O Belo em Kant e a comunicabilidade do sentimento estético

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AGNCIA, ESTRUTURA E OBJETOS ARTSTICOS: DILEMAS METODOLGICOS EM SOCIOLOGIA DA ARTEJorge Ventura de Morais1- Paulo Marcondes Ferreira Soares2

Resumo: Neste trabalho analisamos algumas das mais importantes correntes sociolgicas no campo da arte no que concerne ao clssico dilema das cincias sociais: agncia vs. estrutura. Mostramos que as vrias abordagens neste campo tentando fugir do personalismo romntico presente nas anlises de estetas e historiadores da arte terminam por privilegiar comumente um dos plos deste dilema: a estrutura do mundo artstico. Assim, autores como Howard Becker ou Janet Wolff, ou mesmo Pierre Bourdieu, privilegiam as estruturas em detrimento de uma concepo mais apurada, do ponto de vista sociolgico, do artista enquanto agncia. Uma contribuio recente a de Vera Zolberg chama a ateno para a necessidade de uma abordagem em que se leve em conta tambm a agncia, no caso, o artista. No entanto, contestamos os trabalhos de ambos os lados. Embora concordemos que necessrio, ao lado da estruturas dos mundos artstico e exterior, considerarmos o artista como agente dotado de certas caractersticas (reflexividade e estrategizao, entre outras), sustentamos a tese de que a velha dicotomia no fornece meios adequados para anlise do mundo artstico, dado que a obra de arte tem sua prpria autonomia e que independe, at certo ponto, bvio, tanto de artistas, estetas e historiadores de arte, por um lado, e das estruturas, de outro. Neste sentido, podemos afirmar que, em lugar de um modelo dicotmico, precisamos de um modelo tricotmico. 1. INTRODUO Pode-se afirmar que, em geral, os cientistas sociais brasileiros tm dado pouca ateno s artes e ao mundo artstico como campo de investigao cientfica. No Brasil, os estudos devotados ao tema da arte tm sido de autoria de crticos nem sempre sociologicamente informados. O importante livro Imagens Negociadas, de Srgio Miceli, uma exceo que confirma a regra. Porm, h de se ressaltar que no estamos sozinhos neste tratamento avaro de um interessante espao de investigao sociolgica. Mesmo em pases da Europa e nos EUA parece haver uma suspeita mtua entre artistas e cientistas sociais, o que resulta1

em poucos estudos dentro das cincias sociais sobre a arte e o mundo artstico. Assim, o objetivo deste artigo apresentar criticamente algumas contribuies para uma sociologia da arte, desenvolvidas por socilogos e historiadores da arte, de forma a contribuir para difundir no meio acadmico brasileiro um maior interesse por esta subdisciplina. Para alcanarmos tal objetivo, apresentaremos algumas discusses sobre o que seria uma sociologia da arte. Logicamente, nosso objetivo foi o de esboar um panorama de estudos sobre problemas tericos e metodolgicos da sociologia da arte, sem, contudo, querer esgotar a questo. Ao invs disso, tomamos, por exemplo, apenas alguns trabalhos que consideramos pontuais, a fim de t-los como pretexto para o tratamento de importantes aspectos envolvidos na elaborao de uma discusso sobre sociologia da arte. 2. O QUE SOCIOLOGIA DA ARTE? Os estudos sociolgicos devotados arte podem, grosso modo, ser divididos entre aqueles que buscam uma compresso das condies histrico-sociais que explicam a criao de uma dada obra artstica e aqueles que propem uma abordagem sinttica em que se privilegie tanto problemas externos quanto internos da obra de arte. possvel mencionar tambm um corpo de estudos cuja preocupao central est mais relacionada com a interpretao da prpria obra artstica em termos propriamente estticos. No entanto, este corpo terico no ser aqui tratado por se circunscrever mais especificamente crtica e histria da arte. No que se refere s correntes aqui abordadas, no primeiro caso, a obra artstica, em si, no examinada, mas to somente o ambiente social que permitiu a gnese da mesma. Ou seja, as condies externas so o foco analtico em que dada obra de arte foi criada. Talvez o estudo mais tpico neste tipo de abordagem seja o de Howard Becker (19xx), embora devamos apontar para o fato de que h uma gama variada de subcorrentes, entre elas a marxista, nesta corrente mais geral. Em segundo lugar, pode-se destacar uma corrente que advoga que os cientistas sociais deveriam adquirir mais conhecimentos estticos aqui o modelo de analista social Theodor Adorno, que2

tambm era msico e compositor e perder o medo de tratar as questes estticas, por reconhecer que h uma irredutibilidade de tais questes a anlises sociolgicas, polticas, histricas etc, e por considerar que a obra de arte em si pode ser objeto de anlise sociolgica. Ao tratar destas questes, o cientista social deveria, ento, relacion-las s condies scio-histricas envolvidas na criao da obra de arte. A obra sobre msica contempornea de Theodor Adorno e, mais recentemente, os trabalhos de Robert Witkin (1995 e 1997) e de Vera Zolberg (1990) podem ser considerados como os representativos desta corrente. 2.1 MARXISMO E SOCIOLOGIA DA ARTE 2.1.1 A viso de Janet Wolff O marxismo, quase sempre orientado para um tipo de abordagem externalista da obra artstica, tem em Janet Wolff uma de suas mais importantes defensoras como instrumental terico-metodolgico para construo de uma sociologia da arte. Com efeito, nos anos 70 e 90 multiplicaram-se os estudos que pretendiam explicar a obra de arte tendo o marxismo como rea importante da teoria social. Porm, a maioria desses estudos no conseguiu escapar da influncia do althusserianismo. Em um de seus primeiros trabalhos, publicado originalmente em 1981, Janet Wolff mostra tal influncia. No entanto, pode-se ali rastrear uma tentativa de estabelecer uma sociologia marxista mais sofisticada e sistemtica da arte, que d conta, dentro deste marco terico, da grande diversidade de questes estticas apresentadas pelo universo artstico. Porm, como sua abordagem se encontra, de incio, mapeada pelo cabedal marxista, Wolff no consegue estabelecer uma esfera relativamente autnoma para a esttica, visto que ela no escapa da considerao da determinao em ltima instncia das condies sociais para no dizer a economia sobre a obra de arte. Mas o que seria uma sociologia da arte em termos marxistas? O primeiro ponto que Wolff estabelece, na tentativa de introduzir a perspectiva sociolgica como fundamento para a compreenso adequada dos fenmenos artsticos, o da arte como produto social. Sendo assim, uma sociologia da arte deveria focar sobre questes de produo, distribuio e recepo da obra de arte3

(Wolff, 1993a, prefcio 1a edio). Em torno desta premissa e destas questes gira uma outra que diz respeito ao problema do autor ou do artista. A autora defende que tarefa da sociologia desmistificar noes do artista-como-gnio. Assim, todo trabalho de Woff centra-se na premissa de que impossvel entender qualquer obra de arte sem se considerar que a mesma situada e produzida historicamente. Em outras palavras, a obra de arte, mesmo considerando os poderes criativos e individuais dos artistas, no pode ser vista como resultado de uma inspirao divina inata ao gnio, no caso, o artista. Est, assim, colocada a velha oposio entre ao e estrutura, ou melhor, entre estrutura e criatividade. Porm, Wolff argumenta que, a seu ver, no h necessariamente uma tenso entre estes dois plos j que tarefa de uma sociologia marxista da arte mostra a mtua interdependncia entre eles. A autora deixa claro, no incio de sua obra, que no acredita ser possvel reduzir o problema da beleza e do mrito artstico a fatores scio-polticos (p.7). No entanto, toda a sua anlise subseqente a busca pela demonstrao de que a arte essencialmente um produto social j que toda e qualquer atividade no mundo artstico, seja criativa ou mesmo inovativa, pode ser explicada pelas numerosas condies sociais. No entanto, necessrio chamar a ateno para o fato de que Wolff defende uma viso de que as estruturas so tambm determinantes, em termos positivos, no sentido de permitirem aos atores a consecuo de certos atos ou obras e de que os artistas no so meros autmatos que agem de acordo com o que a estrutura lhes manda. Por outro lado, embora tenha argumentado em favor da mtua interdependncia entre agncia e estrutura, a autora deixa a impresso de ser mais favorvel idia da inadequao e do erro analtico do uso da categoria de sujeito ou de agente, do que daquela posio da determinao estrutural no estabelecendo, assim, uma viso de sntese entre estrutura e criatividade. Basta ver que ela se posiciona bem ao lado da posio anti-humanista althusseriana contra a posio humanista, por ela caracterizada de simplista, alm de acusar ser esta a viso de Weber e Durkheim. Alis, a autora termina por creditar paixo humanista aos crticos do anti-humanismo (p.14).4

Na tentativa de solucionar tais problemas, que emergem naturalmente de uma abordagem sociolgica da arte, e mais ainda de uma sociologia marxista segundo sua prpria afirmao, por sociologia, em seu livro, entenda-se materialismo histrico , Wolff no consegue mostrar como operariam os artistas nas estruturas sociais tal como divisadas por ela. Ainda nessa direo, a autora vai argumentar pela inutilidade da tentativa de se distinguir entre trabalho artstico e quaisquer outros tipos de trabalho. Para ela, em todas as reas da vida pessoal e social, a atividade prtica, incluindo a criativa e inovadora, tem a mesma configurao (p. 14). Isto se mostra bastante evidente, quando ela procura exemplificar, de modo ainda mais especfico, a natureza da produo artstica citando o trabalho Como Escrever Versos de Vladimir Maiakovski. A princpio, pode-se afirmar deste trabalho que Maiakovski o escreveu, rigorosamente, com um claro objetivo panfletrio e, conseqentemente, a partir de uma viso reducionista do trabalho artstico. Em outras palavras, neste ensaio Maiakovski defende a idia de que a obra de arte viso completamente aceita por Wolff pura manufatura, o que implica em dizer que, em se controlando e manipulando uma srie de tcnicas, qualquer um seria capaz de escrever boa poesia. Tal posio leva Wolff a defender a questionvel viso de que o texto de Maiokovski um conjunto de instrues para se escrever boa poesia, o que implica que os maus poetas no seguem estas instrues, mas trabalham de forma no sistemtica e no crtica, derivando suas idias de lugar nenhum e anotando-as no papel sem a devida ateno ao processo produtivo (p.13). Assim, podendo ser a obra de arte concebida como um produto social, Wolff argumenta a necessidade de se analisar uma srie de instituies sociais de modo que o cientista social observe os processos e condies... que tornam possvel a produo [da obra de arte] e aqueles que determinam seu curso subseqente (p.41). Neste sentido, argumenta Wolff, faz-se necessrio analisar: 1) o processo de recrutamento e treinamento dos artistas; 2) sistemas de patronagem; 3) o papel dos mediadores (editores, crticos, donos e diretores de galerias etc).

