O Brasil rumo à sociedade justa - Dalmo Dallari

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I CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

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  • I CONTEXTUALIZAO HISTRICA DA EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS

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    Educao em Direitos Humanos: fundamentos terico-metodolgicos

    1 - O Brasil rumo sociedade justa

    Dalmo de Abreu Dallari

    1. Nova Constituio e novas perspectivas para o Brasil

    A sociedade brasileira vem revelando, nas ltimas dcadas, o crescimento de novas foras sociais, nascidas na luta contra a ditadura militar implantada no Brasil em 1964 e influenciadas pelo consenso mundial de que os direitos humanos devem ser os princpios fundamentais de uma sociedade livre, harmnica e justa. A Constituio brasileira de 1988, elaborada logo aps o perodo ditatorial, foi a expresso dos anseios de liberdade e democracia de todo o povo e foi tambm o instrumento legtimo de consagrao, com fora jurdica, das aspiraes por justia social e proteo da dignidade humana de grande parte da populao brasileira, vtima tradicional de uma ordem injusta que a condenava excluso e marginalidade.

    Em resposta a tais anseios e aspiraes os constituintes de 1988 consignaram no texto da nova Constituio os direitos fundamentais da pessoa humana, prevendo tambm os meios de garantia desses direitos e fixando responsabilidades por seu respeito e sua promoo. Pode-se afirmar, sem sombra de dvida, que essa Constituio, pela intensa participao popular assim como pelo contedo, a mais democrtica de todas que o Brasil j teve e se inscreve na linha das Constituies democrticas europias elaboradas depois da segunda guerra mundial, das quais, alis, sofreu bastante influncia. Houve condies para dar ao Brasil uma Constituio democrtica e comprometida com a supremacia do direito e a promoo da justia e isso foi feito pelos constituintes.

    Entretanto, por expressar a vontade de uma sociedade muito heterognea e cheia de contradies, o texto da Constituio de 1988 revela a existncia de novos fatores de influncia social que j no podem ser ignorados, mas revela tambm a permanncia parcial de uma herana colonial negativa, preservando-se em pontos substanciais a dominao de elites conservadoras e reacionrias. bem provvel que o sculo XXI assista, j em suas primeiras dcadas, superao dessas contradies e

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    implantao de uma sociedade livre e justa para todos os brasileiros, apesar das resistncias dos segmentos privilegiados.

    Para conhecimento dos avanos obtidos na constituinte e de seu significado histrico e social, assim como das circunstncias que envolvem a luta pela implantao da Constituio de 1988, ser interessante rememorar, ainda que em largos traos, algumas das principais marcas que a histria imprimiu na sociedade brasileira, desde o incio da ocupao do territrio pelos portugueses, no ano de 1500, at os dias de hoje. Em seguida se poder fazer a sntese dos direitos e garantias consignados na Constituio, ficando, assim, mais fcil sua compreenso.

    Direitos Fundamentais no Brasil: uma injustia histrica

    Existem no Brasil tantas situaes de marginalizao e de injustia social, e isso aparece com tamanha evidncia, que se tem a impresso de que nada de positivo pode ser dito relativamente situao dos Direitos Humanos. O que existe, de fato, uma acumulao histrica de injustias, sendo necessrio ir at o incio do sculo XIV para perceber e compreender essa trajetria, que teve um mau comeo em termos de reconhecimento e respeito dos direitos fundamentais da pessoa humana.

    Na realidade, desde o incio da colonizao do territrio brasileiro pelos portugueses, no ano de 1500, foi estabelecida no Brasil uma sociedade profundamente marcada pela diferenciao entre os novos senhores da terra e os outros. As primeiras vtimas dessa nova sociedade foram os ndios, primitivos habitantes da terra brasileira, que o colonizador explorou de vrias formas, tentando escraviz-los e roubando suas terras. Acostumado a viver em liberdade, em relao ntima com a natureza, o ndio tentou resistir, mas a superioridade de armas e a ambio de riqueza dos colonizadores foram mais fortes.

    Calculam os historiadores que existiriam no Brasil, no ano de 1500, entre quatro e cinco milhes de ndios. Mas eles foram sendo dizimados, ou pelas armas ou por falta do ambiente natural que garantia sua sobrevivncia, conseguindo sobreviver apenas as comunidades mais protegidas pela floresta e poucos grupos isolados em alguns pontos do litoral. Hoje restam menos de trezentos mil ndios, muitos deles sendo vtimas da espoliao e das presses da sociedade circundante. Empresrios

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    e agentes do governo se mostram impacientes e procuram apressar a eliminao dos grupos tribais remanescentes, considerados obstculos plena ocupao do territrio e explorao das riquezas do solo e do subsolo.

    Os ndios vo morrendo de fome, porque os brancos esto destruindo as florestas e envenenando os rios, alm de morrerem tambm de doenas levadas pelo branco, sem que o governo cumpra as obrigaes legais de proteger os territrios indgenas e de proporcionar assistncia mdica aos ndios. um genocdio mais ou menos disfarado, que necessita de algum tempo para se consumar, mas absolutamente certo. Os civilizados esto assassinando os selvagens.

