O Beijo de Juliana
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Osame Kinouchi Filho
Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2
bacharel em Fsica pelo Instituto de Fsica e Qumica de So Carlos
- atual IFSC- USP (1987), mestre em Fsica pelo Instituto de Fsica e
Qumica de So Carlos - USP (1992) e doutor em Fsica pelo
Instituto de Fsica da USP (1996). Fez seu ps-doutorado no IFUSP e
IFSC, e livre-docncia pela USP. Atualmente professor associado
da Universidade de So Paulo no Departamento de Fsica e
Matemtica da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro
Preto e possui bolsa de produtividade nvel 2 do CNPq. Tem
experincia na rea de Fsica Estatstica e Sistemas Dinmicos,
atuando principalmente nos seguintes temas: neurocincia
computacional, meios excitveis, redes neurais e criticalidade auto-
organizada. Teve um de seus trabalhos comentados na seo News
and Views da revista inglesa Nature e publicou recentemente um
trabalho na revista Nature Physics mostrando que a faixa dinmica
em redes de elementos excitveis similares a neurnios otimizada
no ponto crtico de uma transio de fase fora do equilbrio.
Coordenador do Laboratrio de Divulgao Cientfica e Cientometria
do DFM-FFCLRP-USP, responsvel pelo Anel de Blogs
Cientficos e pelo blog SEMCINCIA.
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O Beijo de Juliana
Quatro fsicos tericos conversam sobre crianas,
cincias da complexidade, biologia, poltica,
religio e futebol...
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Prefcio Existem diversos motivos para se escrever um livro, razes bastante plausveis e geralmente falsas que so apresentadas ao leitor em
prefcios como este. Eu tambm pretendo fazer esse jogo, descrevendo
toda uma srie de pretextos respeitveis para levar este livro (livro?)
adiante. E no final, confesso ao leitor o verdadeiro motivo (embora todos
os outros igualmente o sejam).
Conversando com uma amiga sobre a convenincia de publicar
estes textos, que so apenas uma coletnea de e-mails trocados entre quatro
amigos, discutimos sobre o sentido em que estes eram pessoais, demasiadamente ntimos ou no. Em determinado sentido, eles no so nada pessoais, pois as referncias biogrficas so mnimas: nomes e
circunstncias pessoais foram devidamente modificados ou eliminados. E,
no entanto, estas cartas continuam sendo extremamente ntimas e pessoais,
pois revelam crenas bsicas sobre assuntos humanos, o tipo de revelao
que acadmicos, em particular cientistas, dificilmente estariam vontade
em expressar.
Entre os objetivos respeitveis que me motivaram a publicar estas
cartas est o fato de que talvez elas mostrem um outro lado do fazer
Cincia, quebrando um certo esteretipo em que o cientista visto como
um ser do outro mundo, e a pesquisa cientfica como algo frio e impessoal.
Nada mais longe da realidade. A viso de pesquisa cientfica que eu desejo
passar ao leitor mais se aproxima de uma arte, que por vezes bastante
passional: a arte de criar e desenvolver novas idias para entender (e, com
o devido cuidado, transformar) o mundo ou, o que antigamente se chamava
Filosofia Natural. Algo bastante diferente da tecnocincia obsessivamente
vendida hoje pela mdia e pelas agncias de fomento como algo essencial para a modernizao do capitalismo brasileiro, o que talvez seja verdadeiro
porm trivial: tecnocincia de verdade feita em laboratrios industriais
por engenheiros e inventores (cujo exemplo paradigmtico seria Graham
Bell que, por sinal, no se considerava um cientista), laboratrios estes
que, por motivos de mercado, inexistem no Brasil.
Assim, o tema do livro no o conhecimento privado protegido por
patentes e copyrights, mas o conhecimento publicamente acessvel
protegido pela tradio cientfica de livre circulao de idias (copyleft).
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Em outros termos, este livro se dedica a discutir a cincia enquanto cultura,
ou cincia-arte, termo usado no mesmo sentido que futebol-arte. Que esta
viso de cincia como arte se expresse atravs das cartas pessoais de quatro
jovens fsicos brasileiros parece ser algo indito em termos de literatura de
divulgao cientfica.
Outro objetivo respeitvel destes escritos mostrar ao leitor a
fragilidade e ao mesmo tempo a possvel relevncia da abordagem
cientfica frente aos problemas humanos. Este no um livro de
argumentos bem pensados sobre reas em que os autores so especialistas.
So expresses pouco refletidas, portanto talvez mais honestas, sobre
assuntos que nos afetam diretamente como seres humanos. Expresses
inacabadas de vises de mundo, interessantes justamente por serem abertas
e inacabadas. No so opinies de especialistas, mas de simples pessoas
(in)comuns que esto vivendo no Brasil do comeo do sculo XXI.
Filosofia de barzinho seria uma descrio adequada (nossas discusses
comearam na lanchonete do Instituto de Fsica da USP), se no fosse uma
expresso pejorativa que talvez esse tipo de conversa, na sua honestidade,
no merece. Constituem uma pequena tentativa de reflexo por sobre o
abismo entre as Cincias Naturais e as Humanidades. Pensamentos muitas
vezes ingnuos, mas que talvez possam despertar no leitor algumas
reflexes novas, talvez ligadas s suas prprias preocupaes. Se isto
acontecer, o livro ter atingido um de seus objetivos.
Finalmente, eu imagino um(a) estudante, indeciso(a) sobre sua
vocao cientfica, lendo este livro a fim de ter uma idia de como a vida
real dos cientistas brasileiros. Eu tenho minhas dvidas de que este livro
retrate a vida real de quem quer que seja, mas acho que aqui se poder ter
uma idia (espero que bem humorada) das alegrias, preocupaes,
motivaes e dilemas da carreira cientfica no Brasil.
O verdadeiro motivo, o alvo inconfesso de todo escritor,
simplesmente evitar, da nica maneira eficiente que conhecemos, o
esquecimento e a morte. A cada dia que passa ns todos mudamos, no
apenas no nosso corpo mas tambm em nossa mente, ou seja, a cada dia
partes de ns desaparecem no esquecimento. triste pensar que certas
reflexes, s vezes geradas com tanto esforo, possam ser apenas bebs
que morrero prematuros. Mas um livro contendo tais idias organizadas
de maneira ordenada e coerente corria o risco de nunca ser escrito. Assim,
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estas conversas constituem, juntamente com nossos filhos, sementes de
memria que entregamos a um tempo futuro.
Freeman,
Ribeiro Preto, 15 de maio de 2003.
Observaes e Agradecimentos: Agradeo a Richard Feynman, Noam
Chomsky e Jean Paul Sartre a permisso de publicar nossa
correspondncia. Os pseudnimos, como fica claro, se referem a nossos
autores favoritos. O formato epistolar deixou o livro mais interessante, nem
que seja pelo fato de que a criana que habita em todos ns possui uma
curiosidade proibida acerca da correspondncia alheia.
Embora em algumas partes do livro predominem mais os meus
textos (parte da correspondncia deles se perdeu) o contedo das conversas
pode ser inferido sem problema algum. Foram corrigidos ou modificados
apenas erros ortogrficos e abreviaes, mas o estilo livre e o humor nem
sempre politicamente correto dos e-mails foi mantido. No foram
introduzidas notas explicativas sobre tpicos cientficos, uma vez que o
objetivo do livro no a divulgao cientfica, mas sim retratar a
linguagem e as preocupaes da sub-cultura cientfica no incio do sculo
XXI. Entretanto, uma bibliografia comentada e um glossrio foram
includos no final do livro.
Agradecimentos a colegas e amigos no foram includos aqui
devido necessidade de preservar o anonimato dos autores (to mais
desejado quanto mais sabe impossvel). Finalmente, o autor-organizador
pede desculpas por pequenas indiscries e referncias pessoais a alguns
colegas. Estas so inevitveis em qualquer texto de natureza
autobiogrfica.
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Ol, Freeman,
Acabo de ler o seu livro (o Paulo ler quando terminar um que est
justamente comeando agora). Gostei, mas acho que isso no quer dizer
muita coisa. Engraado que me lembrei agora de uma cena do filme Dona
Flor e Seus Dois Maridos, em que ela aplaude entusiasticamente seu
marido, farmacutico que acaba de fazer um discurso, dizendo: Ai, ele fala to bonito, no entendi nada, mas foi to lindo!.
Em primeiro lugar, no sei no que voc estava pensando quando
disse que ns temos o perfil que voc tem em mente como pblico alvo
para esse livro. Mas isso tambm no importa muito. Farei o que voc
pediu: te dar a minha impresso sobre ele, sem nenhuma outra
preocupao. Se eu estivesse submetendo um texto meu apreciao de
algum, gostaria muito que essa pessoa falasse honesta e abertamente sobre
o que sentiu com a leitura, como faria a um amigo prximo em relao
obra de um autor distante. E isso que farei a seguir.
Em primeiro lugar, acho que o meu interesse imediato na leitura
(comecei ontem noite e terminei hoje) no tem nada a ver com o interesse
de cada um dos outros leitores do grupo que voc denominou pblico alvo,
por razes bvias: Eu estava lendo algo: em primeira mo; para opinar;
escrito por algum da minha famlia, por quem toro e, conseqentemente,
com uma predisposio totalmente positiva; relacionado a um tema em
relao ao qual sou completamente ignorante, mas que me fascina a Fsica; como estou sempre lendo, valorizo demais as sugestes ou
indicaes de amigos para leitura, etc. Resumindo, motivao altssima.
Bom, mas vamos l. Acho que voc tem razo: todo o texto
permeado mais que isso, construdo a partir do desenvolvimento de idias, conceitos, textos e citaes de autores desconhecidos para o leigo e
isso pode, sim, tornar a leitura desinteressante. No acho que o fato de o
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leitor no chegar ao final do livro seja necessariamente o maior entrave
para o sucesso. A maioria das pessoas com quem converso no conseguiu
chegar ao fim de O mundo de Sofia e nem por isso ele deixou de ser um
best-seller. Talvez a razo para esse sucesso seja o fato de ele ser muito
interessante na primeira parte e ficar chato s a partir da metade, o que no
ocorre com o seu livro, que j comea com alguma... densidade... Puxa,
ser que no consigo achar um outro jeito de dizer o que senti no incio do
livro?... como se eu dissesse assim pra mim mesma bom, por enquanto ele est s filosofando, umas coisas meio soltas, mas j, j engata e a engatou mesmo, s que quando engata, eu sou excluda daquilo, fico como
que assistindo a um filme alemo sem legenda, vou adivinhando aqui e
ali... Em algum momento poderia parar para entender melhor ou consultar
mas consultar o qu? Um dicionrio tcnico de Fsica? Existe isso? Mas isso que eles esto falando ser que sobre Fsica? E mesmo que seja,
e que o tal dicionrio exista, eu no teria saco pra isso porque, claro, sei
que no bastaria, mas decido ir adiante que logo, logo vem uma cena auto-
explicativa e trechos que dispensam legenda e acabo entendendo o
suficiente pra curtir o filme.