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Finalmente, Wolff chama a ateno para o problema da arte como sociologia. Isto pode ser colocado de forma simples, ou seja, obras de arte, sendo produtos sociais feitos por determinados grupos sociais, trazem [em si] as idias, valores e condies de existncia destes grupos, em particular de seus representantes, os artistas (p.49). 2.1.2 A Viso de Raymond Williams Williams , sem dvida, um dos mais importantes tericos marxistas dos estudos culturais e literrios. Seu materialismo cultural no s se encontra filiado ao materialismo histrico, como procura ser uma teoria dos elementos especficos da produo cultural e literria. Por outro lado, como reconhece Williams, isto se d de um modo um tanto diferente do que normalmente se tem caracterizado como teoria marxista, mesmo considerando muitas de suas variantes. Para ele, contudo, relevando-se uma certa estranheza de alguns de seus elementos, sua teoria participa claramente do pensamento central do marxismo (1979, p.11-2). No seu livro Cultura (1992), Williams vai assinalar que a necessidade de se elaborar uma moderna sociologia da cultura deve reconhecer, antes de tudo, uma nova forma de convergncia para o conceito de cultura: seja num sentido antropolgico e sociolgico de distintos modos de vidas globais, onde um sistema de significaes se mostra essencialmente envolvido em todas as formas de atividade social; seja num modo mais especfico de um sentido especializado, em que o conceito de cultura passa a se referir mais detidamente aos fenmenos artsticos e intelectuais (p.12-3). Nos seus prprios termos, o autor assinala que o livro foi escrito sob o signo dessa convergncia. A ponto de alguns captulos estarem nitidamente orientados para questes globais, enquanto outros procuram centrar sua ateno mais nitidamente sobre as artes. Com efeito, a ampliao e entrelaamento dos sentidos de cultura orientados pela nova convergncia da moderna sociologia da cultura, na forma dos estudos culturais, caracteriza-se como um ramo da sociologia geral. Como tal, diz o autor: Sua abordagem global requer [...] novos tipos de anlise social de instituies e formaes especificamente culturais, e o estudo das relaes concretas entre estas e os meios materiais de produo cultural, por um lado, e, por outro, as formas culturais concretas. O6

que congrega tudo isso , distintamente, uma sociologia, mas, nos termos da convergncia, uma sociologia de novo tipo (p. 14). E mais: A nova sociologia da cultura pode ser vista como a convergncia e, at certo ponto, a transformao de duas ntidas tendncias: uma dentro do pensamento social geral e, portanto, especificamente da sociologia; outra, dentro da histria e da anlise culturais (idem, ibidem). Mas, uma sociologia da cultura no pode ser apreendida sem uma discusso a propsito das relaes da sociologia com as cincias da cultura. O autor aponta duas tendncias presentes no debate cultural que, em geral, se apresentam de modo um tanto excludente ou de pouco dilogo entre si. De um lado, a tradio que distingue as cincias culturais das cincias naturais em que a interpretao das formas scio-culturais tem sua centralidade no conceito de verstehen. De outro, a nfase recai sobre o modelo heternomo de explicao da organizao social pela identificao de leis gerais princpio nomottico baseado nas cincias naturais. A crtica de Williams sobre os mtodos interpretativo e positivo recai sobre a considerao de que: no primeiro caso, pode-se tanto cair numa insuficincia explicativa, quanto recorrer ao esprito formador (teoricamente circular) para fins de explicao; no segundo caso, a acumulao de dados empricos no garantia graus de conscincia suficiente para a detectao de alguns dos processos culturais menos palpveis (p.15-6). Como observa o autor, ambos os mtodos ainda gozam de grande vigor no presente, embora o mtodo observacional encontre maior interesse, pelo menos nos pases anglo-saxnicos. Com efeito, o autor destaca trs tipos de estudo de interesse relativamente ao mtodo observacional: o interesse pelas instituies sociais e econmicas da cultura e o que da resulta como produto seu contedo e seus efeitos (p.16). A tradio alternativa sociologia observacional o autor a identifica numa convergncia entre teorias sociais da cultura e teorias e estudos mais especificamente filosficos, histricos e crticos sobre a arte tendncia que Williams observa na tradio alem e na tradio marxista, sendo que esta ltima participa mais detidamente de seu interesse (p.17). Para ele, o surgimento da tradio7

alternativa se d em ntima relao com a histria e a crtica, uma vez que seus estudos apresentam uma ntida orientao arte e cultura concretas em questo; contudo, delas se distingue ao introduzir conceitos sociais ativos como elementos necessrios de descrio e de anlise (p.20). Com efeito, tais estudos so apontados pelo autor como coincidentes com a atual sociologia cultural (idem, ibidem). Williams destaca em tais estudos as nfases dadas s condies sociais da arte, ao material social na obras de arte e s relaes sociais nas obras de arte. Notadamente, essas nfases tm relao com reas do saber (quase sempre como modo de uma diviso terica) tais como a histria, a sociologia, a psicologia e, como destaque dado pelo autor, ao pensamento marxista essas reas, muitas vezes, estabelecem nveis de contato ou de hostilidades entre si. No que se refere s condies sociais da arte, no marxismo que sua nfase mais detidamente cultivada - ainda que goze de certo interesse por parte da esttica, da psicologia e da histria; com referncia aos elementos sociais na arte, o prprio contedo de uma sociologia da cultura, embora presida o debate marxista sobre a relao infra e superestrutura; por fim, as relaes sociais da arte despertam claro interesse ao debate sobre infra e superestrutura, particularmente, pelo fato de que tal debate leve necessariamente considerao do tratamento da arte como reflexo ou da arte como processo de mediao (p.22-3). Outra questo central apresentada por Williams, diz respeito ao tratamento de um importante e polmico ponto a ser tratado pela sociologia da cultura: o conceito de ideologia. Sobre esta questo, Williams trabalha dois sentidos importantes para a anlise cultural: a concepo de ideologia como crenas formais e conscientes de uma classe ou de outro grupo social e a concepo de ideologia como a viso de mundo ou perspectiva geral caracterstica de uma classe ou outro grupo social (p.26). No primeiro, trata-se de princpios ou posies gerais ou, at, dogmas; no segundo, alm de incluir as crenas formais e conscientes (primeiramente), inclui atitudes, hbitos e sentimentos menos conscientes e menos articulados ou, mesmo, pressupostos, posturas e compromissos inconscientes (Idem).

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Para o autor, o primeiro tpico um caminho vlido, mas no suficiente para a anlise cultural; sendo necessrio que a anlise se estenda em dois sentidos: primeiro, para a rea dos sentimentos, atitudes e compromissos que so os aspectos menos conscientes ou inconscientes menos palpvel; mas que so, bem mais amplo ainda, os que revelam a cultura em mudana face aquilo que, como crenas formais e conscientes, aparentam perdurar. Assim, em mediao ao que chama de colorao global vvida (crenas formais e conscientes), h uma prtica social concreta (cotidiana, difusa, menos consciente, inconsciente), culturalmente especfica e analiticamente indispensvel (Idem). O segundo sentido da anlise cultural, o autor o encontra na necessidade de um procedimento analtico que se estenda at a rea manifesta da produo cultural que, pela natureza de suas formas, no exclusivamente apenas expresso das crenas formais e conscientes visto que alm da filosofia, religio, teoria econmica, teoria poltica ou direito, tambm teatro, fico, poesia, pintura: que tambm atuam por formas menos conscientes e inconscientes que se expressam como sentimentos, pressupostos, compromissos (idem). Dentre os pontos de destaques apresentados pelo autor em seu estudo, dois merecem particular ateno, posto que levam a reflexo a propsito das relaes entre processos de criao e institucionalizao: so os itens sobre Instituies e Formaes. A, Williams comea por estabelecer certas distines das caractersticas bsicas presentes nas relaes entre instituies e formaes. Com efeito, existiriam, assim, relaes variveis entre produtores culturais e instituies sociais reconhecveis e variveis em que os produtores culturais tm sido organizados ou se tm organizado eles prprios, suas formaes (p.35). Mas Williams reconhece como operacional esse tipo de distino, possibilitando assim abordagens mais variadas da questo das reais relaes sociais da cultura (idem, ibidem). Com isso, no quer o autor negar elos significativos ou causais no que respeita aos processos institucionais e formacionais; para ele, necessrio estar consciente para o fato de que, se existem vinculaes culturais significativas [...] do estudo das instituies, tambm verdade que em alguns casos importantes a organizao cultural no tem

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sido institucional: como o caso dos independentes, dos dissidentes (idem, ibidem). Quanto aos grupos, eles podem se apresentar em sua formao como formais e informais, tradicionais e dissidentes: uma sociologia de formaes tem de levar em conta tanto a histria geral quanto os estudos individuais mais especficos. Por outro lado, a importncia do estudo das formaes est no fato de nos possibilitar preencher a grande lacuna existente entre a histria geral e a sua associao a cada uma das artes e dos estudos individuais. Por exemplo, o autor fala de relaes sociais de assimetria entre autoridade cultural e independncia cultural, advindas dos novos meios de produo e reproduo (p.52). Essas relaes de assimetria encontram-se marcadas pelo que Williams chama de fatores em integrao, tais como a cultura e o mercado juvenis e a produo cultural antitradicional, de um lado e, de outro, a tenso a causada pelas relaes com o Estado e com a produo cultural tradicional (p.68-74). 2.2 HOWARD BECKER E ARTE COMO AO COLETIVA A abordagem de Becker , seguramente, o exemplo mais claro de uma sociologia da arte em que a prpria obra artstica no tem muita importncia. Em outras palavras, Becker prope uma abordagem sociolgica externalista no trato do objeto artstico. Em um importante artigo Becker (1974) prope que se considere a obra de arte como um produto de uma cadeia de cooperao que envolve no somente o artista (por mais genial que seja), mas tambm um mercado distribuidor (marchards, galerias, museus) e um pblico minimamente habilitado a entender as obras produzidas neste circuito. Para Becker, o mundo artstico opera a partir de convenes sociais que distinguem, dentre aqueles que cooperam na criao, quem deve ser chamado de artista e quem deve ser considerado como pessoal de apoio. Neste sentido, o artista perde a aura de gnio herdada do renascimento e reforada pelo romantismo, e passa a ser, na diviso do trabalho, algum eleito como tal. Com exemplo, Becker chama a ateno para artistas que simplesmente planejam a obra de arte, enquanto que outros (artesos, mestres etc) realizam-na.