    A impossibilidade de escravizar os ndios estimulou a escravido de negros africanos, que comearam a chegar ao Brasil enviados pelos portugueses a partir das colnias que Portugal havia estabelecido na frica no final do sculo XV. A escravido negra, tragdia humana que vitimava negros nascidos na frica, no Brasil e em vrias outras partes do mundo, durou oficialmente no territrio brasileiro at o ano de 1888, quando foi legalmente abolida. Com a abolio da escravatura o Brasil comeou a receber grandes levas de trabalhadores europeus, contratados para trabalhar no campo.

    Os negros libertados, sem dinheiro e sem preparao profissional, foram abandonados sua prpria sorte e passaram a constituir um segmento marginal da sociedade. Vivendo na misria e, alm disso, vtimas de um tratamento preconceituoso, passaram a trabalhar nas atividades mais rudimentares e com menor remunerao, o que arrastou muitos deles para a criminalidade, agravando ainda mais os preconceitos, embora estes sejam sempre negados.

    S muito recentemente, com a ampliao das oportunidades por influncia da onda democratizante resultante da Segunda Guerra Mundial, comearam a cair as muralhas da marginalizao. Os prprios negros foram tomando conscincia das injustias de que eram vtimas e comearam a se organizar para conquistar mais possibilidades de progresso social. O aparecimento dos Estados africanos na dcada de sessenta, com populaes negras, bem como a mobilizao poltica dos negros nos Estados Unidos, exerceram grande influncia sobre os negros brasileiros, que comearam a se organizar para a reivindicao do direito igualdade.

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    Desde ento vem aumentando o nmero de movimentos e associaes de negros, muitos deles buscando recuperar seus vnculos culturais com a frica, outros mais diretamente influenciados pelos movimentos negros norte-americanos e outros propondo-se, pura e simplesmente, a lutar por meios institucionais para modificar sua condio de brasileiros discriminados por motivo racial. A diversidade de inspiraes e mtodos impede a unificao desses grupos, que chegam mesmo, algumas vezes, a se hostilizar abertamente. preciso assinalar tambm que, ao lado de uma resistncia preconceituosa, existem muitas organizaes defensoras de Direitos Humanos que denunciam a discriminao contra os negros e apoiam ostensivamente suas reivindicaes.

    Na prtica os negros brasileiros, em sua grande maioria, continuam a pertencer s camadas mais pobres da populao brasileira. Entretanto, embora com evidente lentido, os negros vo conquistando lugares nas universidades e nas profisses de mais alta qualificao. A presena do negro nos cargos de representao poltica tambm vai aumentando, mas tem contribudo muito pouco para a melhoria da condio social dos negros, pois vrios dos eleitos para o Legislativo abandonaram a proposta de luta e preferiram fazer composies com as elites tradicionais, buscando vantagens pessoais.

    muito forte a presena negra nas reas do esporte e da msica popular, mas, nesses dois casos, aquele que revela melhores qualidades consegue prestgio social e derruba as barreiras do preconceito; da porm s resultam benefcios de carter pessoal, sem influir para melhorar a situao dos negros na sociedade brasileira.

    Um dado significativo a diminuio constante da porcentagem de negros na populao brasileira, em conseqncia das imigraes europia e asitica, desde o final do sculo passado, como tambm em decorrncia da miscigenao, sendo bem elevado no Brasil o nmero de mulatos, que o resultado da unio do negro com o branco. Clculos mais recentes estimam que os negros representam hoje cerca de 6% da populao brasileira.

    A par desses segmentos socialmente inferiorizados, identificados por suas caractersticas tnicas e culturais, existem desnveis regionais e sociais muito acentuados no Brasil. Circunstncias histricas aliadas a fatores polticos, com repercusses na economia, produziram um

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    verdadeiro arquiplago cultural, conforme a expresso de Alberto Torres, eminente socilogo brasileiro da primeira metade do sculo XX.

    As formas de ocupao do territrio, bem como a repercusso de acontecimentos polticos da Europa, alm dos interesses econmicos europeus, tudo isso contribuiu para a definio de um tipo de sociedade em que desigualdade de direitos e de acesso riqueza e aos benefcios proporcionados pela vida social escandalosamente evidente. Um desnvel antigo e persistente o de carter regional. Na verdade, existem regies profundamente diferenciadas entre s, sendo evidente a existncia de uma parte pobre e atrasada, especialmente nas regies norte e nordeste do pas, ao lado de outra mais desenvolvida, moderna e dinmica, em que h muito mais oportunidades de trabalho e de ascenso social, englobando o sul e o centro-sul do pas.

    Nas regies norte e nordeste prevalece ainda o latifndio, parcialmente ocupado por culturas extensivas e com grandes extenses de terra mantidas improdutivas, subsistindo em grande parte dessa regio uma organizao poltica e social semifeudal. Existe uma classe social dominante, que detm a propriedade da terra e, a partir dela, o controle do comando poltico e econmico. Com base numa aliana imoral, que perdura h mais de um sculo e meio, as lideranas nortistas e nordestinas garantem apoio poltico ao governo central. Em troca, o governo central lhes fornece dinheiro, em forma de auxlios, ou de emprstimos que geralmente no so pagos pelos tomadores.

    A par disso o governo da Repblica tambm fornece servios, mantendo organismos ditos de planejamento e de desenvolvimento ou de ajuda s vitimas da seca. Assim a rara ocorrncia de chuvas que caracteriza sobretudo a regio nordeste gerou uma prtica perversa, que se tornou conhecida como indstria da seca. Trata-se de um mecanismo permanente, criado no sculo XIX, para a concesso de auxlios, que se justificam por objetivos sociais relevantes mas nunca foram usados, entre outras coisas, para construir um bom sistema de irrigao e que jamais chegam at a populao mais pobre. A par disso, o governo central concede financiamentos, em condies mui favorveis, para a implantao de projetos agropecurios ou industriais que quase nunca saem do papel, sendo raros os empreendimentos concretizados.

