O berço africano mary del priore e renato pinto venâncio

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O Berço Africano A primeira pergunta é: de onde vieram nossos ancestrais africanos? E a resposta: a grande maioria veio da chamada África Ocidental e Centro-Ocidental - aqui denominada como "Atlântica". Rasgada por imensos rios, a plataforma rígida formada por uma série de planaltos parece - como disse um historiador - "uma cidadela solitária e hostil. Raras fendas, abertas na bruta fortaleza, permitem entrar-lhe no recinto". História desta região, que vai do Senegal a Angola, revela a presença de povos, desde há muito, conhecedores da agricultura e do ferro. Pertencentes aos milenares troncos lingüísticos nígero-congolês ou banto, sua organização social ficou marcada por uma luta feroz contra a natureza hostil. Ampliar as sociedades, humanizar a terra e lutar contra um clima impiedoso foi tarefa que, desde a Antiguidade, empurrou colonos para as savanas em busca de melhores condições de vida. A crescente desertificação do Saara, assim como o árduo desflorestamento de áreas ao sul do deserto, convidava grupos a se estabelecerem, embora de forma dispersa, em planícies inundáveis e sobre pequenas colinas. A escolha de tais lugares não era aleatória. Estas eram regiões facilmente defensáveis contra ataques de feras ou gente inimiga. Desde o século X, estas áreas de intensiva produção agrícola e cultural foram se multiplicando por vales fluviais e terras altas, em qualquer lugar onde a enxada de lâmina estreita ou um bastão para cavar, instrumentos da sobrevivência cotidiana, pudesse fecundar o solo. Foi assim que no século XI, um povo, chamado por seus precursores de tellem, se instalou nas falésias do Mali para cultivar as bordas do extenso planalto de Bandiagara. Nas frestas de pedras, em profundas cavernas, esses agricultores estocavam grãos, enterravam seus mortos e erguiam oferendas aos seus deuses. A partir do século XV, tal gente vai lentamente sendo absorvidos por um povo de diversa origem, os dogons. Criativos a ponto de aproveitar a menor gota d'água que encontrassem, eles

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O Berço Africano

A primeira pergunta é: de onde vieram nossos ancestrais africanos?

E a resposta: a grande maioria veio da chamada África Ocidental e Centro-Ocidental - aqui denominada como "Atlântica". Rasgada por imensos rios, a plataforma rígida formada por uma série de planaltos parece - como disse um historiador - "uma cidadela solitária e hostil. Raras fendas, abertas na bruta fortaleza, permitem entrar-lhe no recinto".

História desta região, que vai do Senegal a Angola, revela a presença de povos, desde há muito, conhecedores da agricultura e do ferro. Pertencentes aos milenares troncos lingüísticos nígero-congolês ou banto, sua organização social ficou marcada por uma luta feroz contra a natureza hostil. Ampliar as sociedades, humanizar a terra e lutar contra um clima impiedoso foi tarefa que, desde a Antiguidade, empurrou colonos para as savanas em busca de melhores condições de vida. A crescente desertificação do Saara, assim como o árduo desflorestamento de áreas ao sul do deserto, convidava grupos a se estabelecerem, embora de forma dispersa, em planícies inundáveis e sobre pequenas colinas. A escolha de tais lugares não era aleatória. Estas eram regiões facilmente defensáveis contra ataques de feras ou gente inimiga.

Desde o século X, estas áreas de intensiva produção agrícola e cultural foram se multiplicando por vales fluviais e terras altas, em qualquer lugar onde a enxada de lâmina estreita ou um bastão para cavar, instrumentos da sobrevivência cotidiana, pudesse fecundar o solo. Foi assim que no século XI, um povo, chamado por seus precursores de tellem, se instalou nas falésias do Mali para cultivar as bordas do extenso planalto de Bandiagara. Nas frestas de pedras, em profundas cavernas, esses agricultores estocavam grãos, enterravam seus mortos e erguiam oferendas aos seus deuses.

A partir do século XV, tal gente vai lentamente sendo absorvidos por um povo de diversa origem, os dogons. Criativos a ponto de aproveitar a menor gota d'água que encontrassem, eles cultivavam o milhete ou painço. Além disso, no curso interior do rio Níger, aproveitavam áreas favoráveis para plantar arroz de sequeiro. Devemos a eles as mais belas esculturas e as mais coloridas máscaras de toda a África, máscaras costumeiramente guardadas por iniciados encarregados de "conservar as almas ancestrais".

As campinas também abrigavam grupos variados.

Na savana, à sombra de acácias e dos ramos angulosos de imensos baobás, eles se reuniam por necessidade de defesa, resultando tais associações em complexas organizações político-sociais. Aí, cada aldeia era abraçada por áreas de povoamento esparsas e separada por zonas de terrenos incultos. Formadas em anéis concêntricos, tais áreas de povoamento, vilarejos ou grupos de habitações se cercavam - na ordem - por terras permanentemente cultivadas, campos de lavoura sazonal e matos externos antes do território do próximo vilarejo. Entre uns e outros, as árvores baixas abrigavam numerosas aves, os antílopes moviam-se rapidamente na grama alta e os predadores caçavam. Dotado de população irregular e desigual, cada grupo estendia ou diminuía suas fronteiras de acordo com a variedade de situações: guerras;

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aumento de população, secas, ameaça de temidos feiticeiros, podiam levar jovens do sexo masculino a abrir frentes e estabelecer-se em outros territórios, nas vizinhanças.

Esta tradição migratória era responsável pela lenta multiplicação de famílias ou de pequenos grupos que podiam se instalar ao lado de gente de origem completamente diferente. Os já mencionados dogons reuniam originalmente grupos de tradições e línguas tão diversas que, muitas vezes, vizinhos há poucas centenas de metros não se compreendiam. Mas foi esta diversidade que permitiu a criação de uma sociedade extremamente móvel, pronta a se deslocar cada vez que seus recursos pareciam limitados ou ameaçados.

Foi laboriosa a colonização da floresta, ao sul. Da Senegâmbia à Costa do Marfim, os cultivadores tinham uma longa estação de chuvas por ano: de abril a setembro. Algumas culturas se distinguiam nesta região: a do arroz - intensiva nos alagados, em pôlderes construídos no litoral, construções cujo grau de sofisticação impressionou viajantes estrangeiros quando aí chegaram ao século XV -; a do inhame entre os atuais Gana e Camarões, a do milhete e sorgo, em Angola e no Congo e a da banana também no Congo; até a chegada do milho e da mandioca, vindos da América do Sul adotados em toda a parte; cultivava-se principalmente o inhame, cuja produtividade compensava largamente os esforços investidos no desbravamento das matas.

Lentos, porém, obstinados, estes agricultores exploraram e venceram as florestas que se entendiam desde as pradarias do atual Camarões até a curva do Níger.

Foi mais ou menos na mesma época que os ancestrais dos iorubas e dos ibos da atual Nigéria colonizaram simultaneamente as bordas do sul da floresta e as savanas. Foram eles os responsáveis pela construção de mais de 10.000 quilômetros de cercas para fechar suas aldeias e territórios arrancados às matas. Cercadas por cinturões de terras cultivadas e plantações de palma e tanchagem - planta medicinal de grandes qualidades -, as aldeias ibos concentravam suas atividades comunitárias em praças públicas nas quais tudo acontecia: o mercado, a feira, as festas. Mais além, a mata cerrada escondia espíritos maus. Nela, só se aventuravam heróicos caçadores ou curandeiros.

Mas voltemos um pouco atrás.

