O Beijo de Juliana

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- 1 - Osame Kinouchi Filho Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 é bacharel em Física pelo Instituto de Física e Química de São Carlos - atual IFSC- USP (1987), mestre em Física pelo Instituto de Física e Química de São Carlos - USP (1992) e doutor em Física pelo Instituto de Física da USP (1996). Fez seu pós-doutorado no IFUSP e IFSC, e livre-docência pela USP. Atualmente é professor associado da Universidade de São Paulo no Departamento de Física e Matemática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto e possui bolsa de produtividade nível 2 do CNPq. Tem experiência na área de Física Estatística e Sistemas Dinâmicos, atuando principalmente nos seguintes temas: neurociência computacional, meios excitáveis, redes neurais e criticalidade auto- organizada. Teve um de seus trabalhos comentados na seção News and Views da revista inglesa Nature e publicou recentemente um trabalho na revista Nature Physics mostrando que a faixa dinâmica em redes de elementos excitáveis similares a neurônios é otimizada no ponto crítico de uma transição de fase fora do equilíbrio. Coordenador do Laboratório de Divulgação Científica e Cientometria do DFM-FFCLRP-USP, é responsável pelo Anel de Blogs Científicos e pelo blog SEMCIÊNCIA.

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Osame Kinouchi. Discussão entre físicos, em forma epistolar, sobre a clima cultural, espiritual e cientifico do Brasil no início do Sec. XXI.

Transcript of O Beijo de Juliana

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    Osame Kinouchi Filho

    Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2

    bacharel em Fsica pelo Instituto de Fsica e Qumica de So Carlos

    - atual IFSC- USP (1987), mestre em Fsica pelo Instituto de Fsica e

    Qumica de So Carlos - USP (1992) e doutor em Fsica pelo

    Instituto de Fsica da USP (1996). Fez seu ps-doutorado no IFUSP e

    IFSC, e livre-docncia pela USP. Atualmente professor associado

    da Universidade de So Paulo no Departamento de Fsica e

    Matemtica da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro

    Preto e possui bolsa de produtividade nvel 2 do CNPq. Tem

    experincia na rea de Fsica Estatstica e Sistemas Dinmicos,

    atuando principalmente nos seguintes temas: neurocincia

    computacional, meios excitveis, redes neurais e criticalidade auto-

    organizada. Teve um de seus trabalhos comentados na seo News

    and Views da revista inglesa Nature e publicou recentemente um

    trabalho na revista Nature Physics mostrando que a faixa dinmica

    em redes de elementos excitveis similares a neurnios otimizada

    no ponto crtico de uma transio de fase fora do equilbrio.

    Coordenador do Laboratrio de Divulgao Cientfica e Cientometria

    do DFM-FFCLRP-USP, responsvel pelo Anel de Blogs

    Cientficos e pelo blog SEMCINCIA.

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    O Beijo de Juliana

    Quatro fsicos tericos conversam sobre crianas,

    cincias da complexidade, biologia, poltica,

    religio e futebol...

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    Prefcio Existem diversos motivos para se escrever um livro, razes bastante plausveis e geralmente falsas que so apresentadas ao leitor em

    prefcios como este. Eu tambm pretendo fazer esse jogo, descrevendo

    toda uma srie de pretextos respeitveis para levar este livro (livro?)

    adiante. E no final, confesso ao leitor o verdadeiro motivo (embora todos

    os outros igualmente o sejam).

    Conversando com uma amiga sobre a convenincia de publicar

    estes textos, que so apenas uma coletnea de e-mails trocados entre quatro

    amigos, discutimos sobre o sentido em que estes eram pessoais, demasiadamente ntimos ou no. Em determinado sentido, eles no so nada pessoais, pois as referncias biogrficas so mnimas: nomes e

    circunstncias pessoais foram devidamente modificados ou eliminados. E,

    no entanto, estas cartas continuam sendo extremamente ntimas e pessoais,

    pois revelam crenas bsicas sobre assuntos humanos, o tipo de revelao

    que acadmicos, em particular cientistas, dificilmente estariam vontade

    em expressar.

    Entre os objetivos respeitveis que me motivaram a publicar estas

    cartas est o fato de que talvez elas mostrem um outro lado do fazer

    Cincia, quebrando um certo esteretipo em que o cientista visto como

    um ser do outro mundo, e a pesquisa cientfica como algo frio e impessoal.

    Nada mais longe da realidade. A viso de pesquisa cientfica que eu desejo

    passar ao leitor mais se aproxima de uma arte, que por vezes bastante

    passional: a arte de criar e desenvolver novas idias para entender (e, com

    o devido cuidado, transformar) o mundo ou, o que antigamente se chamava

    Filosofia Natural. Algo bastante diferente da tecnocincia obsessivamente

    vendida hoje pela mdia e pelas agncias de fomento como algo essencial para a modernizao do capitalismo brasileiro, o que talvez seja verdadeiro

    porm trivial: tecnocincia de verdade feita em laboratrios industriais

    por engenheiros e inventores (cujo exemplo paradigmtico seria Graham

    Bell que, por sinal, no se considerava um cientista), laboratrios estes

    que, por motivos de mercado, inexistem no Brasil.

    Assim, o tema do livro no o conhecimento privado protegido por

    patentes e copyrights, mas o conhecimento publicamente acessvel

    protegido pela tradio cientfica de livre circulao de idias (copyleft).

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    Em outros termos, este livro se dedica a discutir a cincia enquanto cultura,

    ou cincia-arte, termo usado no mesmo sentido que futebol-arte. Que esta

    viso de cincia como arte se expresse atravs das cartas pessoais de quatro

    jovens fsicos brasileiros parece ser algo indito em termos de literatura de

    divulgao cientfica.

    Outro objetivo respeitvel destes escritos mostrar ao leitor a

    fragilidade e ao mesmo tempo a possvel relevncia da abordagem

    cientfica frente aos problemas humanos. Este no um livro de

    argumentos bem pensados sobre reas em que os autores so especialistas.

    So expresses pouco refletidas, portanto talvez mais honestas, sobre

    assuntos que nos afetam diretamente como seres humanos. Expresses

    inacabadas de vises de mundo, interessantes justamente por serem abertas

    e inacabadas. No so opinies de especialistas, mas de simples pessoas

    (in)comuns que esto vivendo no Brasil do comeo do sculo XXI.

    Filosofia de barzinho seria uma descrio adequada (nossas discusses

    comearam na lanchonete do Instituto de Fsica da USP), se no fosse uma

    expresso pejorativa que talvez esse tipo de conversa, na sua honestidade,

    no merece. Constituem uma pequena tentativa de reflexo por sobre o

    abismo entre as Cincias Naturais e as Humanidades. Pensamentos muitas

    vezes ingnuos, mas que talvez possam despertar no leitor algumas

    reflexes novas, talvez ligadas s suas prprias preocupaes. Se isto

    acontecer, o livro ter atingido um de seus objetivos.

    Finalmente, eu imagino um(a) estudante, indeciso(a) sobre sua

    vocao cientfica, lendo este livro a fim de ter uma idia de como a vida

    real dos cientistas brasileiros. Eu tenho minhas dvidas de que este livro

    retrate a vida real de quem quer que seja, mas acho que aqui se poder ter

    uma idia (espero que bem humorada) das alegrias, preocupaes,

    motivaes e dilemas da carreira cientfica no Brasil.

    O verdadeiro motivo, o alvo inconfesso de todo escritor,

    simplesmente evitar, da nica maneira eficiente que conhecemos, o

    esquecimento e a morte. A cada dia que passa ns todos mudamos, no

    apenas no nosso corpo mas tambm em nossa mente, ou seja, a cada dia

    partes de ns desaparecem no esquecimento. triste pensar que certas

    reflexes, s vezes geradas com tanto esforo, possam ser apenas bebs

    que morrero prematuros. Mas um livro contendo tais idias organizadas

    de maneira ordenada e coerente corria o risco de nunca ser escrito. Assim,

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    estas conversas constituem, juntamente com nossos filhos, sementes de

    memria que entregamos a um tempo futuro.

    Freeman,

    Ribeiro Preto, 15 de maio de 2003.

    Observaes e Agradecimentos: Agradeo a Richard Feynman, Noam

    Chomsky e Jean Paul Sartre a permisso de publicar nossa

    correspondncia. Os pseudnimos, como fica claro, se referem a nossos

    autores favoritos. O formato epistolar deixou o livro mais interessante, nem

    que seja pelo fato de que a criana que habita em todos ns possui uma

    curiosidade proibida acerca da correspondncia alheia.

    Embora em algumas partes do livro predominem mais os meus

    textos (parte da correspondncia deles se perdeu) o contedo das conversas

    pode ser inferido sem problema algum. Foram corrigidos ou modificados

    apenas erros ortogrficos e abreviaes, mas o estilo livre e o humor nem

    sempre politicamente correto dos e-mails foi mantido. No foram

    introduzidas notas explicativas sobre tpicos cientficos, uma vez que o

    objetivo do livro no a divulgao cientfica, mas sim retratar a

    linguagem e as preocupaes da sub-cultura cientfica no incio do sculo

    XXI. Entretanto, uma bibliografia comentada e um glossrio foram

    includos no final do livro.

    Agradecimentos a colegas e amigos no foram includos aqui

    devido necessidade de preservar o anonimato dos autores (to mais

    desejado quanto mais sabe impossvel). Finalmente, o autor-organizador

    pede desculpas por pequenas indiscries e referncias pessoais a alguns

    colegas. Estas so inevitveis em qualquer texto de natureza

    autobiogrfica.

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    Ol, Freeman,

    Acabo de ler o seu livro (o Paulo ler quando terminar um que est

    justamente comeando agora). Gostei, mas acho que isso no quer dizer

    muita coisa. Engraado que me lembrei agora de uma cena do filme Dona

    Flor e Seus Dois Maridos, em que ela aplaude entusiasticamente seu

    marido, farmacutico que acaba de fazer um discurso, dizendo: Ai, ele fala to bonito, no entendi nada, mas foi to lindo!.

    Em primeiro lugar, no sei no que voc estava pensando quando

    disse que ns temos o perfil que voc tem em mente como pblico alvo

    para esse livro. Mas isso tambm no importa muito. Farei o que voc

    pediu: te dar a minha impresso sobre ele, sem nenhuma outra

    preocupao. Se eu estivesse submetendo um texto meu apreciao de

    algum, gostaria muito que essa pessoa falasse honesta e abertamente sobre

    o que sentiu com a leitura, como faria a um amigo prximo em relao

    obra de um autor distante. E isso que farei a seguir.

    Em primeiro lugar, acho que o meu interesse imediato na leitura

    (comecei ontem noite e terminei hoje) no tem nada a ver com o interesse

    de cada um dos outros leitores do grupo que voc denominou pblico alvo,

    por razes bvias: Eu estava lendo algo: em primeira mo; para opinar;

    escrito por algum da minha famlia, por quem toro e, conseqentemente,

    com uma predisposio totalmente positiva; relacionado a um tema em

    relao ao qual sou completamente ignorante, mas que me fascina a Fsica; como estou sempre lendo, valorizo demais as sugestes ou

    indicaes de amigos para leitura, etc. Resumindo, motivao altssima.