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    Dentro desse mecanismo a presena do Estado muito forte na regio e os servios pblicos proporcionam mais empregos do que a iniciativa privada. E o acesso a tais empregos, assim como o uso dos servios, depende sempre da concordncia das elites dominantes, que assim aparecem com benemritas e recebem em troca os votos agradecidos dos eleitores pobres, que so a maioria. Montou-se uma eficiente mquina de dominao poltica, econmica e social, que se completa com o aproveitamento malicioso da mecnica do federalismo brasileiro e do sistema eleitoral e representativo do pas. A dominao dessas elites em muitos Estados da Federao suficiente para assegurar a essa regio -e, portanto, a essas oligarquias- a maioria no Parlamento nacional, especialmente no Senado, onde todos os estados tm igual nmero de representantes.

    Na regio que compreende o sul e o centro-sul do Brasil houve uma evoluo diferente desde o sculo XVIII. Sendo mais distante da Europa, essa regio mereceu menos ateno nos primeiros sculos da colonizao. Por esse motivo ela ficou mais atrasada, enquanto no nordeste se desenvolvia o plantio da cana-de-acar, que foi o primeiro produto brasileiro de exportao em grande escala.

    Para ocupao do territrio brasileiro o governo portugus fez doaes de grandes extenses de terras no sculo XVI. Esse foi o inicio do sistema de latifndios e se constituiu na base a partir da qual se formaram as grandes famlias de proprietrios. Descendentes de donatrios ou de aventureiros que atravs do tempo foram ocupando grandes extenses de terra ainda hoje dominam a regio, controlando, inclusive, os meios de comunicao. Estes so utilizados para convencer a populao pobre de que as lideranas regionais so competentes e lutam constantemente contra a pobreza, que dizem ser causada pela riqueza do sul. A explorao maliciosa do regionalismo um artifcio poltico amplamente utilizado pelas elites tradicionais e pelos demagogos, para infundir no povo a crena de que a pobreza regional conseqncia da acumulao de riqueza no sul, procurando, assim, desviar a ateno de seus privilgios.

    A desvantagem inicial da parte sul do Brasil acabou sendo benfica, pois deu possibilidade a outro tipo de explorao das riquezas, gerando uma elite econmica que, embora tambm insensvel s injustias sociais, no procurou manter a pobreza e o atraso da populao como

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    base permanente de sua dominao. O desenvolvimento diferenciado j se faz presente no sculo XVIII, com a descoberta de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, uma provncia do centro-sul. Por ser uma regio montanhosa essa parte do territrio no se prestava para culturas extensivas. A par disso, a atividade econmica baseada na minerao no exige a propriedade de grandes extenses de terra para produzir riqueza. Por isso no se teve a o semifeudalismo, que foi estabelecido nas regies norte e nordeste do pas.

    Foi a partir dessa perspectiva que se desenvolveu a ocupao intensiva da regio sul. Embora tenha havido plantio de cana-de-acar numa pequena parte do litoral do Rio de Janeiro, a ambio do ouro e das pedras preciosas acabou sendo determinante e inspirou a organizao de grupos, chamados entradas ou bandeiras, para avanar pelo territrio desconhecido em busca de riquezas.

    Os bandeirantes sados de So Paulo, que eram os integrantes das bandeiras, foram desbravando as matas e caminhando pelos rios, semeando cidades e fazendas. No extremo sul, caracterizado pela existncia de extensas plancies, foi sendo intensificada a criao de gado, mas tambm sem a figura do donatrio explorador da misria e do atraso.

    Durante o sculo XIX cresceram extraordinariamente as plantaes de caf, sobretudo na provncia de So Paulo, tendo sido amplamente utilizada a mo-de-obra escrava, de origem africana. Sem a perspectiva da quase auto-suficincia dos semifeudos do nordeste e tendo necessidade de trabalhar ativamente para formar e manter um patrimnio e para obter um alto nvel de renda, os proprietrios dessa regio procuraram, geralmente, agir com dinamismo e criatividade.

    Esses modos de ocupao do territrio e de desenvolvimento econmico influram bastante para a diferena de mentalidades entre o norte e o sul do Brasil, sendo uma das causas do profundo desnvel econmico e da diferenciao cultural que hoje so patentes. Mas outros fatores foram sendo adicionados, merecendo especial referncia a substituio da mo-de-obra escrava por trabalhadores livres, o que ganhou intensidade na segunda metade do sculo dezenove, sobretudo a partir de 1888, com a abolio da escravatura.

    Quando isso ocorreu, a parte norte do pas j estava acomodada e a sociedade j havia atingido a estratificao, estando bem definida e

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    consolidada a situao do pequeno nmero de proprietrios dominadores e do restante, que era a grande parcela populacional de dominados. Por isso quase no havia escravos no norte e no nordeste e quando foi abolida a escravatura no houve necessidade de substituio da mo-de-obra nessas regies.