Por volta do século I, os grupos de aldeias neste território começaram a se reunir em micro-estados, dando início à lenta evolução política. Povos de língua do tronco nigero-congolês original tentaram se instalar, por sua vez, na parte oeste da África equatorial. Encontraram, contudo, caça escassa e pouco do que comer neste ambiente hostil, difícil de ser penetrado, e rapidamente abandonaram-no aos pigmeus. Cultivadores que eram, optaram por regiões mais favoráveis: as fronteiras com savanas, manguezais e rios ricos em peixes e margeados de terras férteis, prontas para lavrar e plantar. Com o povo pigmeu mantiveram laços comerciais que os permitiam trocar o inhame e a palma cujo plantio dominava. Seguindo os cursos d'água, os pioneiros avançaram rapidamente e, por volta do ano 1000, já tinham penetrado em toda a região. Muitos deles somaram a atividade agrícola à posse de alguns bois. Com isso asseguravam, além do abastecimento de carne e couro, o estrume para suas roças, pois eles praticavam não só a adubagem - misturando ao solo os restos de cozinha - como a irrigação, a construção de socalcos nas encostas, a rotação de culturas, e a mescla de vegetais num só

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trato de terra, garantindo que, se uma cultura desse errado, a outra vingasse. Vestiam-se com fazendas de lã e algodão tecidas com formas geométricas, algumas compradas aos berberes, outras produzidas ali mesmo. Começava, assim, um novo tempo, tempo livre do nomadismo que tradicionalmente obrigava grupos famintos a procurar novas terras.

À medida que os indivíduos se adaptavam a diferentes ambientes, a cultura se diferenciava, formando múltiplos grupos étnicos. Foi o talento de Jan Vansina que conseguiu arrancar de tantos idiomas preciosas informações históricas. Da mesma maneira que os colonos de origens diversas, estabelecidos nas falésias de Bandiagara, no Mali, tinham estabelecido uma cultura dogon bem específica. Na borda nordeste da floresta equatorial, falantes de língua banto oriental se misturou a cultivadores de cereais, falantes de língua saaro-nilórica, dando origem a uma cultura complexa. Ao norte do continente, na borda oriental de montanhas de difícil acesso como Xoa, na Etiópia, esses grupos entram em contato com cultivadores de cereais que falavam língua banto oriental. Ao sudoeste, para além da floresta, nas savanas da atual Angola, haviam sido criadas, desde 1400, concentrações populacionais nos vales fluviais, a partir dos quais se avançou em direção às regiões mais altas dos montes Mitumba, entre Ruanda e o Congo.

Nas zonas equatoriais, a agricultura exigia maior esforço coletivo do que no restante da África Centro-Ocidental. Eram necessários, pelo menos, vinte homens para abrir, limpar e domesticar um pedaço de terra. Os bantos do oeste viviam em grandes aldeias, a maior parte Fincada entre a floresta e a savana, pois, desta forma tiravam o melhor partido de ambos os ambientes naturais. Tais aldeias separavam-se umas das outras por grande extensão de terra desabitada. Aí, as primeiras estruturas políticas importantes tomaram forma antes mesmo do ano 1000.

Apesar do enorme esforço de ocupação da terra, os habitantes da África Atlântica tinham que lutar com afinco contra um mundo hostil, instável e agressivo. Pesquisas de historiadores e demógrafos revelam que as doenças os atacavam impiedosamente, como sugerem as deformidades e dores que os artistas iorubas da cidade de Ifé imprimiam às suas esculturas em terracota. É possível que a maior parte das doenças fosse crônica e não fatal, pois as populações tiveram muito tempo para se adaptar aos parasitas. Exceto nas regiões mais secas, a malária era o mais fatal dos males, ceifando muitos recém-nascidos. Em razão de essa doença não se ter disseminado nas altas terras de Camarões, a região conheceu uma colonização intensiva.

A mosca tsé-tsé, portadora de tripanossomíase - parasita da doença do sono - infestava, por sua vez, inúmeras terras ribeirinhas da África central, matando, no século XIV, até um monarca, o rei Diata II do Mali; ela era, em geral, crônica. Conhecia-se, aí, também uma forma benigna de varíola. Tanta e tão longa convivência com a doença favoreceu o progresso das competências médicas. O banto primitivo possui um radical para a palavra remédio, "ti", que é o mesmo para árvore, indicando que as práticas de cura guardavam estreita relação com o conhecimento das plantas. No século XVI, depois da chegada dos portugueses a Angola, missionários jesuítas foram os primeiros a observar a competência de curandeiros, parteiras, cirurgiões barbeiros e feiticeiros no preparo de pomadas, ungüentos, purgativos e outros remédios. Pesquisas antropológicas só vieram a confirmar o caráter racional dos sistemas médicos bantos. Ruim era quando a doença se acompanhava de uma baixa de vitaminas e

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proteínas animais, seguida de hemorragias, dores de cabeça, febres, cólicas, dores de estômago, como as reveladas no século XVII, na Costa do Ouro. Tais doenças se deviam ao consumo de água imprópria. Igualmente cruéis eram os sofrimentos impostos pelo "verme da Guiné", nematóide que se instala sob a pele.

A fome, segundo os demógrafos, constituía em todas as regiões, salvo nas de culturas irrigadas, o outro obstáculo ao crescimento das populações. A tradição oral e as crônicas islâmicas das aldeias nas savanas associavam-na à seca e sublinham seus efeitos devastadores. Autores árabes contam, por exemplo, que no meado do século XI um soberano de Malal, no Mali, teria posto fim à fome, convertendo-se ao Islã: "na hora em que pronunciou a prece da sexta-feira, a chuva caiu". Arquivos portugueses revelam que, durante o século XVI, Angola sofreu uma grande fome que se repetia a cada sessenta anos. O cortejo de epidemias, que se seguiu, matou um terço da população e neutralizou o crescimento demográfico de toda uma geração. Não se sabe se a situação teria piorado com a introdução, pêlos europeus, de uma forma mais mortal de varíola; as fomes, contudo, eram horrivelmente destrutoras. Elas empurravam os grupos a trocar suas crianças por comida, famílias a vender seus filhos e dependentes por um alqueire de sorgo ou milhete, e homens e mulheres a se deixar escravizar para não morrer de inanição. Fomes também podiam ser atribuídas aos gafanhotos - mencionados no Mali, em 1352, pelo viajante Ibn Batuta -, mas também às fortes inundações, ventos, guerras, secas e ao abuso de poder.

De 300 a 1100, a África Ocidental se beneficiou de chuvas relativamente abundantes como sugere a prosperidade do vale do Níger ou o elevado nível do lago Tchad. Os quatro séculos seguintes, contudo, foram marcados por fortes secas. Em 1154, o geógrafo Al-Idrisi foi um dos primeiros a mencionar a progressão do Saara, quando os senhores de Canem, no atual Sudão central, abandonaram suas terras marcadas pela "fome e austeridade", para se instalar ao sul de Bornu, do outro lado do lago Tchad. Entre 1500 e 1630, as chuvas voltaram abundantes: o mesmo lago atingiu níveis jamais igualados. Por volta de 1639 e 1643, as más colheitas do vale do Níger tiveram duas conseqüências: o saque aos armazéns do soberano de Jené, um importante entreposto produtor e armazenador de produtos agropecuários, e o prenúncio de dois séculos de uma aridez excepcional. As mais graves crises se produziram nos anos de 1680 quando a fome ceifou da Senegâmbia ao curso superior do Nilo: muitos se venderam como escravos, com o único objetivo de sobreviver. Foi assim, também, em 1736 e 1756, quando a região foi assolada por secas e gafanhotos. Teria morrido, provavelmente, metade da população de Tombuctu, localizada na encruzilhada das mais ricas rotas transaarianas, levando Akbar Molouk a anotar: "As pessoas mais distintas só comiam grãos e ervas e toda a sorte de cereais que em tempos normais eram comidos pêlos mais pobres"; esses últimos, segundo alguns autores, ficaram sujeitos a comer-se entre si, o que na África era considerado crime gravíssimo. Hecatombes de tal amplitude eram possíveis: no Cabo Verde três fomes, entre 1773 e 1866, mataram cerca de 40% da população.