Acho que exagerei, no tanto assim, no! Mas que no entendi
patavina de um monte de trechos, isso eu no entendi mesmo! Agora,
quando voc fala a lngua dos mortais, uma delcia. Voc tem uma prosa
informal, um humor inteligente, muita perspiccia e saltos bastante
criativos, quase naturais, eu diria, com retorno ao tema anterior no
momento exato.
Numa frase: acho que ser um livro interessante e gostoso de ler, e
ser lido at o fim por aqueles que o tiverem nas mos, mas o assunto no
possui o appeal necessrio para fazer sucesso, para despertar a curiosidade
do leitor (mdio) a menos que a editora acredite nele e invista numa
promoo adequada. A, claro, moleza. Outro modo da obra ganhar o
interesse do pblico quando bem aceita no meio acadmico e a,
progressiva e vagarosamente, vai se infiltrando no pblico em geral, o que
leva um tempo danado.
Bom, mas eu fugi do assunto. Um fenmeno curioso que ocorreu,
em alguns momentos durante a leitura, foi uma sensao de anacronismo!
As discusses so to atuais, algumas sobre temas do cotidiano, que em
alguns momentos eu sentia que voc deveria estar falando tambm do
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atentado ao World Trade Center, ou esclarecendo qual a sua posio acerca
da deciso americana de investir contra o Taleban, etc., como se fosse
natural que ali estivessem todos as atualidades... Esquisito, n?
Acho tambm que a sua famlia me refiro velha guarda vai ficar danada da vida com a exposio de algumas das tuas percepes a
respeito de vrias caractersticas da psicodinmica familiar que voc
revela.
Tambm no gostaria de estar na pele da Nice. Voc a expe como
algum cuja auto-estima est completamente comprometida ao mencionar
duas de suas reclamaes (algo como voc s fica comigo pra eu lavar suas cuecas e, noutro momento, pra cozinhar). engraado. Creio que toda
pessoa que fica em casa fazendo exclusivamente trabalhos domsticos por
algum tempo, independente do seu sexo, faz esse tipo de reclamao em
algum momento, at porque esse trabalho muito desestimulante. O
problema, aqui, que as falas dela ficam muito marcadas, porque no h
outras, ligadas a outros temas e humores, para fornecer elementos que
possibilitem a construo de um quadro mais positivo (ou melhor, mais
verdadeiro, mais prximo do real) dela. Ser que estou conseguindo ser
clara? assim: como voc no faz muitas referncias a ela e a outras falas,
ela surge como uma megera mal-humorada e rabugenta. Injusto, creio, para
algum to cheia de vida (e energia positiva) quanto ela.
As idias so colocadas e discutidas num tom de racionalidade
assptica, sem o colorido emocional, sem a afetividade e paixo gostosa
que aquecem a alma dos animais superiores domesticados. Voc se coloca
como pretendente a intelectual, mas como leitora mediana de um pouco de
tudo, inclusive da chamada subliteratura, eu diria que voc um intelectual
e que mais a intelectuais que esse tipo de leitura agradaria, embora
existam trechos deliciosos em que se pode quase tocar na sua pele e sentir
sua emoo (como quando voc luta ferozmente contra a suposta acusao
de ser um filsofo ingnuo, por exemplo).
Que mais? H tambm vrios errinhos de digitao, alguns de
portugus e de formatao ao longo do texto que, caso voc queira, eu
posso anotar e te enviar por correio, se voc achar que d tempo de arrumar
antes de enviar pra editora. Se este for o caso, me mande seu endereo
completo que eu te mando no sbado, por correio.
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Bom, acho que j falei demais e nem sei se no seria melhor ter
esperado um pouco mais pra absorver e digerir melhor tudo isso e s
depois opinar. Na verdade, acabei de ler, sentei aqui e vomitei o que sentia.
Acho que melhor assim. A sensao que a leitura me causou est mais
fresquinha.
Desejo que eu esteja enganada com a maioria das minhas opinies
acerca da receptividade do pblico, que voc d bastante sorte com o cara
da editora que pegar o seu livro pra ler (agora me lembrei de outra cena,
desta vez do filme O homem que amava as mulheres, do Truffaut, em que
ele envia o seu primeiro livro para vrias editoras e todas o recusam
achando-o muito ruim, exceto uma nica, cuja editora uma mulher, que
se sensibiliza com o texto e o publica imediatamente) e que tudo d certo.
Beijos pra Nice, pra voc e pras crianas.
Maria Luiza.
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Maria Luiza,
Nossa! No esperava uma avaliao to longa e detalhada!!!
Mas voc tem razo: no mximo dos mximos este livro poderia
vir a ser um daqueles livros que as pessoas dizem que leram mas no
leram, como o livro Zen e a arte de manuteno de motocicletas, do Robert
Pirsig, livro cult da dcada de 80 que chatssimo!
Acho que vou cortar algumas coisas do texto para deix-lo menos
cansativo (por exemplo, o trecho em ingls sobre o fato de que genes no
determinam comportamentos individuais).
Agora, acho que voc no leu o subttulo: os quatros fsicos
tericos NO conversam sobre fsica, mas sim sobre a vida, ou melhor,
sobre o problema bsico do texto: Existe amor, amizade e cooperao sem interesses, ou sempre existe uma raiz de egosmo em tudo isso? Para discutir esta questo ns usamos analogias e metforas fsicas, matemticas
e biolgicas por que elas so mais claras para ns do que outros tipos de
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linguagem. No um hermetismo proposital, mais um vocabulrio
conceitual que nos ajuda a pensar.
As correes de ortografia eu estou fazendo, no precisa se
preocupar... difcil fazer isso porque os e-mails originais estavam cheios
de abreviaes, erros, coloquialismos etc. Agora, acho que o livro meio
frio mesmo, ou melhor, transmite uma viso de mundo
(estreo)tipicamente masculina (no poderia ser de outro modo, poderia?).
Imagino o que o Paulo ir achar, diga para ele me escrever, ok?
Uma soluo para o excesso de citaes seria anexar no fim do
livro uma lista dos autores comentados junto com uma pequena
bibliografia deles. Assim, as pessoas poderiam ter a sugesto de novas
leituras, se quisessem se aprofundar em algum tpico discutido. Mas note,
o objetivo do livro no didtico, mas apenas registrar o estilo de
pensamento e linguagem da sub-cultura cientfica no comeo do sculo
XXI. Voc j imaginou se editassem as cartas de Theo e Vincent Van
Gogh atolando o texto com explicaes sobre artes plsticas, pintura no
sculo XIX, as diversas escolas etc? Por incrvel que possa parecer, o que
eu quero mesmo mostrar mais os tons emocionais, as perspectivas
filosficas, as ingenuidades e as limitaes dos quadros mentais dos
fsicos. No estou querendo ser didtico nem ensinar fsica ou cincias da
complexidade para ningum, apenas dar um sabor (flavour) dessa sub-
cultura universitria.
Algumas pessoas me disseram que faltou um quinto personagem nestes e-mails, algum que defendesse uma viso espiritualista, como
contraponto... Hum... Bom, existem dezenas de livros de fsicos espiritualistas por a, as pessoas podem compr-los vontade, eles vendem muito bem (o problema do espiritualismo que ele muito
materialista!). Vamos dizer que este livro, fugindo da hegemonia
espiritualista promovida pela indstria cultural dominante, tenta fornecer
uma viso alternativa da realidade, tudo bem? Mas as suas observaes foram muito importantes e vou lev-las
em conta na verso final. Vou tentar dar outro tom para a Nice, no tinha
percebido tudo aquilo que voc colocou. Meu objetivo em manter aquelas
frases era mais transmitir a sensao de solido (eu estava sozinho h mais
de ms, ela estava de frias em Perube com as crianas, e eu sentindo uma
falta louca dela e tendo apenas o pessoal da rede de e-mails pra conversar).
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O problema que os e-mails so reais, no so inventados, e eu no queria
modific-los muito para poder manter o seu carter autobiogrfico: gostaria
que meus filhos lessem o livro quando fossem adultos e viessem a
conhecer seu pai como ele era com 36 anos e no com 50, como infelizmente ser o caso...
Beijo, obrigado pela verdadeira resenha!
Freeman
ooOoo
Maria Luiza, li e reli seu e-mail, mostrei para a Nice etc. Da me
surgiu a seguinte idia, que no consigo tirar da cabea: sua carta daria
uma tima introduo ao livro, pois ela resume para o leitor o contedo,
avisa-o para no desistir da leitura, mostra os pontos fracos do livro de
maneira que o leitor pode se identificar com voc etc. e tal. Eu na verdade
achei sua carta uma tima introduo ou apresentao.
O que acha? Posso inclu-la logo aps o prefcio?
Freeman.
PS: Estou mandando para a Companhia das Letras, Rocco e Vozes,
mas acho que vai sair mesmo por alguma editora pequena. Eu pensei em
pedir um comentrio de quarta capa para o Rubem Alves ou Frei Betto, no
sei se vou conseguir...
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Ol, Freeman,
No, eu no conhecia o site. Obrigada pela informao e pelo
alerta. Sabe que me deu uma raiva danada ao saber por voc que aquela
lista contra a Guerra ao Iraque era falsa?! Eu detesto correntes e listas e
sistematicamente as ignoro, mas desta vez escorreguei. E nem me toquei
que poderia ser falsa. Pacincia, n?
Bom, no te respondi logo porque pretendia passar o olho pelo seu
texto, pelo menos nos trechos acrescentados, mas acho que no vou
conseguir, pelo menos no nos prximos dias. Estou lotada de coisas pr
ler e fazer, trabalhando bastante no consultrio e 'pilotando' uma reforma -
estou mudando meu consultrio pr av. Paulista - etc.
Apenas reli aquele meu e-mail que voc quis colocar na
introduo, j que voc havia sugerido usar meu nome e, nessa leitura,
achei alguns trechos to bobinhos que sinceramente prefiro que voc
mantenha o pseudnimo. Caso voc queira usar meu nome mesmo, prefiro
melhorar o texto porque a verdade que quando escrevi eu estava
completamente vontade, o meu senso crtico roncava e babava (como
agora). Pr publicao penso que precisa de um pouquinho mais de
elaborao e alguns cortes.
