O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

9
7/28/2019 O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet http://slidepdf.com/reader/full/o-barroco-hoje-ensaio-sergio-paulo-rouanet 1/9

Transcript of O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

Page 1: O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

7/28/2019 O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

http://slidepdf.com/reader/full/o-barroco-hoje-ensaio-sergio-paulo-rouanet 1/9

Page 2: O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

7/28/2019 O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

http://slidepdf.com/reader/full/o-barroco-hoje-ensaio-sergio-paulo-rouanet 2/9

religiosidade medieval. Essa síntese foi feita no bojo de uma reação conservadora contra a ascensão burguesa que se verificara durante a Renascença. Nos países católicos, a reação foi promovida sob aégide do Concílio de Trento, que procurourestaurar a pureza do cristianismo medieval, e nos países protestantes sob a égide da religiãoreformada, especialmente em sua forma maiscentralizadora, a calvinista. Tanto nos paísescatólicos do Sul como nos protestantes do Norte areação teve como protagonistas principais, sob aautoridade de um monarca absoluto, a nobrezafeudal e uma alta burguesia que aspirava aoenobrecimento, e que se sentiam ameaçadas emseus privilégios pela ascensão de novos estratosurbanos. O Barroco foi um produto dessa reaçãoconservadora, na medida em que repudiava osvalores e ideais da Renascença – sua sensualidade,seu antropocentrismo, seu quase paganismo. Masessa atitude combinou-se com uma paradoxalabertura com relação a esses mesmos valores, oque permitiu, consciente ou inconscientemente, por razões táticas ou pela lógica dos sincretismoshistóricos, a incorporação parcial daquela mesmacultura renascentista que se procurava combater. Oresultado foi a absorção de elementos antitéticos,

combinando o humanismo renascentista com areligiosidade mais exaltada, a carne com o espírito,o hedonismo com a santidade, a terra com o céu.

Mas de modo geral esses dualismos nãoapareciam no Barroco em sua forma imediata,como fora o caso do maneirismo, curto interregnoentre a Renascença e o Barroco (aproximadamente1520-1620). No maneirismo, as tensões apareciamsem qualquer mediação, como se observa em ElGreco, por exemplo, num quadro como o O

enterro do conde de Orgaz. A tela está dividida em

duas partes bem distintas, uma sobrenatural, o céu,com nuvens geladas, distorcidas até o limite daabstração, e santos alongados, espectrais, e outranatural, a terra, em que todos os personagens sãoretratados em suas proporções normais, e em quemesmo as aparições milagrosas, como as de SantoAgostinho e Santo Estevão, aparecem em escalahumana. Já no Barroco afloram as mesmasantíteses, mas mediatizadas. Há uma tentativa de

síntese. Como observou José Guilherme Merquior,essa tentativa se nota na arquitetura religiosa, que procurava conciliar a espiritualidade da IdadeMédia com o humanismo da Renascença,combinando a grande nave longitudinal, dominada pela visão do altar-mor, com o emprego de cúpulascentralizantes: o espaço humanista a serviço doedifício teocêntrico. Os extremos, no Barroco, nãosão disjunções. Não há escolha entre o céu e aterra, mas co-presença. Na Santa-Teresa, deBernini, há uma fusão na mesma obra de orgasmoe êxtase. Essa tendência à fusão dos contráriostransparece no comportamento social maiscaracterístico da época, o que Weber chamava deascetismo intramundano, ou seja, uma religiosidadeexaltada, mas voltada para a intervenção ativa noséculo, e cujo protótipo talvez seja a ação daCompanhia de Jesus, a grande milícia do Barrococontra-reformista.