    Bom, mas vamos l. Acho que voc tem razo: todo o texto

    permeado mais que isso, construdo a partir do desenvolvimento de idias, conceitos, textos e citaes de autores desconhecidos para o leigo e

    isso pode, sim, tornar a leitura desinteressante. No acho que o fato de o

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    leitor no chegar ao final do livro seja necessariamente o maior entrave

    para o sucesso. A maioria das pessoas com quem converso no conseguiu

    chegar ao fim de O mundo de Sofia e nem por isso ele deixou de ser um

    best-seller. Talvez a razo para esse sucesso seja o fato de ele ser muito

    interessante na primeira parte e ficar chato s a partir da metade, o que no

    ocorre com o seu livro, que j comea com alguma... densidade... Puxa,

    ser que no consigo achar um outro jeito de dizer o que senti no incio do

    livro?... como se eu dissesse assim pra mim mesma bom, por enquanto ele est s filosofando, umas coisas meio soltas, mas j, j engata e a engatou mesmo, s que quando engata, eu sou excluda daquilo, fico como

    que assistindo a um filme alemo sem legenda, vou adivinhando aqui e

    ali... Em algum momento poderia parar para entender melhor ou consultar

    mas consultar o qu? Um dicionrio tcnico de Fsica? Existe isso? Mas isso que eles esto falando ser que sobre Fsica? E mesmo que seja,

    e que o tal dicionrio exista, eu no teria saco pra isso porque, claro, sei

    que no bastaria, mas decido ir adiante que logo, logo vem uma cena auto-

    explicativa e trechos que dispensam legenda e acabo entendendo o

    suficiente pra curtir o filme.

    Acho que exagerei, no tanto assim, no! Mas que no entendi

    patavina de um monte de trechos, isso eu no entendi mesmo! Agora,

    quando voc fala a lngua dos mortais, uma delcia. Voc tem uma prosa

    informal, um humor inteligente, muita perspiccia e saltos bastante

    criativos, quase naturais, eu diria, com retorno ao tema anterior no

    momento exato.

    Numa frase: acho que ser um livro interessante e gostoso de ler, e

    ser lido at o fim por aqueles que o tiverem nas mos, mas o assunto no

    possui o appeal necessrio para fazer sucesso, para despertar a curiosidade

    do leitor (mdio) a menos que a editora acredite nele e invista numa

    promoo adequada. A, claro, moleza. Outro modo da obra ganhar o

    interesse do pblico quando bem aceita no meio acadmico e a,

    progressiva e vagarosamente, vai se infiltrando no pblico em geral, o que

    leva um tempo danado.

    Bom, mas eu fugi do assunto. Um fenmeno curioso que ocorreu,

    em alguns momentos durante a leitura, foi uma sensao de anacronismo!

    As discusses so to atuais, algumas sobre temas do cotidiano, que em

    alguns momentos eu sentia que voc deveria estar falando tambm do

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    atentado ao World Trade Center, ou esclarecendo qual a sua posio acerca

    da deciso americana de investir contra o Taleban, etc., como se fosse

    natural que ali estivessem todos as atualidades... Esquisito, n?

    Acho tambm que a sua famlia me refiro velha guarda vai ficar danada da vida com a exposio de algumas das tuas percepes a

    respeito de vrias caractersticas da psicodinmica familiar que voc

    revela.

    Tambm no gostaria de estar na pele da Nice. Voc a expe como

    algum cuja auto-estima est completamente comprometida ao mencionar

    duas de suas reclamaes (algo como voc s fica comigo pra eu lavar suas cuecas e, noutro momento, pra cozinhar). engraado. Creio que toda

    pessoa que fica em casa fazendo exclusivamente trabalhos domsticos por

    algum tempo, independente do seu sexo, faz esse tipo de reclamao em

    algum momento, at porque esse trabalho muito desestimulante. O

    problema, aqui, que as falas dela ficam muito marcadas, porque no h

    outras, ligadas a outros temas e humores, para fornecer elementos que

    possibilitem a construo de um quadro mais positivo (ou melhor, mais

    verdadeiro, mais prximo do real) dela. Ser que estou conseguindo ser

    clara? assim: como voc no faz muitas referncias a ela e a outras falas,

    ela surge como uma megera mal-humorada e rabugenta. Injusto, creio, para

    algum to cheia de vida (e energia positiva) quanto ela.

    As idias so colocadas e discutidas num tom de racionalidade

    assptica, sem o colorido emocional, sem a afetividade e paixo gostosa

    que aquecem a alma dos animais superiores domesticados. Voc se coloca

    como pretendente a intelectual, mas como leitora mediana de um pouco de

    tudo, inclusive da chamada subliteratura, eu diria que voc um intelectual

    e que mais a intelectuais que esse tipo de leitura agradaria, embora

    existam trechos deliciosos em que se pode quase tocar na sua pele e sentir

    sua emoo (como quando voc luta ferozmente contra a suposta acusao

    de ser um filsofo ingnuo, por exemplo).

    Que mais? H tambm vrios errinhos de digitao, alguns de

    portugus e de formatao ao longo do texto que, caso voc queira, eu

    posso anotar e te enviar por correio, se voc achar que d tempo de arrumar

    antes de enviar pra editora. Se este for o caso, me mande seu endereo

    completo que eu te mando no sbado, por correio.

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    Bom, acho que j falei demais e nem sei se no seria melhor ter

    esperado um pouco mais pra absorver e digerir melhor tudo isso e s

    depois opinar. Na verdade, acabei de ler, sentei aqui e vomitei o que sentia.

    Acho que melhor assim. A sensao que a leitura me causou est mais

    fresquinha.

    Desejo que eu esteja enganada com a maioria das minhas opinies

    acerca da receptividade do pblico, que voc d bastante sorte com o cara

    da editora que pegar o seu livro pra ler (agora me lembrei de outra cena,

    desta vez do filme O homem que amava as mulheres, do Truffaut, em que

    ele envia o seu primeiro livro para vrias editoras e todas o recusam

    achando-o muito ruim, exceto uma nica, cuja editora uma mulher, que

    se sensibiliza com o texto e o publica imediatamente) e que tudo d certo.

    Beijos pra Nice, pra voc e pras crianas.

    Maria Luiza.

    ******************************************************

    **

    Maria Luiza,

    Nossa! No esperava uma avaliao to longa e detalhada!!!

    Mas voc tem razo: no mximo dos mximos este livro poderia

    vir a ser um daqueles livros que as pessoas dizem que leram mas no

    leram, como o livro Zen e a arte de manuteno de motocicletas, do Robert

    Pirsig, livro cult da dcada de 80 que chatssimo!

    Acho que vou cortar algumas coisas do texto para deix-lo menos

    cansativo (por exemplo, o trecho em ingls sobre o fato de que genes no

    determinam comportamentos individuais).

    Agora, acho que voc no leu o subttulo: os quatros fsicos

    tericos NO conversam sobre fsica, mas sim sobre a vida, ou melhor,

    sobre o problema bsico do texto: Existe amor, amizade e cooperao sem interesses, ou sempre existe uma raiz de egosmo em tudo isso? Para discutir esta questo ns usamos analogias e metforas fsicas, matemticas

    e biolgicas por que elas so mais claras para ns do que outros tipos de

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    linguagem. No um hermetismo proposital, mais um vocabulrio

    conceitual que nos ajuda a pensar.

    As correes de ortografia eu estou fazendo, no precisa se

    preocupar... difcil fazer isso porque os e-mails originais estavam cheios

    de abreviaes, erros, coloquialismos etc. Agora, acho que o livro meio

    frio mesmo, ou melhor, transmite uma viso de mundo

    (estreo)tipicamente masculina (no poderia ser de outro modo, poderia?).

    Imagino o que o Paulo ir achar, diga para ele me escrever, ok?

    Uma soluo para o excesso de citaes seria anexar no fim do

    livro uma lista dos autores comentados junto com uma pequena

    bibliografia deles. Assim, as pessoas poderiam ter a sugesto de novas

    leituras, se quisessem se aprofundar em algum tpico discutido. Mas note,

    o objetivo do livro no didtico, mas apenas registrar o estilo de

    pensamento e linguagem da sub-cultura cientfica no comeo do sculo

    XXI. Voc j imaginou se editassem as cartas de Theo e Vincent Van

    Gogh atolando o texto com explicaes sobre artes plsticas, pintura no

    sculo XIX, as diversas escolas etc? Por incrvel que possa parecer, o que

    eu quero mesmo mostrar mais os tons emocionais, as perspectivas

    filosficas, as ingenuidades e as limitaes dos quadros mentais dos

    fsicos. No estou querendo ser didtico nem ensinar fsica ou cincias da

    complexidade para ningum, apenas dar um sabor (flavour) dessa sub-

    cultura universitria.

    Algumas pessoas me disseram que faltou um quinto personagem nestes e-mails, algum que defendesse uma viso espiritualista, como

    contraponto... Hum... Bom, existem dezenas de livros de fsicos espiritualistas por a, as pessoas podem compr-los vontade, eles vendem muito bem (o problema do espiritualismo que ele muito

    materialista!). Vamos dizer que este livro, fugindo da hegemonia

    espiritualista promovida pela indstria cultural dominante, tenta fornecer

    uma viso alternativa da realidade, tudo bem? Mas as suas observaes foram muito importantes e vou lev-las

    em conta na verso final. Vou tentar dar outro tom para a Nice, no tinha

    percebido tudo aquilo que voc colocou. Meu objetivo em manter aquelas

    frases era mais transmitir a sensao de solido (eu estava sozinho h mais

    de ms, ela estava de frias em Perube com as crianas, e eu sentindo uma

    falta louca dela e tendo apenas o pessoal da rede de e-mails pra conversar).

  • - 11 -

    O problema que os e-mails so reais, no so inventados, e eu no queria

    modific-los muito para poder manter o seu carter autobiogrfico: gostaria

    que meus filhos lessem o livro quando fossem adultos e viessem a

    conhecer seu pai como ele era com 36 anos e no com 50, como infelizmente ser o caso...

    Beijo, obrigado pela verdadeira resenha!

    Freeman

    ooOoo

    Maria Luiza, li e reli seu e-mail, mostrei para a Nice etc. Da me

    surgiu a seguinte idia, que no consigo tirar da cabea: sua carta daria

    uma tima introduo ao livro, pois ela resume para o leitor o contedo,

    avisa-o para no desistir da leitura, mostra os pontos fracos do livro de

    maneira que o leitor pode se identificar com voc etc. e tal. Eu na verdade

    achei sua carta uma tima introduo ou apresentao.

    O que acha? Posso inclu-la logo aps o prefcio?

    Freeman.

    PS: Estou mandando para a Companhia das Letras, Rocco e Vozes,

    mas acho que vai sair mesmo por alguma editora pequena. Eu pensei em

    pedir um comentrio de quarta capa para o Rubem Alves ou Frei Betto, no

    sei se vou conseguir...

  • - 12 -

    Ol, Freeman,

    No, eu no conhecia o site. Obrigada pela informao e pelo

    alerta. Sabe que me deu uma raiva danada ao saber por voc que aquela

    lista contra a Guerra ao Iraque era falsa?! Eu detesto correntes e listas e

    sistematicamente as ignoro, mas desta vez escorreguei. E nem me toquei

    que poderia ser falsa. Pacincia, n?