Espero que esteja tudo bem com vocs e que possamos nos
encontrar por a. Beijos na Nice e nas crianas.
Carinho,
Maria Luiza.
Dezembro de 1998
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13/Dezembro/1998
Noam,
Vou te enviar o paper dos japoneses que querem fazer uma seleo
virtual para competir com o Brasil ainda esta semana (que est super
congestionada, fao a mudana para Ribeiro na tera, e viajo quinta para
So Paulo para assistir de camarote o desempenho do Richard...)
Bom, aps a poltica e o futebol, talvez pudssemos discutir um
pouco de Cincia e Universidade... Uma coisa que me perturba que
compreensvel que nossas discusses sobre Estado e Mercado sejam
amadorsticas, afinal somos totalmente leigos nisso. Mas com relao
Cincia e Universidade, talvez devssemos ter posturas mais refletidas,
mais aprofundadas e profissionais (no direi mais consistentes porque esta
uma palavra que o Richard no gosta...).
Por falar em consistncia, aqui vai um Freemanismo:
Ser que a frase de Bohr Verdade profunda aquela cujo contrrio tambm uma verdade profunda uma verdade profunda?
Voltando... Eu gostaria de tentar descrever certos dilemas que
percebo na nossa escolha pela carreira acadmica (pelo menos por
enquanto, hein Jean? Voc quer mesmo trabalhar num banco como analista
financeiro?). Mais especificamente, sobre nossa opo de fsicos tericos.
Bom, eu acho que todos ns gostaramos de dar um significado um pouco
mais amplo no nosso papel profissional.
Tudo bem, tambm possvel encarar nossa carreira como apenas
um meio de subsistncia (no sentido de, por exemplo, vender automveis
ou ser funcionrio pblico... Ops, esqueci! Ns somos ou queremos ser
funcionrios pblicos!). Neste caso, a discusso termina por aqui. Mas eu
sinto que isso no verdade no nosso caso (nosso se referindo rede
R.F.N.J por ordem de idade, Richard, Freeman, Noam e Jean). De alguma forma, gostaramos que nosso trabalho tivesse algum significado
maior...
No estou me referindo a um desejo de ganhar o Prmio Nobel. Se
fosse isso, adotaramos estratgias mais condizentes, tipo ficar em cima de
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um problema realmente quente (por exemplo, a natureza do cdigo neural),
ir para um centro de excelncia internacional, planejar melhor nossa
carreira etc. No, o Nobel para caras como Feynman...
Uma opo para o tal significado maior (ou seja, maior que a
produo de papers) seria a de desenvolver um trabalho de professor (ou
melhor, educador)... Mas parece que no temos o talento de Feynman para
isso tambm... Bom, tambm no parece que sejamos bons em poltica
cientfica, quero dizer, contribuir para o fortalecimento da comunidade
cientfica no Brasil ou coisas desse tipo.
Tambm a aplicao do nosso trabalho em tecnologia parece estar
meio fora de alcance: ns quatro no temos experincia alguma em
aplicaes de mundo real em redes neurais. Posso ouvir o Richard dizendo
que isso trivial, mas, desculpem, usando um pouco da minha pequena
experincia de engenheiro civil e fsico experimental, posso afirmar que
fazer coisas realmente funcionarem no mundo real no nada trivial.
Finalmente, nossa vocao para a burocracia universitria tambm
(felizmente) parece ser zero.
Recapitulando, desculpem a franqueza, mas acho que as quatro
letras da RFNJ no so Feynman, no vo ser grandes professores, nem
grandes lderes cientficos, no vo desenvolver patentes milionrias, nem
ser burocratas eficientes. Assim, volto para a pergunta inicial: pra que
serve nosso trabalho? Apenas para nos permitir fazer uma compra de
supermercado, comer uma pizza no final de semana, mandar as crianas
para a escolinha...? Ah sim, esqueci, podemos pelo menos dizer que nos
divertimos enquanto trabalhamos, um privilgio vedado maior parte da
populao...
Bom, acho que podemos nos resignar a isso, mas no acho que
precisamos nos resignar a isso. A ltima opo, pelo menos a ltima que posso enxergar, ser um intelectual acadmico, ou seja, algum que pensa a cultura a partir de uma certa perspectiva (no nosso caso, a fsica
terica), que tenta escrever artigos no Caderno Mais e/ou livros de
divulgao, na pretenso de se tornar um formador de opinio. Acredito que essa funo de intelectual possa preencher aquela necessidade de
significado maior do trabalho, que eu descrevi acima. Bom, mas isso s
vale para quem sente essa necessidade, e como no tenho certeza de que
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vocs compartilham dessa aspirao (acho que o Jean diria messianismo religioso) vou escrever em primeira pessoa a partir de agora...
Bom, talvez agora o Richard entenda porque fico bastante chateado
quando ele faz ironias sobre essa ambio de ser intelectual. que esta a nica porta que eu ainda enxergo para um trabalho significativo, num
sentido mais amplo do que um paper significativo numa rea que
provavelmente estar totalmente esquecida por volta de 2015. Bom, como
vocs podem ver, sempre estou dialogando silenciosamente com o Richard,
e se peguei essa mania de question-lo ou provoc-lo, muitas vezes apenas
por picuinha, isso simplesmente reflete a influncia que as posturas dele
tiveram na minha formao.
por isso tambm que minhas tentativas de escrever sobre temas
culturais, por mais mal costuradas e precrias que sejam (tipo tentar
mostrar que a ideologia do Santa F Institute tributria ao materialismo
dialtico de Engels e outras coisas desse tipo), no so atividades
inconseqentes. Eu fico imaginando que o Richard deve achar tudo uma
grande perda de tempo, e que eu bem que poderia estar me dedicando a
coisas mais srias, a trabalhos de fsica estatstica mais profundos, pois
ainda no tenho carreira estvel. E que filosofar poderia ser deixado para depois, para a aposentadoria.
Mas talvez tenha ficado claro porque no posso encarar assim,
porque me resignar a ser um fsico apenas tcnico no me satisfaz, e por
que no posso deixar para a aposentadoria esse tipo de coisa. Como mais
dois argumentos para esta opo de tentar ser um intelectual, posso colocar:
1. Estou ficando velho... Tenho 36 anos! Minha criatividade est
diminuindo num ritmo assustador... Minha percepo da dinmica cultural-
social est se tornando rapidamente ultrapassada. Na aposentadoria, nada
terei de novo a dizer para meus leitores.
2. Outros fsicos jovens esto fazendo esta opo de formador de opinio.
3. Se eu renunciar agora ao papel de intelectual, estarei jogando fora toda a imensa parcela da minha vida que desperdicei lendo (e
refletindo) sobre epistemologia, filosofia, psicologia, histria, poltica e...
fico cientfica!
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4. Last but not least: talvez d para suplementar o oramento se eu
publicar alguns livros de divulgao. Com sorte, dou entrada num
carrinho...
Ok, no foram dois, foram quatro motivos...
Bom, desculpem se este mail est meio melanclico... Esse tom
surgiu enquanto escrevia. Na verdade, estou extremamente otimista com o
ano que se inicia, sinto que, graas FAPESP, tenho trs anos para mostrar
o potencial cientfico que tenho (estando bem consciente daquilo que no
tenho) na formao dos meus futuros alunos de mestrado...
Ah, mudando de assunto (ou no mudando), descobri um estilo
literrio que parece que tenho certa facilidade: depois de ler os aforismos
de Oscar Wilde e uma coletnea de aforismos cientficos, estou burilando
os meus aforismos (ou Freemanismos...)
Exemplos:
Para perceber quo profundamente enraizados so nossos preconceitos anticientficos, basta comparar as duas
frases:
A Cincia permite ver a beleza superficial do mundo, a Poesia sua beleza profunda. A Poesia permite ver a beleza superficial do mundo, a Cincia sua beleza profunda. A primeira frase soa bem, nos agrada, politicamente
correta. A segunda, apenas provavelmente correta.
A fuso entre cincia e poesia se d quando algum capaz de ver um mundo em uma pilha de areia, e entender porque uma hora pode durar uma eternidade.
As trs maneiras mais rpidas de se ganhar dinheiro so: sexo, drogas e rock and roll.
Argh!!! Que caretice!!!
At a prxima!
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Freeman
ooOoo
14/Dezembro/1999.
Salve, senhores! Que maneira de comear a semana. Pensei em
responder, mas melhor deixar a resposta pairando no ar. Afinal, se
Freeman especialista em colocar frases nas nossas bocas, ele mesmo
poder talhar as respostas a seu mail.
Espero que Freeman e Jean possam se encontrar na quinta nestas
bandas, podemos pensar em fazer alguma coisa para jantar em casa. Que
tal?
Um abrao, Richard.
PS: Como diria Neruda:
Nosotros , los de entonces, ya no somos los mismos.
Richard.
ooOoo
22/Dezembro/1998.
Ol a todos,
> Imagino que vocs estejam de frias. Bom, para todos, MERRY
CHRISTMAS !!!! E UM ANO CHEIO DE PAPERS PARA VOCES...
Obrigado, Freeman, Feliz Natal pra vocs todos tambm!
Aproveitem o calor por mim e celebrem o Ano Novo na praia, se possvel.
> (COMO FELICIDADE, SADE E HARMONIA SAO CONDIES
NECESSRIAS PARA ISSO, ELAS ESTAO IMPLICITAMENTE
INCLUIDAS...)
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No sei no se so condies necessrias, hein?... Pra muita gente
exatamente o contrrio.
> PS: Ningum gostou da minha frase sobre a frase do Bohr?
Faz tempo que eu estou pra comentar o teu e-mail, mas no tive
tempo. A sua meta-frase eu achei legal, mas o mais importante foi o resto
da mensagem.
> Vou te enviar o paper dos japoneses que querem fazer uma Seleo
virtual para competir com o Brasil, ainda esta semana (que est super
congestionada, fao a mudana para RP na tera, e viajo quinta para so
Paulo para assistir de camarote o desempenho do Richard...).
Em primeiro lugar, assistir o qu de camarote? O Richard vai
prestar algum concurso? Eu no estou sabendo de nada... Em segundo
lugar, que histria essa de seleo virtual? De futebol? Eles no
precisam, o Brasil j perdeu do Japo uma vez (ou foi empate?), com a
seleo real mesmo.
> Bom, aps a poltica e o futebol, talvez pudssemos discutir um pouco de
Cincia e Universidade... Uma coisa que me perturba que
compreensvel que nossas discusses sobre Estado e Mercado sejam
amadorsticas, afinal somos totalmente leigos nisso. Mas com relao
Cincia e Universidade, talvez devssemos ter posturas mais refletidas,
mais aprofundadas e profissionais (no direi mais consistentes porque esta
uma palavra que o Richard no gosta...).