Enquanto instrumento de uma reaçãoconservadora, o Barroco foi antes de mais nadauma cultura da propaganda. O objetivo era aliciar espíritos, conquistar corações, apelar para ossentimentos. O Barroco de modo geral se dirigiaaos sentidos, e não à razão. Para isso, elemobilizava todos os recursos da retórica, todos os

artifícios que pudessem agir sobre as mentalidades.Para isso, como demonstrou José AntonioMaravall, o Barroco funcionou como umaverdadeira antecipação da indústria cultural,inclusive pela produção de artigos reprodutíveis demassa, de quadros kitsch, de livros e peças deteatro peças destinadas ao consumo popular.Mesmo grandes escritores, como Lope e Calderón, produziam dramas que usavam e abusavam deefeitos especiais, com grande aparato de luzes enuvens que desciam e subiam no palco, de Apolos

que circulavam em carruagens voadoras. Daí o privilégio dado à imagem, ao código visual,inclusive na literatura, ela própria pictórica, comose ela procurasse pôr em prática a máxima ut 

 pictura poesis. Visuais, também, eram osespetáculos, as festas, as procissões barrocas, comseus penitentes, seus andores, seus crucifixos. Avontade de manipulação era totalmente consciente.Segundo frei Juan de Salazar, “a prudência usa

2

Page 3: O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

7/28/2019 O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

http://slidepdf.com/reader/full/o-barroco-hoje-ensaio-sergio-paulo-rouanet 3/9

amorosos enganos com o povo, proveitosos e úteis, para ensina-lo e obriga-lo a fazer o que deve.”Aristóteles e Horácio foram mobilizados pelaretórica barroca, Horácio devido ao preceito de quea arte deveria deleitar, mas também ensinar, eAristóteles por sua concepção dos efeitos catárticosda tragédia, à qual o Barroco deu uma interpretaçãomoralizante, atribuindo ao Estagirita a opinião deque as paixões deveriam ser purificadas pelo teatro,sublimadas para fins edificantes. A lei básica doBarroco, a ostentação, verifica-se também naliteratura. O estilo empolado, característico decertas variedades do Barroco literário, como ocultismo, o conceitismo, o gongorismo, apenasaparentemente contraria a natureza do Barrococomo veículo para influenciar as massas. Afinal, os plebeus queriam mostrar que também eram cultos,e por isso gostavam de ler autores difíceis. O wit, oengenho, a agudeza, eram uma estratégia entreoutras para captar o interesse do público. OBarroco estimulava inovações de linguagem quehoje chamaríamos de vaugardistas. É de Lope deVeja o preceito: no pongáis limites al ingenio .

Maravall diz que era uma forma de impedir asinovações realmente perigosas, as que afetassem asrelações políticas e sociais. É a política do

 personagem do filme de Visconti, o Gattopardo,que deseja que tudo mude para que nada mude. Umescritor barroco exprime essa idéia com toda aclareza desejável: vivir con las costumbres pasadas

 y hablar con las palabras presentes.

Toda essa política de amorosos engaños levaa uma profunda descrença no valor da verdade. Nesse mundo em que tudo é enganoso, a vida éuma teia de meras aparências, e nada é o que parece ser. É o mundo do trompe l’oeuil , dosimulacro: la vida es sueño. É a própria ciência que

nos alerta para os embustes dos sentidos. Nada émais certo, por exemplo, que vemos um céu azul.Pois bem, é uma ilusão de ótica. Para Calderón, ni

es cielo ni azul. É o mundo do labirinto, em quenos perderemos sempre, se não contarmos com oauxílio da Igreja. É o mundo da alegoria, nosentido de Benjamin, que aponta para a morte, enão para a redenção, como o símbolo. É o ladosombrio do ascetismo intramundano, voltado para

o mundo, mas para maior glória de Deus, e não por amor ao mundo. Pois este é ilusório, efêmero,fugaz, simples theatrum mundi,  palco em quesomos atores e espectadores de um espetáculolutuoso, de um Trauespiel, cujos personagens sãotiranos e vítimas, cuja ação consta de execuções eesquartejamentos, cujos adereços cênicos sãoruínas e cadafalsos. Essa visão das coisas faz parteda terrível pedagogia da Contra-Reforma, que busca ao mesmo tempo seduzir pela ostentação eaterrorizar pela imagem da morte, neste mundo eno outro.