    Bom, no te respondi logo porque pretendia passar o olho pelo seu

    texto, pelo menos nos trechos acrescentados, mas acho que no vou

    conseguir, pelo menos no nos prximos dias. Estou lotada de coisas pr

    ler e fazer, trabalhando bastante no consultrio e 'pilotando' uma reforma -

    estou mudando meu consultrio pr av. Paulista - etc.

    Apenas reli aquele meu e-mail que voc quis colocar na

    introduo, j que voc havia sugerido usar meu nome e, nessa leitura,

    achei alguns trechos to bobinhos que sinceramente prefiro que voc

    mantenha o pseudnimo. Caso voc queira usar meu nome mesmo, prefiro

    melhorar o texto porque a verdade que quando escrevi eu estava

    completamente vontade, o meu senso crtico roncava e babava (como

    agora). Pr publicao penso que precisa de um pouquinho mais de

    elaborao e alguns cortes.

    Espero que esteja tudo bem com vocs e que possamos nos

    encontrar por a. Beijos na Nice e nas crianas.

    Carinho,

    Maria Luiza.

    Dezembro de 1998

  • - 13 -

    13/Dezembro/1998

    Noam,

    Vou te enviar o paper dos japoneses que querem fazer uma seleo

    virtual para competir com o Brasil ainda esta semana (que est super

    congestionada, fao a mudana para Ribeiro na tera, e viajo quinta para

    So Paulo para assistir de camarote o desempenho do Richard...)

    Bom, aps a poltica e o futebol, talvez pudssemos discutir um

    pouco de Cincia e Universidade... Uma coisa que me perturba que

    compreensvel que nossas discusses sobre Estado e Mercado sejam

    amadorsticas, afinal somos totalmente leigos nisso. Mas com relao

    Cincia e Universidade, talvez devssemos ter posturas mais refletidas,

    mais aprofundadas e profissionais (no direi mais consistentes porque esta

    uma palavra que o Richard no gosta...).

    Por falar em consistncia, aqui vai um Freemanismo:

    Ser que a frase de Bohr Verdade profunda aquela cujo contrrio tambm uma verdade profunda uma verdade profunda?

    Voltando... Eu gostaria de tentar descrever certos dilemas que

    percebo na nossa escolha pela carreira acadmica (pelo menos por

    enquanto, hein Jean? Voc quer mesmo trabalhar num banco como analista

    financeiro?). Mais especificamente, sobre nossa opo de fsicos tericos.

    Bom, eu acho que todos ns gostaramos de dar um significado um pouco

    mais amplo no nosso papel profissional.

    Tudo bem, tambm possvel encarar nossa carreira como apenas

    um meio de subsistncia (no sentido de, por exemplo, vender automveis

    ou ser funcionrio pblico... Ops, esqueci! Ns somos ou queremos ser

    funcionrios pblicos!). Neste caso, a discusso termina por aqui. Mas eu

    sinto que isso no verdade no nosso caso (nosso se referindo rede

    R.F.N.J por ordem de idade, Richard, Freeman, Noam e Jean). De alguma forma, gostaramos que nosso trabalho tivesse algum significado

    maior...

    No estou me referindo a um desejo de ganhar o Prmio Nobel. Se

    fosse isso, adotaramos estratgias mais condizentes, tipo ficar em cima de

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    um problema realmente quente (por exemplo, a natureza do cdigo neural),

    ir para um centro de excelncia internacional, planejar melhor nossa

    carreira etc. No, o Nobel para caras como Feynman...

    Uma opo para o tal significado maior (ou seja, maior que a

    produo de papers) seria a de desenvolver um trabalho de professor (ou

    melhor, educador)... Mas parece que no temos o talento de Feynman para

    isso tambm... Bom, tambm no parece que sejamos bons em poltica

    cientfica, quero dizer, contribuir para o fortalecimento da comunidade

    cientfica no Brasil ou coisas desse tipo.

    Tambm a aplicao do nosso trabalho em tecnologia parece estar

    meio fora de alcance: ns quatro no temos experincia alguma em

    aplicaes de mundo real em redes neurais. Posso ouvir o Richard dizendo

    que isso trivial, mas, desculpem, usando um pouco da minha pequena

    experincia de engenheiro civil e fsico experimental, posso afirmar que

    fazer coisas realmente funcionarem no mundo real no nada trivial.

    Finalmente, nossa vocao para a burocracia universitria tambm

    (felizmente) parece ser zero.

    Recapitulando, desculpem a franqueza, mas acho que as quatro

    letras da RFNJ no so Feynman, no vo ser grandes professores, nem

    grandes lderes cientficos, no vo desenvolver patentes milionrias, nem

    ser burocratas eficientes. Assim, volto para a pergunta inicial: pra que

    serve nosso trabalho? Apenas para nos permitir fazer uma compra de

    supermercado, comer uma pizza no final de semana, mandar as crianas

    para a escolinha...? Ah sim, esqueci, podemos pelo menos dizer que nos

    divertimos enquanto trabalhamos, um privilgio vedado maior parte da

    populao...

    Bom, acho que podemos nos resignar a isso, mas no acho que

    precisamos nos resignar a isso. A ltima opo, pelo menos a ltima que posso enxergar, ser um intelectual acadmico, ou seja, algum que pensa a cultura a partir de uma certa perspectiva (no nosso caso, a fsica

    terica), que tenta escrever artigos no Caderno Mais e/ou livros de

    divulgao, na pretenso de se tornar um formador de opinio. Acredito que essa funo de intelectual possa preencher aquela necessidade de

    significado maior do trabalho, que eu descrevi acima. Bom, mas isso s

    vale para quem sente essa necessidade, e como no tenho certeza de que

  • - 15 -

    vocs compartilham dessa aspirao (acho que o Jean diria messianismo religioso) vou escrever em primeira pessoa a partir de agora...

    Bom, talvez agora o Richard entenda porque fico bastante chateado

    quando ele faz ironias sobre essa ambio de ser intelectual. que esta a nica porta que eu ainda enxergo para um trabalho significativo, num

    sentido mais amplo do que um paper significativo numa rea que

    provavelmente estar totalmente esquecida por volta de 2015. Bom, como

    vocs podem ver, sempre estou dialogando silenciosamente com o Richard,

    e se peguei essa mania de question-lo ou provoc-lo, muitas vezes apenas

    por picuinha, isso simplesmente reflete a influncia que as posturas dele

    tiveram na minha formao.

    por isso tambm que minhas tentativas de escrever sobre temas

    culturais, por mais mal costuradas e precrias que sejam (tipo tentar

    mostrar que a ideologia do Santa F Institute tributria ao materialismo

    dialtico de Engels e outras coisas desse tipo), no so atividades

    inconseqentes. Eu fico imaginando que o Richard deve achar tudo uma

    grande perda de tempo, e que eu bem que poderia estar me dedicando a

    coisas mais srias, a trabalhos de fsica estatstica mais profundos, pois

    ainda no tenho carreira estvel. E que filosofar poderia ser deixado para depois, para a aposentadoria.

    Mas talvez tenha ficado claro porque no posso encarar assim,

    porque me resignar a ser um fsico apenas tcnico no me satisfaz, e por

    que no posso deixar para a aposentadoria esse tipo de coisa. Como mais

    dois argumentos para esta opo de tentar ser um intelectual, posso colocar:

    1. Estou ficando velho... Tenho 36 anos! Minha criatividade est

    diminuindo num ritmo assustador... Minha percepo da dinmica cultural-

    social est se tornando rapidamente ultrapassada. Na aposentadoria, nada

    terei de novo a dizer para meus leitores.

    2. Outros fsicos jovens esto fazendo esta opo de formador de opinio.

    3. Se eu renunciar agora ao papel de intelectual, estarei jogando fora toda a imensa parcela da minha vida que desperdicei lendo (e

    refletindo) sobre epistemologia, filosofia, psicologia, histria, poltica e...

    fico cientfica!

  • - 16 -

    4. Last but not least: talvez d para suplementar o oramento se eu

    publicar alguns livros de divulgao. Com sorte, dou entrada num

    carrinho...

    Ok, no foram dois, foram quatro motivos...

    Bom, desculpem se este mail est meio melanclico... Esse tom

    surgiu enquanto escrevia. Na verdade, estou extremamente otimista com o

    ano que se inicia, sinto que, graas FAPESP, tenho trs anos para mostrar

    o potencial cientfico que tenho (estando bem consciente daquilo que no

    tenho) na formao dos meus futuros alunos de mestrado...

    Ah, mudando de assunto (ou no mudando), descobri um estilo

    literrio que parece que tenho certa facilidade: depois de ler os aforismos

    de Oscar Wilde e uma coletnea de aforismos cientficos, estou burilando

    os meus aforismos (ou Freemanismos...)

    Exemplos:

    Para perceber quo profundamente enraizados so nossos preconceitos anticientficos, basta comparar as duas

    frases:

    A Cincia permite ver a beleza superficial do mundo, a Poesia sua beleza profunda. A Poesia permite ver a beleza superficial do mundo, a Cincia sua beleza profunda. A primeira frase soa bem, nos agrada, politicamente

    correta. A segunda, apenas provavelmente correta.

    A fuso entre cincia e poesia se d quando algum capaz de ver um mundo em uma pilha de areia, e entender porque uma hora pode durar uma eternidade.

    As trs maneiras mais rpidas de se ganhar dinheiro so: sexo, drogas e rock and roll.

    Argh!!! Que caretice!!!

    At a prxima!

  • - 17 -

    Freeman

    ooOoo

    14/Dezembro/1999.

    Salve, senhores! Que maneira de comear a semana. Pensei em

    responder, mas melhor deixar a resposta pairando no ar. Afinal, se

    Freeman especialista em colocar frases nas nossas bocas, ele mesmo

    poder talhar as respostas a seu mail.

    Espero que Freeman e Jean possam se encontrar na quinta nestas

    bandas, podemos pensar em fazer alguma coisa para jantar em casa. Que

    tal?

    Um abrao, Richard.

    PS: Como diria Neruda:

    Nosotros , los de entonces, ya no somos los mismos.

    Richard.

    ooOoo

    22/Dezembro/1998.

    Ol a todos,

    > Imagino que vocs estejam de frias. Bom, para todos, MERRY

    CHRISTMAS !!!! E UM ANO CHEIO DE PAPERS PARA VOCES...

    Obrigado, Freeman, Feliz Natal pra vocs todos tambm!

    Aproveitem o calor por mim e celebrem o Ano Novo na praia, se possvel.

    > (COMO FELICIDADE, SADE E HARMONIA SAO CONDIES

    NECESSRIAS PARA ISSO, ELAS ESTAO IMPLICITAMENTE

    INCLUIDAS...)

  • - 18 -

    No sei no se so condies necessrias, hein?... Pra muita gente

    exatamente o contrrio.

    > PS: Ningum gostou da minha frase sobre a frase do Bohr?

    Faz tempo que eu estou pra comentar o teu e-mail, mas no tive

    tempo. A sua meta-frase eu achei legal, mas o mais importante foi o resto

    da mensagem.

    > Vou te enviar o paper dos japoneses que querem fazer uma Seleo

    virtual para competir com o Brasil, ainda esta semana (que est super

    congestionada, fao a mudana para RP na tera, e viajo quinta para so

    Paulo para assistir de camarote o desempenho do Richard...).