No sei porque te perturba, no me parece que nossas posturas
sejam pouco refletidas. Quem mela sempre a discusso o Richard, que
fica fazendo piadinha :-). Falando srio agora, Freeman, quando a gente
dividia sala a gente falava mais sobre essas questes do que sobre Cincia
em si. E acho que a gente conseguiu nuclear algum consenso com isso, ao
contrrio de muitos dos nossos colegas. Mas sigamos em frente:
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- 19 -
> Uma opo para o tal significado maior (ou seja, maior que a produo
de papers) seria a de desenvolver um trabalho de professor (ou melhor,
educador)... Mas parece que no temos o talento de Feynman para isso
tambm...
Minha primeira discordncia. Eu acho que o trabalho que o
Richard e voc desenvolveram (no sei se ainda desenvolvem), por
exemplo, com aquela turma da Biologia, muito importante e tem um
mrito enorme. preciso que lembremos que o Feynman era um excelente
professor, mas no curso das Lectures passaram trs ou quatro, entre
sessenta e tantos. Era muito puxado, aparentemente. Mais importante
ainda, na minha opinio, o fato de que o prprio Feynman reconheceu
que uma das pessoas mais importantes na vida dele foi o seu professor de
Fsica na escola (secundria, acredito). Um cara que no ganhou nenhum
Nobel e, que eu saiba, um ilustre desconhecido. Mas voc no acha que
esse cara conseguiu atingir esse significado maior pra carreira de professor que ele escolheu? Eu me sentiria realizado.
> Bom, tambm no parece que sejamos bons em poltica cientfica, quero
dizer, contribuir para o fortalecimento da comunidade cientifica no Brasil
ou coisas desse tipo.
Acho que isso leva tempo. As pessoas se envolvem em poltica
cientfica quando j tm alguma experincia. No caso, acho que s o
Richard, ou voc, teriam alguma coisa a dizer a respeito. Eu e o Jean ainda
estamos novinhos :-)
> Tambm a aplicao do nosso trabalho em tecnologia parece estar meio
fora de alcance: Ns quatro no temos experincia alguma em aplicaes
de mundo real em redes neurais.
Bem, isso no precisa ficar assim, necessariamente.
> Finalmente, nossa vocao para burocracia universitria tambm
(felizmente) parece ser zero. Recapitulando, desculpem a franqueza, mas
acho que as quatro letras do RFNJ no so Feynman, no vo ser grandes
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professores, nem grandes lderes cientficos, no vo fazer patentes
milionrias, nem ser burocratas eficientes. Assim, volto para a pergunta
inicial: pra que serve nosso trabalho? Apenas para nos permitir fazer uma
compra de supermercado, comer uma pizza no final de semana, mandar as
crianas para a escolinha...? Ah sim, esqueci, podemos pelo menos dizer
que nos divertimos enquanto trabalhamos, um privilgio vedado maior
parte da populao...
Esse seu pargrafo uma coisa muito sria, Freeman. Eu acho que
fazermos a pesquisa que ns fazemos tem mrito intrnseco. No que todo
conhecimento tenha que ser obtido por causa do conhecimento em si. Eu
admiro e, s vezes, invejo quem faz cincia aplicada. Mas conhecimento
terico com valor intrnseco per se acho que no mal. E o Teorema de
Fermat, a gente joga fora? No sei se sua questo filosfica/geral ou
psicolgica/particular...
No vou repetir tudo o que voc escreveu sobre a quase proposta
de ser um intelectual acadmico. Mas acho que tudo o que voc est dizendo, pra resumir (corrija-me se eu estiver errado), que nossa
experincia de fsicos tericos pode jogar alguma luz sobre fenmenos
outros, como a cultura etc. E que a gente deveria dizer algo sobre o
assunto. Eu no vejo nada de errado com isso, se que minha opinio tem
qualquer importncia. S no sei se isso mais ou melhor do que ser um
fsico terico medocre, como eu, por exemplo (no sentido estrito do
termo). Quanto a escrever no Caderno Menos da Bolha pra comprar um
carro, por mim tudo bem, desde que voc no escreva bobagem. Lembra do
primeiro texto sobre o Engels que voc escreveu? Voc desceu a lenha no
coitado, e depois teve que ressuscit-lo...
Sem repetir os Freemanismos, voc j leu Saramago? Pelo menos
agora que, depois do prmio Nobel, est na moda... :-)
O Memorial do Convento, pra comear, talvez. Bom, gentes, vou pra Paris amanh, ento provvel que s nos
falemos no ano que vem. Tudo de bom pra vocs, boas festas, cuidado com
a cerveja.
Abraos,
Noam
ooOoo
-
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23/Dezembro/1998.
Caros Colegas:
Acho que o Freeman estava um pouco pessimista, chego a essa
concluso levando em conta o estado basal do Freeman. Concordo,
discordo, volto a concordar com o que foi discutido, no sei bem se nessa
ordem. Que diferena faz? s vezes ao ler o que vocs escrevem sobre o
Richard (no me reconheo) acho que escrevem sobre uma caricatura que no expressa muito bem o que eu penso. Talvez seja o problema das
piadinhas. Se retiradas do contexto no querem dizer nada alm da
piadinha. E talvez nem isso.
Sobre aplicaes: no acho que sejam triviais, no acho que no
sejam importantes. Se falei mal de algum que faz aplicaes, com grande
probabilidade era daqueles que usam o simulador X para backpropagation
e esperam que faa misrias. Aqueles que apresentam a teoria como uma linha que representa o algoritmo de Hebb. O resto umas simulaezinhas
baratas. Voc pode encontrar nos congresso mais de 70% de gente nessa
linha. Todos eles inventaram o novo paradigma de aprendizagem e, gozado, podia ser implementado num simulador comercial...
Estranho que se diga que no aprecio as aplicaes agora que a
maior parte das minhas atividades est indo nessa rea. Acho que posso
contribuir, depois de ter estudado um pouco de teoria, para algumas
aplicaes.
Sobre o professor de Feynman: vou alm do Noam. O professor de
secundria no pode querer justificar sua existncia ao apresentar um
Feynman como resultado dos seus esforos annimos. O que pode
justificar o professor a idia de classe ou categoria, aliado a idias de
computao distribuda. Exige-se da sociedade um grande nmero de
professores porque alguns deles podero justificar a existncia da
categoria. Quando um professor participa da formao de um Feynman
toda a classe se beneficia e justificada.
Sobre Natal e Ano Novo: eu no desejo nada alm do que desejo
no resto do ano. Esta temporada de festas de uma hipocrisia globalizada
que me irrita. a temporada de ser bonzinho. Implicaria que no resto do
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ano no devemos s-lo? Quando comea a temporada de caa? Dia 6 de
janeiro? Eu sempre desejo a vocs trs e respectivas famlias grande
felicidade independentemente do dia do ano. O objetivo da vida no
publicar papers, fazer grandes descobertas, contribuir. simplesmente ser
feliz. Se os itens acima mencionados ajudam a chegar a essa felicidade
ento que venham juntos. Lembrem-se que no era na hora que o artigo
saa publicado que vocs ficavam felizes, mas na hora de entender algo, na
hora da idia. Se vocs no puderem ser felizes, ento desejo,
ardentemente, um ano cheio de idias.
Um abrao,
Richard.
ooOoo
28/Dezembro/1998.
Ol! Recebi um texto do Mrio Bunge mandado pelo Freeman
(Annals da NY Academy of Science, mas no tenho a referncia completa)
tem uma crtica muito interessante concerning vrios tipos de -ismos do
tipo de (des)construtivismo e outros. O motivo pelo qual o Freeman
mandou o texto que inclui tambm o Bayesianismo. Parece que faz
sentido, diria ainda que muito boa. Especialmente porque diz exatamente
o que eu teria dito antes de estudar o que Estatstica Bayesiana. Claro que
de maneira muito mais eloqente e erudita. Ou seja, so perguntas
relevantes que podem ser respondidas. Isso no evita nem defende das
crticas que possam ser feitas a pessoas que usam tcnicas Bayesianas fora
de contexto ou sem um rigor necessrio. Ainda mais, bate de raspo no
problema central dos mtodos inspirados no teorema de Bayes, que ao
meu ver a determinao da distribuio a priori. Isso no passa, como
sugerido, pela modelagem da ignorncia. Muito pelo contrrio, diria o
proverbial poltico mineiro.
Acho interessante esse tipo de defesa da cincia contra
cientificismos, pseudocincias e outras coisas academicamente perigosas.
Os brbaros esto batendo s portas da muralha. Necessitamos gansos.
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perigoso, no entanto, colocar no mesmo saco uma teoria simplesmente
porque usa a palavra subjetivo. Abraos,
Richard.
28/Dezembro/1998
Caros amigos,
Respondo algumas das colocaes do Noam e Richard... Hei Jean,
espero que voc volte para a nossa pequena lanchonete virtual logo que
puder...!
Bom, talvez para fechar por enquanto a discusso sobre Mercado e
Estado, uma sugesto: O livro Tudo Venda, de Robert Kuttner, Companhia das Letras, talvez nos desse uma viso um pouco mais
elaborada sobre o tema... Tema que vai voltar, tenho certeza, durante a
privatizao da Universidade que dever ocorrer nos prximos anos.
>Esse seu pargrafo uma coisa muito sria, Freeman. Eu acho que
fazermos a pesquisa que ns fazemos tem mrito intrnseco. No que todo
conhecimento tenha que ser obtido por causa do conhecimento em si. Eu
admiro e, s vezes, invejo quem faz Cincia aplicada. Mas conhecimento
terico com valor intrnseco per se acho que no mal. E o Teorema de
Fermat, a gente joga fora? No sei se sua questo filosfica/geral ou
psicolgica/particular.
Talvez o que eu esteja tentando enfatizar que os resultados de
Fsica, enquanto no entram num circuito cultural mais amplo, apenas
fazem o papel de Ambrsia intelectual para monges em torres de marfim.
Acho que essa era a reclamao original do Jean. No sei se esse tipo de
mrito intrnseco vai merecer o financiamento da sociedade (e muito menos dos mercados), sem que a mesma possa usufruir pelo menos algo da
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aventura intelectual envolvida. A propsito, sem o documentrio da BBC e
o livro do Singh sobre a histria do Teorema, talvez voc no estivesse
usando esse exemplo...
Bom, a soluo proposta pelo Jean era o abandono dessas linhas de
pesquisa tericas, sem mrito de mercado, pelo menos no terceiro mundo.