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Mas, o carter cooperativo da obra de arte vai alm da mera diviso do trabalho entre os aqueles chamados de artistas e o pessoal de apoio. Envolve tambm os meios de distribuio e divulgao (galerias, museus, revistas especializadas), como tambm o pblico consumidor. assim que faz sentido a idia de Becker, expressa acima, de que a fruio de uma obra artstica s possvel se h meios de circulao que criam (ou educam) um mercado consumidor (p.771). Em outras palavras, o mundo artstico isto , artistas, pessoal de apoio, meios de distribuio e divulgao, pblico opera a partir de convenes (um conceito importante no esquema aplicativo de Becker). a partir das convenes que se atribui o papel de artista a um determinado membro da cadeia de cooperao e a outros o papel de coadjuvantes, assim como se estabelece entre o artista e o pblico (p.771). Finalmente, partir destas convenes e cadeias de cooperao que se pode explicar o surgimento de inovaes artsticas. Distanciado-se das explicaes que interpretam as chamadas revolues artsticas como produto de artistas geniais insatisfeitos com os padres artsticos dominantes em suas sociedades, Becker, partindo da suposio de que apesar de padronizadas, as convenes raramente so rgidas e imutveis, interpreta tais revolues simplesmente como novas formas de organizao (ou melhor, reorganizao) de materiais e prticas j existentes. Para ele, as convenes tornam o trabalho artstico mais rotinizado, menos custoso no que respeita tomada de decises e sua circulao mais fcil. J as inovaes enquanto se tornam elas prprias convenes , no que se refere ao artista, somente trazem algumas alteraes na rotina, tornam a tomada de deciso um pouco mais custosa e diminuem a circulao das obras. Por outro lado, o entendimento de Becker o de que as convenes no so apenas sistemas complexos de atividades interdependentes, que so tanto causa de restries quanto produto de escolha e negociao, visto que h flexibilidade das convenes; para ele, fundamentos estticos, pautados em crenas morais, so a base de composio das convenes. Nesse sentido, a adeso ou a ruptura com uma conveno se traduz como uma adeso ou ruptura com uma esttica e, assim, muito provavelmente, como uma crena moral.

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Por fim, Becker observa uma relao de interdependncia entre decises estticas e meios. Com efeito, convenes artsticas podem sofrer mudanas dependentemente, tambm, do quadro delineado de outras modalidades da aquisio de recursos. Herdeiro do legado interacionista da Escola de Chicago, o autor percebe que a organizao social e a estrutura social no passam de metforas, cuja finalidade a da indicao de tipos regularidades das aes coletivas. Estas, por sua vez, assim como o que produzem, compem as unidades conceituais e empricas bsicas da investigao sociolgica. 2.3 Francastel e os problemas de uma sociologia da arte Francastel inicia a sua discusso sobre os problemas de uma sociologia da arte, identificando a carncia da sociologia e dos socilogos quanto a uma ateno mais adequada e um melhor domnio e iniciao ao sistema de sinais que envolve o mundo da arte. Diante disso, o autor se prope esboar o que seria um programa de sociologia da arte, mais do que fazer um balano da situao. De incio, ele advoga que, assim como todos os demais ramos da Sociologia, o progresso da disciplina se dar por meio de conceitos e material de investigao terica e empiricamente orientada (p.12). Para ele, os melhores livros sobre a questo arte e sociedade no se apresentam sob a denominao de sociologia da arte. Esse fato o autor reputa aos espritos lcidos que, no sendo especialistas, so dotados de significativa conscincia sociolgica e inteligncia conceptual (p.13). J a maioria das obras sociolgicas analisa a matria artstica pr um reducionismo sociolgico ou a usam como justificativa de teses levantadas noutra rea do conhecimento sociolgico (idem, ibidem). No primeiro caso das referncias tomadas por Francastel, a respeito do reducionismo sociolgico, temos os estudos de Hauser, Sorokin e dos mtodos estatsticos; no segundo, tocante heteronomia das teses apresentadas, temos a referncia a Antal: onde faltaria a idia de uma ao recproca entre as artes e a sociedade (p.14-5). Consoante o autor, em Antal a arte aparece como instrumento, no como expresso de um grupo (p.15). Antal seria, assim, um prolongamento da Escola de Viena que, em todo caso, refletiu sistematicamente sobre o papel da arte na sociedade.

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A Escola de Viena se definiria em duas perspectivas: ora, a viso da histria autnoma da arte: as obras so atividade privilegiada e especulativa no que toca especificamente ao esprito; ora, o reconhecimento da arte como parte da histria das idias e da histria do esprito, ainda que, aqui, se afirme a autonomia como o valor positivo da arte (p.15-6). E embora Francastel reconhea o valor sociolgico de certas correntes da Escola de Viena, considera que o mesmo foi dominado por uma concepo cada vez mais filosfica de esttica. Para ele, o que figura como principal dificuldade de constituio de uma sociologia da arte por todas essas tentativas ressaltadas, diz respeito constituio de concepes de arte como atividade autnoma, mas, apreendida como relaes passivas ou dependentes para com a sociedade. Para ele, o que faltou foi uma concepo da complementaridade das atividades artsticas e das outras atividades materiais ou mentais da sociedade (p.16). Deve-se tomar a sociologia da arte no como instrumento de estudo do corpo social total; mas procurar o que na arte se pode apreender como laos mais ou menos durveis que unem os diferentes elementos do corpo social em ao, em sua gnese e perpetuidade (p.16). No se pode pensar a sociologia da arte como justificativa a posteriori de teorias gerais; mas, como uma problemtica, em que se definam questes das especificidades tcnicas e mentais da arte (com referncia, aqui, s artes plsticas), como meio original de expresso (p. 16-7). Como problemtica do imaginrio, a sociologia da arte definir as estruturas originais do objeto figurativo e suas relaes com outros produtos da tcnica e da imaginao. Caberia sociologia da arte, assumir problemas mltiplos na delimitao dos fatos, de uma realidade objetiva, a partir daquilo que o autor caracteriza como o conjunto das atividades cuja complementaridade e intrincamento permanente definem [os] corpos, em movimento perptuo, que sos as sociedades (p.17). Em termos especificamente estticos, o que o autor considera igualmente decepcionante nos trabalhos dos socilogos a sua dependncia de uma viso essencialista da arte como sistema de sinais independentes e sem implicaes sociais, uma espcie de natureza profunda, largamente difundida pelos historiadores da arte. As origens desse pensamento remontam ao simbolismo e ao neo-romantismo (p.17-8). Em seu modo de ver, essa concepo de13

natureza profunda da arte liga-se a uma tradio de concepo esttica fincada menos na arte e mais a uma concepo que v a arte como instrumento e acessrio (p.18). Em contrapartida, para o autor, assumiu-se uma posio essencialmente formal da arte, que passou a considerar o artista como aquele que se identifica com certos aspectos do seu tempo e que se expressa coerentemente a ele, na forma de viso de mundo. A arte seria a pura corporificao de um mundo de idias (p.18-9). Nesse caso, a arte se apresenta como a expresso individual e sensvel de uma realidade scio-histrica com isso, distingue-se forma e contedo, a partir de uma concepo formalista e de arte-reflexo (Lukcs e Goldmann, p. ex.). Tal concepo formalista se d seja no nvel esttico, seja no nvel sociolgico (p.19). Aqui, conceitos e valores encontram-se fora do artista, participando como seu condicionamento. Mas h um terceiro aspecto a considerar, o da autonomia absoluta da arte a arte como valor simblico. Francastel critica Croce por rejeitar, p. ex., qualquer relao entre o social e o esttico (p.19). Croce, por sua vez, rejeita a concepo formalista e assume uma esttica ou potica personalista (p.19-20). A posio de Francastel a de no se identificar com a tese formalista da associao direta da arte com os valores comuns da sociedade e do pensamento, posto que, aqui, no se pe em questo a especificidade da arte. Para ele, a arte simultaneamente modo de compreenso e modo de ao na totalidade da experincia. atividade material e simblica no limitada elaborao de objetos no-usuais, mas ligada s mais diversas modalidades de ao. A arte no pode, por fim, ser reduzida ao personalismo e ao simbolismo. Em seus termos: cria um sistema prprio de sinais; criadora, ao mesmo tempo, de tcnicas, de representaes e de instituies (p.20). Quanto ao objeto figurativo, o autor se prope esclarecer certos aspectos da anlise da obra relativamente gnese e ao papel social da obra. Como primeiro ponto a ressaltar, ele faz a distino entre imagem, figura, forma e a complexa noo de objeto figurativo (p.21). Com efeito, um dos principais aspectos apresentados pelo autor, diz respeito a como a iluso de se ver uma obra instantaneamente, est ligada ao fato de que o reconhecimento da imagem no se d por uma experincia visual, mas por um saber intelectualizado. O significado de uma obra pode no est relacionado aos caracteres intrnsecos da obra, mas queles que14

uma tradio que passou atravs do verbal atribui mais ou menos com justeza obra (p.22). Com essa crtica, Francastel quer reconhecer coordenadas objetivas da obra de arte: cores, escalas, ligaes de toda espcie, que relacionam tanto as partes de uma tela como os elementos solidrios de uma construo (p.22-3). No tocante a distino entre imagem e objeto figurativo, o autor assinala o reconhecimento dos caracteres e aspectos de uma obra, que no possibilita uma nica e imediata interpretao. Sendo a obra objeto de vrias interpretaes, visto que toda forma de representao figurativa e artstica possui um mdium, ou o que ele chama de sinal-ralais, capaz de se interpor, no mbito de um sistema de sinais fixos ou mveis, entre a conscincia de um criador e a de um espectador. Para o autor, deve-se ver um quadro como um dilogo com uma experincia humana a obra de arte fixa, a interpretao mvel. O carter da obra de arte diz respeito tanto ao pensamento do artista quanto ao espectador (p.23-4). Neste ponto, Francastel quer reconhecer a legitimidade do conhecimento produzido com o estudo das imagens e dos objetos, desde um ponto em que no se os confunda. Em outras palavras, o autor parece indicar o caminho de uma abordagem estrutural baseada na homologia entre a estrutura da obra artstica e a estrutura social, quando assinala que, diante do objeto figurativo, que nessa definio deve ser apreendido como objeto de civilizao, deparamo-nos com um vasto domnio que reproduz, de uma certa forma, na sua complexidade, a textura das sociedades (p.25-6). Por fim, Francastel vai fazer referncia ao carter de duplicidade da arte, cujo significado pode representar, para um dado grupo, a funo de memria ou de projeto que, no sendo propriamente excludentes entre si, se apresentam como expresso da autonomia entre as atividades comuns da sociedade. Sua afirmao est ancorada numa obviedade, a de que o sentido dos objetos criados pelos homens encontra-se vinculado s suas atividades socializadas. Contudo, para ele, o duplo sentido em que os objetos figurativos so criados o da manuteno das estruturas mantenedoras da sociedade ou a antecipao de outras estruturas que integram as atividades de um grupo experincia pessoal de um indivduo. Por outras palavras, a arte pode atuar segundo um parmetro de coeso ou dissociao social. Com efeito, a arte se15