IDÉIAS E PRÁTICAS RELIGIOSAS

A maior parte dos autores considera difícil reconstituir as idéias e práticas religiosas, pois essas eram constantemente renovadas. Os africanos não islamizados não possuíam escrituras, tinham, em lugar disto, tradições orais. E julgavam a religião por sua vivência diária, sobretudo

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quando se tratava de aliviar sofrimentos e de assegurar paz, prosperidade e fecundidade. Ai, se não funcionasse! O rei do Ndongo, atual Angola, fez executar onze fazedores de chuva durante uma terrível seca em 1575. Um tal "pragmatismo" religioso resultava em práticas e saberes religiosos muito diversos que aceitavam bem novidades se estas fossem válidas. As religiões estavam, pois, sujeitas a transformações, constituindo-se num dos aspectos mais plurais da cultura. Muitos observadores cristãos e muçulmanos se impressionaram com esse caráter diverso e fragmentado, reforçado pela ausência de textos escritos.

Os bantos mantiveram certa homogeneidade religiosa da qual sua língua é testemunha. Certas palavras provam que idéias sobre um espírito criador, espíritos de ancestrais e da natureza, filtros e feitiços, rituais e feiticeiros eram comuns. Cada grupo, contudo, chegava a idéias e práticas específicas. No século XV, por exemplo, o povo congo parece ter partilhado a noção de que um "espírito criador" estaria acima dos demais, e que as forças da natureza e dos ancestrais eram muito ativas. Estatuetas eram o suporte material dos avôs mortos e, por extensão, figuras por meio das quais se recuperava e utilizava os espíritos do além. Obras de um sacerdote especialista, único responsável por sua força mágica, tais estatuetas intervinham para fazer frente aos problemas do cotidiano - doenças, esterilidade, conflitos de todo o tipo. Uma abertura no dorso ou na barriga da estatueta protegia nas preparações de feitiços para as diferentes necessidades. Havia os "bons" feitiços, favoráveis à riqueza e fecundidade. E havia os "vingadores", encarregados de, por meios dolorosos, remediar problemas. Cada linhagem matrilinear comunicava-se com seus ancestrais por rituais efetuados em tumbas. A fertilidade agrícola era invocada por chefes da terra, que se servia de mediadores espirituais. Divindades da natureza confundiam-se, muitas vezes, com figuras humanas deificadas, como é o caso de Ogum ou Xangô, e muitos deles confundiam, também, os sexos. Já no reino Cuba, no século XVIII, venerava-se três espíritos criadores diferentes numa mostra da complexidade da religião e pensava-se que as ameaças naturais eram fruto de desordem social e moral. No Mali do século XI sacrificavam-se animais para chamar chuva. No Benim, a divindade mais cultuada, segundo alguns autores, era Olodum: ele garantia filhos e riquezas e era o benfeitor particular das mulheres.

As crenças diziam que os mortos viviam num mundo de sombras, reproduzindo as condições terrenas. Por isso mesmo os reis de Gana eram enterrados com seus ornamentos, sua comida, seus servidores. Em algumas destas cerimônias, segundo cronistas europeus, matavam-se dezenas de escravos. Na Costa do Ouro, os homens comuns, por vezes, endereçavam ao sacrifício uma de suas mulheres ou alguns de seus Filhos. Em Bissau, quando da morte do rei, sacrificavam-se jovens que caminhavam para a morte cantando e dançando. As pessoas eram simplesmente decapitadas. Entre os dogons, as cerimônias funerárias incluíam danças no telhado da casa dos defuntos, nas quais muitos mascarados participavam segundo regras precisas. O objetivo era afastar a alma, evitando que esta voltasse, apavorando os membros da família. Uma festa periódica permitia o uso de uma grande máscara em forma de serpente. Ela simbolizava o ancestral morto, elemento de ligação entre o mundo dos vivos e dos mortos. Onde havia sistemas patriarcais dominando as sociedades, prosperava o culto aos ancestrais. De toda a forma, como resumiu o escritor angolano Mia Couto, "Em África, os mortos não morrem nunca. Exceto os que morrem mal... Afinal, a morte é outro nascimento".

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Onde a organização das aldeias era forte, a religião apoiava-se em sociedades secretas cujo objetivo era tirar força dos espíritos para curar doenças, assegurar a fertilidade e combater feitiços. É o caso da sociedade de iniciação Poro, presente em toda a África Atlântida. Ao longo de sete anos, jovens do sexo masculino passavam por três fases que os permitiam acesso ao conhecimento sobre a criação do mundo. O ensino era submetido a regras e hierarquias estritas. Os neófitos, ou seja, os que acabavam de ingressar na sociedade, falavam uma língua própria e cada classe portava ornamentos que as identificasse.

Os iorubas e outros povos aparentados veneravam, por sua vez, várias divindades: os orixás, divindades da natureza (trovão, rios, arco-íris etc.) que, depois de sua deificação foram assimilados a ancestrais fundadores de dinastias. Elas intercediam entre os homens e o deus criador, Olodum. Entre estes orixás, Xangô, com o rosto sempre coberto pelas franjas de sua coroa de contas, tinha um lugar especial no panteão dos deuses. Terceiro ou quarto rei de Oió, cidade situada ao norte do reino ioruba, na Nigéria, ele era ao mesmo tempo temido no que diz respeito à justiça e venerado por suas manifestações, que trazem chuvas regulares.

Segundo as tradições orais, este soberano tirânico teria sido destronado e enforcado na floresta. Uma tempestade se teria abatido sobre a cidade de Oió, manifestando a cólera e a vingança de Xangô, vingança simbolizada no trovão e no raio. Desde então, ele se tomou o orixá dos raios, trovões e tempestades. Nas cerimônias que lhe são oferecidas, os sacerdotes portam na mão esquerda uma cabaça e na outra, o bastão com uma figura feminina penteada com a imagem do "duplo machado", emblema de Xangô. Esse remete tanto às pedras de raios lançadas pelo deus durante as chuvaradas, quanto à pedra neolítica que os camponeses teriam encontrado nos campos e interpretada como um presente seu.

Os iorubas e outros povos aparentados serviam a um orixá quer por herança, quer porque a divindade, por intermédio de um adivinho, os teria escolhido. Alguns orixás eram reconhecidos em certas aldeias ou cidades, outros, em toda uma área cultural. Os seus adoradores podiam reunir-se e formar um grupo local provido de templo, imagens, sacerdotes, rituais coletivos e uma função no intenso e colorido ciclo de festas. A adivinhação também era largamente utilizada. Nela, destacava-se o Ifá, sistema no qual um profissional escolhia, entre várias centenas de versos memorizados, aqueles que servissem ao consulente.

As coisas mudam quando surge o Islã. Esse se expandiu pela savana, em boa parte, graças ao comércio. Onde houvesse entrepostos ele se instalava. O Alcorão chegava junto com as barras de sal, os fardos de tecidos, os cestos, os objetos de cobre e os alimentos. Ia se insinuando, graças ao prestígio de que gozavam estas comunidades de mercadores. A gente local, devota de divindades ligadas à terra, às águas, às árvores, temia e respeitava este misto de comerciantes e sacerdotes, que perambulavam com talismãs ao pescoço - saquinhos de couro contendo um trecho do Corão - capazes de protegê-los de feitiçarias e inimigos. Além disso, previam o futuro, cuidavam dos enfermos e rezavam para chover. Estes mercadores aparecem nos livros como uângaras ou diuias.