Enquanto veículo de ensinamento e persuasão, a cultura barroca estava mais habilitadaque qualquer outra para catequizar os habitantes do Novo Mundo. Conseqüentemente, ela cruzou oAtlântico e pôs a serviço da conversão dosindígenas todo o seu gênio da encenação, toda suainventividade no uso de meios técnicos para cativar os sentidos. Foi a função do teatro jesuítico, desdeo primeiro século da colonização. Foi também afunção da arquitetura religiosa, em que os metais preciosos contribuíram para aquela pompa que aestética barroca julgava necessária para salvar asalmas. Mas aqui se deu algo de singular, quedeixou clara a natureza do Barroco enquanto

síntese, e não somente enquanto veículo daortodoxia religiosa e política. Na medida em quecontinha também um lado humanista, oriundo daRenascença, o Barroco americano permitiu que asculturas indígenas pudessem encontrar um espaçode sobrevida. Como lembrou Janice Theodoro, aextrema liberdade formal do Barroco permitiu quemotivos indígenas de mesclassem aos europeus naarquitetura e nos ornatos. Por exemplo, as formassinuosas das igrejas barrocas mexicanas lembramas formas serpentinas dos aztecas.

[...]Cronologicamente, o Barroco históricoextinguiu-se no século 18, com o advento dasLuzes, em suas diferentes variantes estéticas – oneo-classicismo, o arcadismo, o rococó. Tendo emvista essa periodização tão taxativa, faria sentidofalarmos na sobrevivência atual do Barroco?

3

Page 4: O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

7/28/2019 O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

http://slidepdf.com/reader/full/o-barroco-hoje-ensaio-sergio-paulo-rouanet 4/9

 Não, para autores como Maravall, para quemo Barroco se refere apenas ao período entre o finaldo século 16 e o início do século 18.

Sim, para ensaístas como Eugenio d’Ors, paraquem o Barroco é um eon, uma constante histórica,que ressurge em diferentes momentos da evoluçãodo homem. Seu protótipo estaria na arte rupestre da pré-história, teria reaparecido no períodoalexandrino, teria re-emergido no gótico, teria tidouma realização privilegiada na época da Contra-Reforma, teria feito sua rentrée no romantismo,teria reerguido a cabeça no decadentismo  fin de

 siècle e na música de Wagner, e teria renascidovigorosamente nas vanguardas do século 20.Walter Benjamin, por sua vez, chama atenção paraas afinidades entre o Barroco e o expressionismoalemão. Podemos concordar com a existênciadessas e outras correspondências, sem que comisso nos sintamos obrigados a aceitar a filosofia dahistória da qual elas derivam.

O ensaísta catalão, com efeito, defende umaconcepção cíclica, baseada na alternância entrefases barrocas, em que predominam a imaginação eo sentimento, e fases clássicas, sob a primazia darazão. O Barroco está ligado à vida: é a matriz, sema qual não há fecundidade possível. O classicismo

é o olhar, o pensamento que ordena e classifica.Segundo outra metáfora, o Barroco é o sono, noqual o homem mergulha para refazer suas forças evoltar à origem, e o classicismo, a vida desperta.Ou, numa terceira variação, o Barroco é oCarnaval, em que a razão fica provisoriamente posta fora de circuito, e o classicismo é o resto doano. Em todas essas versões, há um rodízio perpétuo entre duas constantes históricas.

 Na filosofia da história de Benjamin, não hárepetição e, sim, correspondência entre nosso

 presente e um passado que lhe é sincrônico. O papel do historiador dialético é imobilizar o fluxodo tempo, para salvar, num tempo-agora ( Jetzzeit)

 privilegiado, o passado do qual somoscontemporâneos, e que sem esse gesto se perderia para sempre. É o que ele faz trazendo o drama barroco alemão para nosso presente.

Essas duas filosofias da história podem ser contestadas, porque nem todos aceitariam a noção

de tempo cíclico implícita na teoria de Eugeniod’Ors ou o voluntarismo extremo que pareceimpregnar a teoria de Benjamin. Mas não precisamos delas para reconhecer que as afinidadesapontadas realmente existem, quaisquer que sejamsuas matrizes conceituais. Se é assim, nada nos proíbe de procurar outras semelhanças. Vejamos,sem preocupação sistemática, algumas dessassemelhanças, comparando traços culturaisgenéricos entre as duas épocas, e não somente suascaracterísticas artísticas.