manifesta, simultaneamente, tanto em nvel concreto quanto abstrato: seja realizando objetos representativos das crenas mais slidas de um grupo ou criando esquemas de representao imaginrios (p.29-30). Mas h uma outra instncia em que se manifesta o duplo aspecto da arte: em termos de tcnica, de um lado, e de operaes intelectuais, de outro. O primeiro aspecto parece ser o que se apresenta estritamente enquanto linguagem, em suas tecnicabilidades, exigindo destreza e iniciao aos que atuam nessa esfera ou procuram compreend-la sendo, pois, o mais desconhecido; ao passo que o segundo ponto o que procura definir a essncia da arte e determina o seu papel na sociedade inclusive, com certo grau de elementos especulativos e valorativos (p.30). Com isso, Francastel procura denunciar a superficialidade com que se procura estabelecer analogias entre palavras e sinais figurativos, mais uma vez pela heteronomia do uso de recursos das linguagens verbais ou outras para explicar aspectos da linguagem figurativa. O que ele est reivindicando a possibilidade de que a experincia plstica possa ser apreendida a partir de mecanismos prprios sua configurao enquanto linguagem (p.31). Uma importante crtica que se faz a Francastel, a de que em seus estudos, reside muito mais a matriz do historiador do que a do socilogo. Particularmente, pela nfase que ele procura dar caracterstica da obra de arte como obra de civilizao. Com efeito, o que parece resultar dessa perspectiva, a considerao de um forte voluntarismo ligado ao desenvolvimento histrico das civilizaes e de suas obras. E tudo isso orientado pelo mtodo da homologia entre ambas as estruturas, a da arte e a da civilizao. Em seu programa para uma sociologia da arte, Francastel apresenta seis modalidades possveis de anlise das obras. So elas: 1) Sociologia dos grupos e tipologia das civilizaes; 2) Sociologia das obras; 3) Sociologia dos objetos figurativos e dos meios de expresso; 4) Sociologia dos modos de apresentao; 5) Sociologia artstica comparada: sinais e smbolos; 6) Sociologia da arte na sociedade industrializada. 2.4 VERA ZOLBERG E A CONSTRUO DE UMA SOCIOLOGIA DA ARTE O primeiro ponto que salta vista na abordagem de Zolberg (1990) a defesa apaixonada que ela faz de uma conjuno entre as16

abordagens internalista (mais relacionada obra dos crticos e historiadores da arte, a quem ela chama de humanistas) (p.5-8) e externalista (mais relacionada abordagem sociolgica) (p.8-11) na construo de uma sociologia da arte (p.x). Enquanto, na viso de Zolberg, a abordagem dos humanistas tende a se caracterizar pela desconsiderao de quaisquer consideraes scio-histricas em que uma determinada obra de arte foi criada, os socilogos tendem a utilizar tal objeto para discutir questes outras que no a prpria arte (p.ix). De acordo com Zolberg, talvez o melhor exemplo disto seja, em relao primeira abordagem, o catalogue raisonn (p.55), enquanto que, em relao segunda, a obra mxima, j discutida acima, seria a de Becker, que estaria mais interessado, entre outras questes, na organizao da diviso do trabalho (talvez o mundo da arte entraria aqui mais pela formao cultural de Becker) mais do que aquelas concernentes prpria arte. Para Zolberg, tal distino permanece mesmo naqueles humanistas preocupados com uma histria social da arte, pois os objetos de arte permanecem centrais na sua abordagem (p.55). Para Zolberg, a contribuio sociolgica para o entendimento das artes fundamental, j que os humanistas tendem a esconder a obra de arte atrs de uma mstica quase religiosa (p.12). Por outro lado, a contribuio humanstica faz-se necessria porque a maioria dos socilogos tende a reduzir a obra de arte s estruturas sociais como se aquele fosse mero epifenmeno destas, caso notrio de boa parte da produo marxista (p.13-15). Uma abordagem sinttica, como defendida por Zolberg, til para mostrar que julgamentos estticos esto imersos em instituies, que tanto mantm os cnones existentes quanto servem como loci da criao dos mesmos (p.21). Apesar de defender tal proposta sinttica, Zolberg permanece fiel abordagem sociolgica, pois tal entendimento da relao entre esttica e instituies culturais serve para desmistificar a viso mitologizada do artista recorrente entre os humanistas ao mostrar que, por exemplo, um artista como Van Gogh no era extremamente no convencional, se comparado com artistas de perodos posteriores (p.22). Alm disso, apesar de mudanas histricas que tem acontecido desde, digamos, o Renascimento, os artistas seguem certos estgios, mais ou menos reconhecidos, em suas carreiras. Zolberg afirma que tais estgios so claramente discernveis mesmo em17

carreiras de artistas marginais (p.24, 175-184). Vale ento dizer que a criao de uma obra de arte, longe da viso mitologizada dos humanistas, um processo social e histrico. No entanto, isto no implica em voltar ao temos sociolgicos tradicionais em que o artista desaparece. Para Zolberg, faz-se necessrio considerar aspectos tais como talentos3, personalidade e experincia cognitiva dos artistas. Em outras palavras, a sntese se daria pela integrao de aspectos estruturais (a arte est imersa em instituies sociais) com aspectos mais subjetivos (o artista passa por processos e mecanismos de descoberta, recrutamento e socializao [p.196]). 2.5 ARTE E ESTRUTURA SOCIAL Completamente diferente da abordagem proposta por Wolff e outros marxistas aquela desenvolvida por Robert Witkin. A primeira diferena diz respeito abordagem da prpria obra de arte em termos de certos problemas estticos, que so estranhos, no mais das vezes, ao discurso sociolgico que se pauta pela anlise do mundo artstico, isto , das condies scio-histricas de produo de uma dada obra de arte. Neste sentido, a proposta de Witkin, primeira vista, considerando o subttulo indicado acima, pode parecer mais uma das anlises que reduzem a obra de arte s estruturas sociais. Porm, nada mais errado. verdade que Witkin liga a obra de arte s estruturas sociais ao demonstrar o relacionamento dialtico entre ambas, mas a obra de arte deixa de ser mero reflexo da realidade social, como quer certa tendncia dentro do marxismo. Numa interessante leitura de Olympia de Manet, Witkin (1997, p.117-119) ataca a interpretao marxista que Clark (1990) faz deste quadro. interessante resumir o questionamento que Witkin faz de tal leitura para compreendermos sua proposta. Segundo Clark, a pintura moderna deveria ser questionada pela sua incapacidade de mostrar as condies do mundo capitalista. Witkin ataca tal tese mostrando que, assim como outras obras de pintura moderna, Olympia pode ser vista como uma leitura sociolgica mltipla de problemas tpicos da modernidade: comodificao, alienao, racionalidade, desencantamento etc (Witkin, 1997, p.104).18

Atravs da anlise de uma obra individual, Witkin procura demonstrar que a arte moderna da qual Olympia de Manet um exemplo tpico pode ser vista como uma resposta crescente disjuno entre relaes sociais instrumentais e de solidariedade (p.103-107). Mais ainda, Witkin identifica uma configurao cultural especfica na ideologia burguesa envolvendo gnero e classe social (p.101). A partir desta identificao, Witkin procura mostrar que, diferentemente do que pensa Clark, Olympia no reflete pura e simplesmente uma condio objetiva, no nvel da sociedade, de explorao da prostituta-trabalhadora, tendo, portanto, uma qualidade realista de refletir tal como ela . Assim, Witkin procura mostrar que Manet, atravs do uso de certos cdigos de apresentao, tipicamente modernistas, tais como o uso da planerialidade, a supresso da modelao clara das linhas de contorno e da interao (107, 110-112), o uso de referncias culturais densas e alusivas (p.115-117) e a adaptao de tcnicas pictoriais estrangeiras e exticas (p.114-115), subverte e desconstri aquela configurao como um discurso da formao social onde Olympia foi produzida. Em outras, a construo de um discurso burgus sobre a mulher e seu papel na sociedade (capitalista), mostrando o homem como aquele que ganha o po, ou seja, como imerso no mundo dos valores (instrumentais) e a mulher, no mbito da famlia, como guardi de relaes baseadas na solidariedade, argumenta Witkin (p.119-124), subvertida por Manet j que Olympia mostra um lado no to ideal da face feminina no mundo moderno e capitalista, isto , o pintor expe a comodificao do corpo da mulher atravs da jovem prostituta que mira seu prximo cliente recm-chegado. Finalmente, o carter de classe claramente divisado por Clark atacado por Witkin ao argumentar que Manet manipula deliberadamente smbolos identificadores de classe, pois os utilizados no nos permitem distinguir se Olympia uma prostituta de segunda categoria ou uma cortes de luxo (p.122). Assim, se Manet usa tais smbolos identificadores de uma origem de classe de forma no clara, como identificar ali, em Olympia, o retrato da explorao capitalista do dominado (ou dominada) pelo dominador como queria Clark? 2.6 A Sociologia das Obras Artsticas em Pierre Bourdieu19

Uma questo central que pode ser creditada ao seu pensamento sociolgico Bourdieu e, em particular, aqui, sua proposta de uma sociologia das obras, diz respeito sua tentativa de equacionar, e superar, a polmica da dicotomia entre estrutura e agncia, que o autor denomina de abordagens objetivistas e subjetivistas ou, tambm, de estruturalista e fenomenolgica (ou construtivista). O autor vai nos apresentar trs modos de conhecimento terico que, embora distintos entre si, compartilham o fato de se oporem ao conhecimento prtico (1983: 46). Conhecimento fenomenolgico (abordagem subjetivista), tendente a considerar o mundo social como constitudo a partir das representaes que dele se fazem os agentes (Bourdieu, 1990, p.150-51): o caso de Weber, Schtz e do interacionismo simblico e da etnometodologia (Ortiz, 1983, p.812). Conhecimento objetivista (abordagem objetivista), perspectiva a apresentar as aes dos indivduos como resultado exclusivo de condicionamentos estruturais: o caso de autores clssicos como Marx e Durkheim ou de correntes como o estruturalismo. Como recurso para superar essa dicotomia, Bourdieu procura estabelecer a mediao entre estrutura e agncia, a partir da elaborao do que seria uma sociologia do conhecimento praxiolgico, que o terceiro modo, em questo, de conhecimento terico. Mas, para o autor, a interao entre atores resulta de processos socialmente estruturados: ou seja, encontra-se intimamente ligada mediao entre as estruturas objetivas e as disposies sociais (os habitus), bem como, a relaes de poder. As disposies sociais no so apenas a interiorizao de normas e padres pelo habitus, so, inclusive, os esquemas generativos que presidem a escolha (Ortiz, 1983, p.16), no interior do prprio modus operandi que o habitus. Contra o que chama de pensamento substancialista, Bourdieu prope um modo de pensamento relacional. Contudo, percebe-se uma preocupao maior de Bourdieu para com os aspectos da anlise estrutural, visto que sua proposta de um pensamento relacional, que ele atribui a uma contribuio da revoluo estruturalista, deve estar montado em termos da construo de homologias, ponto a partir do qual se poderia apreender um conjunto de posies sociais em relao a um conjunto de atividades (...) ou de bens que apenas relacionalmente se definem (1996, p.18).20