No século XIV os tuaregues se convertem à nova fé. Nascem um grupo clerical, os kuntas, afiliado a uma das mais importantes fraternidades consagradas à penetração do Islã. No Bornu, entre 1574 e 1728, ao menos doze de seus soberanos fizeram viagens a Meca, passando pelo Cairo com enormes caravanas. Para a mesma época, há indicações de

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islamização extensiva nos campos. A dinastia Songai enraizada na curva do Níger se manteve, todavia, fiel à religião local. Sua queda, em 1493, ocasionada por uma coalizão de oficiais e clérigos dirigidos por ásquia (rei) Mohamed delongai, foi o primeiro golpe de Estado islâmico na África Atlântica. Entre os haussás, no fim do século XV, os soberanos das cidades-estados de Cano, Zaria e Katsina eram muçulmanos, mas isto não evitou tensões e resistências. Na última, um reputado centro de educação, conservavam-se ritos pagãos de coroação. O palácio, apesar do islamismo, era um bastião de culto aos espíritos.

No sul, a expansão foi mais difícil. Grupos islâmicos vindos do norte da África e até do Oriente Médio pelo Sael, chegaram entre os iorubas no século XV. Mas, aos fins do século XVIII, o clero dos Estados haussás considerava que os iorubas pagãos podiam ser reduzidos à escravidão. Tanto religiosos muçulmanos quanto cristãos consideravam as religiões africanas obras do diabo. No reino Kano, islâmicos abateram árvores sagradas de onde saíam, segundo eles, "estranhos demônios", para construir mesquitas no lugar. Os africanos consideravam os muçulmanos poderosos feiticeiros. A crônica de Gonja, coleção de antigos documentos sobre a história do continente, revela que o rei se converteu depois de ter constatado a superioridade muçulmana na guerra. A hermética sociedade Poro fez de um deles membro, apenas para protegê-la de seus inimigos. Os amuletos de origem islâmica eram particularmente apreciados. O islamismo mudou até a genealogia dos reis negros. No Mali, diziam-se descendentes do muezim - aquele que anuncia em voz alta, as horas de preces - do profeta Maomé. No Kanem, atual Chade, os soberanos afirmavam ter origens no Oriente Médio. O Islã oferecia aos africanos do oeste uma idéia mais precisa do Criador e das maneiras de se aproximar dele, poderosas visões do paraíso e do inferno, um sentimento de destino a atingir e uma cosmologia sob autoridade da revelação divina.

Nas cidades haussás do Bornu tudo isto foi adotado, mesmo por aqueles que continuaram adeptos do panteão local. Alá fundiu-se com o espírito criador. Emprestou-se da nova fé a idéia de anjos e demônios. Adotou-se a idéia de uma figura profética capaz de revelar o saber divino aos homens. Resultou disso uma variedade de crenças que os soberanos encorajavam na preocupação de manter a harmonia. Ibn Batuta viu, assim, o rei do Mali celebrar, de manhã, o ramada, indo, à tarde, ouvir os feiticeiros vestidos com máscaras de pássaros cantar louvores à dinastia reinante. Conta-se que um soberano de Jené fez construir uma mesquita dividida em duas partes: uma para muçulmanos, outra para pagãos. Até o século XVIII, sacrificavam-se animais para Alá, na corte de Katsina.

Os muçulmanos reagiram contra tal ecletismo, condenando, o sacrifício de escravos e serviçais quando da morte de soberanos, punindo a excisão de mulheres e lutando contra a magia. A veneração do livro santo - o Alcorão - mostrou a que ponto a alfabetização podia separar as religiões. Muitas palavras africanas foram tomadas emprestado dos árabes, por exemplo, tinta, amuleto e lucro, entre os songai.

Portanto, na sua terrível luta contra a natureza, os africanos se preocupavam, sobretudo, com a prosperidade e a harmonia no seio do mundo terrestre. Este ideal era encarnado pela figura do "grande homem", rico em armazéns de grãos, em gado, em ouro e, sobretudo, em escravos prontos para assegurar trabalho, segurança e poder. A poesia traz inúmeras imagens sobre essa existência ideal feita de riquezas, mulheres, filhos, títulos e uma longa vida. A busca da

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prosperidade levava a um espírito de reciprocidade, provado através da distribuição de bebidas, comidas a todos. O resultado é que não havia acumulação sem redistribuição. A fortuna - arziki, em haussá - se perdia facilmente onde a natureza era hostil e a morte se mostrava tão presente. Num mundo onde não faltavam terras, pobres eram aqueles que não podiam trabalhar, porque eram velhos, mutilados ou muito jovens, ou porque não podiam contar com a parentela para sobreviver. Fora do quadro familiar, a proteção era informal.

Fonte: MARY DEL PRIORE E RENATO PINTO VENÂNCIO - ANCESTRAIS - UMA INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA ÁFRICA ATLÂNTICA.

Ancestrais - O Berço Africano

Quando os viajantes estrangeiros chegaram no século XV, ficaram surpreendidos com as construções sofisticadas que encontraram, dos pôlderes edificados no litoral, para cultivo do arroz de cultura intensiva em terrenos alagados. Entre o Gana e Camarões cultivava-se o inhame e, em Angola e no Congo, o milhete e o sorgo e a banana no Congo. Lentamente, mas com perseverança ímpar, estes agricultores tinham penetrado nas florestas e tornaram-se terrenos habitáveis e de cultivo, com a caça ao antílope e a mais diversa fauna em que eram muito ricos. Desde as pradarias do atual Camarões até a curva do Níger possuíram a terra com o seu labor. Mais ou menos por esta altura os "ancestrais dos Iorubas e dos Ibos da atual Nigéria, colonizaram simultaneamente nas bordas do sul a floresta e as savanas. Mas na mata cerrada, onde habitavam os 'espíritos maus, ' só se aventuravam os heróicos caçadores ou curandeiros." Formavam-se múltiplos grupos étnicos que se diferenciavam entre si na língua e na cultura. No entanto, colonos de diversas origens que se estabeleceram nas falésias de Bandiagara, no Mali, tinham estabelecido uma cultura dogon com especificidade própria. Outros falantes de banto oriental, da borda nordeste da floresta equatorial, misturaram-se a cultivadores de cereais falantes da língua saaro-nilótica, originando uma cultura complexa. Ao norte do continente, na borda oriental de montanhas de difícil acesso como Xoa, na Etiópia, esses grupos falavam língua banto oriental. Ao sudoeste, para além da floresta, nas savanas da atual Angola, desde 1400, tinham-se concentrado populações ao longo dos vales fluviais que avançaram até as regiões mais altas do monte Mitumba, entre o Ruanda e o Congo.

Todo este enorme esforço não se conseguiu sem o ataque impiedoso de diversas doenças que sofriam, através do contágio dos mais variados parasitas. Doenças crônicas que deformavam as populações, originavam muitas dores e que ficaram retratadas nas imagens de terracota deixadas pelos artistas iorubas da cidade de Ifé. A malária era das mais mortais, pois ceifavam muitas das crianças recém-nascidas. "A mosca tsé-tsé, portadora de tripanossomíase - parasita da doença do sono - infestava, por sua vez, inúmeras terras ribeirinhas da África central" e era em geral crônica. Conhecia-se também aqui, uma forma benigna de varíola. O consumo de água imprópria originava as mais diversas doenças e sofrimentos às populações. Um dos vermes conhecido como da Guiné, nematóide que se instalava sob a pele, - matacanhas, como se chamava em Angola, - também era causa freqüente de muito sofrimento.