A minha soluo mostrar que tais linhas (por exemplo, aprendizagem em
redes neurais, modelos de evoluo darwiniana da cooperao, etc.) tem
algo importante a dizer para a cultura geral (algo que Denett tenta fazer na
Idia Perigosa de Darwin), algo que as pessoas sentem necessidade, sobre
as grandes questes da vida (problema mente-corpo, o lugar da
Humanidade na histria da Biosfera, etc...). E como tenho mais amigos que
vocs nas chamadas classes subalternas, sei que as pessoas no esto apenas atrs de po e circo. Se assim fosse, Paulo Coelho no vendia tanto.
> No vou repetir tudo o que voc escreveu sobre a quase proposta de ser
um intelectual acadmico. Mas acho que tudo o que voc est dizendo, pra resumir (corrija-me se eu estiver errado), que nossa experincia de
fsicos tericos pode jogar alguma luz sobre fenmenos outros, como a
cultura etc. E que a gente deveria dizer algo sobre o assunto.
Vou te corrigir: no que a Fsica terica tenha algo a dizer sobre
a dinmica cultural (ela at pode ter). Mas simplesmente que ainda
acredito que a Cincia faz parte da Cultura, que um cientista culto tambm
um agente cultural, um formador de opinio, e que Filosofia e Fsica no
so assuntos to distantes quanto, por exemplo, Filosofia e Agronomia, ou
Odontologia...
> Quanto a escrever no Caderno Menos da Bolha pra comprar um carro,
por mim tudo bem, desde que voc no escreva bobagem. Lembra do
primeiro texto sobre o Engels que voc escreveu? Voc desceu a lenha no
coitado, e depois teve que ressuscit-lo...
Dou o brao a torcer... Mas acho que estou melhorando com o
tempo... A propsito, na ltima Revista Brasileira de Ensino de Fsica saiu
o artigo Dialtica e as Leis da Fsica (ou ser A Fsica e as Leis da Dialtica) dum cara de Guaratinguet... Acho que vou te enviar, Noam,
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junto com o artigo dos japoneses (que ainda no mandei!). Bom, meu nico
comentrio que j posso publicar algo sobre isso, pois:
a) J no vou ser o primeiro, de modo que ningum vai achar que
ligar Cincias da Complexidade com Dialtica um Freemanismo.
b) O artigo do cara um verdadeiro lixo... E eu, que estava com
escrpulos de publicar sobre isso na RBEF...!
> Sem repetir os Freemanismos, voc j leu Saramago? Pelo menos
agora, que est na moda... :-) O Memorial do Convento, pra comear, talvez.
Bom, eu li O Evangelho Segundo Jesus Cristo... E gostei!
Um Freemanismo: Ateu militante aquele cara que sente um prazer especial em contar para crianas pequenas que Papai Noel no
existe. Nesse sentido, Saramago NO um ateu militante... Mesmo com
todos os comentrios do Richard sobre o Natal, tambm acredito que ele
no o seja...
> s vezes, ao ler o que vocs escrevem sobre o Richard (no me reconheo), acho que escrevem sobre uma caricatura que no expressa
muito bem o que eu penso.
Richard, fica frio... Eu j notei que, no sei porque, ficamos
cutucando uns aos outros nesses mails, com uma certa agressividade
tipicamente masculina... Para melhorar o ambiente, talvez valesse a pena
colocar a Silvia ou a Daniela na NET-RFNJ. Como eu acho que isso no
vai ocorrer (afinal, este espao o nosso clube do Bolinha...), acho que
vamos ter que conviver com isso...
> Sobre o professor de Feynman: vou alm do Noam. O professor de
secundria no pode querer justificar sua existncia ao apresentar um
Feynman como resultado dos seus esforos annimos. O que pode
justificar o professor a idia de classe ou categoria, aliado a idias de
computao distribuda. Exige-se da sociedade um grande numero de
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professores porque alguns deles podero justificar a existncia da
categoria. Quando um professor participa da formao de um Feynman
toda a classe se beneficia e justificada.
Quem diria...!!! O argumento talvez esteja correto, mas eu no
esperava ouvir isso do Cavaleiro Solitrio que defendia que o perceptron
simples deveria ser to bom quanto o comit Bayesiano... Tudo bem
Richard, o professor secundrio talvez pudesse justificar seu trabalho para
o mundo dessa forma. Mas poderia justificar seu trabalho para si mesmo,
com o mesmo argumento? O mesmo vale para os professores do terceiro
grau, como ns...
Abraos!
Continuo mais tarde, vou almoar!
Freeman
ooOoo
28/Dezembro/1998.
Sobre a justificativa do meu trabalho. Acho que a justificativa
pblica aquela que dei para o professor de secundria. E ainda mais no
nosso caso. Acho que o professor de secundria se justifica de forma
imediata de muitas maneiras. Somos parte de uma classe de indivduos que
contm alguns cavaleiros solitrios fantsticos, que temos orgulho de
coloc-los como colegas. So aqueles que justificam o esforo da
sociedade em manter-nos vivos. Mas ns tambm podemos nos justificar
de forma pblica pelos nossos alunos: qualquer contribuio brilhante que
vocs venham a trazer no futuro me justificar como ser humano
produtivo. Queiram vocs ou no. Mas e a justificativa no aparente,
aquela com a qual convivemos no meio da madrugada? Eu espero um dia
satisfaz-la e tenho at o fim da vida (pelo menos da vida intelectualmente
putatively productive) para isso. Essa a motivao e no a idia de
participar de uma classe, grupo, pea da engrenagem.
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De resto, devemos viver honestamente, viver de maneira simples,
podendo de vez em quando, mesmo que no todo dia, olhar-se no espelho o
tempo suficiente para fazer a barba.
Talvez a deixe crescer...
Richard.
Janeiro de 1999
04/Janeiro/1999.
Caros amigos,
Ainda de frias, todos?
Vou comentar os comentrios do Richard, e depois fazer uma
proposta.
> Ol! Recebi um texto do Mrio Bunge mandado pelo Freeman (Annals
da NY Academy of Science, mas no tenho a referncia completa) tem uma
crtica muito interessante concerning vrios tipos de -ismos do tipo de
(des)construtivismo e outros. O motivo pelo qual o Freeman mandou o
texto que inclui tambm o Bayesianismo. Parece que faz sentido, diria
ainda que muito boa. Especialmente porque diz exatamente o que eu
teria dito antes de estudar o que Estatstica Bayesiana.
Exatamente, Richard. O objetivo de te mandar aquilo foi lembrar
como as coisas no so fceis de distinguir, e que em termos de cincia
nunca existe o preto e o branco, mas apenas tons de cinza, um maior ou
menor grau de cientificidade. Isso no relativismo babaca, pois estou
falando que existe cinza escuro e cinza claro, e nem todos os gatos so
pardos.
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- 28 -
Mais ainda, como sei que voc anda lendo Jaynes e tudo mais,
acho que voc pode ver o artigo do Bunge com outros olhos (os olhos de
quem est sendo criticado). Lembro-me de voc ter dito que se convertera
ao Bayesianismo Jaynesiano, ou pelo menos idia de clculo de
probabilidades como lgica estendida (indutiva). Como voc bem observa,
as perguntas de Bunge podem ser de alguma forma respondidas, com
alguma argumentao e profundidade, embora isso talvez no signifique
que satisfaam o Mrio Bunge, pelo menos por enquanto. Acho que o que
caracteriza o approach cientfico no a possibilidade do consenso agora,
mas a possibilidade do consenso algum dia...
> Os brbaros esto batendo s portas da muralha. Necessitamos gansos.
perigoso, no entanto, colocar no mesmo saco uma teoria simplesmente
porque usa a palavra subjetivo.
Bom, faz tempo que eu chamo ateno para esse tema de que a
cultura mundial pode evoluir para um estado bastante refratrio
perspectiva cientfica. Ou melhor, um mundo onde a cincia ser usada
apenas como suporte da tecnologia, mas no como fonte de uma viso de
mundo (isto proposto no Contracultura de Theodore Roszack). De certa
forma, esse mundo j existe (especialmente na Frana, dizem...). O
elemento novo talvez seja o de que a Universidade (que considero mais um
gueto do que um bastio do racionalismo) talvez venha a se tornar um dia
no bastio do Irracionalismo (ps-moderno)... Atualmente, s o Papa, com
sua ltima encclica, ainda acredita nos poderes da Razo...
Acho que est se formando um consenso entre diversos analistas de
que o sculo XXI ser marcado no apenas por guerras religiosas e
culturais, mas principalmente pela guerra de todas as religies contra a
Cincia... Encaro tudo isso numa perspectiva bastante impessoal, de
competio e acomodao de memes, todos lutando por espao num
mundo com um nmero finito de crebros. A Cincia muito incmoda,
fica querendo usar inseticida nos memes dos outros. Mas agora vai ter que
passar para a defensiva, pelo menos em termos polticos. Eu preferia a
acomodao e cooperao, mas acho que vai ser guerra mesmo. Essa lgica
Darwiniana cultural escapa aos nossos desejos, pelo menos por enquanto...
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Mas agora ando mais tranqilo com relao a isso. Primeiro,
porque no vejo muito que se possa fazer, ou o que fazer sem que se
cometa injustias (como as de Bunge em relao a Bayes). Segundo, remar
contra a mar uma maneira besta de se desperdiar a vida. preciso usar
estratgias mais inteligentes, estratgias que ainda no sei quais so. Alm
disso, desconfio que estamos numa situao em que todos os lados tm um
pouco de razo.
Em todo caso, curioso observar a passagem do tempo, as noticias
dos jornais, e pensar se esses pequenos fatos que estamos observando tm
um significado mais permanente, sinais de grandes tendncias culturais, ou
se so apenas uma simples flutuao de espuma que desaparecer em breve
no rio da histria. Por exemplo, ontem deu no Fantstico uma reportagem
sobre a grande campanha que alguns evanglicos esto promovendo pelo
direito dos pais de retirar seus filhos das escolas pblicas, transferindo-os
para escolas confessionais ou para o aprendizado em casa. O argumento
desses pregadores para os pais cristos de que eles no tm o direito de
arriscar a alma de seus filhos colocando-os em contato com o ambiente
secularista das escolas.
E isso acontece mesmo com todo o esforo que as escolas publicas americanas tem feito em adequar seu ensino s necessidades da comunidade, reintroduzindo o ensino de religio, procurando no ofender as diversas opinies religiosas e culturais envolvidas etc. etc...
De algum modo isso se parece com a quebra de algum principio
bastante fundamental (originrio do Iluminismo) sobre educao laica para
todas as crianas. Como o Iluminismo o grande vilo da histria
atualmente, a contestao desse principio vista como um grande ato
libertrio...