    Na parte sul do pas, especialmente em So Paulo, o nmero de escravos ainda era muito grande e para substitu-los foi iniciada a importao de trabalhadores livres europeus, com predominncia de italianos, mas incluindo espanhis, alemes e pequenos contingentes de outras nacionalidades. Um pouco mais tarde viria tambm um nmero significativo de japoneses.

    O final do sculo XIX e o incio do sculo XX foram muito marcantes na histria brasileira. Uma das conseqncias da abolio da escravatura, formalizada em 1888, foi a derrubada da Monarquia e a implantao da Repblica, em 1889. Com isso ficou enfraquecida a posio da antiga nobreza rural, naturalmente conservadora, criando-se ambiente favorvel para as mentalidades mais progressistas.

    Para muitos historiadores e estudiosos da vida econmica brasileira foi na passagem do sculo que se iniciou, verdadeiramente, a formao de um parque industrial no Brasil, com sua base principal em So Paulo. Muitos dos trabalhadores europeus chegados ao Brasil eram operrios, emigrados da Europa como refugiados econmicos. Eles s haviam aceitado o trabalho rural por estarem vivendo com extrema dificuldade ou pela perspectiva de se tornarem proprietrios de terras, porque se dizia que nesta parte do mundo havia terra de sobra espera de ocupao.

    Muitos desses imigrantes ficaram pouco tempo na agricultura e logo procuraram as cidades, levando para as indstrias nascentes sua experincia, mas tambm sua conscincia de direitos e sua prtica de reivindicao organizada. Foi por esse meio que as idias de comunismo e anarquismo chegaram aos trabalhadores brasileiros, tendo sido especialmente significativa a influncia de trabalhadores italianos e espanhis, chegados ao Brasil no final do sculo dezenove. Logo apareceram as associaes operrias, antecessoras dos sindicatos, as reunies polticas, os fundos de solidariedade e as greves. A primeira greve registrada pelos historiadores brasileiros ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, em 1905.

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    Instala-se ento no Brasil, no incio do sculo vinte, a luta clssica entre capital e trabalho, com as caractersticas da sociedade industrial. Os empregadores, viciados pela submisso forada dos escravos e pela docilidade dos trabalhadores rurais brasileiros, reagiram com violncia reivindicao de justia social. A mentalidade dos grandes proprietrios rurais e dos primeiros empresrios industriais foi bem sintetizada na expresso a questo social uma questo de polcia. A partir dessa concepo procuraram organizar melhor a polcia nos Estados em que comeava a industrializao, para repelir as reivindicaes operrias, que consideravam revolucionrias e perigosas para a ordem social. Desse modo, muitas das cenas de explorao e injustia que marcaram tragicamente o incio da revoluo industrial europia se repetiram no Brasil at 1930.

    A grande crise econmica de 1929, que abalou profundamente a Europa e os Estados Unidos, teve imediato reflexo no Brasil. As injustias acumuladas, o desejo de modernizao, a luta entre o campo e a indstria e, finalmente, a queda violenta dos preos do caf no mercado internacional, tudo isso se conjugou e levou deposio armada do presidente da Repblica, Washington Luiz. Assim termina a primeira Repblica e comea um novo perodo da histria brasileira, com Getlio Vargas assumindo a chefia de um governo provisrio, o que lhe daria condies para manobrar politicamente, fazendo concesses aos empregadores mas, ao mesmo tempo, introduzindo no Brasil, formalmente, os direitos dos trabalhadores, tendo por modelo a Carta Del Lavoro, da Itlia, conseguindo assim permanecer frente do governo brasileiro durante quinze anos ininterruptos.

    Uma das principais caractersticas do perodo Vargas foi o desenvolvimento da legislao trabalhista, assegurando um mnimo de garantias aos trabalhadores. Entretanto, o aperfeioamento da legislao no representou, na prtica, o efetivo respeito pelos direitos e a eliminao das injustias. Obter o maior lucro possvel pagando o menor salrio possvel continuou sendo o lema dos empresrios. No perodo de restabelecimento da ordem democrtica no mundo, a partir de 1945, sob influncia dos Estados Unidos, com quem o Brasil se tinha aliado na Segunda Guerra Mundial, toda reivindicao operria passou a ser classificada como subverso comunista e as Foras Armadas nacionais foram intensamente

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    utilizadas para proteo da ordem, que era, na realidade, a ordem conveniente ao grande capital.

    Entre 1960 e 1970 ocorreram profundas transformaes na sociedade brasileira e certamente os historiadores iro falar dessa dcada como uma das mais importantes de toda a histria do Brasil. Em 1960 a maioria dos brasileiros morava no campo e em 1970 a populao urbana j era maior do que a rural. As migraes de nordestinos para o sul do pas, especialmente para o Rio de Janeiro e So Paulo, que j haviam aumentado depois de 1930, ganharam extraordinria intensidade. So Paulo hoje a maior cidade nordestina do Brasil, pois a vivem e trabalham cerca de trs milhes de nordestinos, parte significativa do total de doze milhes de habitantes. Esses migrantes, em sua grande maioria, so pessoas modestas, sem qualificao profissional e, devido ao seu nmero elevado, no conseguiram habitaes razoveis, alm de serem forados a trabalhar nas atividades mais pesadas e com menor remunerao. Por isso esto concentrados nos bairros distantes da periferia ou moram em favelas, integrando a parte mais carente da populao, de onde sai elevado nmero de crianas e adolescentes que vivem nas ruas em situao de marginalidade social.

