Henri. Objets en dérive. Paris: Atelier des Enfants/Centre George Pompidou, 1984.

LECOQ, Jacques (org.). Le théâtre du geste. Paris: Bordas, 1987.

NICOLL, Allardyce. Masks, Mimes and Miracles. Nova York: Cooper Square, 1963.

PANOFSKY, Erwin. O significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979.

POUND, Ezra & FENOLLOSA, Ernest. The Classic Noh Theatre ofjapan. Nova York: New Directions, 1959.

QUINTAVALLA, Leticia (org.). La materia e il suo doppio. Parma: Bricile, 1984.

RIPELLINO, A. M. Maiahovski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971.

SOUTHERN, Richard. The Seven Ages of the Theatre. Nova York: Hill&Wang, 1987.

SUZUKI, Eico. Nô, teatro clássico japonês. São Paulo: Edito* ra do Escritor, 1977.

Page 304: o Ator e Seus Duplos

VON BOEHN, Max. Dolls and Puppets. Nova York: Cooper Square, 1966.

m

Page 305: o Ator e Seus Duplos

Artigos

BABLET, D. “De Craig au Bauhaus”, em Asían, O. (org.). Le masque, du rite au

théâtre. Paris: CNRS, 1985.BELL, John. “Dramaturgy and the Theatre

of Masks and Puppets”, em LMDA Revieiv, 1 (3), Nova York, 1998-99.

ELDREDGE, Sears. “Jacques Copeau and the Mask in Actor Training”, em Mime, Mask & Marionette, vol. 2, Nova York, 1979/80.“Actor Training in the Neutral Mask”,em ELDREDGE, S. & HUSTON, H. W. (orgs.). TDR, T80, Nova York, NYU, 1980.

FABRE, G. “Les masques dans le théâtre américain d’aujourd’hui: le Bread and Puppet Theatre et le Teatro Campesino”, em ASLAN, O. (org.). Le masque, du rite au théâtre. Paris: CNRS, 1985.

FELDBUSH, David. “Zen and the Actor”, em TDR, Nova York, NYU, s/d.

JAPELLE, H. “Linterprétation du mouvement”, em Théâtre Public, Paris, setembro de 1980.

JURKOWSKI, H. “Transcodification of the Sign Systems of Puppetry”, em Semiótica Journal, nQ47, International Association for Semiotic Studies, 1983.

KIRBY, E. T. “The Mask: Abstract Theatre, Primitive and Modern”, em TDR, Nova York, NYU, setembro

Page 306: o Ator e Seus Duplos

de 1972.LECOQ, Jacques. “Le rôle du masque dans

la formation de 1’acteur”, em Aslan, O. (org.). Le masque, du rite au

théâtre. Paris: CNRS, 1985.MARÍNETTI, Felippo Tommaso. “Manifesto

técnico da literatura”, em BERNARDINI, A. F. O Futurismo italiano. São Paulo: Perspectiva, 1980.

1)7

Page 307: o Ator e Seus Duplos

MONESTIER, Claude. “Le partage de la scène”, em Puck, n2 5, Charleville-Mézières, Institut International de la Marionnette, 1992.

PODEHL, Enno. “Dialogues”, em Puck, n2 5, Charle villc' Mézières, Institut International de la Marionnette, 1992.

PONDRUEL, D. “La bombe et 1’horloge”, em Puck, n2 2, Charle ville'Mézières, Institut International de la Marionnette, 1989.

VIGOARJENA, Miguel. “Dieu ex-masque”, em Puck, n28, Charleville-Mézières, Institut International de la Marionnette, 1995.

WALLET, R. “Marquer la différence”, entrevista de R. Wallet e P. Fouilquié com B. Cordreaux, em Mahonnettes, n27,1985.

ZlCll, Otakar. “The Puppet Theatre”, em Semiótica Journal, vol. 47, International Association for Semiotic Studies, 1983.

Page 308: o Ator e Seus Duplos

Í06RC A AfllOMAna María Amaral é diretora e dramaturga de teatro de bonecos, objetos e máscaras. Destacam-se em sua produção: Palomares, urna das primeiras montagens com bonecos para adultos no Brasil, 1978/83 (Prémio Mambembe e Prémio Governador do Estado); Zé da Vaca,

para crianças, 1985 (Prémio APCA); espetáculos com objetos, como A Coisa - Vibrações/Luz do Objeto-Imagem, 1990, ou com formas abstratas, Babel - formas e

transformações, 1992. Outras pesquisas e montagens foram realizadas como professora titular de Teatro de Animação na Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP). Seus livros Teatro

Page 309: o Ator e Seus Duplos

deformas animadas (3a ed. São Paulo: Edusp, 1977), Teatro de bonecos no Brasil (São Paulo: Com Arte, 1994) e Teatro de animação (São Paulo: Ateliê, 1997) são referências básicas.

Page 310: o Ator e Seus Duplos

9788573592276

Os duplos, na forma de complementeis diversos, sempre

foram uma constante na historia milenar do teatro,

proporcionando o “jogo” de -transformações, simulações e

revelações próprio dessa arte.

Esse “jogo” é exposto aqui pela diretora e dramaturga Ana

Maria Amaral, com clareza dicdática aliada ao talento da

autora para a pesquisa e SL teoria da arte. O ator e seus

duplos: máscaras, bonecos, objetos analisa a arte do ator em

seu sentido mais amplo e dedica especial atenção ao ator-

manipulacdor de complementos - a máscara, o boneco e o

«objeto. Fotos de ensaios e exercícios propostos ajudam- a

compreender o cativante “jogo” de duplos.

Realizado em co-edição pelo SENACHT de São Paulo e pela

Edusp (Editora da Universidades de São Paulo), este livro se

endereça a profissionais, estudantes e apreciadores das artes

cênicas.