Primeiro, o francês Guy Desbords afirma quenossa sociedade transformou-se numa “sociedadedo espetáculo”, que espetaculariza tudo, quer setrate da guerra do Iraque, quer de reality shows, emque a vida privada de todos é posta diante dosolhos de todos, numa caricatura voyeurista do idealrousseauista da transparência, em que ninguém temo direito de ser opaco para ninguém. É o tema barroco do theatrum mundi, em que os limites entrecena e proscênio se diluem, fazendo de todos nósao mesmo tempo atores e espectadores. Essaespetacularização universal apaga as fronteirasentre o que é mostrado e o que é real, e induz umaatitude perfeitamente barroca de duvidar daexistência de um mundo objetivo atrás das

imagens. O mundo da hiper-realidade, em que sóas imagens são reais, é o mesmo que leva o homem barroco a afirmar que tudo era aparência, e a dizer que la vida es sueño.

Segundo, coerentemente com essaespetacularização do mundo, o código visual era aforma de expressão predominante no Barroco, e ésem dúvida a forma de expressão predominante emnossa época, que é uma civilização da imagem. Por isso é na pintura, na fotografia, na televisão esobretudo no cinema que podemos encontrar os

traços mais fortes do Barroco de hoje. Somos bombardeados, literalmente, por imagens, desdeque acordamos até o final do dia. Como noBarroco, as imagens substituem os conceitos,exercem um efeito ao mesmo tempo afrodisíaco ehipnótico, que excitam os sentidos e anestesiam o pensamento crítico.

Terceiro, apesar desse predomínio do registroótico, há uma tendência à criação de “efeitos

4

Page 5: O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

7/28/2019 O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

http://slidepdf.com/reader/full/o-barroco-hoje-ensaio-sergio-paulo-rouanet 5/9

Page 6: O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

7/28/2019 O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

http://slidepdf.com/reader/full/o-barroco-hoje-ensaio-sergio-paulo-rouanet 6/9

ruína, como ossuário. Talvez também seja essauma das funções da exploração da violência emnossos dias - mostrar que não há saída fora da lei eda ordem. De qualquer modo, nosso presentetambém está sob o signo do memento mori, etambém tem seu ossuário, representado por atrocidades infinitamente mais desumanas que as praticadas durante a guerra dos Trinta Anos, queserviram de pano de fundo para o barroco doSeiscentos. As valas comuns de Auschwitzrevelaram corpos decompostos e esqueletos.Recentemente vimos a foto de um iraquianosegurando o crânio retirado de um fossa coletiva,exatamente como Hamlet segurando a caveira deYorick. Nossas ruínas são as de Berlim e as deBagdá. Cada vez que alguém morre em nome devalores irracionais – nação, raça, cultura ou religião – é um fragmento de Iluminismo que morre dentrode nós. Nossa melancolia é Trauerarbeit, trabalhode luto pela morte de nossas utopias.

Sétimo, no Barroco a consciência dos pavoresda história estava associada à esperança numasalvação transcendente, por obra e graça dareligião. É o que se verifica novamente hoje,depois do descrédito dos messianismos profanos,como o marxismo. De novo, a autoridade do

dogma se sobrepõe ao livre arbítrio individual. Arazão puramente terrena é desativada. As fogueirasdo Santo Ofício se acenderam novamente. Osfatwas se multiplicam, e não só no mundoislâmico. A Contra-Reforma está entre nós, e temmuitas variantes, muitas das quais se filiam à própria Reforma. Vemos isso no Brasil, em que orádio e a televisão martelam incessantementemensagens evangélicas fundamentalistas, em quenão se pede aos crentes que pratiquem o livreexame, a maior conquista da revolta luterana, mas

que levantem os braços num gesto absoluto deentrega, de abdicação intelectual, de  sacrificium

intellectus, gritando “Aleluia”.Oitavo, o Barroco podia também exorcizar de

outro modo as calamidades da história: pelasalvação profana. Era a atribuição do tirano, doPríncipe, que no exercício de um poder absolutodevia proteger seus súditos da desordem, da guerracivil, da violência. Um cínico diria que temos hoje

a mesma opção. O Príncipe de hoje é o PresidenteBush, líder democrático dentro dos Estados Unidose tirano com relação ao resto do mundo, disposto asalvar dos cataclismas da história toda a populaçãodo mundo, estendendo-lhe os benefícios da  pax

americana. Diga-se aliás que Bush revelou notávelcompreensão dos mecanismos psicológicos usados pelo Barroco para reduzir as massas ao estupor quando batizou sua guerra de operação awe and 

chock, pavor e choque. De certo modo, sua guerrafoi um espetáculo semelhante ao do teatro jesuítico, a que não faltavam nem os anjos,representados pelas tropas anglo-americanas, nemos diabos, com toda uma gama infernal que iadesde o grande Satã em pessoa, Saddam Hussein,até os diabos menores, como os países da “velhaEuropa” que se recusaram a apoiar a agressãoanglo-americana.