    Em primeiro lugar, assistir o qu de camarote? O Richard vai

    prestar algum concurso? Eu no estou sabendo de nada... Em segundo

    lugar, que histria essa de seleo virtual? De futebol? Eles no

    precisam, o Brasil j perdeu do Japo uma vez (ou foi empate?), com a

    seleo real mesmo.

    > Bom, aps a poltica e o futebol, talvez pudssemos discutir um pouco de

    Cincia e Universidade... Uma coisa que me perturba que

    compreensvel que nossas discusses sobre Estado e Mercado sejam

    amadorsticas, afinal somos totalmente leigos nisso. Mas com relao

    Cincia e Universidade, talvez devssemos ter posturas mais refletidas,

    mais aprofundadas e profissionais (no direi mais consistentes porque esta

    uma palavra que o Richard no gosta...).

    No sei porque te perturba, no me parece que nossas posturas

    sejam pouco refletidas. Quem mela sempre a discusso o Richard, que

    fica fazendo piadinha :-). Falando srio agora, Freeman, quando a gente

    dividia sala a gente falava mais sobre essas questes do que sobre Cincia

    em si. E acho que a gente conseguiu nuclear algum consenso com isso, ao

    contrrio de muitos dos nossos colegas. Mas sigamos em frente:

  • - 19 -

    > Uma opo para o tal significado maior (ou seja, maior que a produo

    de papers) seria a de desenvolver um trabalho de professor (ou melhor,

    educador)... Mas parece que no temos o talento de Feynman para isso

    tambm...

    Minha primeira discordncia. Eu acho que o trabalho que o

    Richard e voc desenvolveram (no sei se ainda desenvolvem), por

    exemplo, com aquela turma da Biologia, muito importante e tem um

    mrito enorme. preciso que lembremos que o Feynman era um excelente

    professor, mas no curso das Lectures passaram trs ou quatro, entre

    sessenta e tantos. Era muito puxado, aparentemente. Mais importante

    ainda, na minha opinio, o fato de que o prprio Feynman reconheceu

    que uma das pessoas mais importantes na vida dele foi o seu professor de

    Fsica na escola (secundria, acredito). Um cara que no ganhou nenhum

    Nobel e, que eu saiba, um ilustre desconhecido. Mas voc no acha que

    esse cara conseguiu atingir esse significado maior pra carreira de professor que ele escolheu? Eu me sentiria realizado.

    > Bom, tambm no parece que sejamos bons em poltica cientfica, quero

    dizer, contribuir para o fortalecimento da comunidade cientifica no Brasil

    ou coisas desse tipo.

    Acho que isso leva tempo. As pessoas se envolvem em poltica

    cientfica quando j tm alguma experincia. No caso, acho que s o

    Richard, ou voc, teriam alguma coisa a dizer a respeito. Eu e o Jean ainda

    estamos novinhos :-)

    > Tambm a aplicao do nosso trabalho em tecnologia parece estar meio

    fora de alcance: Ns quatro no temos experincia alguma em aplicaes

    de mundo real em redes neurais.

    Bem, isso no precisa ficar assim, necessariamente.

    > Finalmente, nossa vocao para burocracia universitria tambm

    (felizmente) parece ser zero. Recapitulando, desculpem a franqueza, mas

    acho que as quatro letras do RFNJ no so Feynman, no vo ser grandes

  • - 20 -

    professores, nem grandes lderes cientficos, no vo fazer patentes

    milionrias, nem ser burocratas eficientes. Assim, volto para a pergunta

    inicial: pra que serve nosso trabalho? Apenas para nos permitir fazer uma

    compra de supermercado, comer uma pizza no final de semana, mandar as

    crianas para a escolinha...? Ah sim, esqueci, podemos pelo menos dizer

    que nos divertimos enquanto trabalhamos, um privilgio vedado maior

    parte da populao...

    Esse seu pargrafo uma coisa muito sria, Freeman. Eu acho que

    fazermos a pesquisa que ns fazemos tem mrito intrnseco. No que todo

    conhecimento tenha que ser obtido por causa do conhecimento em si. Eu

    admiro e, s vezes, invejo quem faz cincia aplicada. Mas conhecimento

    terico com valor intrnseco per se acho que no mal. E o Teorema de

    Fermat, a gente joga fora? No sei se sua questo filosfica/geral ou

    psicolgica/particular...

    No vou repetir tudo o que voc escreveu sobre a quase proposta

    de ser um intelectual acadmico. Mas acho que tudo o que voc est dizendo, pra resumir (corrija-me se eu estiver errado), que nossa

    experincia de fsicos tericos pode jogar alguma luz sobre fenmenos

    outros, como a cultura etc. E que a gente deveria dizer algo sobre o

    assunto. Eu no vejo nada de errado com isso, se que minha opinio tem

    qualquer importncia. S no sei se isso mais ou melhor do que ser um

    fsico terico medocre, como eu, por exemplo (no sentido estrito do

    termo). Quanto a escrever no Caderno Menos da Bolha pra comprar um

    carro, por mim tudo bem, desde que voc no escreva bobagem. Lembra do

    primeiro texto sobre o Engels que voc escreveu? Voc desceu a lenha no

    coitado, e depois teve que ressuscit-lo...

    Sem repetir os Freemanismos, voc j leu Saramago? Pelo menos

    agora que, depois do prmio Nobel, est na moda... :-)

    O Memorial do Convento, pra comear, talvez. Bom, gentes, vou pra Paris amanh, ento provvel que s nos

    falemos no ano que vem. Tudo de bom pra vocs, boas festas, cuidado com

    a cerveja.

    Abraos,

    Noam

    ooOoo

  • - 21 -

    23/Dezembro/1998.

    Caros Colegas:

    Acho que o Freeman estava um pouco pessimista, chego a essa

    concluso levando em conta o estado basal do Freeman. Concordo,

    discordo, volto a concordar com o que foi discutido, no sei bem se nessa

    ordem. Que diferena faz? s vezes ao ler o que vocs escrevem sobre o

    Richard (no me reconheo) acho que escrevem sobre uma caricatura que no expressa muito bem o que eu penso. Talvez seja o problema das

    piadinhas. Se retiradas do contexto no querem dizer nada alm da

    piadinha. E talvez nem isso.

    Sobre aplicaes: no acho que sejam triviais, no acho que no

    sejam importantes. Se falei mal de algum que faz aplicaes, com grande

    probabilidade era daqueles que usam o simulador X para backpropagation

    e esperam que faa misrias. Aqueles que apresentam a teoria como uma linha que representa o algoritmo de Hebb. O resto umas simulaezinhas

    baratas. Voc pode encontrar nos congresso mais de 70% de gente nessa

    linha. Todos eles inventaram o novo paradigma de aprendizagem e, gozado, podia ser implementado num simulador comercial...

    Estranho que se diga que no aprecio as aplicaes agora que a

    maior parte das minhas atividades est indo nessa rea. Acho que posso

    contribuir, depois de ter estudado um pouco de teoria, para algumas

    aplicaes.

    Sobre o professor de Feynman: vou alm do Noam. O professor de

    secundria no pode querer justificar sua existncia ao apresentar um

    Feynman como resultado dos seus esforos annimos. O que pode

    justificar o professor a idia de classe ou categoria, aliado a idias de

    computao distribuda. Exige-se da sociedade um grande nmero de

    professores porque alguns deles podero justificar a existncia da

    categoria. Quando um professor participa da formao de um Feynman

    toda a classe se beneficia e justificada.

    Sobre Natal e Ano Novo: eu no desejo nada alm do que desejo

    no resto do ano. Esta temporada de festas de uma hipocrisia globalizada

    que me irrita. a temporada de ser bonzinho. Implicaria que no resto do

  • - 22 -

    ano no devemos s-lo? Quando comea a temporada de caa? Dia 6 de

    janeiro? Eu sempre desejo a vocs trs e respectivas famlias grande

    felicidade independentemente do dia do ano. O objetivo da vida no

    publicar papers, fazer grandes descobertas, contribuir. simplesmente ser

    feliz. Se os itens acima mencionados ajudam a chegar a essa felicidade

    ento que venham juntos. Lembrem-se que no era na hora que o artigo

    saa publicado que vocs ficavam felizes, mas na hora de entender algo, na

    hora da idia. Se vocs no puderem ser felizes, ento desejo,

    ardentemente, um ano cheio de idias.

    Um abrao,

    Richard.

    ooOoo

    28/Dezembro/1998.

    Ol! Recebi um texto do Mrio Bunge mandado pelo Freeman

    (Annals da NY Academy of Science, mas no tenho a referncia completa)

    tem uma crtica muito interessante concerning vrios tipos de -ismos do

    tipo de (des)construtivismo e outros. O motivo pelo qual o Freeman

    mandou o texto que inclui tambm o Bayesianismo. Parece que faz

    sentido, diria ainda que muito boa. Especialmente porque diz exatamente

    o que eu teria dito antes de estudar o que Estatstica Bayesiana. Claro que

    de maneira muito mais eloqente e erudita. Ou seja, so perguntas

    relevantes que podem ser respondidas. Isso no evita nem defende das

    crticas que possam ser feitas a pessoas que usam tcnicas Bayesianas fora

    de contexto ou sem um rigor necessrio. Ainda mais, bate de raspo no

    problema central dos mtodos inspirados no teorema de Bayes, que ao

    meu ver a determinao da distribuio a priori. Isso no passa, como

    sugerido, pela modelagem da ignorncia. Muito pelo contrrio, diria o

    proverbial poltico mineiro.

    Acho interessante esse tipo de defesa da cincia contra

    cientificismos, pseudocincias e outras coisas academicamente perigosas.

    Os brbaros esto batendo s portas da muralha. Necessitamos gansos.

  • - 23 -

    perigoso, no entanto, colocar no mesmo saco uma teoria simplesmente

    porque usa a palavra subjetivo. Abraos,

    Richard.

    28/Dezembro/1998

    Caros amigos,

    Respondo algumas das colocaes do Noam e Richard... Hei Jean,

    espero que voc volte para a nossa pequena lanchonete virtual logo que

    puder...!

    Bom, talvez para fechar por enquanto a discusso sobre Mercado e

    Estado, uma sugesto: O livro Tudo Venda, de Robert Kuttner, Companhia das Letras, talvez nos desse uma viso um pouco mais

    elaborada sobre o tema... Tema que vai voltar, tenho certeza, durante a

    privatizao da Universidade que dever ocorrer nos prximos anos.

    >Esse seu pargrafo uma coisa muito sria, Freeman. Eu acho que

    fazermos a pesquisa que ns fazemos tem mrito intrnseco. No que todo

    conhecimento tenha que ser obtido por causa do conhecimento em si. Eu

    admiro e, s vezes, invejo quem faz Cincia aplicada. Mas conhecimento

    terico com valor intrnseco per se acho que no mal. E o Teorema de

    Fermat, a gente joga fora? No sei se sua questo filosfica/geral ou

    psicolgica/particular.

    Talvez o que eu esteja tentando enfatizar que os resultados de

    Fsica, enquanto no entram num circuito cultural mais amplo, apenas

    fazem o papel de Ambrsia intelectual para monges em torres de marfim.