A anlise das posies sociais, em relao com as disposies (habitus) e com as tomadas de posio (escolhas que os agentes sociais fazem nos domnios mais diferentes da prtica), se apresenta, assim, como a proposio central do mtodo relacional em Bourdieu. A construo do espao social se d em funo das posies sociais que agentes e grupos ocupam dependentemente da diferenciao em termos da posse global de capital: tanto o capital econmico, quanto o capital cultural. Nesse sentido, o elemento da diferenciao um princpio bsico da noo de espao; entendendo-se por espao, conseqentemente, o conjunto das posies distintas e coexistentes. Assim, diferenas na posio ocupada no espao social devem ser relacionadas com as diferenas de capital (econmico ou cultural) que, por sua vez, se relacionam com diferenas nas disposies (habitus), que se traduzem em tomadas de posies. Mas os habitus gozam de uma estruturao. Ela se encontra vinculada aos princpios de classificao, que so anteriores s representaes sociais, e que se encontram vinculados s condies sociais desiguais da estrutura objetiva de distribuio dos bens materiais e simblicos. Com efeito, a desigualdade da estrutura objetiva de distribuio dos bens leva a um processo de relaes hierarquizadas da estrutura social, reprodutoras de um arbitrrio social (gnese social) numa espcie de estrutura invisvel. Nestes termos, os habitus, sejam sociais ou individuais, so estruturas mentais que se formam como interiorizao das estruturas do mundo social, a partir das posies sociais ocupadas pelos agentes ou grupos, e que, embora se d de modo subjetivo, no pertence exclusivamente ao domnio da individualidade, estando histrica e socialmente determinados (Bourdieu, 1990, p.158; Ortiz, 1983, p. 16-7). Os habitus devem ser vistos como sistemas de disposies durveis. o que Bourdieu caracteriza como campo. O campo se define como espao social engendrado pelas relaes de poder, definidas, por sua vez, a partir da distribuio desigual do capital social (econmico ou simblico), determinante que da posio (estratgica) que um agente especfico ocupa neste campo (Idem, p.21-2). Para Bourdieu, deve-se apreender os campos de produo cultural como espao de possveis que se traduz como um sistema comum de coordenadas, que orienta a todos os agentes21

envolvidos no jogo objetivo de relaes inteligveis: em particular, no tocante s posies e tomadas de posies no interior do campo social. Definindo seu mtodo em termos de espao dos modos possveis de analisar as obras culturais, Bourdieu vai assinalar o que ele caracteriza como uma primeira e bem conhecida diviso das obras literrias, a saber: a da oposio entre explicaes externas (reduo ao contexto) e interpretaes internas ou formais (a obra como texto). Para o autor, ambas as formas de abordagem se apresentam de maneira insuficiente, visto que perdem o carter relacional que deve envolver o modo de pensar aplicado ao espao social dos produtores (1996, p.54-61). Bourdieu assinala que a leitura interna da obra processada por literatos e filsofos, no se constituindo tanto em um corpo de doutrina, mas permanecendo em estado de doxa, segundo a lgica do campo de saber que a instituio universitria. Nesse sentido, o que se encontra identificado aqui o pressuposto de uma produo pura do campo literrio, um essencialismo potico: a partir da qual seria possvel, no modo de uma absolutizao do texto, estabelecer a leitura pura da literatura pura. Mas, como ressalta o autor, tais pressupostos so historicamente constitudos e no estruturas a-histricas. No tocante orientao seguida pela anlise externalista da reduo ao contexto, Bourdieu assinala a tendncia a estabelecer a relao entre a obra e o contexto social em termos de uma lgica do reflexo. Nesse sentido, vincula-se a obra s condies sociais do autor e/ou do pblico. Esse modelo de anlise externa pode se manifestar seja na forma de um mtodo biogrfico ou de uma anlise estatstica ou, ainda, no tpico modo de anlise de inspirao marxista. No primeiro caso, tende-se a vincular o carter explicativo da obra s caractersticas biogrficas do autor; no segundo, traa-se as caractersticas estatsticas dos escritores, segundo princpios pr-construdos (categorias distintas, momentos distintos etc.); no terceiro, estabelece-se a vinculao das obras aos condicionamentos de classe e aos processos ideolgicos da viso de mundo. O modelo de Bourdieu da teoria do campo esfora-se, assim, a ser uma tentativa de sntese que visa superar a dicotomia que preside os modelos anteriores. Para ele, a prevalncia atribuda anlise das funes tende a negligenciar a lgica interna dos objetos22

culturais, ao passo que uma anlise exclusiva da obra como autonomia absoluta da lgica interna leva ao no reconhecimento dos grupos que produzem esses objetos [...] atravs dos quais eles tambm preenchem funes (Idem, p.60). Bourdieu advoga um modelo de campo enquanto espao social de produo, fundado num modo de pensar relacional, que se apresente nos termos de um microcosmo social, que se define como o espao social onde se produzem obras culturais. Nesse sentido, o microcosmo social est relacionado idia de campo (artstico, literrio, cientfico entre outros). o espao de relaes sociais objetivas entre posies, no interior do qual se pode situar o conjunto das relaes objetivas entre os agentes e as instituies. Essas relaes objetivas so entendidas por Bourdieu como relaes de fora especficas, travadas a partir de lutas tendentes conservao ou transformao. Ademais, no interior dessas relaes que se formam as estratgias dos produtores (Idem, p.60-61). Em suma, a estrutura do campo refratria. Para o autor, a compreenso das mudanas nas relaes entre agentes e entre instituies, depende do conhecimento das leis especficas do seu funcionamento (grau de autonomia). H uma lgica autnoma de funcionamento do campo que leva a entender que diferentes possveis no espao apaream aos agentes como incompatveis logicamente, enquanto para o autor, a diferena de tipo sociolgico e no lgico. A rigor, o ncleo da discusso a propsito do campo se encontra na observao das tomadas de posio a engendradas. Para Bourdieu, as obras devem ser apanhadas como produto da luta entre agentes, segundo sua posio no campo. A orientao da mudana depende das possibilidades e dos interesses. O motor da mudana reside nas lutas nos campos de produo. As estratgias dos agentes e das instituies (tomadas de posio) so dependentes da posio que tm na estrutura do campo (capital simblico especfico), mediado pelas disposies constitutivas dos habitus, tendentes a conservar ou transformar as regras do jogo. A anlise das obras implica a correspondncia entre duas estruturas homlogas. Isto implica reconhecer que a oposio de subcampos, cujas estruturas se cruzam, se apresentam por23

homologia estrutura do campo do poder: h, assim, correspondncia entre a estrutura das obras e a estrutura do campo literrio. Mudanas no campo de produo restrito so originadas na prpria estrutura do campo. A ao das obras sobre as obras se exerce pelos autores e suas limitaes e limites da posio que ocupam na estrutura de um microcosmo especfico. A universalidade trans-histrica produzida historicamente pelo enfrentamento de pontos de vista particulares a partir dos quais se extrai a essncia sublimada daquela de tipo universal. Por isso, quando o autor fala de uma genealogia das obras, deve-se entender aqui a configurao de um mtodo que visa determinar as filiaes entre tipos e no tanto uma origem primeira ou uma espcie de pr-formao das figuras principais (visto que fruto de um arbitrrio cultural). Os tipos descobertos pela genealogia na dramaticidade da histria so reconstrues em jogo de tenso. Para Bourdieu, a evoluo de um campo possibilita, cada vez mais, um modo de estruturao histrica que tende a afirmar a autonomia do campo, a partir da universalizao das normas e dos juzos de valor em jogo, numa luta de interesses, capaz de impor uma historicidade do campo. Cabe ao socilogo reconhecer tal processo e buscar na genealogia do campo os mecanismos e elementos de sua constituio de modo a transform-los em instrumentos de sua anlise: anlise das condies de produo e reproduo do campo no nvel da produo e do consumo. Nesse sentido, no cabe ao socilogo estabelecer qualquer relao direta e de reflexo entre campo e mundo social visto que a tendncia universalizao e eternizao do campo a partir dos juzos de valor em disputa, no torna apenas o campo com uma aparncia de autnomo, mas o distancia substancialmente do mundo social, estabelecendo um mundo aparentemente prprio (tornando ingnua qualquer tentativa sociolgica de uma viso de reflexo entre campo e mundo social). S a partir de uma pesquisa de carter genealgico, pode o socilogo apreender a historicidade do campo e estabelecer certos parmetros da sua dinmica relacional com o mundo social. O sentido e o valor da obra (juzo esttico) pode ser solucionado numa histria social do campo associada a uma sociologia das condies de constituio da disposio (habitus) esttica particular24

exigida pelo prprio campo. preciso, com efeito, uma anlise da gnese histrica das prprias personagens centralmente envolvidas no jogo artstico (artista e conhecedor), bem como, das disposies por eles aplicadas na produo e recepo das obras. Uma histria das instituies especficas indispensveis produo artstica deve vir acompanhada de uma histria das instituies indispensveis ao consumo (produo dos consumidores e do gosto em termos de disposies e de competncia). Caberia cincia das obras, estabelecer a lgica objetiva do jogo e dos campos, referir as representaes e os instrumentos de pensamento que se imaginam independentes das condies histricas e sociais de sua produo e utilizao, que no campo se engendram e funcionam. Com efeito, o postulado metodolgico o da existncia de uma homologia entre espao das tomadas de posio (escolhas) e espao das posies ocupadas no campo. , ainda, o de historicizar tais produtos culturais com pretenso universalidade, mas no s relativiz-los, e t-los como referncia a um campo de lutas. Tirando-os da indeterminao eternizante e referindo-os s condies sociais de sua gnese. Duas so as razes da virada reflexiva apontada pelo autor: 1) a evoluo dos diferentes campos de produo cultural na direo da maior autonomia liga-se a uma virada reflexiva e crtica dos produtores pela sua prpria produo, o que os leva a destacar um princpio prprio e pressupostos especficos a sua produo. 2) a clausura do campo de produo cria as condies de uma circularidade e reversibilidade das relaes de produo e consumo na forma de uma virada reflexiva e crtica da arte sobre si mesma. O domnio prtico das aquisies especficas inscritas nas obras passadas e registradas faz parte das condies de entrada no campo de produo, ainda que seja com a inteno de subverter, como no caso da vanguarda. 3.1 Aspectos de uma Teoria Crtica da Arte Na definio de Marcuse, a teoria crtica deve ser entendida como uma teoria crtica da sociedade inspirada numa filosofia dialtica e na crtica da economia poltica (Marcuse, 1997, p.138). Para Horkheimer, o sentido de crtica deveria ser no tanto [...] da crtica idealista razo pura, quanto [...] de crtica dialtica economia poltica. Trata-se, na verdade, da tentativa de subordinao do sentido kantiano de crtica ao significado marxista da palavra, tal25