Qual a razão do paralelismo entre nossa épocae a época do Barroco? Uma hipótese é que estamosvivendo uma transição entre duas mentalidades,comparável à que se verificou no século 16.Vivemos no passado recente a crençarevolucionária na possibilidade de transformar omundo, a grande explosão orgiástica do maio de1968, a euforia da  New Left, a sensação de que o

fim da guerra fria tinha deixado para trás os pesadelos da história. Tudo isso evoca certassemelhanças com a sensação de confiança eotimismo que caracterizou a Renascença. E a quedado socialismo real, a selvageria das guerras inter-étnicas do final do século e a emergência de umadupla barbárie, a terrorista e a americana, fizeram-nos viver o fim de todas essas ilusões, num estadode espírito que não deixa de ter semelhanças com agrande melancolia que se abateu sobre a Europa no período pós-renascentista. O resultado é a cultura

de hoje, que como a do Barroco associa fé edúvida, a esperança de construir um mundohumano e a suspeita de que a salvação não é dessemundo.

Mas por que esse estado de espírito temcaráter universal? A resposta é que estamosexperimentando uma segunda vaga deglobalização, sob certos comparável à que se deunos séculos 16 e 17. O substrato de ambas foi um

6

Page 7: O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

7/28/2019 O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

http://slidepdf.com/reader/full/o-barroco-hoje-ensaio-sergio-paulo-rouanet 7/9

movimento de mundialização do capitalismo, coma diferença de que se tratava no primeiro caso docapitalismo mercantil, relativamente inibido emsua difusão por uma doutrina mercantilista quecompartimentalizava os mercados e aplicavacontroles protecionistas, e no segundo caso, de umcapitalismo pós-nacional e neo-liberal que segue,sem inibições, a tendência globalizadora intrínsecaao capitalismo. Pois bem, creio que o Barroco foi acultura universal correspondente à primeiraglobalização, e a nossa é a cultura universalcorrespondente à segunda globalização. Na primeira, a cultura se irradiava para o mundointeiro a partir de modelos que emanavam deRoma, Madri e Versalhes, e hoje a partir demodelos que emanam de Nova York ouHollywood.

 Não sei se pode realmente falar num homo

barocus, com uma alma e uma psicologia próprias,mas não há dúvida de que a mentalidadecontemporânea pode ser definida tãodualisticamente quanto a barroca. Queremos abrir-nos ao universal, sem com isso renunciarmos anossas especificidades locais. Queremos uma vida baseada em valores menos materiais, sem abrirmosmão dos ganhos de autonomia proporcionados pelo

 progresso técnico. Queremos a dimensão lúdicainerente ao mundo pós-moderno, brincando com os possíveis contidos nas virtualidades da eraeletrônica, sem perdermos de vista o lado trágicoda vida, além de todo jogo, a exclusão mortalmenteséria a que estão condenados os inassimilados einassimiláveis do capitalismo global. Queremos beneficiar-nos da  stasis de um mundo pós-histórico, capaz de abolir as vicissitudes do tempoe o inexorável fluir da vida em direção à morte, erecusamo-nos a aceitar a idéia do fim da história,

que bloqueia o advento do genuinamente novo.Queremos viver plenamente nossa imanência,como cidadãos de um mundo secularizado, e não podemos resignar-nos à perda definitiva datranscendência. Como no Barroco, todas essasantinomias são mediatizadas por uma pseudo-síntese que nos dá a ilusão de que o desejo contidoem cada um dos pólos está sendo atendido, massabemos que é uma reconciliação fraudulenta, e

que nossa subjetividade está irremediavelmentefraturada.

Diante disso, o que fazer? Um caminho é omimetismo. Filhos do Barroco, devemos imitá-lo.Vivendo num mundo barroco, temos quedesenvolver uma reflexão tão barroca quanto seuobjeto. É o caminho do chamado neo-barroco.Vivemos hoje um verdadeiro boom do neo-barroco.