    Acho que essa era a reclamao original do Jean. No sei se esse tipo de

    mrito intrnseco vai merecer o financiamento da sociedade (e muito menos dos mercados), sem que a mesma possa usufruir pelo menos algo da

  • - 24 -

    aventura intelectual envolvida. A propsito, sem o documentrio da BBC e

    o livro do Singh sobre a histria do Teorema, talvez voc no estivesse

    usando esse exemplo...

    Bom, a soluo proposta pelo Jean era o abandono dessas linhas de

    pesquisa tericas, sem mrito de mercado, pelo menos no terceiro mundo.

    A minha soluo mostrar que tais linhas (por exemplo, aprendizagem em

    redes neurais, modelos de evoluo darwiniana da cooperao, etc.) tem

    algo importante a dizer para a cultura geral (algo que Denett tenta fazer na

    Idia Perigosa de Darwin), algo que as pessoas sentem necessidade, sobre

    as grandes questes da vida (problema mente-corpo, o lugar da

    Humanidade na histria da Biosfera, etc...). E como tenho mais amigos que

    vocs nas chamadas classes subalternas, sei que as pessoas no esto apenas atrs de po e circo. Se assim fosse, Paulo Coelho no vendia tanto.

    > No vou repetir tudo o que voc escreveu sobre a quase proposta de ser

    um intelectual acadmico. Mas acho que tudo o que voc est dizendo, pra resumir (corrija-me se eu estiver errado), que nossa experincia de

    fsicos tericos pode jogar alguma luz sobre fenmenos outros, como a

    cultura etc. E que a gente deveria dizer algo sobre o assunto.

    Vou te corrigir: no que a Fsica terica tenha algo a dizer sobre

    a dinmica cultural (ela at pode ter). Mas simplesmente que ainda

    acredito que a Cincia faz parte da Cultura, que um cientista culto tambm

    um agente cultural, um formador de opinio, e que Filosofia e Fsica no

    so assuntos to distantes quanto, por exemplo, Filosofia e Agronomia, ou

    Odontologia...

    > Quanto a escrever no Caderno Menos da Bolha pra comprar um carro,

    por mim tudo bem, desde que voc no escreva bobagem. Lembra do

    primeiro texto sobre o Engels que voc escreveu? Voc desceu a lenha no

    coitado, e depois teve que ressuscit-lo...

    Dou o brao a torcer... Mas acho que estou melhorando com o

    tempo... A propsito, na ltima Revista Brasileira de Ensino de Fsica saiu

    o artigo Dialtica e as Leis da Fsica (ou ser A Fsica e as Leis da Dialtica) dum cara de Guaratinguet... Acho que vou te enviar, Noam,

  • - 25 -

    junto com o artigo dos japoneses (que ainda no mandei!). Bom, meu nico

    comentrio que j posso publicar algo sobre isso, pois:

    a) J no vou ser o primeiro, de modo que ningum vai achar que

    ligar Cincias da Complexidade com Dialtica um Freemanismo.

    b) O artigo do cara um verdadeiro lixo... E eu, que estava com

    escrpulos de publicar sobre isso na RBEF...!

    > Sem repetir os Freemanismos, voc j leu Saramago? Pelo menos

    agora, que est na moda... :-) O Memorial do Convento, pra comear, talvez.

    Bom, eu li O Evangelho Segundo Jesus Cristo... E gostei!

    Um Freemanismo: Ateu militante aquele cara que sente um prazer especial em contar para crianas pequenas que Papai Noel no

    existe. Nesse sentido, Saramago NO um ateu militante... Mesmo com

    todos os comentrios do Richard sobre o Natal, tambm acredito que ele

    no o seja...

    > s vezes, ao ler o que vocs escrevem sobre o Richard (no me reconheo), acho que escrevem sobre uma caricatura que no expressa

    muito bem o que eu penso.

    Richard, fica frio... Eu j notei que, no sei porque, ficamos

    cutucando uns aos outros nesses mails, com uma certa agressividade

    tipicamente masculina... Para melhorar o ambiente, talvez valesse a pena

    colocar a Silvia ou a Daniela na NET-RFNJ. Como eu acho que isso no

    vai ocorrer (afinal, este espao o nosso clube do Bolinha...), acho que

    vamos ter que conviver com isso...

    > Sobre o professor de Feynman: vou alm do Noam. O professor de

    secundria no pode querer justificar sua existncia ao apresentar um

    Feynman como resultado dos seus esforos annimos. O que pode

    justificar o professor a idia de classe ou categoria, aliado a idias de

    computao distribuda. Exige-se da sociedade um grande numero de

  • - 26 -

    professores porque alguns deles podero justificar a existncia da

    categoria. Quando um professor participa da formao de um Feynman

    toda a classe se beneficia e justificada.

    Quem diria...!!! O argumento talvez esteja correto, mas eu no

    esperava ouvir isso do Cavaleiro Solitrio que defendia que o perceptron

    simples deveria ser to bom quanto o comit Bayesiano... Tudo bem

    Richard, o professor secundrio talvez pudesse justificar seu trabalho para

    o mundo dessa forma. Mas poderia justificar seu trabalho para si mesmo,

    com o mesmo argumento? O mesmo vale para os professores do terceiro

    grau, como ns...

    Abraos!

    Continuo mais tarde, vou almoar!

    Freeman

    ooOoo

    28/Dezembro/1998.

    Sobre a justificativa do meu trabalho. Acho que a justificativa

    pblica aquela que dei para o professor de secundria. E ainda mais no

    nosso caso. Acho que o professor de secundria se justifica de forma

    imediata de muitas maneiras. Somos parte de uma classe de indivduos que

    contm alguns cavaleiros solitrios fantsticos, que temos orgulho de

    coloc-los como colegas. So aqueles que justificam o esforo da

    sociedade em manter-nos vivos. Mas ns tambm podemos nos justificar

    de forma pblica pelos nossos alunos: qualquer contribuio brilhante que

    vocs venham a trazer no futuro me justificar como ser humano

    produtivo. Queiram vocs ou no. Mas e a justificativa no aparente,

    aquela com a qual convivemos no meio da madrugada? Eu espero um dia

    satisfaz-la e tenho at o fim da vida (pelo menos da vida intelectualmente

    putatively productive) para isso. Essa a motivao e no a idia de

    participar de uma classe, grupo, pea da engrenagem.

  • - 27 -

    De resto, devemos viver honestamente, viver de maneira simples,

    podendo de vez em quando, mesmo que no todo dia, olhar-se no espelho o

    tempo suficiente para fazer a barba.

    Talvez a deixe crescer...

    Richard.

    Janeiro de 1999

    04/Janeiro/1999.

    Caros amigos,

    Ainda de frias, todos?

    Vou comentar os comentrios do Richard, e depois fazer uma

    proposta.

    > Ol! Recebi um texto do Mrio Bunge mandado pelo Freeman (Annals

    da NY Academy of Science, mas no tenho a referncia completa) tem uma

    crtica muito interessante concerning vrios tipos de -ismos do tipo de

    (des)construtivismo e outros. O motivo pelo qual o Freeman mandou o

    texto que inclui tambm o Bayesianismo. Parece que faz sentido, diria

    ainda que muito boa. Especialmente porque diz exatamente o que eu

    teria dito antes de estudar o que Estatstica Bayesiana.

    Exatamente, Richard. O objetivo de te mandar aquilo foi lembrar

    como as coisas no so fceis de distinguir, e que em termos de cincia

    nunca existe o preto e o branco, mas apenas tons de cinza, um maior ou

    menor grau de cientificidade. Isso no relativismo babaca, pois estou

    falando que existe cinza escuro e cinza claro, e nem todos os gatos so

    pardos.

  • - 28 -

    Mais ainda, como sei que voc anda lendo Jaynes e tudo mais,

    acho que voc pode ver o artigo do Bunge com outros olhos (os olhos de

    quem est sendo criticado). Lembro-me de voc ter dito que se convertera

    ao Bayesianismo Jaynesiano, ou pelo menos idia de clculo de

    probabilidades como lgica estendida (indutiva). Como voc bem observa,

    as perguntas de Bunge podem ser de alguma forma respondidas, com

    alguma argumentao e profundidade, embora isso talvez no signifique

    que satisfaam o Mrio Bunge, pelo menos por enquanto. Acho que o que

    caracteriza o approach cientfico no a possibilidade do consenso agora,

    mas a possibilidade do consenso algum dia...

    > Os brbaros esto batendo s portas da muralha. Necessitamos gansos.

    perigoso, no entanto, colocar no mesmo saco uma teoria simplesmente

    porque usa a palavra subjetivo.

    Bom, faz tempo que eu chamo ateno para esse tema de que a

    cultura mundial pode evoluir para um estado bastante refratrio

    perspectiva cientfica. Ou melhor, um mundo onde a cincia ser usada

    apenas como suporte da tecnologia, mas no como fonte de uma viso de

    mundo (isto proposto no Contracultura de Theodore Roszack). De certa

    forma, esse mundo j existe (especialmente na Frana, dizem...). O

    elemento novo talvez seja o de que a Universidade (que considero mais um

    gueto do que um bastio do racionalismo) talvez venha a se tornar um dia

    no bastio do Irracionalismo (ps-moderno)... Atualmente, s o Papa, com

    sua ltima encclica, ainda acredita nos poderes da Razo...

    Acho que est se formando um consenso entre diversos analistas de

    que o sculo XXI ser marcado no apenas por guerras religiosas e

    culturais, mas principalmente pela guerra de todas as religies contra a

    Cincia... Encaro tudo isso numa perspectiva bastante impessoal, de

    competio e acomodao de memes, todos lutando por espao num

    mundo com um nmero finito de crebros. A Cincia muito incmoda,

    fica querendo usar inseticida nos memes dos outros. Mas agora vai ter que

    passar para a defensiva, pelo menos em termos polticos. Eu preferia a

    acomodao e cooperao, mas acho que vai ser guerra mesmo. Essa lgica

    Darwiniana cultural escapa aos nossos desejos, pelo menos por enquanto...

  • - 29 -

    Mas agora ando mais tranqilo com relao a isso. Primeiro,

    porque no vejo muito que se possa fazer, ou o que fazer sem que se

    cometa injustias (como as de Bunge em relao a Bayes). Segundo, remar

    contra a mar uma maneira besta de se desperdiar a vida. preciso usar

    estratgias mais inteligentes, estratgias que ainda no sei quais so. Alm

    disso, desconfio que estamos numa situao em que todos os lados tm um

    pouco de razo.

    Em todo caso, curioso observar a passagem do tempo, as noticias

    dos jornais, e pensar se esses pequenos fatos que estamos observando tm

    um significado mais permanente, sinais de grandes tendncias culturais, ou

    se so apenas uma simples flutuao de espuma que desaparecer em breve

    no rio da histria. Por exemplo, ontem deu no Fantstico uma reportagem

    sobre a grande campanha que alguns evanglicos esto promovendo pelo

    direito dos pais de retirar seus filhos das escolas pblicas, transferindo-os

    para escolas confessionais ou para o aprendizado em casa. O argumento

    desses pregadores para os pais cristos de que eles no tm o direito de

    arriscar a alma de seus filhos colocando-os em contato com o ambiente

    secularista das escolas.