    Fatos que foram muito importantes para o mundo, especialmente a revoluo cubana de 1959 e o Conclio Vaticano Segundo, instalado em 1960, tiveram grande repercusso no Brasil. Surpreendentemente, como uma das conseqncias inesperadas dos governos militares que comandaram o Brasil entre 1964 e 1985, teve incio uma importante mobilizao social, iniciada nas camadas mais pobres, apoiadas pelos setores mais progressistas da Igreja Catlica. Os primeiros grupos organizados foram denominados comunidades eclesiais de base. Reunidos por iniciativa de bispos e padres catlicos, para a realizao de trabalhos de interesse comum, como a plantao de subsistncia e a construo de moradias rsticas, os membros dessas comunidades passaram a receber ensinamentos sobre a organizao social e a respeito do uso de seus direitos. Assim adquiriram conscincia poltica e mesmo sendo pobres passaram a influir sobre os governos, fazendo denncias, apresentando reivindicaes e cobrando dos polticos o cumprimento de suas promessas eleitorais.

    O exemplo dessas comunidades estimulou a formao de grande nmero de associaes, para defesa de direitos, adoo de providncias

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    junto a autoridades, divulgao de situaes de marginalidade e denncias de ofensas a Direitos Humanos. Deste modo surgiram inmeros grupos organizados, dispostos a trabalhar sistematicamente para a eliminao das situaes de injustia e violncia que envolvem milhes de brasileiros. Mas tambm foram formadas muitas associaes voltadas para a promoo de interesses especficos de certos segmentos sociais, como as mulheres, os favelados, os negros, os ndios, os aposentados, os deficientes fsicos, etc. A partir da dcada de setenta esse movimento associativo chegou classe mdia, intensificando-se a formao de entidades representativas de profissionais de mais alto nvel. O exemplo mais expressivo desse movimento, por ter ocorrido num segmento tradicionalmente conservador e acomodado, foi o aparecimento de associaes de magistrados, com objetivos reivindicatrios.

    Esse fenmeno associativo tem extraordinria importncia, pois representa a superao do ultraindividualismo, tradicional na sociedade brasileira e razo da inexistncia de presses eficientes para a eliminao de privilgios injustos. Pode-se mesmo falar em mudana qualitativa da sociedade, estando em fase de superao o individualismo egosta, para surgir em seu lugar uma convivncia solidria, que j produziu efeitos polticos na Assemblia Nacional Constituinte que elaborou a Constituio de 1988. Embora alguns analistas polticos procurem sustentar que houve uma desmobilizao do povo depois da Constituinte, o fato que a partir da teve incio uma nova forma de organizao da sociedade brasileira, surgindo grande nmero de associaes, reunindo vizinhos ou pessoas ligadas por algum interesse comum. Vem sendo desenvolvida, nos ltimos anos, uma ao poltica apoiada em direitos e garantias constitucionais, buscando dar ao povo uma influncia maior nas decises polticas. Esse movimento tem sido caracterizado como democracia participativa e j vem influindo para que os Direitos Humanos sejam mais respeitados no Brasil. A Constituio de 1988 foi muito importante para dar eficcia jurdica declarao de direitos, restando ainda um grande desafio para sua integral aplicao.

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    Promessas e negativas da nova Constituio

    Se fosse possvel aplicar concretamente todos os captulos e normas constitucionais favorveis aos Direitos Humanos, sem considerar a existncia de barreiras econmicas, seria possvel afirmar que a situao dos Direitos Humanos melhorou consideravelmente com a nova Constituio. Do mesmo modo, se houvesse a possibilidade de aplicar inteiramente as normas constitucionais relativas ordem econmica, sem considerar os artigos que tratam dos Direitos Humanos e de suas garantias, a sociedade brasileira iria manter os privilgios e as injustias sociais acumulados durante quase quinhentos anos de histria.

    Isso quer dizer que aparentemente existem duas orientaes diferentes, dentro da prpria Constituio, uma fortalecendo os Direitos Humanos e ampliando suas garantias e outra privilegiando os interesses econmicos. Mas o conflito apenas aparente, pois no seu conjunto e a partir dos princpios expressamente estabelecidos a Constituio d prioridade pessoa humana e subordina as atividades econmicas privadas ao respeito pelos direitos fundamentais do indivduo e considerao do interesse social. Um exemplo disso a norma constitucional que subordina o direito de propriedade ao cumprimento de uma funo social.

    evidente que a simples existncia de uma nova Constituio, ainda que muito avanada, no suficiente para que os Direitos Humanos sejam efetivamente respeitados e usados. Por vrios motivos previsvel a ocorrncia de dificuldades, mas sem dvida alguma melhor ter uma Constituio mais favorvel promoo e proteo da dignidade humana, pois a partir da fica mais fcil a mobilizao social de sentido democrtico e humanista.

    A atual Constituio brasileira, elaborada em 1988, fixa princpios que devero condicionar e orientar a aplicao de todas as suas normas, bem como as atividades legislativas, executivas e judicirias. Esses princpios esto enunciados em diferentes artigos. O Ttulo I se denomina Dos Princpios Fundamentais e a se encontram no art. 4, entre os princpios que regero as atividades internacionais do Brasil, os seguintes: II. prevalncia dos Direitos Humanos; VIII. repdio ao terrorismo e ao racismo. No art. 170 esto expressos os princpios da ordem econmica, entre os quais se

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    encontram a funo social da propriedade e a reduo das desigualdades sociais.