A fome também constituía um dos obstáculos ao crescimento das populações. "Durante o século XVI, Angola sofreu uma grande fome que se repetia a cada sessenta anos." Esse fenômeno, atribuído por vezes a pragas de gafanhotos, levavam os pais a venderem os filhos e a deixarem escravizar-se para não morrerem de inanição. Os grandes períodos de seca

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provocaram grandes mortandades. Em Cabo Verde, três fomes, entre 1773 e 1866, mataram 40% da população.

Por estas razões, um dos provérbios dos iorubas sublinhava que "sem filhos, estás nu." No Benim, um dos primeiros viajantes sublinhava que "a mulher fértil era muito considerada e a estéril era desprezada." A sua fecundidade tornar-se-ia num dos temas recorrentes da arte. Mesmo não havendo dados fiáveis, a esperança de vida ao nascer, desde o século XVI ao XVIII, era de 25 anos. Testemunhos, diminutos, contam que as mulheres casavam logo que pudessem ter filhos e que, em média criavam seis filhos, os quais amamentavam até aos quatro anos. O sistema de poligamia era tido como natural, pois, o ter várias mulheres e muitos filhos significavam ter braços para o cultivo das terras. "Amplas linhagens familiares simbolizavam todo o prestígio de um homem." A competição pelas esposas originou muitos conflitos e o casamento teve as mais diversas formas, desde o rapto, ao pagamento de dotes à família da mulher.

A poligamia era, por isso, um sistema que privilegiava os homens ricos e que se manteve ao longo de muitos séculos. As crianças eram adoradas dentro das famílias, mas as lutas entre os jovens e os velhos manifestavam-se pelas mais diversas razões. "Entre fons, iorubas e Ibos, havia vantagem em ser idoso. A idade garantia o acesso às mulheres, aos deuses e os jovens só lhes dirigiam a palavra de joelhos ou de cócoras."

Os jovens apostavam na beleza física. A estatuária feita em barro, em Nok, no estado de Kaduna, na atual Nigéria, mostra os rostos expressivos dos jovens com penteados em forma de coque, coroados de penas e ornamentados com cachos e tranças laterais. Vestiam trajes elegantes e usavam anéis e pulseiras que colocavam também nos tornozelos. Tinha rituais de iniciação à idade adulta o que valorizava a maturidade dos mais velhos. "Entre os dogons, desrespeitar um ancião equivalia à morte em vida." No entanto, segundo testemunhos, o mesmo não se passava em todas as regiões. Na Costa do Ouro os homens não gostavam de ser velhos porque não eram respeitados e estimados. No Zfé, cidade sagrada, de onde veio o primeiro obá do Benim, representava os seus reis enquanto jovens, porque o declínio só se prestava a máscaras em forma de caricatura.

Todo o labor que permitia a sobrevivência era, de uma maneira geral, semelhante, mas o trabalho das mulheres variava de cultura para cultura. "Podia ser preponderante como os anjicos, do lago Malebo, no atual Zaire; ou podia ser mínimo como ocorria entre os iorubas." As mulheres plantavam e retiravam as ervas daninha. Em alguns grupos da floresta e da parte sul da savana as mulheres ocupavam-se do pequeno comércio com certa autonomia. Em Bornu, na savana do Sudão, as mulheres dos monarcas assumiam tal poder que lhes permitia tomarem decisões políticas e controlarem territórios. Estes poderes contrastavam com os das camponesas que lavravam as terras e muito mais com as atividades das escravas. Eram sociedades bem organizadas e que tinham por base, na maioria das regiões, uma casa grande dirigida por um "grande homem" rodeado de mulheres, filhos, irmãos menores, parentes pobres e dependentes, que constituíram os grupos essenciais de colonização na África Ocidental.

“... Os mandês, grandes comerciantes de ouro, circulavam entre Bambuk e Buré, na Sene Gâmbia" passavam por Tombuctu e vendiam aos árabes e berberes. Tinham uma bem

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organizada atividade comercial, assente na estrutura familiar e com um código de honra que surpreendeu os portugueses quando os conheceram: "E se fiavam uns dos outros, sem conhecimentos nem escrituras, e sem testemunhas." Valentim Fernandes contou que "se um devedor morresse um seu filho ou herdeiro não deixava de pagar a dívida." Por esta altura o comércio de escravos era uma fonte de enriquecimento e, por isso, os hauçás juntavam-nos às suas famílias em grande número. "No século XVII, o domicílio de um notável numa cidade da Costa do Ouro, podia ter até 150 pessoas. O de outro no Reino do Congo, centenas. (...) Os dados relativos aos reinos do Congo, entre os séculos XVII e XVIII, permitem inferir que as famílias de agricultores pobres tinham em média cinco ou seis pessoas e ligavam-se por laços de parentesco. Num e noutro caso a organização social era dominada pela família."

Na região do Congo e do Tchad, foram feitas escavações que revelaram vestígios e testemunhos de centros urbanos importantes que mostraram a existência de um rico passado cultural. Dominava o comércio, mas existiam "mercados, lugares de culto, praças para reunião, quarteirões especializados, casernas, portos, edifícios administrativos e, às vezes, palácios reais. A vida urbana era regida por várias atividades lúdicas: cantos, jogos, danças, sem falar nas cerimônias religiosas tradicionais." A educação ocupava uma parte importante da vida urbana.

Fonte: http://wwwanamarialima.blogspot.com.br/2012/05/ancestrais-o-berco-africano_02.html

Cada aspecto da vida quotidiana permitia uma forma de aprendizado. A formação da juventude seguia um programa preciso que velava pela aquisição de virtudes morais, das habilidades manuais, técnicas e guerreiras, atividades artesanais, comerciais ou místicas. Aprendiam o respeito à família e às autoridades. Ouviam contos, mitos e lendas com a intenção de perpetuar a memória coletiva e étnica. Possuíram técnicas no domínio da metalurgia do ferro, do cobre e do ouro. E na farmacologia misturavam plantas da floresta com outra cultivada, para um receituário que tentava "equilibrar influências negativas e positivas."

Os africanos que não estavam ligados ao Islã não tinham escrituras, por isso eram as tradições orais que regiam as suas vidas. A religião fazia parte do quotidiano, ”sobretudo quando se tratava de aliviar sofrimentos e de assegurar paz, prosperidade e fecundidade." Quando não funcionavam as suas técnicas e tradições, era muito perigoso, pois "o rei Ndongo, atual Angola, mandou executar onze fazedores de chuva durante uma terrível seca em 1575. (...) As religiões estavam, pois sujeitas a transformações, constituindo-se num dos aspectos mais plurais da cultura. Muitos observadores cristãos e muçulmanos impressionaram-se com esse caráter diverso e fragmentado, reforçado pela ausência de textos escritos. (...) No século XV, por exemplo, o povo Congo parece ter partilhado a noção de que um 'espírito criador' estaria acima dos demais, e que as forças da natureza e dos ancestrais eram muito ativas. Estatuetas eram o suporte material dos avós mortos e, por extensão, figuras por meio das quais se recuperava os espíritos do além. (...) Onde havia sistemas patriarcais a dominar as sociedades, prosperava o culto dos ancestrais. De toda a forma, como resumiu o escritor Mia Couto , «em África, os mortos não morrem nunca. Exceto os que morrem mal...Afinal a morte é um outro renascimento.»"

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As sociedades africanas ocidentais não seriam, até ao século XV, muito diferentes de algumas européias, uma vez que umas, como outras, tinham uma população essencialmente rural que dependia do trabalho familiar para sobreviver. Viviam o seu quotidiano sem imaginar o êxodo dramático que iriam sofrer milhões de africanos, com o estabelecimento das rotas do comércio de escravos.