como apresentado por Marcuse: sendo o homem produtor da totalidade cultural, o dos artefatos ideacionais (Slater, idem, p.49; Matos, 1989, p.231-232). Pode-se dizer que o pensamento crtico dos frankfurtianos tem sua herana fincada em trs perspectivas: Kant, Hegel e Marx. Em Kant, o exerccio da razo limitado quanto ao conhecimento da natureza, visto que o cuidado da cincia para com os fenmenos enquanto objeto de estudo: a lgica dos juzos de uma categoria do entendimento, que atribuem uma identidade aos objetos e constri conceitos abstratos. A, Kant afasta o princpio da contradio do campo da cincia. Com Hegel, em contraposio a Kant, no se pode partir dessa atribuio de identidade e abstrao conceitual enquanto princpio de entendimento, j que no h um estado a priori da identidade; e, sim, algo que se constri de sua prpria negao. Visto que h, no pensamento dialtico, uma negao imanente (indissocivel) da histria na direo do Esprito Absoluto. Com efeito, no se pode distinguir entre real e abstrato, natureza e cultura, sujeito e objeto. A resposta de Marx dialtica hegeliana, vai no sentido de invertla da ordem ideacional do Esprito dimenso materialista histrica das relaes sociais de produo da existncia e das contradies surgidas no tocante ao avano das foras produtivas historicamente dadas (Matos, idem, p.231-261). Desde o incio, era este princpio da dialtica negativa que informava a teoria crtica. Da a forte influncia hegeliano-marxista. Mas, para a Escola, Hegel cai na metafsica da absolutizao da histria. Ao passo que Marx no teria se libertado da metafsica ao formular o seu conceito de materialismo e de histria, visto que absolutizara a sua concepo de natureza, na medida em que a tomou como princpio nico de explicao da mudana social, o ponto de partida da formao social humana (Idem). partindo de Schopenhauer, que a Escola vai estabelecer um distanciamento crtico da pretenso cientificista do materialismo, da crena iluminista na razo instrumental de que a cincia e a tcnica so os pressupostos bsicos da emancipao social. Com efeito, no mbito da razo instrumental que vai residir toda a forma da mistificao que opera a destinao do homem na sociedade moderna: a crena de sua superioridade sobre a natureza (Matos, idem, p.254).26

O desencantamento a que a Escola levada, em parte pelas razes tericas que orientaram o pensamento da teoria crtica, em parte pelos desdobramentos histricos que culminaram com o nazismo e o stalinismo, levou alguns membros do grupo a reconhecer no pensamento freudiano um importante nvel de tenso entre razo e instinto: ou seja, o princpio de realidade e o princpio do prazer onde a sobrevivncia de Eros resulta da frgil conteno das pulses sexuais indmitas e dos impulsos destrutivos (Merquior, 1969, p.29; Rusconi, 1969, p.225). Discutiremos essa questo adiante. Outra influncia, pouco considerada, sobre o pensamento da teoria crtica, a anlise weberiana, particularmente com relao ao processo de racionalizao e rotinizao das relaes sociais e do conseqente desencantamento do mundo regido por uma racionalidade orientada para fins instrumentais, prprias ao capitalismo. Com efeito, a racionalizao em Weber e fetichismo da mercadoria em Marx sero dois conceitos bsicos para a orientao terico-crtica do Instituto, particularmente Horkheimer e Adorno. Havendo, a, tambm, uma forte herana romntica. Uma ltima nota a propsito da construo do modelo da teoria crtica deve ser levada em conta em trs aspectos importantes. Uma teoria no pode ser apreendida sem que se leve em conta, primeiramente, a dimenso ralacional entre a parte e o todo; sem que se adote uma perspectiva metodolgica capaz de dar respostas meta-tericas aos problemas de valor e interesse envolvidos na construo crtico terica; e, finalmente, sem que se identifique no esprito crtico da teoria o fundamento dessacralizador da verdade, pautado na considerao da possibilidade de uma crtica imanente (Giroux,1986, p.34-5). Geuss (1988) vai identificar trs teses sobre a crtica da ideologia entre os membros da Escola. A primeira tese a de que a crtica radical da sociedade no pode estar separada da crtica de sua ideologia dominante; a segunda, de que a ideologia crtica no pode ser identificada como simples crtica moralizante, mas como um empreendimento cognitivo, uma forma de conhecimento; a terceira tese a de que a crtica da ideologia tem uma estrutura cognitiva distinta da cincia natural, fato que exige mudanas bsicas nas perspectivas epistemolgicas que herdamos do empirismo tradicional (p.44-5).

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No que se refere ao debate crtico da esttica e da cultura modernas pela teoria crtica, tem-se nas figuras de Adorno, Marcuse e, ainda que no diretamente vinculado Escola, Benjamin como os principais arquitetos de uma teoria esttica no programa global da teoria crtica. Nesse sentido, desenvolveremos a seguir a viso de arte e cultura destes autores. 3.1.1 A Viso de Adorno Para Adorno, em particular, a autonomia da arte deve ser apreendida por sua condio de liberao da funo de culto, da metafsica e da teologia. Segundo ele, essa autonomia foi favorecida pelo idealismo. Contudo, o idealismo liga-se ao carter ambguo da arte no mundo: afirmao e positividade so os conceitos que denunciam o aspecto mantenedor do sistema ideolgico e de dominao. Da sua formulao de uma crtica negativa. Adorno e Horkheimer (l985) sero os primeiros a elaborarem o conceito de indstria cultural, uma vez que na sociedade de mercado, cuja base de produo industrial, tambm a cultura e, conseqentemente, a produo esttica passa a se processar nesse circuito, como mercadoria fetichizada, ainda que goze de autonomia. Partindo de uma viso pessimista da racionalidade universalizante e mistificadora da sociedade contempornea e de seu regressivo processo fetichizador, os autores vo considerar que todo trao de manifestao cultural acaba por ser absorvido pela esfera do consumo, caindo assim no esquema industrial ainda que, no caso particular da arte, consiga-se manter o carter ambguo que caracteriza a sua prpria natureza. Em todo caso, tal processo de absoro finda por apresentar os produtos culturais como mercadorias que, pelo mecanismo da seduo/fetichizao, mostra-se de uma maneira altamente integrada pelo sistema da moda. Nesse sentido, no apenas os elementos reificadores da ordem estabelecida, mas, inclusive, as formas de contestao da ordem so, para eles, rapidamente absorvidas, apaziguadas e transformadas em mercadorias de circulao no mercado da indstria cultural. Aqui se pode perceber, mais claramente, a influncia dos dois conceitos clssicos que marcaram a anlise desenvolvida por estes autores: a crtica do fetichismo da mercadoria em Marx e o conceito de racionalizao em Weber.28

Alis, como vimos, pode-se afirmar que a direo tomada pelo conjunto dos trabalhos de alguns dos elementos da Escola de Frankfurt encontra-se nitidamente marcada pela crtica razo instrumental e seu conseqente desencantamento do mundo (Ortiz, 1986, p.44; e Freitag, 1986, p.34-5), a partir da qual se articula o conceito de fetichismo da arte, como no caso mais especfico de Adorno e Horkheimer (idem). Ao afirmarem uma dimenso ambivalente da cultura, os autores tm na arte e nos processos estticos, o que consideram as caractersticas mais apropriadas dos mecanismos de transcendncia do real, da realidade apresentada pela unificao e padronizao da vida social na sociedade industrial. Com efeito, para eles, particularmente o Adorno de Teoria Esttica, uma vez que a racionalidade tcnica operada no mbito das sociedades contemporneas a prpria prxis que suprime a diversidade e a diferenciao sociais; pode-se entender porque, tendo libertado os homens de seus caracteres emocionais e msticos, o Iluminismo os escravizou a uma outra forma de mistificao: a razo que, no capitalismo, os subjuga dominao econmica, privando-os de autonomia, de crtica e de potncia insurgente frente o establishment. Sendo assim, a expresso da esttica artstica, na medida que opera um discurso de fuga e quebra daquela realidade unificadora, potencialmente revolucionria, por possibilitar utopias que reinstauram a dialtica realidade-iluso (ainda que Adorno insista na questo da fetichizao recuperadora da indstria cultural) (Adorno, 1982). Alis, o prprio conceito de arte de Adorno segue a clssica distino da cultura em nveis. Para ele, um dos problemas centrais da indstria cultural que a padronizao que ela promove integra domnios h muito separados: a arte superior e a arte inferior inclusive com prejuzo de ambas (idem, 1986, p.92-3). Assim a autonomia da obra de arte, que nunca existiu de uma forma pura e sempre sofreu conexes causais, v-se suplantada pela indstria cultural (p.93). Com efeito, o que Adorno e Horkheimer procuram afirmar, substancialmente, que as produes artstico-culturais e estticas sob a forma tecnolgica da indstria cultural, assumem o estatuto de mercadorias. Para eles, as produes do esprito no estilo da indstria cultural no so mais tambm mercadorias, mas o so integralmente (Adorno, 1986, p.93-4).