    Alm desse expresso enunciado de princpios, encontram-se na Constituio outros parmetros para interpretao e aplicao de suas normas, os quais so favorveis aos Direitos Humanos. No prprio Ttulo I esto expressos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art.1o., incisos III e IV) como fundamentos do Estado brasileiro , que definido nesse mesmo artigo como Estado Democrtico de Direito.

    significativa a incluso no Ttulo VIII da Constituio, referente Ordem Social, de captulos que cuidam Da seguridade Social, a incluindo a assistncia social, Da famlia, da criana, do adolescente e do idoso e Dos ndios. Este ltimo captulo tem especial significao, considerando-se que os ndios constituem uma das minorias mais vulnerveis da sociedade brasileira, pois alm de no estarem preparados para competir numa sociedade capitalista, muitos deles so analfabetos ou nem mesmo falam a lngua portuguesa, que o idioma do povo brasileiro.

    A Constituio revela tambm certa preocupao com a igualdade de acesso aos servios fundamentais prestados pela sociedade e pelo Estado, quando reconhece a sade e a educao como direitos de todos e deveres do Estado (artigos 196 e 205). Considerando-se que grande parte da populao muito pobre e no tem meios econmicos para pagar pelos cuidados dc sade e pela educao, importante o reconhecimento desses direitos, pois da pode nascer a atribuio de responsabilidade s autoridades pblicas.

    O enunciado sistemtico dos Direitos Humanos est no Ttulo II da Constituio, que trata Dos Direitos e Garantias Fundamentais. O captulo I refere-se aos direitos e deveres individuais e coletivos, que so enumerados em setenta e sete incisos do art. 5o., incluindo vrias garantias formais. E no captulo II, que vai dos artigos 6 ao 11, est a enumerao dos direitos sociais. Esses dois captulos refletem, em muitos pontos, a influncia dos Pactos de Direitos Humanos aprovados pela Organizao das Naes Unidas em 1966, o Pacto de Direitos Civis e Polticos e o Pacto de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais.

    interessante observar que a influncia desses instrumentos normativos internacionais foi indireta. Na realidade, o Brasil s ratificou

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    em 1992 sua adeso aos Pactos de Direitos Humanos, mas atravs da Constituio de Portugal, que acolheu esses pactos e influiu sobre muitos constituintes brasileiros, os direitos civis, polticos, sociais e culturais, como proclamados pela ONU, acabaram chegando Constituio brasileira em 1988 e desse modo j foram, desde ento, inseridos no direito positivo brasileiro com mxima eficcia jurdica.

    Os direitos polticos esto expressos nos artigos 14 a 16 da Constituio. A leitura desses artigos revela que foram acolhidos os direitos considerados clssicos na democracia representativa caracterstica do Estado liberal-burgus. As duas inovaes mais significativas, em relao s anteriores Constituies brasileiras, foram a concesso do direito de voto aos analfabetos e aos maiores de dezesseis anos. Para os maiores de dezoito anos de ambos os sexos o voto obrigatrio, como j ocorria antes, e para os que tiverem entre dezesseis e dezoito anos o exerccio desse direito facultativo.

    Um dado muito expressivo e revelador das fortes resistncias opostas pelos grupos economicamente fortes a inexistncia de um captulo relativo aos direitos econmicos. O art. 170, que define os fundamentos da ordem econmica brasileira, tem a seguinte redao: A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existncias digna, conforme os ditames da justia social .... No h dvida de que essa redao bem expressiva e reflete uma posio terica at avanada para uma sociedade capitalista. Mas importante notar que se trata apenas de uma afirmao abstrata, que no foi complementada pela especificao de meios e garantias de carter prtico e objetivo.

    bem verdade que foram expressos como princpios da ordem econmica a funo social da propriedade e a reduo das desigualdades sociais.Mas ao mesmo tempo a Constituio manteve integralmente e sem restries o direito de herana, por fora do qual haver brasileiros nascendo muito ricos ao lado de outros que j nascero herdeiros, unicamente, da misria de seus pais. Assim tambm a garantia de lucro ilimitado para os empresrios e manipuladores de capital, mais a garantia quase absoluta da propriedade, tornando praticamente inviveis as reformas agrria e urbana, tudo isso torna certo que para mais da metade da populao brasileira a pobreza continuar sendo um obstculo ao uso dos direitos.

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    Garantias formais e obstculos prticos

    Apesar da pobreza e do profundo desequilbrio social, existem direitos fundamentais que podero ser gozados por todos, ainda que com desigualdade. Entre esses h direitos referentes s relaes de trabalho e outros relativos ao acesso aos servios essenciais, sendo necessrio um esforo constante para a garantia desses direitos a fim de que sejam gradativamente reduzidas as agresses dignidade humana. Outros direitos so indispensveis para que as prprias camadas mais pobres da populao, com apoio de organizaes sociais dedicadas aos Direitos Humanos, possam atuar politicamente e ter acesso aos meios judiciais de proteo, visando assegurar todos os direitos reconhecidos pela Constituio e reduzir as desigualdades.