Ao descobrimento de novas terras, ao traçar de novos rumos através do mar desconhecido, depressa se aliaram os mais diversos comércios. Primeiro o ouro, depois as especiarias, as sedas, as porcelanas, o fabrico do açúcar e de tantos outros produtos desconhecidos na Europa. Esses produtos, essas novas terras descobertas, exigiam mão-de-obra que permitisse o seu povoamento e enriquecimento. Ela estava em África ao preço de quase nada. O Novo Mundo "custou" um gigantesco mar de gente capturada, comprada, vendida, transportada em tumbeiros, desumanizada, espoliada, sem que nada, nem ninguém se opusesse a essa tortura de séculos.

«Algo entre quinhentos e setecentos mil cativos alimentavam, anualmente, rotas tradicionais da África do Norte e da África Oriental. Quem eram esses povos devorados pela engrenagem do esclavagismo moderno?..."africanos" eles não eram... À custa de muitas pesquisas, historiadores identificaram as designações dos povos existentes. John Thornton, por exemplo, reconhece, em relação à África Atlântica, a existência de 152 unidades políticas independentes. Cada uma delas dava origem a uma designação étnica diferente. Tratava-se de povos que não se nomeavam como "africanos," mas sim de Jalofos, Fulas, Falupos, Limbas, Malis, Acanes, Savés, Kanos, Lubas, Bijagós, Iorubás, Itsequiris, Ibibios, Manhis, e dezenas de outros termos...»

A divisão fragmentada do poder político explica, em parte, segundo os autores, o sucesso dos europeus na África Atlântica. Com muita freqüência os escravos eram prisioneiros de guerra entre estados rivais. Eles, é inegável, já existiam antes da chegada dos europeus.

No entanto, também havia na África Atlântica, conforme os locais, uma escravatura tida por doméstica, de "linhagem ou parentesco," que só se tornou comercial depois da chegada dos colonos europeus. As próprias sociedades africanas tiveram uma assumida cumplicidade na eficácia do tráfico e, provavelmente, a existência da escravidão na África Atlântica pré-colonial, facilitou o rápido abastecimento dos navios negreiros. Os europeus não inventaram a escravidão, tornaram-na sim, uma instituição comercial. As doenças, como o banzo, as revoltas e assassinatos de brancos, a resistência por parte dos cativos, que jamais aceitou essa condição, o medo e a morte passaram a conviver quotidianamente com traficantes e traficados.

Hoje, debate-se se o tráfico foi motivo para o atraso do continente africano. Especialistas como Paul Lovejoy ou Richard Eltis discutem se essas causas poderão ter levado a África a não progredir, ou se a venda de escravos pouco interferiu na sua realidade econômica. Segundo os autores, "nem todas as regiões da África sofreram o mesmo mal... a África Atlântica dizia respeito a um território específico. O tráfico marcou manifestamente as sociedades do litoral, que dele tiravam a sua subsistência."

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Falar dos ancestrais que indelevelmente foram marcados por este tráfico, mostrar o contributo cultural e civilizacional que eles deram à colonização do Brasil, é a marca deste trabalho. Léo Frobenius exclamava entusiasmado quando estudava o Reino do Congo: «civilizados até ao tutano dos ossos!» O fato é que os portugueses quando ali chegaram encontraram uma sociedade organizada à maneira africana, com uma hierarquia própria de um estado. As fronteiras não eram definidas por limites físicos, "mas por todo um conjunto de influências exercidas por famílias e clãs. O reino era desta perspectiva, uma manta de retalhos, os sobados, constituídos por pequenos chefes chamados pelos europeus sobas. (...)

O planalto que se estendia para além da serra Muzumba era constituído por um verdejante arvoredo e pequenos vales úmidos. Aí, segundo Joseph Miller, a população dedicava-se à agricultura, produzindo variedades de painço e sorgo. Tirava-se o máximo proveito das épocas de chuva a fim de produzir o máximo de alimentos para os meses secos do ano, que iam de Maio a Setembro. Completava-se a dieta básica com vegetais e frutos silvestres... “A estes se acrescentava a caça” A arte de caçar era ensinada aos jovens, que tinham autênticos ritos de iniciação e que obedecia a certa magia. Aprendiam "a reproduzir o barulho dos animais e a reconhecê-los, apesar da extrema variedade de aves e roedores. O tempo de aprendizagem durava dois anos e a atividade era cercada de interditos." Não podiam apontar com o dedo para a caça, mas sim com a flecha e tinham que ter utensílios especiais para guardá-la. Abstinham-se de se unir às mulheres no dia em que antecedia a partida para uma caçada. Formavam associações de caçadores experimentados que eram os verdadeiros mestres e criavam-se laços pessoais e até políticos.

A pesca era uma ocupação permanente nos meses mais secos e à economia familiar juntava-se a criação de galinhas e cabritos. O gado bovino era criado nas partes mais altas para evitar a mosca tsé-tsé. Todas estas ocupações eram muito antigas, pois, segundo o historiador Jan Vansina, por volta de 400 a.C. instalaram-se agricultores, que falavam um tipo quicongo, "ao sul do baixo rio Zaire, onde cultivavam inhame, legumes e dendém. Do século II ao século V este povoamento teria sido reforçado por grupos vindos do leste, que falavam outras línguas bantas." Cultivavam e armazenavam cereais e criavam gado onde fosse possível. A cultura da banana terá sido introduzida ao longo do século VI, o que veio melhorar e aumentar a dieta destes povos. Progrediram em organização sócio-política e os sucessivos chefes espalharam-se desde o litoral até as nascentes do rio Malebo.

“Nesta região chamada Maiombe, a divisão do trabalho desenvolveu-se melhor e quando os europeus chegaram, já encontraram habitantes a comerciar sal e peixe." Extraíam o óleo de palma, das palmeiras que cultivavam, em extensas zonas, na planície do rio Loango e retiravam a ráfia para a confecção de tecidos. Trocavam a madeira vermelha, tintureira, das zonas de floresta, por produtos da savana.

Terá sido aqui, segundo J. Vansina, que se formou o Reino do Congo por volta de 1400. Esta monarquia centralizava o poder nas mãos de ntotila, o rei, que controlava as rotas comerciais que uniam as regiões do Norte a Sul do rio Zaire. A sua entronização fazia-se através de rituais complexos que comprometiam as diversas linhagens a uma veneração e obediência suprema. "Entre os séculos XV e XVII, este estado único ia do planalto de Benguela ao planalto Bateke, e do litoral atlântico até ao rio Cuango. Incluía a bacia do rio Inkisi e todas as terras ao Sul do

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Loge. (...) A fraqueza do reino encontrava-se na sucessão ao trono: a ausência de regras criava facções opostas e alimentava a instabilidade político-militar.

A capital, Mbanza, na qual morava o rei, e onde se cruzavam as rotas comerciais, contava, quando da chegada dos portugueses, cerca de 100.000 habitantes. Maior do que Évora, no entender de um observador estrangeiro, a cidade estava protegida por uma paliçada defensiva e possuía uma praça central onde os visitantes eram recebidos, as coroações proclamadas, planteis importantes de escravos negociados e a justiça era feita. “Segundo John Thorton, era um lugar de concentração de riqueza e de residências da elite, local onde os primeiros viajantes portugueses se maravilharam com a qualidade da construção das casas e, especialmente, dos tecidos que decoravam as suas paredes.”

Este reino, dividido entre o campo e a cidade capital, tinha três estratos sociais bem definidos: a nobreza, os camponeses e os escravos. O primeiro estrato detinha o poder de comando. A poligamia originava uma descendência real plural e diversa. A descendência da mãe é que dava o direito à posse das terras e decidia a própria sucessão no governo das aldeias. A centralização militar era uma realidade obtida pela posse de "uma guarda composta de cerca de dezesseis a vinte mil escravos," que se tornava numa espécie de exército privado.