Bom, mas talvez isso seja apenas uma espuma que se dissipe daqui
a alguns anos. Ou ento uma das pequenas nuvens negras (existem outras)
que anunciam a tempestade. Quem pode dizer? Se tentarmos, talvez no
faamos um trabalho muito melhor que os astrlogos durante a passagem
do ano...
Pxa, desculpem os devaneios... Acho que sndrome de comeo
de ano... Alm disso, no est dando pra trabalhar. Meu computador veio
com problemas (o ventilador chupa o ar para dentro em vez de jog-lo para
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fora, esquentando muito o sistema). Vou ter que levar para Araraquara para
trocar. E s hoje consegui instalar o Fortran...
Bom, sobre a proposta para dar lenha para as nossas conversas:
Acho que seria interessante ler O Acaso e a Necessidade, de Jaques
Monod, fazendo uma avaliao aps trinta anos (o livro de 1969).
Poderamos fazer pequenos comentrios, captulo por captulo. que,
segundo os critrios de Monod, (quase) todo o approach das cincias da
complexidade no cincia, pseudocincia religiosa. Como Monod
provavelmente seria considerado um existencialista cientfico, acho que a
discusso interessaria bastante ao Jean.
Mas falando um pouco de Fsica, me digam o que vocs acham
dessa idia:
Imagine um plano que contm pontos distribudos segundo uma
densidade uniforme. Para ser pictrico, imagine que cada ponto uma
fonte de comida para uma formiga. A formiga comea num certo ponto,
usando uma regra determinista de movimento: Ela deve se dirigir para o
ponto mais prximo, desde que esse ponto no tenha sido visitado nas
ltimas vezes ( a janela de memria). fcil ver que se igual a zero, existem muitos pares de pontos
tais que eles so os vizinhos mais prximos um do outro. Esses pares de
pontos so atratores da dinmica (quando a formiga chega neles, fica
pulando de um para outro num ciclo dois). Existem muitos desses pares
atratores (qual a densidade deles?).
Bom, se a janela de memria = 1, ento apenas so possveis atratores com trs pontos ou mais. Se aumenta, os transientes vo aumentando e os ciclos atratores so maiores.
Meu chute que existe alguma espcie de transio de fase a, pois
existem ingredientes que esto competindo: a regra de ir para o ponto mais
prximo faz o papel de uma fora atrativa, que tende a prender a formiga
em ciclos, faz o papel de energia. A janela de memria faz um papel de
fora repulsiva, entrpica. (Desculpem a liberdade nos termos...) Acho que
em algum momento existir uma delocalizao do random walk feito pela
formiga, ou seja, surgir uma probabilidade finita de que o caminho nunca
se repita ou de que a formiga escape de qualquer rea finita traada sua
volta nesse plano (no sei se as duas coisas seriam idnticas).
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Bom, vou tentar simular isso nessas frias, e se algum estiver a
fim de brincar um pouco, que me escreva. Uma questo que tenho que
no sei se essa formulao do problema, embora bastante simples em
palavras, seja a melhor em termos de eficincia computacional. Afinal, a
cada passo, tenho que medir todas as distncias entre o ponto presente e
todos os outros, para determinar o vizinho mais prximo. E tambm tenho
que determinar quando se chega a um ciclo atrator, e qual o seu tamanho.
Pois o objetivo fazer uma estatstica do tamanho desses ciclos em funo
de . Note que escolhi pontos distribudos aleatoriamente para evitar a
degenerescncia (sobre quem o vizinho mais prximo) que ocorre se
usarmos uma rede regular. Notem tambm que isso lembra um self-
avoiding random walk, mas no um random walk porque a regra
determinista. Um random walk no tem ciclos...
Algum tem alguma sugesto para tornar a simulao mais
eficiente?
At!
Freeman.
PS: Richard e Jean, acho que no vai dar para eu viajar na quarta feira...
que pena! Escrevam!
On Tue, 5 Jan 1999, Richard wrote:
>> Algum tem uma sugesto para tornar a simulao mais eficiente?
> Voc pode escrever uma matriz Dij de distncias com (N-1) (N-1)/2
entradas e basta olhar quais os vizinhos j do sito i quem tm Dij menor
(tipicamente demora, no pior dos algoritmos, ordem(N)). Ainda deve
manter um vetor M de dimenso \tau para manter um arquivo dos ltimos
\tau stios visitados. A cada passo faz um update de M. Nota que um
passeio na matriz D e no no espao onde residem os pontos, portanto
parece que no h influncia da dimenso. Ops, retiro o que disse, a
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matriz D no tem componentes aleatrios descorrelacionados, pelo
contrrio, as correlaes dependem fortemente da dimenso d.
Pois , o Richard correu na minha frente, eu ia dar exatamente essa
dica. Alis, sobre a influncia da dimenso na matriz, se eu no me engano,
isso foi abordado num paper sobre o problema de Traveling Salesman com
cidades aleatrias, saiu no Cond-Mat faz uns meses... um ps-doc de Los
Alamos, se voc quiser eu procuro a referncia direitinho, Freeman.
Abraos,
Noam.
08/Janeiro/1999.
> Bom, talvez para fechar por enquanto a discusso sobre Mercado e
Estado, uma sugesto: o livro Tudo a Venda, de Robert Kuttner, Companhia das Letras, talvez nos desse uma viso um pouco mais
elaborada sobre o tema... Tema que vai voltar, tenho certeza, durante a
privatizao da Universidade que devera ocorrer nos prximos anos.
Bom, j vi que a coisa est feia mesmo a no Brasil, faz tempo que
eu no via o Freeman assim to pessimista. Eu no sei qual a desse
Kuttner, mas em todo caso vou ler um livro que tambm me foi muito
recomendado, O horror econmico, de Viviane Forrester, que parece que pe o neoliberalismo no seu devido lugar.
> Talvez o que eu esteja tentando enfatizar que os resultados da Fsica,
enquanto no entram num circuito cultural mais amplo, apenas fazem o
papel de Ambrsia intelectual para monges em torres de marfim. Acho que
essa era a reclamao original do Jean. No sei se esse tipo de mrito intrnseco vai merecer o financiamento da sociedade (e muito menos dos mercados), sem que a mesma possa usufruir pelo menos algo da aventura
intelectual envolvida.
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Pr comeo de conversa, vamos deixar uma coisa clara: os
mercados que se fodam!!! Se voc entra na discusso j do ponto de vista
do mercado, com certeza no encontra sada depois. No d pra olhar para
as coisas sob a perspectiva do mercado e tentar salv-las por outros mritos
a posteriori. Provavelmente nada do que a gente fez em teoria da
aprendizagem serve um epsilon para o mercado. Ento nada daquilo vale
um epsilon? Agora, excludo momentaneamente o mercado desta
discusso, envolver a sociedade est mais do que certo, a sim podemos
conversar.
> A propsito, sem o documentrio da BBC e o livro do Singh sobre a
histria do Teorema, talvez voc no estivesse usando esse exemplo...
Pois , mas voc est invertendo tudo. Justamente, a gente tem que
fazer aqui o que eles fizeram l, por que que o meu exemplo ruim? Em
linguagem contempornea, o sujeito foi sustentado pelas tetas do Estado,
ficou sete anos sem publicar uma vrgula e depois apareceu com um
teorema que no serve pra melhorar o desempenho de nenhum microondas.
No bastasse isso, ainda veio a BBC e gastou mais uma grana pra
patrocinar um documentrio sobre tudo isso. No venham me dizer que
isso fez crescer o mercado editorial ingls, que essa foi a importncia,
porque no foi.
> Bom, j comecei com O Evangelho Segundo Jesus Cristo... E gostei!
A, O Evangelho... Uma das obras primas da literatura em lngua
Portuguesa. Aquilo sensacional, no ?
> Nesse sentido, Saramago NO um ateu militante... Mesmo com todos
os comentrios do Richard sobre o Natal, tambm acredito que ele no o
seja...
O Saramago , na minha opinio, um grande humanista. Desses
que esto em falta hoje em dia. Tem ele, o Sebastio Salgado (fotgrafo
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- 34 -
brasileiro)... Quem mais? Algum lembra de algum outro nome que tenha
defendido posies humanistas recentemente?
> Richard, fica frio... Eu j notei que, no sei porque, ficamos cutucando
uns aos outros nesses mails, com uma certa agressividade tipicamente
masculina... Para melhorar o ambiente, talvez valesse a pena colocar a
Silvia ou a Daniela na NET-RFNJ. Como eu acho que isso no vai ocorrer
(afinal, este espao o nosso clube do Bolinha...), acho que vamos ter que
conviver com isso...
Pois , eu tambm achei estranho o Richard ficar chateado, j que
geralmente ele o primeiro a provocar. Mas tudo bem, acho que ele estava
sensibilizado pelo esprito natalino.
> Tudo bem, Richard, o professor secundrio talvez pudesse justificar seu
trabalho para o mundo dessa forma. Mas poderia justificar seu trabalho
para si mesmo, com o mesmo argumento? O mesmo vale para os
professores do terceiro grau, como ns...
Olha, Freeman, eu acho que sim. Eu quero continuar fazendo
minha pesquisazinha mediana, quero dar aulas melhores do que as que eu
tive (com exceo das de termodinmica, que foram timas :-) ), e fico ali
contando com a probabilidade infinitesimal de que um dia me caia pela
frente um Feynmanzinho brasileiro de nome Silva (primo meu, portanto).
Quem sabe? Alis, acho que quem resolveu esta questo mesmo foi o
Richard. O importante ser feliz. Por isso desconfio que a sua questo
tenha sido mais pessoal do que qualquer outra coisa. Mas posso estar
enganado.
Abraos
Noam
08/Janeiro/1999.
Oi Noam, bem-vindo ao ano 1999!
Respondo ao comentrio do Noam sobre as classes de
termodinmica. Essa frase sobre dar aulas melhor do que as que eu tive
-
- 35 -
j foi usada vrias vezes. Meu irmo A. e eu chegamos a essa concluso h
mais de 15 anos atrs.
Apesar de no parecer possvel, acho que tirando as preciosas
horas que tive com Dick [Richard P. Feynman] tambm o consegui. No
difcil conseguir isso. Tenho certeza que vocs vo conseguir. Talvez no
todo dia, mas na mdia.
Sobre aplicaes: tem a ver com o uso de RN para implementar o
mtodo de Mxima Entropia para tratar dados de ressonncia magntica
para obter imagens mdicas.