    E isso acontece mesmo com todo o esforo que as escolas publicas americanas tem feito em adequar seu ensino s necessidades da comunidade, reintroduzindo o ensino de religio, procurando no ofender as diversas opinies religiosas e culturais envolvidas etc. etc...

    De algum modo isso se parece com a quebra de algum principio

    bastante fundamental (originrio do Iluminismo) sobre educao laica para

    todas as crianas. Como o Iluminismo o grande vilo da histria

    atualmente, a contestao desse principio vista como um grande ato

    libertrio...

    Bom, mas talvez isso seja apenas uma espuma que se dissipe daqui

    a alguns anos. Ou ento uma das pequenas nuvens negras (existem outras)

    que anunciam a tempestade. Quem pode dizer? Se tentarmos, talvez no

    faamos um trabalho muito melhor que os astrlogos durante a passagem

    do ano...

    Pxa, desculpem os devaneios... Acho que sndrome de comeo

    de ano... Alm disso, no est dando pra trabalhar. Meu computador veio

    com problemas (o ventilador chupa o ar para dentro em vez de jog-lo para

  • - 30 -

    fora, esquentando muito o sistema). Vou ter que levar para Araraquara para

    trocar. E s hoje consegui instalar o Fortran...

    Bom, sobre a proposta para dar lenha para as nossas conversas:

    Acho que seria interessante ler O Acaso e a Necessidade, de Jaques

    Monod, fazendo uma avaliao aps trinta anos (o livro de 1969).

    Poderamos fazer pequenos comentrios, captulo por captulo. que,

    segundo os critrios de Monod, (quase) todo o approach das cincias da

    complexidade no cincia, pseudocincia religiosa. Como Monod

    provavelmente seria considerado um existencialista cientfico, acho que a

    discusso interessaria bastante ao Jean.

    Mas falando um pouco de Fsica, me digam o que vocs acham

    dessa idia:

    Imagine um plano que contm pontos distribudos segundo uma

    densidade uniforme. Para ser pictrico, imagine que cada ponto uma

    fonte de comida para uma formiga. A formiga comea num certo ponto,

    usando uma regra determinista de movimento: Ela deve se dirigir para o

    ponto mais prximo, desde que esse ponto no tenha sido visitado nas

    ltimas vezes ( a janela de memria). fcil ver que se igual a zero, existem muitos pares de pontos

    tais que eles so os vizinhos mais prximos um do outro. Esses pares de

    pontos so atratores da dinmica (quando a formiga chega neles, fica

    pulando de um para outro num ciclo dois). Existem muitos desses pares

    atratores (qual a densidade deles?).

    Bom, se a janela de memria = 1, ento apenas so possveis atratores com trs pontos ou mais. Se aumenta, os transientes vo aumentando e os ciclos atratores so maiores.

    Meu chute que existe alguma espcie de transio de fase a, pois

    existem ingredientes que esto competindo: a regra de ir para o ponto mais

    prximo faz o papel de uma fora atrativa, que tende a prender a formiga

    em ciclos, faz o papel de energia. A janela de memria faz um papel de

    fora repulsiva, entrpica. (Desculpem a liberdade nos termos...) Acho que

    em algum momento existir uma delocalizao do random walk feito pela

    formiga, ou seja, surgir uma probabilidade finita de que o caminho nunca

    se repita ou de que a formiga escape de qualquer rea finita traada sua

    volta nesse plano (no sei se as duas coisas seriam idnticas).

  • - 31 -

    Bom, vou tentar simular isso nessas frias, e se algum estiver a

    fim de brincar um pouco, que me escreva. Uma questo que tenho que

    no sei se essa formulao do problema, embora bastante simples em

    palavras, seja a melhor em termos de eficincia computacional. Afinal, a

    cada passo, tenho que medir todas as distncias entre o ponto presente e

    todos os outros, para determinar o vizinho mais prximo. E tambm tenho

    que determinar quando se chega a um ciclo atrator, e qual o seu tamanho.

    Pois o objetivo fazer uma estatstica do tamanho desses ciclos em funo

    de . Note que escolhi pontos distribudos aleatoriamente para evitar a

    degenerescncia (sobre quem o vizinho mais prximo) que ocorre se

    usarmos uma rede regular. Notem tambm que isso lembra um self-

    avoiding random walk, mas no um random walk porque a regra

    determinista. Um random walk no tem ciclos...

    Algum tem alguma sugesto para tornar a simulao mais

    eficiente?

    At!

    Freeman.

    PS: Richard e Jean, acho que no vai dar para eu viajar na quarta feira...

    que pena! Escrevam!

    On Tue, 5 Jan 1999, Richard wrote:

    >> Algum tem uma sugesto para tornar a simulao mais eficiente?

    > Voc pode escrever uma matriz Dij de distncias com (N-1) (N-1)/2

    entradas e basta olhar quais os vizinhos j do sito i quem tm Dij menor

    (tipicamente demora, no pior dos algoritmos, ordem(N)). Ainda deve

    manter um vetor M de dimenso \tau para manter um arquivo dos ltimos

    \tau stios visitados. A cada passo faz um update de M. Nota que um

    passeio na matriz D e no no espao onde residem os pontos, portanto

    parece que no h influncia da dimenso. Ops, retiro o que disse, a

  • - 32 -

    matriz D no tem componentes aleatrios descorrelacionados, pelo

    contrrio, as correlaes dependem fortemente da dimenso d.

    Pois , o Richard correu na minha frente, eu ia dar exatamente essa

    dica. Alis, sobre a influncia da dimenso na matriz, se eu no me engano,

    isso foi abordado num paper sobre o problema de Traveling Salesman com

    cidades aleatrias, saiu no Cond-Mat faz uns meses... um ps-doc de Los

    Alamos, se voc quiser eu procuro a referncia direitinho, Freeman.

    Abraos,

    Noam.

    08/Janeiro/1999.

    > Bom, talvez para fechar por enquanto a discusso sobre Mercado e

    Estado, uma sugesto: o livro Tudo a Venda, de Robert Kuttner, Companhia das Letras, talvez nos desse uma viso um pouco mais

    elaborada sobre o tema... Tema que vai voltar, tenho certeza, durante a

    privatizao da Universidade que devera ocorrer nos prximos anos.

    Bom, j vi que a coisa est feia mesmo a no Brasil, faz tempo que

    eu no via o Freeman assim to pessimista. Eu no sei qual a desse

    Kuttner, mas em todo caso vou ler um livro que tambm me foi muito

    recomendado, O horror econmico, de Viviane Forrester, que parece que pe o neoliberalismo no seu devido lugar.

    > Talvez o que eu esteja tentando enfatizar que os resultados da Fsica,

    enquanto no entram num circuito cultural mais amplo, apenas fazem o

    papel de Ambrsia intelectual para monges em torres de marfim. Acho que

    essa era a reclamao original do Jean. No sei se esse tipo de mrito intrnseco vai merecer o financiamento da sociedade (e muito menos dos mercados), sem que a mesma possa usufruir pelo menos algo da aventura

    intelectual envolvida.

  • - 33 -

    Pr comeo de conversa, vamos deixar uma coisa clara: os

    mercados que se fodam!!! Se voc entra na discusso j do ponto de vista

    do mercado, com certeza no encontra sada depois. No d pra olhar para

    as coisas sob a perspectiva do mercado e tentar salv-las por outros mritos

    a posteriori. Provavelmente nada do que a gente fez em teoria da

    aprendizagem serve um epsilon para o mercado. Ento nada daquilo vale

    um epsilon? Agora, excludo momentaneamente o mercado desta

    discusso, envolver a sociedade est mais do que certo, a sim podemos

    conversar.

    > A propsito, sem o documentrio da BBC e o livro do Singh sobre a

    histria do Teorema, talvez voc no estivesse usando esse exemplo...

    Pois , mas voc est invertendo tudo. Justamente, a gente tem que

    fazer aqui o que eles fizeram l, por que que o meu exemplo ruim? Em

    linguagem contempornea, o sujeito foi sustentado pelas tetas do Estado,

    ficou sete anos sem publicar uma vrgula e depois apareceu com um

    teorema que no serve pra melhorar o desempenho de nenhum microondas.

    No bastasse isso, ainda veio a BBC e gastou mais uma grana pra

    patrocinar um documentrio sobre tudo isso. No venham me dizer que

    isso fez crescer o mercado editorial ingls, que essa foi a importncia,

    porque no foi.

    > Bom, j comecei com O Evangelho Segundo Jesus Cristo... E gostei!

    A, O Evangelho... Uma das obras primas da literatura em lngua

    Portuguesa. Aquilo sensacional, no ?

    > Nesse sentido, Saramago NO um ateu militante... Mesmo com todos

    os comentrios do Richard sobre o Natal, tambm acredito que ele no o

    seja...

    O Saramago , na minha opinio, um grande humanista. Desses

    que esto em falta hoje em dia. Tem ele, o Sebastio Salgado (fotgrafo

  • - 34 -

    brasileiro)... Quem mais? Algum lembra de algum outro nome que tenha

    defendido posies humanistas recentemente?

    > Richard, fica frio... Eu j notei que, no sei porque, ficamos cutucando

    uns aos outros nesses mails, com uma certa agressividade tipicamente

    masculina... Para melhorar o ambiente, talvez valesse a pena colocar a

    Silvia ou a Daniela na NET-RFNJ. Como eu acho que isso no vai ocorrer

    (afinal, este espao o nosso clube do Bolinha...), acho que vamos ter que

    conviver com isso...

    Pois , eu tambm achei estranho o Richard ficar chateado, j que

    geralmente ele o primeiro a provocar. Mas tudo bem, acho que ele estava

    sensibilizado pelo esprito natalino.

    > Tudo bem, Richard, o professor secundrio talvez pudesse justificar seu

    trabalho para o mundo dessa forma. Mas poderia justificar seu trabalho

    para si mesmo, com o mesmo argumento? O mesmo vale para os

    professores do terceiro grau, como ns...

    Olha, Freeman, eu acho que sim. Eu quero continuar fazendo

    minha pesquisazinha mediana, quero dar aulas melhores do que as que eu

    tive (com exceo das de termodinmica, que foram timas :-) ), e fico ali

    contando com a probabilidade infinitesimal de que um dia me caia pela

    frente um Feynmanzinho brasileiro de nome Silva (primo meu, portanto).

    Quem sabe? Alis, acho que quem resolveu esta questo mesmo foi o

    Richard. O importante ser feliz. Por isso desconfio que a sua questo

    tenha sido mais pessoal do que qualquer outra coisa. Mas posso estar

    enganado.

    Abraos

    Noam

    08/Janeiro/1999.

    Oi Noam, bem-vindo ao ano 1999!

    Respondo ao comentrio do Noam sobre as classes de

    termodinmica. Essa frase sobre dar aulas melhor do que as que eu tive

  • - 35 -

    j foi usada vrias vezes. Meu irmo A. e eu chegamos a essa concluso h

    mais de 15 anos atrs.

    Apesar de no parecer possvel, acho que tirando as preciosas

    horas que tive com Dick [Richard P. Feynman] tambm o consegui. No

    difcil conseguir isso. Tenho certeza que vocs vo conseguir. Talvez no

    todo dia, mas na mdia.

    Sobre aplicaes: tem a ver com o uso de RN para implementar o

    mtodo de Mxima Entropia para tratar dados de ressonncia magntica

    para obter imagens mdicas.