No que se refere à concepção religiosa, o reino tinha três cultos com um papel importante: o dos ancestrais, o dos espíritos territoriais e o dos feiticeiros. A realeza era considerada sagrada, porque constituía o poder de harmonizar as relações dos homens com a natureza. O rei era o "criador supremo."

Quando em 1482, Diogo Cão chegou à embocadura do rio Zaire e estabeleceu relações com o governador do Soio, soube-se em Lisboa da existência do Estado do Mani Kongo. Com ele vieram para Portugal, quatro congoleses e em troca ficaram quatro portugueses como reféns. Em 1484, voltou com uma embaixada enviada pelo rei de Portugal, contemplando os congoleses com muitos presentes e promessas de amizade. Diogo Cão recebeu os reféns que tinha deixado e foi recebido com muita alegria por Nzinga-a-Nkuvu. Passados três meses regressou do país que é hoje o Zaire, e trouxe com ele, Caçuta, um familiar do rei. D. João II e a rainha, que estavam em Beja, receberam-no e fizeram questão de serem seus padrinhos. Batizaram-no com o nome de D. João da Silva. A mensagem que Caçuta e os seus companheiros traziam para o rei português era um pedido do rei do Congo para lhe enviar padres, lavradores para introduzir gado bovino e quem ensinasse às mulheres a fazer pão.

Em 1490, os africanos voltaram ao Congo e a expedição foi recebida, no Soio, ao som de tambores e marimbas. Os portugueses responderam com trombetas e cânticos religiosos. Os monarcas foram batizados com os nomes de D. João e D. Leonor. Até ao final do século XV, abriram-se escolas portuguesas para ensinar a escrever, a aritmética, e a religião cristã.

A terrível batalha que se travou entre Mpanzu, o candidato tradicionalista e o candidato cristão, D. Afonso, pela posse do reino, em 1506, traçaram o destino das relações da África com a Europa. D. Afonso I, admirador das ciências e técnicas européias abriu o Congo aos estrangeiros durante o seu reinado, de 1506 a 1543, e fez do catolicismo a religião do Estado. A estratégia Lusa, segundo os autores, consistia em europeizar a região através da política e religião. Assim, o filho de Afonso I, Henrique, foi consagrado bispo de Útica, por Leão X e de

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1518 a 1536 dirigiu a diocese local. É evidente que, D. Afonso I, o rei do Congo, combateu os animistas "queimando e destruindo velhos altares e até, enterrando viva, uma prima que não cumprira as suas ordens." Os congoleses recebiam presentes sumptuários oferecidos pelos portugueses: 'cavalos, asnos, lebres, galgos, falcões, espelhos dourados de Veneza, capas pespontadas de seda, lenços de cetim, chapéus, louças, cadeiras forradas, ' etc. etc.

A desmedida ambição dos lucros fáceis, graças ao comércio de escravos e de outros produtos, veio sobrepor-se às intenções iniciais. Quando D. Afonso I morreu, tinham-se frustrado as suas tentativas para modernizar o reino do Congo. Os seus sucessores deixaram que o reino definhasse. As sucessivas guerras com o vizinho Ndongo e uns tios do lago Malebo, entre 1575 e 1576 levaram à desorganização total que permitiu o avanço dos Jagas. Cadornega considerou-os como profissionais de guerra ao manusearem as machadinhas afiadas, para matar os inimigos. "Alencastro compara-os a «um rolo compressor multiétnico» organizados em torno de quilombos, e que, graças ao ferro de fundição, fabricaram azagaias, pontas de flecha mortíferas com que sacudiram o Congo e Angola a partir do século XVI."

Os Jagas, segundo um estudo de Joseph Miller, eram oriundos da Lunda, cujo chefe Tshinguli, a tinha deixado para fundar um novo estado perto da fronteira. No século XVI, logo no início, havia um segundo reino, de Tshinguli, instalado entre os rios Luando e Jombo, no atual Songo. Os habitantes chamavam-se a si mesmo de imbangalas. "Acompanhado de outros chefes - os macotas - Tshinguli encontrou o apoio dos quiocos." Os portugueses tiveram os primeiros contactos com estes povos na embocadura do rio Cunene e chegaram a estabelecer uma aliança. Quando Paulo Dias de Novais "fundou" a colônia em 1579, com o objetivo de ampliar o tráfico de escravos, vê-se confrontado com a exigência da metrópole, em 1579, de cumprir os seus contratos de colonização. O rei de Ndongo mandou matar todos os portugueses que estavam no seu reino, e deu-se início a uma guerra que iria durar até 1671.

Entre 1584 e 1585 os Jagas estavam em Benguela e continuariam a sua saga. De 1612 a 1617, comandados por Kasange, ocupam grande parte do reino. Houve, até 1618, um tratado de paz, entre Bento Cardoso, governador de Angola, e o jaga Kulashingo ou Kasange, como era mais conhecido. Por esta altura dá-se a imigração imbangala para as terras do rio Kuango. Este reino vai consolidar-se nesta região nos anos seguintes.

Entre 1622 e 1623 foi assinado um tratado de paz com o rei Ndongo. Ele fez-se representar pela sua irmã Nzinga Mbande, ou Jinga. Batizada com o nome português de Ana de Sousa ou de Luanda, Jinga, mostrou-se inimiga dos portugueses, e comandou um partido antilusitano. Quando o irmão morreu, Jinga, que era filha de uma escrava, veio a ser regente e depois rainha. Para consegui-lo travou lutas por toda a parte, porque havia mais sucessores ao trono. Entre estes, estava um macota Ari Quiluange, que foi apoiada pelos portugueses, mas Jinga venceu tudo e todos, ao apoderar-se do reino da Matamba, tendo feito escrava sua, marcada a ferro, a rainha deste vasto território.

Lançou impostos, impôs mudanças ao tráfico de escravos, fez com que aterrorizassem as caravanas dos pombeiros, e concentrou nas suas mãos todo o comércio de escravos, da imensa região que ia da Matamba até ao alto Cuanza. O seu enorme poder adveio de se ter tornado na maior vendedora de escravos da região. Então, como era inimiga dos portugueses, quando chegaram os holandeses a Luanda em 1641, apoiou-os de imediato. Nesse mesmo

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ano, Garcia II tornava-se rei do Congo, e juntava-se aos holandeses, apesar de ter estabelecido uma aliança com o Vaticano que dificultava o avanço dos portugueses. Por sua vez, os povos da região obtinham armas e pólvora vendidas pelos holandeses, o que os portugueses não faziam. A mercadoria mais cobiçada - os escravos - tinha novas formas de pagamento e melhores rendimentos.

Esse bom entendimento levou a que uma embaixada africana fosse ao Recife, levar a Nassau, governador holandês, questões pendentes entre Manicongo e um seu soba, o Conde de Soio. Nassau terá recebido de presente 200 escravos e uma bacia de ouro. O cronista Barléus informa que o manicongo recebeu em troca "um manto comprido, todo de seda, com fímbrias de ouro e de prata, uma banda, um gibão de cetim, um chapéu de pele de castor, com cordão entretecido de ouro e de prata. Ao conde de Soio foi oferecida uma cadeira estofada de cetim vermelho, com franjas de ouro e prata; um manto muito comprido de cetim variegado, uma túnica de veludo e também um chapéu de pele de castor." Haverá, segundo Barléus, uma segunda embaixada que ele descreve com minúcia. O mesmo historiador holandês conta que nessa primeira metade do século XVII «o rei do Congo se ufana com estes títulos e denominações: Mani Congo, por graça de Deus, rei do Congo, de Angola, de Matamba, Ocanga Cumba, Lunda, Zura; senhor do ducado de Buta, Suda, Bamba, de Amboíla e suas províncias, senhor do condado do Soiho, Angola e Cacongo e da monarquia dos Ambondaras e do grande e maravilhoso rio Zaire.»