Ele se manifesta nas artes decorativas, nasartes plásticas, e, como vimos, no cinema, semprecom a preocupação de valorizar o kitsch, derecorrer a uma estética do excesso, do desmedido,do ornamentalismo à outrance, sempre visando produzir uma impressão de impacto, deestupefação.

Manifesta-se na filosofia, com livros como ode Christine Buci-Gluscksmann ( La raison

baroque)  profundamente impregnado da obra deWalter Benjamin sobre o drama barroco alemão, esobretudo no livro já mencionado de GillesDeleuze: Le pli. Leibniz et le baroque.

Manifesta-se no pensamento político e social, principalmente ibero-americano, que vê no neo- barroco o paradigma de uma nova sensibilidadeteórica, voltada para a visualização, para asensualidade, para o imediato, para a combinação

de conhecimentos aparentemente heterogêneos.Além disso, partindo do fato de que o Barrocoseiscentista e setecentista havia dado um espaço para a sobrevivência das culturas indígenas eafricanas e para sua hibridação com a culturaeuropéia, alguns cientistas sociais consideram queuma postura cognitiva do tipo neo-barroco seria amais apropriada para facilitar a conciliação entre asculturas particulares e a cultura universal.

Manifesta-se, enfim, na psicanálise. Há umensaio no seminário 20, Encore, em que Lacan diz

que “se alinha do lado do Barroco.” Isso éindubitavelmente verdadeiro do ponto de vistaestilístico, porque a linguagem lacaniana secaracteriza pelo uso permanente de jogos verbaistípicos do Barroco e transmite uma impressão deobscuridade que não está longe do gongorismo. Esegundo a psicanalista Denise Maurano, essaafinidade é também verdadeira do ponto de vistado conteúdo, porque na obra de Lacan “se desvela

7

Page 8: O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

7/28/2019 O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

http://slidepdf.com/reader/full/o-barroco-hoje-ensaio-sergio-paulo-rouanet 8/9

a comunicação íntima entre planos supostamenteantagônicos,como o divino e o humano, o bem e omal, a vida e a morte, o sagrado e o profano, aessência e a aparência, a profundidade e asuperfície, o exterior e o interior, o sofrimento e aalegria, e assim sucessivamente, num movimentode torção intensamente explorado nas obras barrocas, que apresentam a meu ver afinidades comos objetos topológicos estudados por Lacan.” Masem seu belíssimo ensaio Maurano decifra na psicanálise como tal, e não apenas em Lacan, a presença de elementos barrocos, tal como a tensãoentre elementos contraditórios e sua permeabilidade recíproca, que caracterizam odualismo freudiano. Para Denise, essa presença nãochega a surpreender se levarmos em conta que aViena na qual nasceu a psicanálise debatia-se entreo Barroco e o classicismo iluminista, e que essedualismo em grande parte se reencontra no próprioFreud, dilacerado entre o racionalismo judaico,impregnado pela mentalidade das Luzes, e acultura sensual católica, característica do Barroco.

Mas com toda sua sedução, o conceito deneo-barroco tem algo de problemático. Seusadeptos de modo geral tendem a idealizar o ladoirracionalista do Barroco, sua tendência a apelar 

 para os sentidos e para as emoções, deixando delado a inteligência. Suspeito, por isso que emgrande parte o culto do neo-barroco seja uma dasfrentes em que se trava o combate contra oIluminismo. Ora, convém lembrar que em suaessência o Barroco nada teve de libertador. Comovimos, foi uma espécie de contra-revoluçãocultural, um grande projeto de condicionamentocoletivo destinado a refrear os impulsos que pudessem pôr em cheque o absolutismo real e odogmatismo eclesiástico. Nesse projeto, o Barroco

incorporou elementos da cultura adversa, arenascentista, e da cultura popular. Nesse sentido, podemos falar numa síntese barroca, mas feita sobo primado e no interesse do pólo hegemônico.