    De vrios modos a Constituio procura assegurar o uso e a defesa dos direitos fundamentais. Assim, pelo 2 do art. 5 ficou estabelecido que os direitos e garantias expressos na Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios constitucionais, ou ainda de tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Com base nessa regra poder ser sustentada a existncia de direitos implcitos, desde que no sejam contrrios a alguma disposio constitucional.

    de extrema importncia o l do art. 5, pelo qual as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata. Na Constituio de Portugal se encontra uma regra muito semelhante a essa, podendo-se dizer que desse modo se garante a aplicao imediata das normas da Constituio referentes a direitos e garantias fundamentais, sem necessidade de aguardar uma lei ordinria regulamentadora. Alguns autores se referem a essas normas como auto-aplicveis, exatamente por no dependerem da edio de outras. O importante que essa inovao constitucional anula o argumento, muitas vezes utilizado por advogados e freqentemente acolhido por juzes e tribunais, segundo o qual as normas constitucionais so apenas programticas e dependem de regulamentao para serem aplicadas.

    As principais garantias formais dos direitos esto contidas no art. 5 da Constituio, tendo sido reiteradas algumas que j constavam de Constituies anteriores, alm de terem sido criados novos instrumentos de garantia.

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    Assim que foi mantido o habeas-corpus, para garantia do direito de locomoo. Essa garantia j existe no direito positivo brasileiro desde 1832, tendo sido aperfeioada durante mais de um sculo e meio de experincia, sendo hoje amplamente utilizada, sobretudo para assegurar a liberdade em casos de priso ilegal ou de sua ameaa.

    O mandado de segurana instrumento utilizado desde 1934, para suspender a aplicao de um ato ilegal, de qualquer autoridade, que ofenda direito lqido e certo de uma pessoa fsica ou jurdica, Houve uma inovao nesse caso, pois a Constituio de 1988 criou o mandado de segurana coletivo, permitindo que um partido poltico, uma organizao sindical, uma entidade de classe ou uma associao legalmente constituda defendam os direitos de seus membros. So duas garantias com objetivos semelhantes.

    Outra inovao foi o habeas data, que permite a uma pessoa saber que informaes constam a seu respeito em qualquer banco de dados de entidades governamentais ou que tenham carter pblico, como, por exemplo, o Servio de Proteo ao Crdito, que de natureza privada mas funciona como servio pblico. Essa garantia foi inspirada na existncia de registros sigilosos mantidos pelos organismos de segurana nacional, muitas vezes com dados errados ou falsos, sobre pessoas que faziam oposio aos governos militares. Atravs do habeas data foi assegurado o acesso a esse e a outros bancos de dados, para conhecimento e eventual correo de erros e falsidades, o que pode ser decisivo para a proteo de direitos individuais.

    Uma garantia nova, que vem sendo objeto de acesa polmica, o mandado de injuno, inspirado no direito norte-americano, mas tendo caractersticas prprias no Brasil. De acordo com a Constituio, ser concedido mandado de injuno sempre que a falta de norma regulamentadora torne invivel o exerccio dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes nacionalidade, soberania e cidadania. Existe divergncia doutrinria e jurisprudencial a respeito do objetivo do mandado de injuno. Muitos entendem que atravs dele pode-se obter do Judicirio a complementao da norma constitucional para um caso concreto que dependa dessa providncia. Outros, porm, sustentam que ao conceder o mandado de injuno o juiz ou tribunal se limitar a comunicar ao rgo do Poder Legislativo competente que este deve elaborar a norma complementar.

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    No Supremo Tribunal Federal, rgo mximo do Poder Judicirio, vem prevalecendo esta ltima interpretao, que preferida pelos juzes de tendncia conservadora. O argumento bsico desses magistrados que o juiz no pode transformar-se em legislador. Contra essa afirmao existe a lembrana de que ao conceder o mandado de injuno o juiz j dispe de uma norma de direito positivo, que o artigo da Constituio reconhecedor do direito ou da prerrogativa, devendo apenas complement-lo para viabilizar a aplicao ao caso que lhe for submetido. Na prtica, se prevalecer a interpretao mais restritiva estar anulado o mandado de injuno, pois a comunicao do juiz no garantir que o Legislativo faa a lei, ou que a faa em tempo curto, nem impedir que o Chefe do Executivo decida vetar o projeto que for aprovado pelo Legislativo, como permite a Constituio. E se o Legislativo simplesmente ignorar o comunicado do juiz no haver qualquer conseqncia, como se o habeas data no existisse, o que demonstra o absurdo da tese sustentada pelo Supremo Tribunal Federal.

    Alm dessas garantias existe ainda a ao popular, que foi ampliada na Constituio de 1988, ganhando alcance bem maior do que tinha anteriormente. Por meio de ao popular qualquer cidado parte legtima para pedir ao juiz a anulao de ato lesivo ao patrimnio pblico ou de entidade de que o Estado participe. A inovao est na possibilidade de ao popular para anulao de atos que sejam lesivos moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimnio histrico e cultural.

    Finalmente, a Constituio prev ainda o exerccio dos direitos de petio e representao, que permitem a qualquer pessoa dirigir-se a uma autoridade, pedindo providncias para a defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.

    H vrios aspectos do sistema de garantias que devem ser ressaltados. O primeiro deles a atribuio de competncias ao Poder Judicirio para efetivao das garantias. Embora quase sempre sejam veementes na defesa de sua independncia e de suas prerrogativas, muitos juizes temem o excesso de responsabilidade e chegam mesmo a dizer que a Constituio exagerou ao confiar todos esses encargos ao Judicirio. A observao dos fatos e o exame da jurisprudncia permitem afirmar que os juzes, de modo geral, vm assumindo seu papel de garantidores de

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    direitos, o que no se verifica, freqentemente, nos tribunais superiores, inclusive no Supremo Tribunal Federal.