O SUPER MERCADO:
Sobre teorias do mercado e cincia: esto levando to a srio a
idia de aplicar teorias de mercado universidade que o Bresser Pereira,
ex-supermercado Po de Acar, assecla do Diniz, o ministro de cincia e
tecnologia do .Br.
Um abrao,
Richard.
8/Janeiro/1999
> Oi Noam, bem-vindo ao ano 1999.
Obrigado Richard. E apesar de voc dizer no gostar dessas coisas,
feliz ano novo. Feliz ano novo pra vocs todos, algo que eu me esqueci de
mencionar no calor das discusses dos e-mails anteriores.
> Respondo ao comentrio do Noam sobre as classes de termodinmica.
Essa frase sobre dar aulas melhor do que as que eu tive j foi usada vrias vezes. Meu irmo A. e eu chegamos a essa concluso h mais de 15
anos atrs.
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O que um sinal de que algum no mundo se preocupa com isso,
no mesmo? Acho que uma utopia das mais saudveis. E, para que
fique registrado, eu estava me referindo s aulas de uma professora cujo
nome no revelo por tica profissional. Numa aula de estado slido, essa
senhora conseguiu encontrar um modo normal de vibrao onde o cristal
inteiro oscilava pra l e pra c. Portanto, a minha tarefa fcil.
> Apesar de no parecer ser possvel, acho que tirando as preciosas horas
que tive com Dick tambm o consegui. No difcil conseguir isso. Tenho
certeza que vocs vo conseguir. Talvez no todo dia, mas na mdia.
Oxal, Richard, Oxal...
> Sobre aplicaes: tem a ver com o uso de RN para implementar o
mtodo de mxima entropia para tratar dados de ressonncia magntica
para obter imagens mdicas.
Ah , voc tinha me falado, desculpe. Eu achei bem legal aquela
sua idia. E a, est funcionando? Voc est com quantos estudantes,
Richard?
> O SUPER MERCADO: sobre teorias do mercado e cincia: esto
levando to a serio a idia de aplicar teorias de mercado universidade
que o Bresser Pereira, ex-supermercado po de acar, assecla do Diniz,
o ministro de cincia e tecnologia do .Br
Desde quando, hein? Eu estou meio por fora... Cara, que loucura...
Passados alguns meses desde a implantao dos cortes no CNPq, como
ficou a coisa na prtica? Fora as da FAPESP, tem sado bolsas novas em
SP?
Abraos,
Noam.
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08/Janeiro/1999.
Ois de novo,
Desculpem-me pela avalanche de mensagens, mas que hoje
sexta-feira, dia de colocar todos os e-mails em ordem, e eu resolvi
aproveitar. Alm disso, o papo est bom.
>Bom, faz tempo que eu chamo ateno para esse tema de que a cultura
mundial pode evoluir para um estado bastante refratrio perspectiva
cientifica. Ou melhor, um mundo onde a cincia ser usada apenas como
suporte da tecnologia, mas no como fonte de uma viso de mundo.
De fato, Freeman, faz tempo que voc fala nessa possibilidade de
nos tornarmos todos irracionais. Mas eu s queria entender o que voc quis
dizer exatamente com a citao da Frana, que eu no entendi. E queria
entender mais ainda a aparente defesa que voc fez do Papa... Se foi tudo
ironia, mil perdes, acho que estou desacostumado. Sabe como que , o
povo aqui no tem destas coisas...
Acho que est se formando um consenso entre diversos analistas
de que o sculo XXI ser marcado no apenas por guerras religiosas e
culturais, mas principalmente pela guerra de todas as religies contra a
Cincia... Encaro tudo isso numa perspectiva bastante impessoal, de
competio e acomodao de memes, todos lutando por espao num
mundo com um nmero finito de crebros. A cincia muito incmoda,
fica querendo usar inseticida nos memes dos outros. Mas agora vai ter que
passar para a defensiva, pelo menos em termos polticos. Eu preferia a
acomodao e cooperao, mas acho que vai ser guerra mesmo. Essa
lgica Darwiniana cultural escapa aos nossos desejos, pelo menos por
enquanto...
Freeman, acho que eu j deixei claro em outras oportunidades
como gosto desta histria dos memes. Digo isso de sada pra que a frase
que vem a seguir fique devidamente equilibrada: eu acho que o seu
pargrafo acima de uma ingenuidade enorme. A luta que se trava no
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mundo hoje no tem nada a ver com guerras contra a Cincia ou qualquer
coisa parecida. O mundo est esse horror que est (e vocs a esto em
melhores condies de dissecar o horror) porque o capital ganhou o jogo e
est mandando. Mandando como nunca mandou. A guerra dos memes
entre capitalismo e quem quer que sobreviva. Gostaria muito que o
oponente fosse o humanismo (e no me venha voc defender as baleias e
primatas superiores, porque eles esto bem), mas est difcil.
As guerras religiosas surgem porque as pessoas esto vivendo
numa misria absoluta, fica fcil para um luntico qualquer aparecer e
prometer os cus. Tivemos o Collor no Brasil, que foi uma verso atia
light. E temos uns lunticos muulmanos, cristos, budistas, judeus e o que
mais voc quiser. Mas a loucura maior no essa. A loucura maior eles
venderem (e a gente comprar) que o ataque dos EUA contra o Iraque tem
qualquer trao de legitimidade, que os israelenses so bonzinhos e os
palestinos so os maus, que o Brasil est uma maravilha, que aposentadoria
coisa de maraj e poluio progresso. Est na pgina da UNICEF, no
vou nem traduzir:
The State of the World's Children 1999 warns that, with nearly a billion people a sixth of humanity functionally illiterate, world peace and prosperity is threatened. Providing education for all will cost only an
additional $7 billion a year less than is spent annually on cosmetics in the United States or ice cream in Europe.
Eu acho que se voc se sente frustrado com o seu papel de Fsico
na sociedade, a est uma boa oportunidade: passe esses dados pra frente,
isso tem um significado maior, talvez at maior do que o que voc buscava.
E no s passar pra frente. Ao contrrio do que voc disse, no acho que
assistir passivamente aos memes brigarem seja a coisa a fazer. Eu tambm
no sei o que tem que ser feito. Mas alguma coisa tem que ser feita. A
discusso sobre os memes interessante, mas agora eu pergunto: segundo
valores humanistas (no de mercado), qual sua relevncia? (isto foi uma
provocao, porque eu sei que tem relevncia).
O meu discurso parece duro e radical (se eu estivesse falando da beleza dos mercados, me chamariam de apaixonado, mas como contra,
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o termo radical). Talvez seja. Mas no to radical como as bobagens mercadolgicas que se l no jornal todos os dias.
> Bom, sobre a proposta para dar lenha para as nossas conversas: Acho
que seria interessante ler O Acaso e a Necessidade, de Jaques Monod,
fazendo uma avaliao aps trinta anos (O livro de 1969). Poderamos
fazer pequenos comentrios, captulo por captulo. que, segundo os
critrios de Monod, (quase) todo o approach das cincias da complexidade
no cincia, pseudocincia religiosa. Como Monod provavelmente
seria considerado um existencialista cientfico, acho que a discusso
interessaria bastante ao Jean.
Qual o ttulo original? Eu topo a brincadeira, mas s se todo
mundo levar a srio.
Pera que chegou outro e-mail do Richard...
Abraos,
Noam.
12/Janeiro/1999
Este texto que segue no est contido nas obras completas de
JLBorges. Aparentemente, de acordo com o C., a Maria Kodama o renega
e no o admite como sendo de autoria do JLB. Meu pai complementa que
isto dele, mas no foi publicado e sim dito durante uma entrevista, de
improviso. A traduo annima e acho que assim merece ficar.
***
INSTANTES
Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na prxima trataria
de cometer mais erros.
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No tentaria ser to perfeito, relaxaria mais, seria mais tolo ainda
do que tenho sido, na verdade bem poucas coisas levaria a srio.
Seria menos higinico.
Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais
entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos
lentilhas, teria mais problemas reais e menos problemas imaginrios.
Eu fui uma dessas pessoas que vivem sensata e produtivamente
cada minuto de sua vida; claro tive momentos de alegria.
Mas se eu pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons
momentos, porque, se no sabem, disso feita a vida, s de momentos, no
os perca agora.
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um
termmetro, uma bolsa de gua quente, um guarda-chuva, um pra-
quedas, se voltasse a viver viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver, comearia a andar descalo no meio
da primavera e continuaria assim at o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e
brincaria com mais crianas, se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, j viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.
Jorge Luis Borges
***
claro que tive momentos de alegria. At o mais chato de ns
tropea neles. O problema saber encontrar e construir esses instantes, e se
possvel maximiz-los. Por vrios motivos, alguns posso at contar, este
texto lembra o Feynman. Acho que ele leu isto muito tempo antes de JLB
t-lo dito.
Lembro dele batucando na mesa e na lousa antes de comear a
aula, sorrindo: I feel happy and dont know why: if only we could know how to feel this more often.
Essa a grande pergunta, acho que ele soube, se no respond-la
de forma rigorosa, dar uma boa aproximao.
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Richard
**********************************
12/Janeiro/1999
Ol, moada!
Estiveram ativos de ontem para hoje, no?
Bom, Richard e Jean, espero poder viajar para So Paulo antes do
dia 19. O problema que estou tentando ir de carro com um irmo, para
pegar as coisas da minha sala, mas ainda no consegui acertar o dia com
ele.
Sobre o texto do Borges: acho que vou na contramo da trajetria
do Richard... Vejam bem, eu era Soft, New Age, f do Rubem Alves e do
pessoal de contracultura. Conforme o tempo foi passando, fui ficando
insatisfeito com tudo isso (Romantismo Irracionalista) porque acho que
um beco sem sada: um beco agradvel, com barzinho e msica ambiente,
mas ser que o sentido da vida viver num barzinho desses?
Por isso, s para provocar, vou ser mais radical: olha, sinceramente
acho que o objetivo da vida no ser feliz (no sentido usual do termo). Se
fosse, tudo estaria bem no Admirvel Mundo Novo de Huxley, no? Ou seja, eu no sei qual o sentido da vida (O Jean diria: o sentido
da vida no est dado, fruto de uma escolha existencial no justificvel),
mas sei qual no . Ser feliz pode ser uma aspirao pequena burguesa, mas certamente no um objetivo satisfatrio. E vou explicar porque: a
felicidade, pelo menos o estado emocional/existencial de felicidade real (e
no uma felicidade nominal intelectualizada) o reflexo de um gradiente.
Felicidade uma derivada, no um estado. Ficamos felizes quando
ganhamos ou conquistamos algo, ou quando experimentamos algo
diferente: o menino de rua que encontra 50 reais fica muito mais feliz que
o Bill Gates quando ganha um milho.