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Mas o interessante na crtica que apresenta a cultura como mercadoria paradoxal, comparando-a a publicidade, o fato de os produtos da indstria cultural no se encontrarem na imediaticidade de sua venda e do seu lucro; visto que a indstria cultural, como o relaes pblicas em que se transformou, no precisa manter relaes com produtos ou objetos de vendas particulares: ela o espao publicitrio dos produtos e de si mesma (idem, 1986, p. 94). Em todo caso, a motivao do lucro parece ser o ponto fixo do prprio capitalismo e, portanto, da indstria cultural. Para o autor, toda a configurao do novo que a se induz, no passa de uma dimenso epidrmica ou de indumentria do sempre igual e da repetio (p.94). Adorno distingue o conceito de tcnica na indstria cultural, daquele usado para as obras de arte. No primeiro caso, a tcnica diz respeito a aspectos de produo e reproduo mecnica, como elementos extra-artsticos; sem qualquer preocupao quanto s determinaes que a objetividade dessas tcnicas implica para a forma intra-artstica, mas tambm sem respeitar a lei formal da autonomia esttica (p.95). Ainda sobre as consideraes a respeito da tcnica, Benjamin (1980) parece refletir de modo mais dialtico, por no separar rigidamente a tcnica na indstria cultural da tcnica da arte: para ele no h apenas reproduo tcnica da obra de arte, mas a mudana de percepo pelo pblico fruidor a esse respeito se falar mais adiante. A posio de Adorno o leva a identificar, na indstria cultural, no apenas a ideologia do conformismo em substituio conscincia: que promete enganosamente as satisfaes que no podem ser satisfeitas, e resolve aparentemente os problemas que no podem ser por ela resolvidos; para o autor, o objetivo central da indstria cultural o de submeter os homens condio de dependncia e servido, como massa passiva. Sendo o divertimento popular, manipulado pela indstria cultural, a caracterstica repressiva essencial da cultura popular na modernidade (Adorno, 1986, p.99; Slater, idem, p.177). Mas preciso reconhecer, contudo, um importante aspecto na teoria esttica de Adorno. Se a mencionada potencialidade revolucionria operada num discurso de fuga e de quebra da realidade unificadora pode possibilitar utopias que reinstauram a dialtica realidade-iluso, isso s pode ser imaginado, segundo ele,30

com base na considerao de uma manifestao de arte crtica e do uso crtico no-manipulativo dos meios de comunicao. Partindo desta questo, Adorno vai ter nas manifestaes da vanguarda artstica uma dimenso crtica potencialmente mais determinante do que na arte engajada; uma vez que esta ltima, por tentar uma crtica inteligvel, finda por dissimular uma coerncia conceitual formal, que assimila e reconhece tacitamente a penetrante e florescente mquina de comunicao (Adorno Apud Slater, p.186). Com efeito, o elogio feito por Adorno aos aspectos anti-discursivos da arte moderna e de vanguarda enquanto arte crtica encontra-se ligado idia de que, s assim, a arte pode ser restituidora do que a cognio funcionalista exclui, ou seja, do carter no-idntico da arte. Por outras palavras, a viso crtica da obra de arte restituidora do no-idntico se traduz por sua falta de funo enquanto oposio ao nexo-funo abstrato da realidade emprica requerido pela cognio funcionalista. Como diz Adorno: Alcanamos um ponto em que a obra de arte s pode sustar a realidade emprica [...] no recorrendo mais a nada especfico para seu contedo (Apud Slater, p.186). 3.1.2 A Viso de Marcuse Tambm para o Marcuse de A Dimenso Esttica, com referncia ao ponto de fuga da dialtica realidade-iluso, a arte parece gozar de uma caracterstica curiosa nas sociedades atuais, posto que pode apresentar-se como uma expresso positiva da alienao, pela negao que em ltima instncia invoca realidade padronizada, anuladora da subjetividade. Certamente, as estruturas econmicas afirmam-se a si prprias. Determinam o valor de uso (e, com ele, o valor de troca) das obras, mas no o que elas so e o que dizem (Marcuse, s/d, p.41). Para ele, embora a forma esttica, e sua autonomia, desvie a arte da realidade, isto pode se dar por fatores de contraconscincia, ou seja, de contratendncia ao pensamento realstico-conformista, muito mais do que por uma questo de falsa conscincia ou mera iluso (idem, ibidem). Noutro momento, criticando o aspecto amorfo da linguagem tradicional, que parece no mais conseguir comunicar o que caracteriza o mundo atual, Marcuse vai analisar o carter afirmativo da cultura e da arte naquilo que ela expressa de negao, de31

recusa num mundo repressivo e totalitrio. Lanando esperanas de que as foras de contestao adviriam de toda a espcie social de lumpen, e no necessariamente do proletariado como classe econmica, Marcuse vai afirmar que a arte, como a linguagem do nosso tempo, descobre a existncia de coisas que so intrinsecamente estticas, e no meros fragmentos e partes da matria para serem manipulados e usados arbitrariamente (Marcuse, 1978, p.249). Para ele, desenvolvimentos nos campos da conscincia e da linguagem nos tm levado a descobertas de sentidos que no nos eram permitidos anteriormente; e isso tem afetado a forma artstica enquanto tal. Com efeito, a arte atuaria por seu poder liberador do negativo, liberando a conscincia e, mesmo, o inconsciente, de sua mutilao pelo Establishment repressivo. Segundo seu pensamento, a arte na contemporaneidade cumpriria esta tarefa mais consciente e metodicamente do que nunca (idem, p.256). E, mesmo quando levanta a questo da possibilidade de sobrevivncia da arte nos tempos atuais, em que o carter totalitrio da sociedade afluente tende a absorver inclusive as atividades no conformistas, anulando a arte como comunicao e representao de um mundo outro que o do establishment, Marcuse vai afirmar que a crise da arte parte da crise geral da oposio poltica e moral, por sua incapacidade de traar as metas da oposio a uma sociedade totalmente orientada para o mercado (idem, p.246). Para o autor, central o conceito de imaginao como faculdade cognitiva a fim de se construir uma linguagem nova e revolucionria da arte, que possibilite a transcendncia e ruptura com o feitio do establishment. S na medida em que ela no participe de qualquer forma de establishment, inclusive do que Marcuse denomina de establishment revolucionrio, que a arte pode alcanar a dimenso revolucionria interna de sua prpria linguagem: em que a linguagem da imaginao permanece linguagem de desafio, de acusao e protesto (p.247). Alis, nesse sentido que, para ele, a arte nos anos 60 teria assumido a sua posio poltica: como uma forma de antiarte do absurdo, da destruio, da desordem, da negao (p.248). Mas, talvez, o ponto central a que Marcuse queria chegar nisso tudo, seja32

o de refletir a possibilidade de a arte negar-se ao sistema dos valores estabelecidos da sociedade, na direo de uma experincia possvel de novos valores que possibilitasse o surgimento da energia sensual e apaziguante dos instintos vitais, capaz de subjugar os instintos agressivos, repressivos e de explorao (p.249). Na realidade, a emergncia da sensibilidade e a liberao do domnio da forma sensvel se caracteriza, para o autor, como a prpria finalidade da obra de arte: em que a linguagem da arte fala de um universo imaginariamente realizado por imagens, sem nunca ser capaz de alcana-lo e em que a razo e a verdade da arte foram definidos e validados pela prpria irrealidade e inexistncia de seu objetivo (idem, ibdem). nesse sentido da liberao da percepo e da sensibilidade que Marcuse vai se referir potencialidade transformadora da arte; mas, no no sentido estrito de uma arte poltica das teorias marxistas do reflexo (que o autor aponta como conceito monstruoso). No podendo realizar por si mesma este nvel estrito de transformao, a arte, como forma de imaginao, como tecnologia e tcnica, seria um importante canal de construo de valores estticos no agressivos, necessrios emergncia de uma nova racionalidade na construo de uma sociedade livre, isto , a emergncia de novos modos e de novas metas do prprio progresso tcnico (p.251). Por certo, no faltam crticas ao esquema marcuseano do carter afirmativo da cultura. Crticos apontam a uma imagem simplista de o que seria a sociedade de fato humanizada (Lima, 1978:243). Trata-se da recorrncia que Marcuse faz psicanlise, em que inverte a anlise freudiana do carter repressivo s pulses sexuais e ao instinto agressivo indmitos, para favorecer a uma interpretao que apresenta a restrio ao prazer como transformao da prpria natureza do prazer. Assim, se em Freud mais prazer havia nas pulses indmitas; em Marcuse mais prazer existe na humanizao dos instintos, o que refletiria a sua maturidade e humanizao, na perspectiva de uma nova sensibilidade. O problema, contudo, estaria na forma de organizao social da cultura capitalista, que vai da deserotizao do corpo e restrio da sexualidade genitalidade procriativa em seus primrdios, at um33

maior relaxamento dos tabus sexuais atualmente (sem que isto, em todo caso, represente a livre manifestao do princpio do prazer). Ao contrrio, para Marcuse, a maior capacidade de controle global por uma autoridade social com a diminuio da funo repressora da autoridade paterna e com a ampliao da autoridade social da administrao pblica e privada ainda tem levado os indivduos a um princpio de dessublimao repressiva: em que a sexualidade se manifesta como princpio de desempenho econmico, onde toda ao sexual se d despojada de sentimentos e, portanto sem a liberao do Eros: ponto crucial para uma cultura humanizadora dos instintos agressivos e onde o princpio do prazer se sobreponha ao repressivo princpio da realidade (Marcuse, 1968; e Mantega, 1979, p.11-34). Ainda assim, apesar da acusao de ter elaborado uma tese simplista e de ter cado numa concepo do mundo essencialmente romntica e irracionalista (Coutinho, 1990, p.189), no se pode descurar a importncia de Marcuse em sua anlise do carter afirmativo da cultura e sua contribuio para a formulao de uma teoria crtica da arte e da comunicao emancipatrias. 3.1.3 A Viso de Benjamin Em seu estudo A obra de arte na poca de suas tcnicas de reproduo, Benjamin j havia apontado para o carter emancipatrio da esttica e da arte num contexto de alta reprodutibilidade tcnica como o do capitalismo. Nesse texto, Benjamin vai afirmar uma mudana significativa no estatuto da prpria obra de arte, agora submetida essencialmente ao processo de reproduo, que a da perda do seu carter de autenticidade. Para o autor, isto se deve ao fato de que, sob efeito da reproduo, o tradicional como autntico tem seu testemunho histrico abalado, visto que a durao material do evento produzido perde seu elo original: o que leva liquidao da tradio e atualizao do prprio evento. Na verdade, o processo de reproduo na obra de arte vai afetar em cheio a sua aura. O significado da aura artstica est relacionado ao valor cultual presente na obra de arte tradicional. Com a alta reprodutibilidade tcnica do capitalismo, o que se deu foi a passagem do valor da obra como objeto de culto (que torna distante o que est prximo), para o valor da obra como realidade exibvel (tornando prximo mesmo o que se encontra distante). Para Benjamin, tais34