    Outro dado significativo a atribuio de competncias a associaes para a defesa de direitos individuais. Alm da legitimidade, j referida, para uso do mandado de segurana coletivo, diz a Constituio, no inciso XXI do art. 5, que as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, tm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente.

    Esta ltima possibilidade dever ganhar importncia com o passar do tempo. As pessoas mais pobres no tm o hbito de utilizar o Poder Judicirio para defender seus direitos, ou por falta de informaes, ou por no conseguirem o auxilio de um advogado ou ainda por terem medo de uma represlia. O nmero de associaes cresceu muito no Brasil nos ltimos anos e por meio delas ser mais fcil e menos perigoso chegar ao juiz para repelir uma agresso a direitos ou para obter a garantia de proteo judicial para um direito negado ou ameaado.

    Direitos Humanos no Brasil: entre o sonho e a realidade Com base no conjunto das situaes e na realidade de agora pode-

    se dizer que os Direitos Humanos, entre os quais esto aqueles que a Constituio enumerou como direitos fundamentais, ainda no adquiriram existncia real para grande nmero de brasileiros. A marginalizao social e os desnveis regionais so imensos e a discriminao econmica e social favorecida e protegida por aplicaes distorcidas de preceitos legais ou simplesmente pela no-aplicao de dispositivos da Constituio. Isso foi agravado na dcada de noventa pela atitude do governo federal brasileiro, que adotou a linha chamada neoliberal, privilegiando objetivos econmicos e financeiros, inclusive de entidades estrangeiras ou multinacionais, que participavam do mercado financeiro brasileiro ou recebiam auxlio do governo atravs de financiamentos ou renncia fiscal, adotando-se essa poltica para dar maior volume expresso econmica do Brasil no cenrio mundial. Os interesses privados, especialmente os de natureza econmica, tiveram absoluta prioridade, mesmo quando contrrios aos interesses do povo brasileiro.

    Os indicadores sociais, especialmente o ndice de Desenvolvimento Humano publicado pela ONU, deixavam evidente que os governos

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    brasileiros, at h bem pouco tempo, no tinham uma poltica social e, mesmo autorizados pelo Parlamento a destinar recursos razoveis s reas sociais mais carentes, realizavam despesas insignificantes nessas reas, deixando, inclusive, de cumprir suas obrigaes constitucionais. Desse modo, pode-se concluir que, passada mais de uma dcada da promulgao da Constituio de 1988, grande parte de seus dispositivos, especialmente aqueles relacionados com a garantia de efetivao dos direitos econmicos, sociais e culturais, que se constituem em condio para que haja liberdade real para todos, associando o direito de ser livre ao poder de ser livre, continuavam espera de aplicao. Persistiam, e ainda persistem, muitas excluses e marginalizaes e injustias sociais mais do que evidentes continuam a existir.

    Entretanto, a sociedade brasileira est mudando, as camadas mais pobres da populao esto adquirindo conscincia de seus direitos e j conseguiram avanar muito no sentido de sua organizao. A sociedade ultra-individualista, criada pelos colonizadores europeus e acentuada no sculo XX pela interferncia do capitalismo internacional, est cedendo lugar a uma nova sociedade de indivduos associados, que comeam a descobrir a importncia da solidariedade. Nesta circunstncia um dado muito favorvel ter uma Constituio que fixa princpios e estabelece normas comprometendo o Brasil, sua sociedade e seu governo com a busca de uma nova forma de organizao social, na qual a pessoa humana seja o primeiro dos valores. importante proteger a Constituio, que em muitos aspectos continua a ser violentada por oligarquias regionais, por latifundirios e mineradoras e por empreendedores econmicos sem escrpulos, muitas vezes com a cumplicidade de autoridades locais. Persiste, tambm, o uso de cargos pblicos relevantes para dar proteo a grandes violadores de direito. Isso ficou muito evidente quando, recentemente, quatro Senadores foram ao Estado do Par com o objetivo de impedir que um grupo de fiscalizao do Ministrio do Trabalho apurasse a denncia da existncia de trabalho escravo em grandes fazendas daquele Estado. Isso tambm o que se verifica pelas constantes violaes dos direitos constitucionais dos ndios e das comunidades indgenas, vtimas de invasores de terras e do assalto s riquezas que legalmente so suas, alm de no receberem o apoio governamental que lhes devido para que tenham protegidos seus direitos fundamentais e sua dignidade.

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    Entretanto, um conjunto de circunstncias, inclusive levantamentos estatsticos efetuados por entidades no-governamentais, vm demonstrando que vrias aes do governo federal, desencadeadas nos ltimos cinco anos, j comearam a produzir efeitos positivos, beneficiando, sobretudo, as camadas mais pobres da populao brasileira. A utopia de um pas de pessoas realmente livres, iguais em direitos e dignidades comeou a despontar. As barreiras do egosmo, da arrogncia, da hipocrisia, da insensibilidade moral e da injustia institucional, que at hoje protegeram os privilegiados, apresentam visveis rachaduras. Existem ainda fortes resistncias, mas os avanos conseguidos nos ltimos anos permitem concluir que j comeou a nascer o Brasil de amanh, que por vias pacficas dever transformar em realidade o sonho, que muitos j ousam sonhar.

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