Já que falei há pouco em psicanálise, peçolicença para ilustrar a natureza dessa sínteserecorrendo a uma linguagem psicanalítica. Asíntese barroca foi da mesma natureza que aoperada pelo sintoma, formação de compromisso

entre uma instância recalcante e o materialrecalcado. O sintoma é uma síntese, porque participa da natureza das duas coisas, exatamentecomo a tosse de Dora, que simbolizava ao mesmotempo uma fantasia de sexualidade oral e a punição por essa fantasia. Mas é uma síntese patológica, porque é feita sob a ação de forças irracionais, quecriam a doença e a perpetuam. Do mesmo modo, oBarroco pode ser visto como uma formação decompromisso entre a sensualidade e a liberdade daRenascença e impulsos contrários que no caso doBarroco católico vieram do Concílio de Trento,articulador ideológico da Contra-Reforma. É essaformação de compromisso que explica a presençana cultura barroca de elemento antitéticos, aludindoseja à sensualidade e à auto-confiança na razãohumana, típica da Renascença, seja ao ascetismo, àausteridade, à desvalorização da vida e da razão,que foram a marca registrada da reação tridentina.Foi também uma síntese, mas uma síntese na qualo poder dava todas as cartas. Ele só deixava aflorar o material recalcado na medida em que fosse umaliberação controlada e funcional para o sistema deforças dominantes. Foi uma síntese comparável àefetuada pelo sintoma: uma síntese histérica.

É preciso opor a essa síntese histérica o que

eu, recorrendo a uma figura muito barroca – a paronomásia- chamaria de síntese histórica. Nossatarefa também consiste em reconciliar pólosantitéticos. De certo modo, são os mesmos comque precisou defrontar-se o Barroco. De um ladoestá a fé iluminista na autonomia, na libertação dossentidos, no progresso, na ciência, na fraternidadehumana. De outro lado, está a consciência de que ohomem é um ser violento, egoísta, mero joguete dafatalidade, vítima do sofrimento, predestinado paraa morte. Como sabia um grande pensador barroco,

Pascal, o homem é duplo por essência, meioangélico, meio bestial. Mas ao contrário doBarroco, nossa síntese se faz sob a égide da razão,e não da autoridade. A síntese histérica é feita sobo primado de uma instância castradora – osuperego, o Concílio de Trento – que cria a doençaou perpetua a injustiça. A síntese histórica é feitasob o primado de uma instância racional – o ego,uma comunidade de homens livres - que ajuda a

8

Page 9: O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

7/28/2019 O BARROCO HOJE - ensaio Sérgio Paulo Rouanet

http://slidepdf.com/reader/full/o-barroco-hoje-ensaio-sergio-paulo-rouanet 9/9

 promover a felicidade, individual ou coletiva. Elaestá a serviço de um objetivo humanista, e não deuma intenção teocrática. É objeto de umaconstrução permanente, radicalmente democrática, baseada na certeza de que o entendimento mútuo é possível, apesar das taras da natureza humana,vencendo todos os obstáculos, sem desanimar comas regressões inevitáveis.

O Barroco seiscentista buscava influenciar enão persuadir, mobilizar afetos pela retórica e nãoconvencer pela argumentação racional. Sãoexatamente essas as características do Barroco denossos dias. Por isso mesmo, uma crítica neo- barroca, que procure mimetizar aquilo mesmo queela combate, faz pouco sentido. Não se pode lutar contra uma cultura manipuladora utilizando asarmas da manipulação, do mesmo modo que não se pode lutar contra uma cultura baseada no kitsch ena massificação utilizando as armas do kitsch e damassificação. É preciso mudar de terreno. Overdadeiro terreno é o do Iluminismocontemporâneo, que vai construindo gradualmenteo que chamei a síntese histórica, em oposição àsíntese histérica. No fundo, estaríamos repetindo,com isso, uma trajetória já percorrida, porquetambém o Barroco do século 17 foi seguido pelas

Luzes, no século seguinte.Mas nessa mudança de terreno, não podemosser injustos com o que devemos ao Barroco deBernini e do Aleijadinho. Sem o sofrimento neledepositado, sem a voz dos oprimidos que apesar detudo ressoa nele, sem a lembrança dos que se perderam em seu eterno labirinto, o novoIluminismo não teria como enfrentar a tarefa deconstruir uma síntese que faça justiça aos dois pólos de sua dialética, o pólo da esperança e o póloda melancolia.

9