Bom, a busca da felicidade, ainda nesse sentido pequeno-burgus,
seria essa constante busca dessas experincias novas, de drogas cada vez
mais fortes, poderamos dizer. No me parece ser um objetivo razovel ou
respeitvel, que esteja altura da singularidade humana. Essa felicidade
mesquinha demais!
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Outra soluo proposta pela contracultura e por algumas religies
a imerso em Deus ou no Nirvana, o cessar de todo pensamento e de toda a
angstia, a felicidade total da inconscincia. Nirvana, a droga final, sem
tolerncia ou contra-indicaes! Bem, no exatamente: basta olhar a
literatura da rea que se percebe que as experincias religiosas tambm
esto sujeitas ao fenmeno de tolerncia efeitos cada vez menores para os estmulos dados e os msticos freqentemente sofrem de efeitos colaterais extremamente graves... Em todo caso, se voc acredita que o
sentido da vida a felicidade, e se o guru te diz que a verdadeira felicidade
encontrada apenas no Nirvana, e que voc no saber disso enquanto no
experimentar, ento todos precisamos buscar o Nirvana, no?
Outra idia que o sentido da vida o amor. Mesmo um deficiente
mental preso numa cama pode amar. E, claro, gostaramos que o sentido
da vida fosse acessvel a todos. por isso que idias cor-de-rosa tipo O sentido da vida o amor, no o conhecimento so de fcil aceitao... O amor democrtico, o conhecimento no. Todos podem amar.
Ora, eu no descarto esse tipo de felicidade. O amor e a empatia
pelos outros, a comear pelas crianas, um instinto mamfero. Se a
felicidade ser um mamfero feliz, ento devemos amar. Bom, como sou
tambm um mamfero, tudo bem, no excluo esse objetivo mamfero da
vida. Na verdade, dentro de minha pequena famlia, creio estar desfrutando
dele.
Mas sou tambm um homem, e realmente ocorreu uma transio de
fase na aurora da humanidade: o ser humano um bicho, mas tambm
mais que um bicho. A Humanidade tem conscincia de um mundo a sua
volta, e capaz de fazer perguntas: por exemplo, por que afinal existe um
Universo, em vez de nada? a Vida uma flutuao da entropia a ser logo
apagada, ou se espalhar pelo universo (O esverdear da Galxia proposto
por Freeman Dyson)? Como possvel que campos qunticos (de que, no
fundo, todos ns somos feitos, lembrem-se) possam pensar e escolher?
Podemos realmente escolher?
Eu no quero ser feliz como as bactrias num gradiente de acar!
Pensem bem, imaginem como era o mundo antes da conscincia humana
(ok, talvez mamfera tambm): um enorme rio de processos inconscientes,
uma escurido infinita, um desperdcio de beleza imenso, j que no havia
ningum para perceber isso. A escurido da inconscincia a mais
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profunda que existe! No havia imagens do mundo, o mundo se resumia a
campos qunticos fluindo silenciosamente na escurido eterna.
Assim, sou mais como o selvagem educado por Shakespeare do
Admirvel Mundo Novo, que, mesmo sob o risco de ficar infeliz, no tinha
medo de encarar o mistrio e a tragdia humanos, em contraste com os bem
ajustados e felizes habitantes do Mundo Novo...
A Humanidade a nica espcie da Biosfera com a capacidade de
fazer perguntas. No importa que no possamos respond-las. No
podemos delegar essa tarefa para as outras espcies. No podemos
renunciar a ela, seria o cmulo do egosmo. As outras espcies no podem
perguntar, apenas sofrer ou se alegrar. E esperar o dia de sua prpria
extino... Mas o futuro delas talvez dependa das respostas que
encontrarmos... Da nossa capacidade de defender a Biosfera, talvez... Por
exemplo, lembremos que a pergunta no SE um cometa ou asteride pode
se chocar com a Terra, mas sim QUANDO... Parece que a probabilidade
de dois eventos maiores que Tunguska por sculo, o que no nada
baixo... Ok, os dinossauros no perguntavam qual o sentido da vida, e
quando o fim veio eles nem notaram... isso! O bombardeio incessante de
cometas elimina no apenas a vida, mas o sentido da vida! Uma frase para
o Jean!
Bom, mas estou enfatizando demais o lado das perguntas
intelectuais. Proponho um sentido da vida mais democrtico: o sentido da
vida, para os seres humanos, criar. Criar construir novas configuraes
de tomos, configuraes inditas no Universo, que jamais existiram e que
sem nossa interveno nunca existiriam. Afinal, todos somos Demnios de
Maxwell. Criar algo participar do processo de auto-organizao do
Universo. O poema que fao hoje no existe em nenhum lugar nenhum,
dentro de 150 bilhes de Galxias, a no ser aqui.
Criar apostar que a Vida vai vencer a Entropia, mesmo que seja
uma aposta condenada ao fracasso (No sei se , j que em sistemas
gravitacionais a termodinmica no est bem definida...) Alm disso, temos
muito tempo! Pelo menos um trilho de anos, segundo estimativas
pessimistas... A morte trmica do Universo aparentemente foi super
enfatizada...
Se for assim, criar um fim em si mesmo. O amor no um fim,
mas um meio: um meio de nos sustentarmos mutuamente na solido do
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Cosmo, um meio de atuar para que outros seres humanos, esmagados na
misria, no tenham apenas a oportunidade de comer, mas sim a
oportunidade de criar algo a partir de si mesmos. Ser que ficaramos
satisfeitos se a eliminao total da pobreza levasse apenas a um mundo
com seis bilhes de Homer Simpsons gordos, satisfeitos e felizes? Alm do mais, criar mais democrtico do que amar! Autistas no podem amar
mas podem criar (lembrem daqueles caras com sndrome de Idiot-
Savant...).
Ou seja, a minha utopia para a Humanidade uma sociedade de
seis bilhes de criadores (de msicas, de arte, de artefatos, de jogos e
brincadeiras, de soluo de problemas, de organizaes sociais que
funcionem etc. etc. etc.). Se para criar, aparentemente tenho que sofrer (por
exemplo, me sujar com o barro da escultura, me perturbar por uma questo
matemtica mal resolvida), tudo bem! O sofrimento que leva criao no
intil, mas apenas o sofrimento sem sentido da misria extrema e da dor
crnica intratvel. O objetivo de cada humano ser um artista, no o ser feliz. Se for um artista, por menor que seja sua arte, ele ser feliz. Se for um burocrata satisfeito, no haver plula mgica que lhe traga a felicidade...
At...
Freeman
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19/Janeiro/1999
Caros Amigos,
Mil novecentos e noventa e nove promete. O ano mal comeou e o
Freeman j nos brindou com essa mensagem, forte concorrente ao prmio
Arroba de Ouro 99 pelo melhor E-mail do ano. Comeo dizendo que sou um privilegiado por t-los como meus interlocutores, ainda que s vezes
parea um ingrato ao me destemperar durante as discusses. Peo
desculpas por isso.
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Belo texto, Freeman. Comeo por a, e digo at que talvez
concorde com voc. S acho que talvez as nossas diferenas (ou entre voc
e o Richard, se voc fizer questo de se antepor a ele) talvez no sejam to
grandes assim. Eu justifico de mais de uma maneira. A primeira delas, e
mais importante, o fato de que no discordo do que voc disse, no me
senti atingido pelas suas crticas felicidade como meta e duvido que a
concepo de felicidade do Richard descarte a criao como elemento
importante numa pessoa feliz. Digamos assim que talvez estejamos
discutindo semntica, at um certo ponto. At um certo ponto, porque por
outro lado acho que voc teceu muitas consideraes importantes ali.
No tenho muito tempo para escrever agora, ento deixo a pergunta
no ar, pra voc responder quando e se quiser: voc no acha que a sua
proposta de ter a criao como sentido da vida no bastante subjetiva,
Freemaniana, no sentido de que criar algo muito importante pra voc?
Para mim bvio que voc s pode ser feliz criando. E a talvez
completemos o loop que nos une e torna a questo mais semntica do que
fundamental. E fica ainda a advertncia ideolgica (eu no resisto): a
criao como meta freqentemente usada pelo capitalismo como
argumento contra polticas sociais mais justas. Est claro at para o mais
roxo comunista que, tanto material como institucionalmente, Cuba cria
menos coisas novas do que seu vizinho grando. bem verdade que cria
tambm bem mais esperanas, e de certa forma cria uma resistncia. Mas
no sei se isso cabe na sua definio. De toda forma, o perigo fica sempre
ali, espreita. Ou no?
O livro do Monod chegou. Quando comeamos?
Abraos,
Noam.
**********************************
19/Janeiro/1999
Tambm no tenho tempo... Mas alguns comentrios... No lembro
quem disse:
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No basta ser feliz, necessrio que outros no o sejam...
ou algo como no basta ganhar, algum deve perder. Um mundo com seis bilhes de pessoas felizes parece impossvel,
a no ser que todos mintam e faam o favor de declararem-se infelizes.
Mas a, aqueles de alma pura, aqueles que sinceramente querem os outros
felizes, no podero s-lo. Dada a diversidade humana no pode ser estvel
o estado de felicidade plena.
> Estiveram ativos de ontem para hoje, no? Bom, Richard e Jean, espero
poder viajar para So Paulo antes do dia 19. O problema que estou
tentando ir de carro com um irmo, para pegar as coisas da minha sala,
mas ainda no consegui acertar o dia com ele.
Noam: finalmente o Freeman veio e tivemos um almoo agradvel,
junto com a Silvia e Jean no clube dos funcionrios, debaixo das palmeiras
onde cantam os sabis.
> Sobre o texto do Borges: acho que estou indo na contramo da
trajetria do Richard... Vejam bem, eu era soft, new age, f do Rubem
Alves e do pessoal de contracultura. Conforme o tempo foi passando, fui
ficando insatisfeito com tudo isso (Romantismo Irracionalista) porque
acho que um beco sem sada: um beco agradvel, com barzinho e musica
ambiente, mas ser que o sentido da vida viver num barzinho desses?
Isso em hiptese nenhuma significa que ns tenhamos cruzado em
algum ponto. Freeman: Eu acho que voc ainda muito Nova Era.
> Por isso, s para provocar, vou ser mais radical: olha, sinceramente
acho que o objetivo da vida no ser feliz (no sentido usual do termo). Se
fosse, tudo estaria bem no Admirvel Mundo Novo de Huxley, no? Ser
que ficaramos satisfeitos se a eliminao total da pobreza levasse apenas
a um mundo com seis bilhes de Homer Simpsons s gordos, satisfeit