    O SUPER MERCADO:

    Sobre teorias do mercado e cincia: esto levando to a srio a

    idia de aplicar teorias de mercado universidade que o Bresser Pereira,

    ex-supermercado Po de Acar, assecla do Diniz, o ministro de cincia e

    tecnologia do .Br.

    Um abrao,

    Richard.

    8/Janeiro/1999

    > Oi Noam, bem-vindo ao ano 1999.

    Obrigado Richard. E apesar de voc dizer no gostar dessas coisas,

    feliz ano novo. Feliz ano novo pra vocs todos, algo que eu me esqueci de

    mencionar no calor das discusses dos e-mails anteriores.

    > Respondo ao comentrio do Noam sobre as classes de termodinmica.

    Essa frase sobre dar aulas melhor do que as que eu tive j foi usada vrias vezes. Meu irmo A. e eu chegamos a essa concluso h mais de 15

    anos atrs.

  • - 36 -

    O que um sinal de que algum no mundo se preocupa com isso,

    no mesmo? Acho que uma utopia das mais saudveis. E, para que

    fique registrado, eu estava me referindo s aulas de uma professora cujo

    nome no revelo por tica profissional. Numa aula de estado slido, essa

    senhora conseguiu encontrar um modo normal de vibrao onde o cristal

    inteiro oscilava pra l e pra c. Portanto, a minha tarefa fcil.

    > Apesar de no parecer ser possvel, acho que tirando as preciosas horas

    que tive com Dick tambm o consegui. No difcil conseguir isso. Tenho

    certeza que vocs vo conseguir. Talvez no todo dia, mas na mdia.

    Oxal, Richard, Oxal...

    > Sobre aplicaes: tem a ver com o uso de RN para implementar o

    mtodo de mxima entropia para tratar dados de ressonncia magntica

    para obter imagens mdicas.

    Ah , voc tinha me falado, desculpe. Eu achei bem legal aquela

    sua idia. E a, est funcionando? Voc est com quantos estudantes,

    Richard?

    > O SUPER MERCADO: sobre teorias do mercado e cincia: esto

    levando to a serio a idia de aplicar teorias de mercado universidade

    que o Bresser Pereira, ex-supermercado po de acar, assecla do Diniz,

    o ministro de cincia e tecnologia do .Br

    Desde quando, hein? Eu estou meio por fora... Cara, que loucura...

    Passados alguns meses desde a implantao dos cortes no CNPq, como

    ficou a coisa na prtica? Fora as da FAPESP, tem sado bolsas novas em

    SP?

    Abraos,

    Noam.

  • - 37 -

    08/Janeiro/1999.

    Ois de novo,

    Desculpem-me pela avalanche de mensagens, mas que hoje

    sexta-feira, dia de colocar todos os e-mails em ordem, e eu resolvi

    aproveitar. Alm disso, o papo est bom.

    >Bom, faz tempo que eu chamo ateno para esse tema de que a cultura

    mundial pode evoluir para um estado bastante refratrio perspectiva

    cientifica. Ou melhor, um mundo onde a cincia ser usada apenas como

    suporte da tecnologia, mas no como fonte de uma viso de mundo.

    De fato, Freeman, faz tempo que voc fala nessa possibilidade de

    nos tornarmos todos irracionais. Mas eu s queria entender o que voc quis

    dizer exatamente com a citao da Frana, que eu no entendi. E queria

    entender mais ainda a aparente defesa que voc fez do Papa... Se foi tudo

    ironia, mil perdes, acho que estou desacostumado. Sabe como que , o

    povo aqui no tem destas coisas...

    Acho que est se formando um consenso entre diversos analistas

    de que o sculo XXI ser marcado no apenas por guerras religiosas e

    culturais, mas principalmente pela guerra de todas as religies contra a

    Cincia... Encaro tudo isso numa perspectiva bastante impessoal, de

    competio e acomodao de memes, todos lutando por espao num

    mundo com um nmero finito de crebros. A cincia muito incmoda,

    fica querendo usar inseticida nos memes dos outros. Mas agora vai ter que

    passar para a defensiva, pelo menos em termos polticos. Eu preferia a

    acomodao e cooperao, mas acho que vai ser guerra mesmo. Essa

    lgica Darwiniana cultural escapa aos nossos desejos, pelo menos por

    enquanto...

    Freeman, acho que eu j deixei claro em outras oportunidades

    como gosto desta histria dos memes. Digo isso de sada pra que a frase

    que vem a seguir fique devidamente equilibrada: eu acho que o seu

    pargrafo acima de uma ingenuidade enorme. A luta que se trava no

  • - 38 -

    mundo hoje no tem nada a ver com guerras contra a Cincia ou qualquer

    coisa parecida. O mundo est esse horror que est (e vocs a esto em

    melhores condies de dissecar o horror) porque o capital ganhou o jogo e

    est mandando. Mandando como nunca mandou. A guerra dos memes

    entre capitalismo e quem quer que sobreviva. Gostaria muito que o

    oponente fosse o humanismo (e no me venha voc defender as baleias e

    primatas superiores, porque eles esto bem), mas est difcil.

    As guerras religiosas surgem porque as pessoas esto vivendo

    numa misria absoluta, fica fcil para um luntico qualquer aparecer e

    prometer os cus. Tivemos o Collor no Brasil, que foi uma verso atia

    light. E temos uns lunticos muulmanos, cristos, budistas, judeus e o que

    mais voc quiser. Mas a loucura maior no essa. A loucura maior eles

    venderem (e a gente comprar) que o ataque dos EUA contra o Iraque tem

    qualquer trao de legitimidade, que os israelenses so bonzinhos e os

    palestinos so os maus, que o Brasil est uma maravilha, que aposentadoria

    coisa de maraj e poluio progresso. Est na pgina da UNICEF, no

    vou nem traduzir:

    The State of the World's Children 1999 warns that, with nearly a billion people a sixth of humanity functionally illiterate, world peace and prosperity is threatened. Providing education for all will cost only an

    additional $7 billion a year less than is spent annually on cosmetics in the United States or ice cream in Europe.

    Eu acho que se voc se sente frustrado com o seu papel de Fsico

    na sociedade, a est uma boa oportunidade: passe esses dados pra frente,

    isso tem um significado maior, talvez at maior do que o que voc buscava.

    E no s passar pra frente. Ao contrrio do que voc disse, no acho que

    assistir passivamente aos memes brigarem seja a coisa a fazer. Eu tambm

    no sei o que tem que ser feito. Mas alguma coisa tem que ser feita. A

    discusso sobre os memes interessante, mas agora eu pergunto: segundo

    valores humanistas (no de mercado), qual sua relevncia? (isto foi uma

    provocao, porque eu sei que tem relevncia).

    O meu discurso parece duro e radical (se eu estivesse falando da beleza dos mercados, me chamariam de apaixonado, mas como contra,

  • - 39 -

    o termo radical). Talvez seja. Mas no to radical como as bobagens mercadolgicas que se l no jornal todos os dias.

    > Bom, sobre a proposta para dar lenha para as nossas conversas: Acho

    que seria interessante ler O Acaso e a Necessidade, de Jaques Monod,

    fazendo uma avaliao aps trinta anos (O livro de 1969). Poderamos

    fazer pequenos comentrios, captulo por captulo. que, segundo os

    critrios de Monod, (quase) todo o approach das cincias da complexidade

    no cincia, pseudocincia religiosa. Como Monod provavelmente

    seria considerado um existencialista cientfico, acho que a discusso

    interessaria bastante ao Jean.

    Qual o ttulo original? Eu topo a brincadeira, mas s se todo

    mundo levar a srio.

    Pera que chegou outro e-mail do Richard...

    Abraos,

    Noam.

    12/Janeiro/1999

    Este texto que segue no est contido nas obras completas de

    JLBorges. Aparentemente, de acordo com o C., a Maria Kodama o renega

    e no o admite como sendo de autoria do JLB. Meu pai complementa que

    isto dele, mas no foi publicado e sim dito durante uma entrevista, de

    improviso. A traduo annima e acho que assim merece ficar.

    ***

    INSTANTES

    Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na prxima trataria

    de cometer mais erros.

  • - 40 -

    No tentaria ser to perfeito, relaxaria mais, seria mais tolo ainda

    do que tenho sido, na verdade bem poucas coisas levaria a srio.

    Seria menos higinico.

    Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais

    entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.

    Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos

    lentilhas, teria mais problemas reais e menos problemas imaginrios.

    Eu fui uma dessas pessoas que vivem sensata e produtivamente

    cada minuto de sua vida; claro tive momentos de alegria.

    Mas se eu pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons

    momentos, porque, se no sabem, disso feita a vida, s de momentos, no

    os perca agora.

    Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um

    termmetro, uma bolsa de gua quente, um guarda-chuva, um pra-

    quedas, se voltasse a viver viajaria mais leve.

    Se eu pudesse voltar a viver, comearia a andar descalo no meio

    da primavera e continuaria assim at o fim do outono.

    Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e

    brincaria com mais crianas, se tivesse outra vez uma vida pela frente.

    Mas, j viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.

    Jorge Luis Borges

    ***

    claro que tive momentos de alegria. At o mais chato de ns

    tropea neles. O problema saber encontrar e construir esses instantes, e se

    possvel maximiz-los. Por vrios motivos, alguns posso at contar, este

    texto lembra o Feynman. Acho que ele leu isto muito tempo antes de JLB

    t-lo dito.

    Lembro dele batucando na mesa e na lousa antes de comear a

    aula, sorrindo: I feel happy and dont know why: if only we could know how to feel this more often.

    Essa a grande pergunta, acho que ele soube, se no respond-la

    de forma rigorosa, dar uma boa aproximao.

  • - 41 -

    Richard

    **********************************

    12/Janeiro/1999

    Ol, moada!

    Estiveram ativos de ontem para hoje, no?

    Bom, Richard e Jean, espero poder viajar para So Paulo antes do

    dia 19. O problema que estou tentando ir de carro com um irmo, para

    pegar as coisas da minha sala, mas ainda no consegui acertar o dia com

    ele.

    Sobre o texto do Borges: acho que vou na contramo da trajetria

    do Richard... Vejam bem, eu era Soft, New Age, f do Rubem Alves e do

    pessoal de contracultura. Conforme o tempo foi passando, fui ficando

    insatisfeito com tudo isso (Romantismo Irracionalista) porque acho que

    um beco sem sada: um beco agradvel, com barzinho e msica ambiente,

    mas ser que o sentido da vida viver num barzinho desses?

    Por isso, s para provocar, vou ser mais radical: olha, sinceramente

    acho que o objetivo da vida no ser feliz (no sentido usual do termo). Se

    fosse, tudo estaria bem no Admirvel Mundo Novo de Huxley, no? Ou seja, eu no sei qual o sentido da vida (O Jean diria: o sentido

    da vida no est dado, fruto de uma escolha existencial no justificvel),

    mas sei qual no . Ser feliz pode ser uma aspirao pequena burguesa, mas certamente no um objetivo satisfatrio. E vou explicar porque: a

    felicidade, pelo menos o estado emocional/existencial de felicidade real (e

    no uma felicidade nominal intelectualizada) o reflexo de um gradiente.