transformaes histricas do processo de reproduo, ocasionaram mudanas de percepo e de sentimento no mbito da sensibilidade humana (Benjamin, 1980). Quando se fala de reproduo, o que vem mente a condio de autenticidade da obra, o seu hic et nunc. E Benjamin coloca a questo quando afirma que a prpria noo de autenticidade no tem sentido para uma reproduo, seja tcnica ou no (Idem, p.7). No entanto, duas caractersticas da reprodutibilidade devem ser notadas: uma diz respeito autoridade requerida pelo original, quando da reproduo do objeto feita pela mo do homem e, em princpio, considerada como uma falsificao; a outra, em que isso no ocorre, concerne reproduo tcnica, apresentando-se pelo carter revolucionrio das transformaes ocorridas. A ela, segundo o autor, dois motivos se apresentam: a independncia da reproduo tcnica frente ao original e a possibilidade da reproduo de situaes dificilmente encontrveis no original (Idem, p.7). Seja como for, o que aqui se desvaloriza o hic et nunc do original, o que favorece ao declnio da aura da obra de arte. Como principal exemplo dessa situao, Benjamin aponta o caso da fotografia e do cinema. Tanto por aquela capacidade que tais linguagens tm de ressaltar aspectos do original que escapam ao olho, quanto pela referida possibilidade de situaes em cujo contexto o original no seria encontrado (Idem, p.7). Alis, com relao primeira caracterstica, Benjamin ressalta que o aspecto verdadeiramente revolucionrio da fotografia e do cinema como tcnicas de reproduo foi a descoberta de um inconsciente visual. Para ele, completamente distinta a natureza do que apreendido pela cmara e pelos olhos, visto que a cmara assumiria o espao inconsciente de ao do homem, substituindo o seu espao de ao consciente (1980, p.23). Para o autor, o carter de um comportamento progressista est, alm disso, associado relao que pode ser estabelecida entre o prazer do espectador e a experincia vivida, levando ao entendimento de que a mudana de comportamento da massa diante da arte depende das tcnicas de reproduo aplicadas obra de arte (p.21). Benjamin refere-se ao carter coletivo do cinema, que exerce determinao sobre as reaes individuais, levando o pblico a no separar crtica de fruio.

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Em apoio a essas afirmaes, Benjamin vai estabelecer comparao entre o cinema e a pintura, em que esta ltima parece no ter a pretenso de ser contemplada por mais de um espectador ou, ento, por pequeno nmero deles (Idem, p.21). Segundo ele, uma diminuio da significao social da arte se d quando, no pblico, esprito crtico e sentimento de fruio se separam: passando-se a desfrutar acriticamente das convenes e reagindo-se a qualquer tipo de inovao. Particularmente no caso da pintura, Benjamin vai justificar que de sua prpria essncia o fato de ela no se oferecer a uma receptividade coletiva. Mas Benjamin no dedicou seus estudos exclusivamente ao cinema, como se sabe. Num importante conjunto de ensaios, reunidos em torno de um projeto ambicioso, o seu Trabalho das passagens, Benjamin tambm vai se dedicar situao da poesia, por exemplo, na poca de Baudelaire; e s prprias transformaes ocorridas, sob o signo da modernidade, nas passagens e galerias parisienses. Duas situaes so dignas de destaque para o interesse do que se quer esboar aqui. A primeira, diz respeito configurao do interieur como o momento em que se d a separao entre o espao privado e o lugar de trabalho. O interieur, como universo caracterstico da nova residncia do homem privado, se apresenta assim como a expresso por excelncia do espao burgus. nele que o homem privado vai ter sustentadas as suas iluses, tanto mais quanto seus clculos comerciais se distanciam de suas reflexes sociais (1985, p.37). Com efeito, assim como o escritrio se apresenta em seu realismo como o centro de gravidade do existencial, assim o interieur se mostra como refgio, como lugar esvaziado de realidade. Benjamin afirma: O interior da residncia o refgio da arte. O colecionador o verdadeiro habitante desse interior (Idem, p.38). Ao que parece, o autor chama a ateno para o fato de que, a, passa a haver uma espcie de retorno aura: mas no pela significao de culto anteriormente referida, e, sim, pela transfigurao de valor por que passam os bens - o colecionador retira dos objetos, pela posse, o seu carter de mercadorias; mas, ao invs de restituir-lhes valor de uso, os impregna de puro valor afetivo. O contraponto a esse mundo interior e a esse homem privado, Benjamin vai encontrar na poesia de Baudelaire. Para ele, com36

Baudelaire que Paris se torna, pela primeira vez, objeto de poesia lrica. Uma poesia que se vale do alegrico e que, melancolicamente, olha a cidade por uma dimenso de estranhamento. Uma poesia que se traduz pelo olhar do flneur um dos tipos sociais identificados por Benjamin no tocante existncia na modernidade. Ao que parece, o flneur representa um tipo social cuja forma de vida encontra seu limiar tanto na cidade grande quanto na classe burguesa, mas sem que esteja a elas subjugada. Com efeito, a multido se expressa como o espao asilar do flneur, sua residncia, sua fantasmagoria. O flneur se representa, ainda, no tipo intelectual marcado pelo mercado, mercado para o qual a flnerie se torna til venda de mercadorias (Idem, p.39). A condio do flneur, contudo, bastante ambivalente: no interior da multido, a passagem se lhe apresenta tanto como espao exibvel, quanto como refgio a, o flneur vive situaes como as de mercadoria, de vagabundo, de proscrito; a, ainda, ele vivncia empaticamente a satisfao da compra pelos fregueses, bem como, tem como referncia s tabernas (onde se refugia dos credores) e a prostituta (misto de mercadoria e vendedora). Como concluso, caberia aqui situar a prpria maneira como a Escola situa o modelo terico-crtico como modo de conhecimento. A teoria crtica est mais interessada em orientar a idia de emancipao pela identificao de interesses diversos e das condies de existncia contra o uso instrumental levado a efeito pelas teorias cientficas; a teoria crtica se autoidentifica como reflexiva contra o carter objetificante das teorias cientficas; por fim, a auto-reflexividade da teoria crtica o que a coloca na condio cognitivamente aceitvel em contraposio s exigncias de confirmao emprica por meio da observao e do experimento prprias s teorias cientficas. Com efeito, este talvez seja o quadro principal para se pensar o contedo cognitivo e epistemolgico da teoria crtica como forma de conhecimento orientada para a ao humana (Geuss, 1988). 4. CONCLUSO Com vistas a uma concluso sobre o papel de uma teoria sociolgica aplicada a problemas da sociologia da arte, gostaramos de ressaltar alguns pontos importantes destacados ao longo do texto.37

Os objetos artsticos objetos de investigao da sociologia da arte colocam um dilema fundamental para os esquemas analticos fundados na dicotomia agncia versus estrutura, qual seja o de que eles, uma vez existindo no mercado artstico ou em instituies culturais (museus, galerias, etc.) ganham uma autonomia que as torna independente dos seus criadores e das estruturas sociais onde foram criadas. Mas, mais do que isto: eles carregam em si uma dinmica ou estrutura interna que a separa do seu criador (agncia) e das estruturas sociais. Ou seja, como afirmamos acima, faz-se necessrio um modelo analtico amparado numa tricotomia que considere as relaes entre agncia, estrutura e objetos artsticos. Vimos ao longo do texto, que alguns autores (p. ex., Wolff, Becker, Francastel) buscam privilegiar os aspectos externalistas com nfases variadas sobre as estruturas sociais que permitiram a criao da obra ou sobre os agentes criadores enquanto outros (p. ex., Witkin, o Adorno como analista de msica) privilegiam um olhar internalista sobre a obra de arte ressaltando suas qualidades intrnsecas. Um terceiro grupo (p. ex., Zolberg, Williams, Bourdieu, Teoria Critica) busca uma sntese entre estas duas abordagens. Como deve ter ficado claro, a partir de nossa perspectiva fundada em problemas fundantes da teoria sociolgica, h hiatos tericometodolgicos nas trs perspectivas, pois mesmo naquelas correntes que propem a sntese entre as abordagens internalista e externalista no h uma proposta em que se leve em conta os trs plos do modelo que aqui identificamos como entidades analticas autnomas. Por outro lado, podemos observar que as abordagens internalistas e externalistas (e, mesmo, as de uma tentativa de sntese de ambas as tendncias) tm tendido a privilegiar ora o debate sobre a agncia, ora o debate sobre a estrutura. Exemplo disso pode ser destacado em obras como as de Becker, Witkin e Bourdieu. Em Becker, que adota uma abordagem externalista, privilegia-se a ao. Com Witkin, a abordagem internalista segue um modelo semitico baseado em homologias estruturais. A abordagem sinttica de Bourdieu, fundada em sua teoria dos campos, tende a privilegiar um modelo relacional capaz de reconhecer a correspondncia de homologias estruturais para uma sociologia das obras.

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Para Witkin, p. ex., deve-se tratar as conexes semioticamente necessrias entre estrutura social, relaes sociais e estratgias estticas especficas desenvolvidas pelo artista. Ao que parece, este argumento aponta muito mais para a construo de homologias entre ambas as estruturas: estruturas das relaes sociais e estrutura das relaes estticas (p.103). Noutra perspectiva, contrria das homologias, Williams procura uma interpretao fundada na idia de mediao como processo, orientada para o reconhecimento de diferenciaes e de contradies estruturais, procurando no cair num modo de equivalncia homolgica. Por outro lado, o desafio da mediao o de no se cair num reducionismo em que muitas vezes se transformem especificidades (tais como: obras de arte, artistas, instituies, pblico) em um lugar comum generalizado. central, pois, o reconhecimento da autonomia dos trs nveis analticos aqui referidos. 5. BIBLIOGRAFIAANJOS Jr, Moacir dos & MORAIS, Jorge V. (1998). Picasso Visita o Recife: a Exposio da Escola de Paris em Maro de 1930, Estudos Avanados, 34:313-335. ARIAN, Edward (1971). Bach, Beethoven, and Bureaucracy: the Case of the Philadelphia Orchestra. University, AL, University of Alabama Press. BAKHTIN, Mikhail (1987). A Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento: o Contexto de Franois Rabelais. So Paulo/Braslia, Hucitec/Editora UnB. BARNETT, James (1960). The sociology of art, in R.K Merton et al. (orgs), Sociology today: problems and prospects. Nova York, Basic Books. BECKER, Howard (1974). Art as collective action. American Sociological Review, 39(6):767-76. __________ (1982). Art worlds. Berkeley e Los Angeles, University of California Press. BEISEL, Nicola (1993). Morals versus art: censorship, the politics of interpretation, and the Victorian nude. American Sociological Review, 58(2):145-162. BERGER, John (1992). Ways of seeing. Harmondsworth, Penguin. BOIME, Albert (1987). Art in the age of revolution, 1750-1800. Chicago, University of Chicago Press. __________ (1990). Art in the age of Bonapartism, 1800-1815. Chicago, University of Chicago Press. __________ (1995). Art and the French commune: imagining Paris after war and revolution. Princeton, Princeton University Press.

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