Em 1640, quando Portugal volta aos seus domínios, vira-se para Angola e "António I Manimulusa do Congo foi derrotado em 1665. Em 1671, o último vestígio do Ndongo foi conquistado e cerca de 1680 a paz foi imposta a Matamba, Kasange e aos chefes do Sul do médio Cuanza."

"Em Angola, o tráfico foi organizado pelos brasileiros que forneciam capital, navios e mercadorias européias e agiam em aliança com os organizadores de caravanas e os traficantes afro-portugueses. (...) Assim começou o grande tráfico que atingia a sua maior amplitude no século XVIII."

Ancestrais - Apogeu e Declínio

CONCLUSÃO

Ao terminar esta breve resenha continuo ainda com as palavras dos autores que nos dizem: "A história da África Atlântica está intimamente relacionada com as transformações do tráfico internacional de escravos. O então denominado comércio de almas esculpiu o recorte geográfico africano, cuja posse foi disputada por vários reinos europeus... Como vimos a compra e venda de cativos, no início da Época Moderna, não consistiu num desvio de sociedades empobrecidas, nem muito menos numa resposta a crises econômicas conjunturais. Muito pelo contrário, o tráfico compôs a espinha dorsal de prósperas companhias comerciais européias e de fortunas acumuladas por mercadores coloniais que, bem antes do surgimento do capitalismo, contribuíram para a criação de circuitos de troca à escala mundial. ... De disputa em disputa, o tráfico internacional de escravos cresceu até fins do século XVIII. Por essa época começam a surgir vozes discordantes. Os movimentos liberais e democráticos europeus viam na escravidão a forma mais condenável de exercício de poder absoluto. A desaprovação

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dessa forma de trabalho havia deixado de ser um fenômeno periférico, de intelectuais ou religiosos isolados, passando a contar com o apoio de multidões."

Os movimentos abolicionistas nasciam em Inglaterra e na França. Ligados a estes movimentos surgiam motivos de ordem econômica. Adam Smith, Na Riqueza das Nações, condenava a escravatura. Uma nova ordem mundial deixava de necessitar da mão-de-obra escrava. A revolução industrial, em breve, iria levar a um excedente de trabalhadores que viam o seu ofício manual passarem a ser exercido pelas máquinas. Os campos cultivados vão dar lugar a imensos prados para a pastorícia do gado ovino que abastecia de lã a indústria dos lanifícios ingleses. O mesmo se irá passar na França e noutros países, embora mais tardiamente.

A França aboliu o tráfico entre os anos 1794 a 1802. A Inglaterra e os Estados-Unidos proíbem-no em 1807/1808. "Entre 1803 a 1836, da Dinamarca a Portugal, praticamente todos os países europeus se desligam dessa prática. Até 1850, o tráfico deixará de existir no Novo Mundo."

A instituição que existia em África muito antes de se instalar na Europa e na América continuou a fazer-se através das antigas rotas escravagistas. "Especialistas da escravidão do 'mundo árabe' datam do século XIX como o do apogeu do tráfico transaariano, que existia desde o século VII... No Congo, a escravidão, reconhecida por lei, dura até 1889; até 1892, na Gâmbia; na Nigéria, até 1900; na Serra Leoa, até 1928... e somente em 1962 a Arábia Saudita aboliu a escravidão, e nos sultanatos de Muscat e Oman a instituição sobrevive até 1970. Dessa forma, concluem os autores, nos anos sessenta do século XX, os organismos internacionais calculam a existência de 100.000 a 250.000 escravos circulando em mercados árabes. Quantos deles seriam provenientes da antiga África Atlântica?"

Esta é a interrogação com que os autores concluem o seu trabalho. Outro terá que ser feito para responder a essa pergunta.

Em 1857 um viajante francês dizia-nos da realidade na antiga África escravagista:

«Quando podiam vender seus prisioneiros, os reis os engordavam, cuidavam deles, e os faziam trabalhar pouco; agora, não sabendo o que fazer com eles, os degola aos milhares por não terem que alimentá-los ou os trancam nas suas cabanas, acorrentados, sem roupa, sem um grão de milho, esperando o seu dia...»

Não podemos saber da total veracidade destes fatos registrados. No entanto, por tudo o que nos foi dado ouvir nas aulas da História da Escravatura e ler nos diversos estudos que fizemos e que reputamos como fatos históricos, ficamos com uma profunda e dolorosa visão, deste inferno que foi o sistema escravagista.

Fica-nos a convicção que todas as etnias que vieram para a construção do Novo Mundo deixaram mesmo um Mundo Novo, nos contributos dos seus cantos e danças, na sua alegria, na sua vasta cultura que legaram por herança, nas suas lágrimas e dores e no seu perdão por tantos infortúnios sofridos. Que os povos, que nós próprios sejamos merecedores das suas dádivas, da sua vida.

Lisboa, 30 de Setembro de 2004

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BIBLIOGRAFIA

ALENCASTRO, Luís Filipe de, O Trato dos Viventes, Formação do Brasil no Atlântico Sul séculoXVI e XVII. S: Paulo, Companhia das Letras, 2002.

BETHENCOURT, Fancisco e Kirti Chauduri, História da Expansão Portuguesa, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1998.

PIMENTEL, Maria do Rosário, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Lisboa, Edições Colibri, 1995.

PRIORE, Mary Del, e Renato Pinto Venâncio, Ancestrais, Uma Introdução à História da África Atlântica, Rio de Janeiro, Elsevier Editora, Lda, 2004.

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Provérbios africanos

"O tolo têm sede no meio de água." - Autor: Desconhecido

"Uma mentira estraga mil verdades." - Autor: Desconhecido

"Um inimigo inteligente é melhor que um amigo estúpido." - Autor: Desconhecido

"Quando o rato ri do gato há um buraco perto." - Autor: Desconhecido

"Se você está construindo uma casa e um prego quebra, você deixa de construir, ou você muda o prego?" - Autor: Desconhecido

"Para quem não sabe, um jardim é uma floresta." - Autor: Desconhecido

"O machado esquece; a árvore recorda." - Autor: Desconhecido

"O cavalo que chega cedo bebe a água boa." - Autor: Desconhecido

"Aquele que não cultiva seu campo, morrerá de fome." - Autor: Desconhecido

"Quando um rei tem conselheiros bons, seu reino é pacífico." - Autor: Desconhecido

"Não chame um cachorro com um chicote em sua mão." - Autor: Desconhecido

"Sem vingança, os males do mundo um dia ficarão extintos." - Autor: Desconhecido

"A igualdade não é fácil, mas a superioridade é dolorosa." - Autor: Desconhecido

"O conhecimento é como um jardim: se não for cultivado, não pode ser colhido." - Autor: Desconhecido

"O vento não quebra uma árvore que se dobra." - Autor: Desconhecido

"Um peixe grande é pego com isca grande." - Autor: Desconhecido

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"Um camelo não zomba da corcunda de outro camelo." - Autor: Desconhecido

"Uma filha tola ensina a sua mãe como carregar as crianças." - Autor: Desconhecido

"A esperança é o pilar do mundo." - Autor: Desconhecido

"O conhecimento não é a coisa principal, mas ações." - Autor: Desconhecido

"Não importa quanto longa seja a noite, o dia virá certamente." - Autor: Desconhecido

"Quando a lua não está cheia, as estrelas ficam mais brilhantes." - Autor: Desconhecido

"Não pise no rabo do cachorro, e ele não o morderá." - Autor: Desconhecido

"O coração do homem sábio encontra-se quieto como a água límpida." - Autor: Desconhecido

"Não chame a floresta que o abriga de selva." -