    Felicidade uma derivada, no um estado. Ficamos felizes quando

    ganhamos ou conquistamos algo, ou quando experimentamos algo

    diferente: o menino de rua que encontra 50 reais fica muito mais feliz que

    o Bill Gates quando ganha um milho.

    Bom, a busca da felicidade, ainda nesse sentido pequeno-burgus,

    seria essa constante busca dessas experincias novas, de drogas cada vez

    mais fortes, poderamos dizer. No me parece ser um objetivo razovel ou

    respeitvel, que esteja altura da singularidade humana. Essa felicidade

    mesquinha demais!

  • - 42 -

    Outra soluo proposta pela contracultura e por algumas religies

    a imerso em Deus ou no Nirvana, o cessar de todo pensamento e de toda a

    angstia, a felicidade total da inconscincia. Nirvana, a droga final, sem

    tolerncia ou contra-indicaes! Bem, no exatamente: basta olhar a

    literatura da rea que se percebe que as experincias religiosas tambm

    esto sujeitas ao fenmeno de tolerncia efeitos cada vez menores para os estmulos dados e os msticos freqentemente sofrem de efeitos colaterais extremamente graves... Em todo caso, se voc acredita que o

    sentido da vida a felicidade, e se o guru te diz que a verdadeira felicidade

    encontrada apenas no Nirvana, e que voc no saber disso enquanto no

    experimentar, ento todos precisamos buscar o Nirvana, no?

    Outra idia que o sentido da vida o amor. Mesmo um deficiente

    mental preso numa cama pode amar. E, claro, gostaramos que o sentido

    da vida fosse acessvel a todos. por isso que idias cor-de-rosa tipo O sentido da vida o amor, no o conhecimento so de fcil aceitao... O amor democrtico, o conhecimento no. Todos podem amar.

    Ora, eu no descarto esse tipo de felicidade. O amor e a empatia

    pelos outros, a comear pelas crianas, um instinto mamfero. Se a

    felicidade ser um mamfero feliz, ento devemos amar. Bom, como sou

    tambm um mamfero, tudo bem, no excluo esse objetivo mamfero da

    vida. Na verdade, dentro de minha pequena famlia, creio estar desfrutando

    dele.

    Mas sou tambm um homem, e realmente ocorreu uma transio de

    fase na aurora da humanidade: o ser humano um bicho, mas tambm

    mais que um bicho. A Humanidade tem conscincia de um mundo a sua

    volta, e capaz de fazer perguntas: por exemplo, por que afinal existe um

    Universo, em vez de nada? a Vida uma flutuao da entropia a ser logo

    apagada, ou se espalhar pelo universo (O esverdear da Galxia proposto

    por Freeman Dyson)? Como possvel que campos qunticos (de que, no

    fundo, todos ns somos feitos, lembrem-se) possam pensar e escolher?

    Podemos realmente escolher?

    Eu no quero ser feliz como as bactrias num gradiente de acar!

    Pensem bem, imaginem como era o mundo antes da conscincia humana

    (ok, talvez mamfera tambm): um enorme rio de processos inconscientes,

    uma escurido infinita, um desperdcio de beleza imenso, j que no havia

    ningum para perceber isso. A escurido da inconscincia a mais

  • - 43 -

    profunda que existe! No havia imagens do mundo, o mundo se resumia a

    campos qunticos fluindo silenciosamente na escurido eterna.

    Assim, sou mais como o selvagem educado por Shakespeare do

    Admirvel Mundo Novo, que, mesmo sob o risco de ficar infeliz, no tinha

    medo de encarar o mistrio e a tragdia humanos, em contraste com os bem

    ajustados e felizes habitantes do Mundo Novo...

    A Humanidade a nica espcie da Biosfera com a capacidade de

    fazer perguntas. No importa que no possamos respond-las. No

    podemos delegar essa tarefa para as outras espcies. No podemos

    renunciar a ela, seria o cmulo do egosmo. As outras espcies no podem

    perguntar, apenas sofrer ou se alegrar. E esperar o dia de sua prpria

    extino... Mas o futuro delas talvez dependa das respostas que

    encontrarmos... Da nossa capacidade de defender a Biosfera, talvez... Por

    exemplo, lembremos que a pergunta no SE um cometa ou asteride pode

    se chocar com a Terra, mas sim QUANDO... Parece que a probabilidade

    de dois eventos maiores que Tunguska por sculo, o que no nada

    baixo... Ok, os dinossauros no perguntavam qual o sentido da vida, e

    quando o fim veio eles nem notaram... isso! O bombardeio incessante de

    cometas elimina no apenas a vida, mas o sentido da vida! Uma frase para

    o Jean!

    Bom, mas estou enfatizando demais o lado das perguntas

    intelectuais. Proponho um sentido da vida mais democrtico: o sentido da

    vida, para os seres humanos, criar. Criar construir novas configuraes

    de tomos, configuraes inditas no Universo, que jamais existiram e que

    sem nossa interveno nunca existiriam. Afinal, todos somos Demnios de

    Maxwell. Criar algo participar do processo de auto-organizao do

    Universo. O poema que fao hoje no existe em nenhum lugar nenhum,

    dentro de 150 bilhes de Galxias, a no ser aqui.

    Criar apostar que a Vida vai vencer a Entropia, mesmo que seja

    uma aposta condenada ao fracasso (No sei se , j que em sistemas

    gravitacionais a termodinmica no est bem definida...) Alm disso, temos

    muito tempo! Pelo menos um trilho de anos, segundo estimativas

    pessimistas... A morte trmica do Universo aparentemente foi super

    enfatizada...

    Se for assim, criar um fim em si mesmo. O amor no um fim,

    mas um meio: um meio de nos sustentarmos mutuamente na solido do

  • - 44 -

    Cosmo, um meio de atuar para que outros seres humanos, esmagados na

    misria, no tenham apenas a oportunidade de comer, mas sim a

    oportunidade de criar algo a partir de si mesmos. Ser que ficaramos

    satisfeitos se a eliminao total da pobreza levasse apenas a um mundo

    com seis bilhes de Homer Simpsons gordos, satisfeitos e felizes? Alm do mais, criar mais democrtico do que amar! Autistas no podem amar

    mas podem criar (lembrem daqueles caras com sndrome de Idiot-

    Savant...).

    Ou seja, a minha utopia para a Humanidade uma sociedade de

    seis bilhes de criadores (de msicas, de arte, de artefatos, de jogos e

    brincadeiras, de soluo de problemas, de organizaes sociais que

    funcionem etc. etc. etc.). Se para criar, aparentemente tenho que sofrer (por

    exemplo, me sujar com o barro da escultura, me perturbar por uma questo

    matemtica mal resolvida), tudo bem! O sofrimento que leva criao no

    intil, mas apenas o sofrimento sem sentido da misria extrema e da dor

    crnica intratvel. O objetivo de cada humano ser um artista, no o ser feliz. Se for um artista, por menor que seja sua arte, ele ser feliz. Se for um burocrata satisfeito, no haver plula mgica que lhe traga a felicidade...

    At...

    Freeman

    **********************************

    19/Janeiro/1999

    Caros Amigos,

    Mil novecentos e noventa e nove promete. O ano mal comeou e o

    Freeman j nos brindou com essa mensagem, forte concorrente ao prmio

    Arroba de Ouro 99 pelo melhor E-mail do ano. Comeo dizendo que sou um privilegiado por t-los como meus interlocutores, ainda que s vezes

    parea um ingrato ao me destemperar durante as discusses. Peo

    desculpas por isso.

  • - 45 -

    Belo texto, Freeman. Comeo por a, e digo at que talvez

    concorde com voc. S acho que talvez as nossas diferenas (ou entre voc

    e o Richard, se voc fizer questo de se antepor a ele) talvez no sejam to

    grandes assim. Eu justifico de mais de uma maneira. A primeira delas, e

    mais importante, o fato de que no discordo do que voc disse, no me

    senti atingido pelas suas crticas felicidade como meta e duvido que a

    concepo de felicidade do Richard descarte a criao como elemento

    importante numa pessoa feliz. Digamos assim que talvez estejamos

    discutindo semntica, at um certo ponto. At um certo ponto, porque por

    outro lado acho que voc teceu muitas consideraes importantes ali.

    No tenho muito tempo para escrever agora, ento deixo a pergunta

    no ar, pra voc responder quando e se quiser: voc no acha que a sua

    proposta de ter a criao como sentido da vida no bastante subjetiva,

    Freemaniana, no sentido de que criar algo muito importante pra voc?

    Para mim bvio que voc s pode ser feliz criando. E a talvez

    completemos o loop que nos une e torna a questo mais semntica do que

    fundamental. E fica ainda a advertncia ideolgica (eu no resisto): a

    criao como meta freqentemente usada pelo capitalismo como

    argumento contra polticas sociais mais justas. Est claro at para o mais

    roxo comunista que, tanto material como institucionalmente, Cuba cria

    menos coisas novas do que seu vizinho grando. bem verdade que cria

    tambm bem mais esperanas, e de certa forma cria uma resistncia. Mas

    no sei se isso cabe na sua definio. De toda forma, o perigo fica sempre

    ali, espreita. Ou no?

    O livro do Monod chegou. Quando comeamos?

    Abraos,

    Noam.

    **********************************

    19/Janeiro/1999

    Tambm no tenho tempo... Mas alguns comentrios... No lembro

    quem disse:

  • - 46 -

    No basta ser feliz, necessrio que outros no o sejam...

    ou algo como no basta ganhar, algum deve perder. Um mundo com seis bilhes de pessoas felizes parece impossvel,

    a no ser que todos mintam e faam o favor de declararem-se infelizes.

    Mas a, aqueles de alma pura, aqueles que sinceramente querem os outros

    felizes, no podero s-lo. Dada a diversidade humana no pode ser estvel

    o estado de felicidade plena.

    > Estiveram ativos de ontem para hoje, no? Bom, Richard e Jean, espero

    poder viajar para So Paulo antes do dia 19. O problema que estou

    tentando ir de carro com um irmo, para pegar as coisas da minha sala,

    mas ainda no consegui acertar o dia com ele.

    Noam: finalmente o Freeman veio e tivemos um almoo agradvel,

    junto com a Silvia e Jean no clube dos funcionrios, debaixo das palmeiras

    onde cantam os sabis.

    > Sobre o texto do Borges: acho que estou indo na contramo da

    trajetria do Richard... Vejam bem, eu era soft, new age, f do Rubem

    Alves e do pessoal de contracultura. Conforme o tempo foi passando, fui

    ficando insatisfeito com tudo isso (Romantismo Irracionalista) porque

    acho que um beco sem sada: um beco agradvel, com barzinho e musica

    ambiente, mas ser que o sentido da vida viver num barzinho desses?

    Isso em hiptese nenhuma significa que ns tenhamos cruzado em

    algum ponto. Freeman: Eu acho que voc ainda muito Nova Era.

    > Por isso, s para provocar, vou ser mais radical: olha, sinceramente

    acho que o objetivo da vida no ser feliz (no sentido usual do termo). Se

    fosse, tudo estaria bem no Admirvel Mundo Novo de Huxley, no? Ser

    que ficaramos satisfeitos se a eliminao total da pobreza levasse apenas

    a um mundo com seis bilhes de Homer Simpsons s gordos, satisfeit